Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3278/18.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
DIVÓRCIO
COMUNHÃO DE MÃO COMUM
COMPENSAÇÃO ENTRE EX-CÔNJUGES
Nº do Documento: RP202207133278/18.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O abuso do direito funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica.
II – Não configura abuso do direito o facto de o ex-cônjuge deixar de exercer a sua atividade de médico dentista numa sociedade cuja quota maioritária foi licitada pela ex-mulher, de quem se divorciara em contexto de conflitualidade, sendo a quota minoritária detida pelo pai desta, tendo passado a exercer essa atividade profissional noutros locais para onde levou os seus clientes.
III - Apesar de terem cessado, em consequência do divórcio, as relações patrimoniais entre os cônjuges, mantém-se até à partilha a chamada comunhão de mão comum ou propriedade coletiva com aplicação à mesma das regras da compropriedade.
IV - Sendo qualitativamente iguais os direitos dos “consortes”, e sendo ainda certo que o uso da “coisa comum” por um dos “comproprietários” não constitui, em princípio, posse exclusiva ou posse superior à do outro, é de concluir que aquele que não usufrui da sua “quota-parte” tem direito a receber uma compensação pelo valor do uso desta.
V - Condenar o ex-cônjuge em metade do valor correspondente às prestações bancárias assumidas para pagamento do empréstimo destinado à aquisição da casa de morada de família, sem que se atribuísse a este qualquer compensação em virtude da sua utilização estar a ser feita exclusivamente pelo outro ex-cônjuge, significaria introduzir um intolerável desequilíbrio entre os dois ex-cônjuges, contrariando-se as exigências da justiça e da equidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3278/18.0T8PTR.P1
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 6
Apelação
Recorrentes: AA; BB, CC e DD
Recorridos: os mesmos
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
O autor AA intentou contra os réus BB, CC e DD a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, peticionando que:
a) Os réus paguem, cada um deles, ao autor a quantia de 4.476,28€ e juros vencidos até integral pagamento;
b) A primeira ré veja reconhecido o direito de crédito do autor de 62.413,13€, a ser pago no momento em que for efetuada a partilha do património comum do casal subsequente ao divórcio.
Alega, em síntese, que foi casado com a primeira ré e, por força da relação conjugal, era genro da segunda e do terceiro réus.
Enquanto casados, o autor e a primeira ré contraíram em 20.8.2001 um empréstimo pessoal junto do hoje denominado Banco 1..., relacionado com a denominada “C... Lda.” no valor de 14.615,36€, empréstimo esse que foi avalizado pelos dois outros réus e também pelos progenitores do autor.
Esse contrato entrou em incumprimento em 7.3.2008.
Ainda na constância do matrimónio, o autor e a primeira ré outorgaram em nome da sociedade “C... Lda.” um contrato de leasing com o hoje denominado Banco 1... para aquisição de imóvel para essa sociedade, tendo então ambos subscrito como avalistas uma livrança no valor de 11.033,63€, título que foi igualmente avalizado pelos dois outros réus e também pelos progenitores do autor.
Esse contrato entrou em incumprimento em 7.3.2008.
Para aquisição de habitação para o então casal e respetivo recheio, o autor e a primeira ré outorgaram dois contratos de mútuo com o então “Banco 2... SA” em 23.3.2000: um com o número ... no valor de 101.754,77€ e outro com o número ... no valor de 47.385,80€, contratos esses que ficaram garantidos por hipoteca sobre o imóvel que o autor e a primeira ré adquiriram.
Tais contratos de mútuo entraram em incumprimento em 5.8.2007, tendo o banco, agora já o Banco 3... (...), que tomou a posição do mutuante, declarado vencidas todas as prestações contratuais, nos termos do clausulado subscrito pelas partes.
O banco executou os contratos de mútuo, tendo demandado os devedores principais, o autor e a primeira ré e bem assim os fiadores, os progenitores do autor.
No total, o autor fez o pagamento ao Banco 3... S.A., pelo menos, das quantias de:
- 49.415,62€ de 1.1.2004 a 31.12.2012;
- 24.750,96€ de 1.1.2004 a 31.12.2012;
- 23.187,64€ de 1.1.2013 a 01.04.2015;
- 11.734,72€ em 5.3.2015;
- 12.474,76€ de 1.4.2015 até hoje;
- 6.262,56€ de 1.4.2015 até hoje
de forma a regularizar parte substancial da dívida ao Banco, num total de 124.826,26€.
Pagou ainda 21.000,00 + 384,00 + 788,83 = 22.172,83€.
Contestaram os réus que invocam o seguinte:
Ao autor ficou atribuída a utilização da casa de morada da família até à partilha, pelo que é este quem beneficia de todas as utilidades contidas no direito de ali habitar.
Assim, exceciona a 1ª ré a compensação, porquanto à propriedade coletiva ou de mão comum são aplicáveis, com as necessárias adaptações em tudo quanto se não ache especificamente regulado, as regras da compropriedade (art.º 1404º do Cód. Civil).
As prestações do mútuo hipotecário visam o pagamento do empréstimo do valor mutuado para pagamento do preço devido pela aquisição do respetivo direito de propriedade.
Ao usar em exclusivo a casa de morada da família, o autor beneficia em exclusivo de utilidades que só lhe caberiam pela metade, pelo que deverá compensar a 1ª ré pelo valor dessa ocupação exclusiva, na proporção de metade do valor de tal utilização que corresponderá ao valor locativo do imóvel, sendo este de pelo menos 600,00€.
Como tal, a ré é hoje credora do autor pelo valor de pelo menos 47.400,00€, valor esse que irá ser acrescido do montante mensal não inferior a 300,00€ até à partilha.
Excecionam também a prescrição, relativamente aos créditos fundados na relação cambiária, a qual já foi conhecida no despacho saneador.
Excecionam igualmente a ilegitimidade material ou substantiva, a qual também já se encontra conhecida no despacho saneador.
Alegam também que, de acordo com a configuração que o autor conferiu à causa de pedir, resulta que no tocante ao empréstimo a que alude o art. 3º da petição inicial, o mesmo terá sido contraído pelo autor e pela primeira ré, sendo a segunda e terceiro réus intervenientes apenas na relação cambiária decorrente de uma livrança de garantia, enquanto avalistas dos subscritores isto é, dos devedores.
Se o devedor aqui autor cumpre perante o credor, o Banco mutuante, extingue-se por pagamento a obrigação avalizada.
Extinta a obrigação, extingue-se o aval.
E o devedor avalizado não é credor do avalista que se obriga por aval perante o credor do avalizado.
Alegam ainda que a sociedade “C... Lda.”, cuja denominação social contém o próprio nome profissional do autor, foi por este constituída para o exercício pessoal da sua atividade profissional isto é, para, no seu âmbito, o autor exercer a atividade de médico dentista.
Sucede que o autor deixou de exercer no âmbito desta a sua atividade profissional e desviou dela toda a sua clientela.
Sem atividade por exclusiva iniciativa e vontade do autor, a sociedade deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing referidos.
Concluem, assim, pela procedência das exceções e pela improcedência da ação.
Respondeu o autor pugnando como na ação e pela improcedência das exceções.
Proferiu-se despacho saneador no qual se julgaram improcedentes as exceções de prescrição e de ilegitimidade material ou substantiva.
Relegou-se para decisão final o conhecimento da compensação, da exceção perentória inominada e do abuso de direito.
Enunciaram-se os temas de prova.
Procedeu-se à audiência de julgamento com observância do formalismo legal.
Seguidamente proferiu-se sentