Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3800/19,4T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTOS-ÍNDICES
INCUMPRIMENTO GENERALIZADO DAS OBRIGAÇÕES
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RP202003093800/19.4T8VNG.P1
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ao requerente cabe fazer a prova de um qualquer dos factos-índices enumerados no nº 1 do art. 20º do CIRE, podendo o devedor fundar a sua oposição, alternativa ou conjugadamente, na não verificação do facto-índice em que o pedido se baseia ou na inexistência da situação de insolvência;
II - O preenchimento do facto-índice previsto na alínea a) do nº 1 do art. 20º do CIRE [suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas] só se verifica quando da parte do devedor ocorre um incumprimento das suas obrigações com carácter generalizado, o que sempre pressupõe um incumprimento alargado, com a abrangência de diversos créditos;
III - Para que se verifique o facto-índice previsto na alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE [falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações] torna-se necessário que o requerente alegue e prove, para além da obrigação incumprida, todas as circunstâncias em que ocorreu esse incumprimento, de modo a poder-se concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada;
IV - A presunção da alínea e) do nº 1 do art. 20º do CIRE pressupõe que a insuficiência de bens penhoráveis seja verificada em processo executivo movido contra o devedor;
V - O princípio do inquisitório previsto no art. 11º do CIRE permite ao juiz que, em processo de insolvência, se sirva de outros factos para além dos alegados pelas partes para fundamentar a sua decisão, mas o exercício deste poder inquisitório não pode, em caso algum, ser pretexto para o tribunal não cumprir os prazos que lhe estão assinalados e, sendo assim, o seu exercício deve ser prescindido quando dele decorra atraso processual, atendendo à primazia que deve ser conferida à celeridade como objetivo nuclear da lei.
VI - Assim, a não realização oficiosa de eventuais diligências, de natureza instrutória, com o fito de se averiguar do valor comercial dos imóveis pertencentes ao devedor que se encontram livres de ónus e encargos, não viola o princípio do inquisitório a que alude o dito art. 11º do CIRE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3800/19.4 T8VNG.P1
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5
Apelação
Recorrente: B…
Recorrido: C…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Rui Moreira e João Diogo Rodrigues

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
B…, residente na Rua …, nº .., 2º esquerdo, Póvoa de Varzim, veio requerer a declaração de insolvência de C…, residente na Rua …, nº …, 1º direito, frente, no Porto.
Alegou, em síntese, que tem um crédito sobre o requerido no montante global de 42.800,00€, vencido a 3.7.2018, sucedendo que este tem vindo a onerar ou a vender o património e a aumentar o passivo. O património do requerido já não é suficiente para pagar as dívidas, sendo-lhe desconhecidos quaisquer rendimentos.
O requerido, regularmente citado, deduziu oposição, opondo-se à declaração de insolvência. Impugnou o crédito invocado pelo requerente, bem como a situação de insolvência, alegando que sempre viveu do seu património, como é do conhecimento do requerente, e que não tem dívidas vencidas.
Foram identificados o objecto em litígio e enunciados os temas da prova.
Procedeu-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais.
Foi depois proferida sentença que declarou improcedente o pedido de declaração de insolvência, dele absolvendo o requerido.
O requerente, inconformado, interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A - A decisão é nula nos termos da al. c) do art. 615 do CPC, por a matéria de facto apurada, estar em oposição com o decidido, na medida em que os factos dados como provados são suficientes para que o recorrido seja declarado insolvente nos termos dos arts. 3º nº1 e 20º nº1 als. a), b) e e) do CIRE.
B - Dos factos dados como provados não podem deixar de se considerar que preenchem os requisitos legais para serem subsumidos às previsões legais constantes das als. a), b) e e) supra;
C – A decisão recorrida na medida em que não deu como provado que os dois únicos prédios urbanos que o recorrido tem registados em seu nome têm um valor patrimonial total de cerca de metade do valor da dívida correspondente ao seu valor comercial no montante de 31.000,00€ violou o disposto nos arts. 411, 412, e 413 do CPC e 11 do CIRE;
D – Já que da descrição predial relativa a cada um dos prédios consta o artigo relativo à sua inscrição na matriz predial urbana da freguesia …, e consequentemente o respectivo valor patrimonial;
E – Sendo facto público, notório e de conhecimento oficioso que por força das regras e fórmulas de cálculo do valor patrimonial dos prédios urbanos nos termos do CIMI aquele valor corresponde agora praticamente ao seu valor comercial corrente, a partir da avaliação geral ocorrida no país em 2012;
F – Já que o Recorrente alegou que o património do recorrido por força de todas as vendas de prédios que este efetuou para pagar as dívidas, já não chegava para o pagamento da sua dívida, ao contrário do que a Exmª Sra. Juiz a quo refere na sua fundamentação, como consta inequívoco dos items da p.i.;
G – Agravado agora pelo facto apurado em sede de depoimento de parte de que o recorrido se ter provado por confissão que não possuí quaisquer rendimentos e que vive da venda de propriedades, com cujo preço se sustenta;
H – Resulta dos factos provados que as hipotecas canceladas a que se reportam parte dos factos que a Sra. Juiz a quo deu como provados representam um passivo de mais de 200 mil euros contraído entre 2017 e 2018, para cuja liquidação o recorrido vendeu os demais prédios, com excepção dos dois que a Sra. Juiz a quo refere na sentença e que diz poderem ser arrestados e penhorados no processo próprio;
I – Isto como se o processo de insolvência não fosse o meio próprio de apreender os prédios (dois) que se conhecem do recorrido e promover a sua venda em sede de incidente de liquidação para pagamento ao Recorrente e aos demais credores que possam existir, sem privilegiar qualquer credor, como o que tem vindo a ocorrer.
Pretende pois que o requerido seja declarado insolvente.
O requerido apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
IApurar se a decisão recorrida enferma da nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do art. 615º do Cód. de Proc. Civil;
II - Apurar se deve ser declarada a insolvência do requerido com base na verificação dos factos presuntivos previstos nas alíneas a), b) e e) do art. 20º do CIRE.
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É a seguinte a factualidade dada como provada na decisão recorrida:
a) O requerido, por documento datado de 3 de Janeiro de 2018, denominado “Confissão de Dívida”, declarou confessar-se devedor ao requerente da quantia de 30.000,00 euros, que do mesmo recebeu, e obrigar-se a pagar tal quantia até ao dia 3 de Julho de 2018, “a depositar ou transferir para a conta com NIB (…), de que o Segundo é titular”, sendo que com o crédito do referido montante na conta do Segundo outorgante fica automaticamente conferida a respectiva quitação desta dívida”;
b) Do referido documento consta, ainda, o seguinte: “Em caso de não pagamento da quantia supra na ou até à data de vencimento na conta em causa, a presente dívida passa a vencer juros à taxa legal de 4% (…), acrescida da sobretaxa de 5% (…), a título de cláusula penal por incumprimento.”;
c) O requerido, por documento datado de 6 de Março de 2018, denominado “Confissão de Dívida”, declarou confessar-se devedor ao requerente da quantia de 8.000,00 euros, que do mesmo recebeu, e obrigar-se a pagar tal quantia até ao dia 3 de Julho de 2018, “a depositar ou transferir para a conta com NIB (…), de que o Segundo é titular”, sendo que com o crédito do referido montante na conta do Segundo outorgante fica automaticamente conferida a respectiva quitação desta dívida”;
d) Do referido documento consta, ainda, o seguinte: “Em caso de não pagamento da quantia supra na ou até à data de vencimento na conta em causa, a presente dívida passa a vencer juros à taxa legal de 4% (…), acrescida da sobretaxa de 5% (…), a título de cláusula penal por incumprimento.”;
e) O requerente, no dia 22 de Março de 2018, emprestou ao requerido, o qual se obrigou a restituir, o montante de 2.000,00 euros, transferido para a conta bancária do requerido;
f) O requerente, no dia 3 de Maio de 2018, emprestou ao requerido, o qual se obrigou a restituir, o montante de 600,00 euros, transferido para a conta bancária do requerido;
g) O requerente, no dia 13 de Julho de 2018, emprestou ao requerido, o qual se obrigou a restituir, o montante de 200,00 euros, transferido para a conta bancária do requerido;
h) O requerente, no dia 20 de Julho de 2018, emprestou ao requerido, o qual se obrigou a restituir, o montante de 2.000,00 euros, transferido para a conta bancária do requerido;
i) A data de 3 de Julho de 2018, referida nas alíneas a) e c), correspondia à data que o requerido tinha para si como a da venda de um imóvel, com cujo preço pagaria as quantias em dívida;
j) O requerido não pagou ao requerente os valores mencionados nas alíneas a) a h);
k) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o prédio urbano com o número 1975/20170713;
l) O requerido constituiu sobre o prédio urbano referido na alínea anterior hipoteca voluntária a favor de D…, para garantia de empréstimo, capital de 51.600,00 euros, despesas de 5.000,00 euros, montante máximo assegurado de 56.600,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 545, de 17 de Agosto de 2017;
m) O requerido constituiu sobre o mesmo prédio urbano hipoteca voluntária a favor de D…, para garantia de empréstimo, capital de 6.720,00 euros, despesas de 2.500,00 euros, montante máximo assegurado de 9.220,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 882, de 9 de Abril de 2018;
n) O registo da hipoteca voluntária referida na alínea n) foi cancelado através da inscrição com a ap. 3490, de 29 de Outubro de 2018;
o) O requerido vendeu o prédio urbano identificado na alínea k) à sociedade comercial “E…, Lda.” – inscrição com a ap. 2140, de 15 de Novembro de 2018;
p) O registo da hipoteca voluntária referida na alínea m) foi cancelado através da inscrição com a ap. 1736, de 31 de Janeiro de 2019;
q) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o prédio urbano com o número 1815/20150909;
r) O requerido constituiu sobre o prédio urbano referido na alínea anterior hipoteca voluntária a favor de D…, para garantia de empréstimo, capital de 51.600,00 euros, despesas de 5.000,00 euros, montante máximo assegurado de 56.600,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 545, de 17 de Agosto de 2017;
s) O requerido constituiu sobre o mesmo prédio urbano hipoteca voluntária a favor de D…, para garantia de empréstimo, capital de 6.720,00 euros, despesas de 2.500,00 euros, montante máximo assegurado de 9.220,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 882, de 9 de Abril de 2018;
t) O requerido vendeu o prédio urbano identificado na alínea q) à sociedade comercial “E…, Lda.” – inscrição com a ap. 3047, de 26 de Outubro de 2018;
u) O registo da hipoteca voluntária referida na alínea r) foi cancelado através da inscrição com a ap. 3490, de 29 de Outubro de 2018;
v) O requerido comprou o prédio urbano identificado na alínea q) à sociedade comercial “E…, Lda.” – inscrição com a ap. 1778, de 31 de Janeiro de 2019;
w) O registo da hipoteca voluntária referida na alínea s) foi cancelado através da inscrição com a ap. 1779, de 31 de Janeiro de 2019;
x) O requerido vendeu o prédio urbano identificado na alínea q) a F… – inscrição com a ap. 1378, de 19 de Fevereiro de 2019;
y) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o prédio urbano com o número 1814/20150909;
z) O requerido constituiu sobre o prédio urbano referido na alínea anterior hipoteca voluntária a favor de D…, para garantia de empréstimo, capital de 51.600,00 euros, despesas de 5.000,00 euros, montante máximo assegurado de 56.600,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 384, de 6 de Julho de 2017;
aa) O requerido constituiu sobre o mesmo prédio urbano hipoteca voluntária a favor de D…, para garantia de empréstimo, capital de 6.720,00 euros, despesas de 2.500,00 euros, montante máximo assegurado de 9.220,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 882, de 9 de Abril de 2018;
bb) O requerido vendeu o prédio urbano identificado na alínea z) à sociedade comercial “E…, Lda.” – inscrição com a ap. 2466, de 8 de Fevereiro de 2019;
cc) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o prédio urbano com o número 1813/20150909;
dd) O requerido constituiu sobre o prédio urbano referido na alínea anterior hipoteca voluntária a favor da sociedade comercial “E…, Lda.”, para garantia de empréstimo, capital de 26.000,00 euros, despesas de 5.000,00 euros, montante máximo assegurado de 31.000,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 3269, de 11 de Outubro de 2017;
ee) O requerido constituiu sobre o mesmo prédio urbano hipoteca voluntária a favor da sociedade comercial “E…, Lda.”, para garantia de empréstimo, capital de 5.000,00 euros, despesas de 1.500,00 euros, montante máximo assegurado de 6.500,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 974, de 2 de Outubro de 2018;
ff) O requerido vendeu o prédio urbano identificado na alínea cc) a G… – inscrição com a ap. 3557, de 22 de Maio de 2019;
gg) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o prédio urbano com o número 1812/20150909;
hh) O requerido constituiu sobre tal prédio urbano hipoteca voluntária a favor da sociedade comercial “E…, Lda.”, para garantia de empréstimo, capital de 68.800,00 euros, despesas de 5.000,00 euros, montante máximo assegurado de 73.800,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 2741, de 15 de Setembro de 2017;
ii) O registo da hipoteca voluntária referida na alínea anterior foi cancelado através da inscrição com a ap. 2227, de 16 de Setembro de 2019;
jj) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o prédio urbano com o número 1981/20170907;
kk) O requerido constituiu sobre tal prédio urbano hipoteca voluntária a favor da sociedade comercial “E…, Lda.”, para garantia de empréstimo, capital de 68.800,00 euros, despesas de 5.000,00 euros, montante máximo assegurado de 73.800,00 euros, registada através da inscrição com a ap. 2741, de 15 de Setembro de 2017;
ll) O registo da hipoteca voluntária referida na alínea anterior foi cancelado através da inscrição com a ap. 2227, de 16 de Setembro de 2019;
mm) O requerente e o requerido conheceram-se no H…, há muitos anos, onde o requerido costumava ir para jogar;
nn) O requerido sempre viveu do seu património.
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Na decisão recorrida deixou-se ainda consignado não se ter provado qualquer outro facto, designadamente, os demais alegados nos artigos 7º, 8º, 11º, 23º, 24º e 25º do requerimento inicial e nos artigos 7º, 9º, 10º, 20º, 21º, 33º, 39º, 45º, 48º, 50º e 55º da oposição.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – O recorrente argui, em primeiro lugar, a nulidade da decisão recorrida ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil por entender que a matéria de facto está em oposição com o decidido.
Porém, conforme decorre deste preceito a nulidade invocada pelo recorrente só ocorre quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, uma vez que não pode se verificar aqui contradição lógica. Isto é, tal nulidade apenas é cometida se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente. Esta oposição não se confunde, pois, com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.[1]
Sucede que da leitura da decisão recorrida não se alcança que haja nela qualquer oposição entre os seus fundamentos e a decisão, bem pelo contrário. Com efeito, a linha argumentativa seguida pela Mmª Juíza “a quo” no sentido da não verificação dos factos presuntivos de insolvência previstos no art. 20º, nº 1 do CIRE conduz, como consequência lógica, à improcedência do pedido de declaração de insolvência formulado pelo requerente.
Aliás, em bom rigor, o que o recorrente sustenta nas suas alegações é a ocorrência de um erro de julgamento, que é realidade diversa de oposição entre fundamentos e decisão, geradora de nulidade.
Ora, desse eventual erro de julgamento iremos tratar de seguida, de modo a apurar se, “in casu”, da factualidade apurada resulta, ou não, estarem preenchidos factos indiciadores da insolvência.
Todavia, a nulidade arguida sempre é de considerar não verificada.
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II – 1. Prosseguindo, constata-se pois que o requerente, nas suas alegações de recurso, sustenta que a matéria fáctica apurada é suscetível de integrar a previsão das alíneas a), b) e e) do nº 1 do art. 20º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), ao invés do que se entendeu na decisão recorrida, onde, porém, se afastou o preenchimento apenas das duas primeiras alíneas.
Vejamos então.
O art. 1º do CIRE diz-nos que «o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.»
As pessoas singulares também podem ser objeto de processo de insolvência – art. 2º, nº 1, al. a) do CIRE.
Depois, no art. 3º, nº 1 do mesmo diploma estabelece-se que «é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.»
Deverá entender-se que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva é a insuscetibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Poderá assim suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, da mesma forma que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.[2]
O estado de insolvência não é assim imediatamente apreensível, de tal modo que para o tornar manifesto o legislador lança mão de factos que revelam esse estado e que estão descritos nas diversas alíneas do nº 1 do art. 20º do CIRE, sendo designados usualmente por factos-índices ou presuntivos da insolvência.
São os seguintes:
a) a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) a fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou o abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) a dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e a constituição fictícia de créditos;
e) a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) o incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do art. 218º do CIRE;
g) o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de alguns seguintes tipos; i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação desse contrato; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) sendo o devedor uma das entidades referidas no nº 2 do art. 3º, a manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço efetuado, ou o atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
No presente caso, em que não foi declarada a insolvência do requerido, o recorrente, como já se referiu, sustenta que esta o deveria ter sido por se verificarem, na sua ótica, os factos-índices previstos nas alíneas a), b) e e), sendo certo que, face à redacção da parte final do nº 1 do art. 20º do CIRE, a lei se bastaria com a verificação apenas de um desses factos.
O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objetivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, fazer a demonstração efetiva da situação de penúria traduzida na insuscetibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida, no art. 3º, nº 1 do CIRE, como característica nuclear da situação de insolvência.
Caberá então ao devedor, se nisso estiver interessado e o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Isto é, caber-lhe-á elidir a presunção emergente do facto-índice, solução que, de resto, resulta do disposto nos nºs 3 e 4 do art. 30º do CIRE.[3]
O incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice, quando pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, devendo o requerente, então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias, das quais seja razoável, uma vez demonstradas, deduzir a penúria generalizada.
Só não será assim quando o incumprimento diga respeito a um dos tipos de obrigações enumeradas na alínea g), porquanto, tal ocorrência, verificada pelo período de seis meses aí referido, fundamenta, só por si, sem necessidade de outros complementos, a instauração de ação pelo legitimado, deixando para o devedor o ónus de demonstrar a inexistência da impossibilidade generalizada de cumprir e, logo, da insolvência.[4]
Neste contexto, poder-se-á afirmar que ao requerente cabe-lhe demonstrar um qualquer dos factos-índices enumerados no nº 1 do art. 20º do CIRE e o requerido poderá fundar a sua oposição, alternativa ou conjugadamente, na não verificação do facto-índice em que o pedido se baseia ou na inexistência da situação de insolvência.[5] [6]
2. Regressando agora ao caso concreto, principiaremos pela alínea a) – [suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas] – em que por “suspensão generalizada” se deve entender a cessação, senão de todas elas, de um conjunto muito amplo de obrigações do devedor[7]. Ou seja, o devedor deixa de dar satisfação aos seus compromissos em termos que projetam a sua incapacidade de pagar[8]. De qualquer modo, essa situação não se pode considerar preenchida quando apenas se demonstra que em relação a uma concreta dívida ou credor o devedor deixou de cumprir, nada se demonstrando sobre a existência de outras dívidas já vencidas que também estejam em incumprimento. A afirmação de haver um incumprimento generalizado exige a demonstração de que o incumprimento abrange já diversos créditos, que tem uma incidência abrangente ou alargada.[9]
Sucede que a matéria fáctica dada como assente, e que não foi objeto de impugnação por parte do recorrente nos termos do art. 640º do Cód. de Proc. Civil, não permite considerar verificado este facto-índice de insolvência, uma vez que dela não flui que, para além da dívida contraída perante o requerente no montante de 42.800,00€, o devedor, aqui requerido, tenha presentemente qualquer outra dívida.
Não está, pois, demonstrado que tenha ocorrido da parte do requerido um incumprimento das suas obrigações de cariz generalizado, o que sempre pressuporia um incumprimento alargado, com a abrangência de diversos créditos.
3. Quanto à alínea b) – [falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações] – há desde logo a sublinhar, na linha do que já atrás se escreveu, que este facto indiciador da insolvência não se basta com o mero incumprimento de uma ou de algumas das obrigações vencidas. É igualmente imprescindível que o incumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, o que impõe que o requerente alegue e prove, para além da obrigação incumprida, todas as circunstâncias em que ocorreu esse incumprimento, de modo a poder-se concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada.[10]
Importam aqui factos que preencham a insatisfação de uma ou mais obrigações e o circunstancialismo que a rodeou, e que sejam tidos como idóneos e vocacionados para, razoavelmente e em consonância com os ditames próprios da experiência comum, fazer concluir pela falta de meios do devedor para solver em tempo os seus vínculos.[11]
Ou seja, do incumprimento terá que se inferir a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade dos seus compromissos.[12]
E será que tal é possível no presente caso?
Cremos que a resposta a esta questão terá de ser negativa. A dívida do requerido perante o requerente, como já se referiu, ascende a 42.800,00€, mas deste montante e das circunstâncias em que a mesma foi contraída, não se extrai desde logo a conclusão de que o não pagamento dessa dívida revela a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
É que não pode ser ignorado o facto de, pese embora o requerido entre 2017 e 2018 ter constituído hipotecas e vendido imóveis, algumas dessas hipotecas foram entretanto canceladas.
Daí decorre que existem presentemente dois imóveis pertencentes ao requerido que se encontram livres de ónus e encargos e que, por esse motivo, poderão em sede própria ser objeto de arresto ou penhora.
Tratam-se dos prédios com os números 1812/20150909 e 1981/20170907 da Conservatória do Registo Predial de Lousada, freguesia de …, o que significa que o requerido não logrou fazer a prova do facto-índice a que alude a alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE.
A existência destes dois prédios urbanos, livres de ónus e encargos, não permite concluir que o devedor, aqui requerido, apesar de dever ao ora requerente a importância de 42.800,00€, esteja impossibilitado de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Sustenta o recorrente, nas suas alegações, ser facto notório que o valor patrimonial destes dois imóveis, determinado nos termos do CIMI (Código do Imposto Municipal sobre Imóveis), se circunscreve num caso a 8.850,00€ e noutro a 17.280,00€, o que, totalizando 26.130,00€ e correspondendo praticamente ao seu valor comercial corrente, se situa em cerca de metade do valor da dívida.
Assim, esse valor, na sua perspetiva, por força do disposto nos arts. 411º, 412º e 413º do Cód. de Proc. Civil e 11º do CIRE, deveria ter sido atendido nos presentes autos. O art. 11º do CIRE diz-nos que no processo de insolvência a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes e no art. 412º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil estabelece-se que não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.
São, pois, notórios os factos que são conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência.[13]
Ora, o valor patrimonial dos imóveis determinado nos termos do CIMI não pode de modo algum ser entendido como um facto notório, nem tão-pouco se pode considerar, pela mesma razão, que esse valor é praticamente igual ao seu valor comercial, de mercado.
Os critérios que levam à determinação do valor tributário de um imóvel não se confundem com aqueles que definem o seu valor comercial, onde o funcionamento do mercado se revela o critério essencial.
Não pode, porém, ignorar-se que a determinação do valor dos prédios pertencentes ao requerido releva aqui apenas para se apurar da verificação, ou não, do facto-índice previsto na alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE, o que impunha ao requerente a prova de que o mesmo era insuficiente para o pagamento da generalidade das obrigações do devedor.
Obrigações essas que se cingem à dívida para com o requerente.
Sucede que para essa prova nunca seria bastante a mera referência ao valor tributário dos imóveis, impondo-se antes a prova de que o seu valor comercial, que não coincide com aquele, não permitia ao devedor satisfazer as suas obrigações.
Imprescindível era então que o requerente, sobre o qual recai o ónus de provar a verificação dos factos presuntivos da insolvência previstos no art. 20º, nº 1 do CIRE, alegasse e provasse qual o valor comercial dos imóveis e que o mesmo correspondia a importância insuscetível de permitir o pagamento das dívidas do requerido.
Acontece que o apuramento desse valor comercial, que não se trata de facto de que o tribunal poderia ter conhecimento por virtude do exercício das suas funções (art. 412º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil), sempre se trataria de diligência que escaparia ao âmbito do princípio do inquisitório consagrado no art. 11º do CIRE.
Com este preceito permite-se ao juiz que se sirva de outros factos para além dos alegados pelas partes para fundamentar a sua decisão, mas o exercício deste poder inquisitório não pode, em caso algum, ser pretexto para o tribunal não cumprir os prazos que lhe estão assinalados e, sendo assim, o seu exercício deve ser prescindido quando dele decorra atraso processual, atendendo à primazia que deve ser conferida à celeridade como objetivo nuclear da lei.[14]
Como tal, a não realização oficiosa de eventuais diligências, de natureza instrutória, com o fito de se averiguar do valor comercial dos imóveis, em nada viola o princípio do inquisitório a que alude o dito art. 11º do CIRE.
Há então que concluir no sentido da não verificação da previsão da alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE.
4. Por último, há que passar à alínea e) – [insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor] - não considerada na decisão recorrida, mas agora aflorada pelo requerente em sede recursiva.
A este propósito, é de referir que a insuficiência dos bens penhoráveis sempre terá que ser verificada no âmbito de processo executivo movido contra o devedor, o que, neste caso, não se mostra demonstrado, sendo, inclusive, de sublinhar que o requerente nem sequer alega ter intentado qualquer execução contra o devedor.[15]
Por conseguinte, também o preenchimento desta alínea se mostra afastado.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo requerente B… e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.

Porto, 9.3.2020
Rodrigues Pires
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues (com dispensa de visto)
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[1] Cfr. Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum”, 4ª ed., págs. 381/382.
]2] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE anotado”, 2ª ed., pág. 85.
[3] É a seguinte a redacção destes preceitos: «Nº 3 – A oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência. Nº 4: Cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no nº 3 do art. 3.»
[4] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 205/6.
[5] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 243/4.
[6] Sobre a questão que se vem apreciando cfr. também os Acórdãos da Relação do Porto de 26.10.2006, p. 0634582, de 4.10.2007, p. 0733360 e de 14.9.2010, p. 6401/09.1TBVFR.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 8.5.2012, pº 716/11.6TBVIS.C1 e Ac. Rel. Lisboa de 4.12.2014, pº 877/13.0YXLSB.L1-6, disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 27.10.2011, proc. 248/11.2TYLSB.L1-8, disponível in www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Ac. Rel. Porto de 7.12.2017, proc. 3061/16.7T8AVR-B.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Acs. Rel. Porto de 14.9.2010, p. 2793/08.8TBVNG.P1, de 18.6.2013, p. 3698/11.0TBGDM-A.P1 e de 22.9.2014, p. 258/14.8TJPRT-B.P1 todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 24.5.2011, p. 221/10.8TBCDV-A.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. também Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 8ª ed., pág. 143.
[13] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 209.
[14] Cfr, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 119 e 120.
[15] Cfr. Ac. Rel. Porto de 11.9.2018, proc. 6983/17.4T8VNG-A.P1, disponível in www.dgsi.pt.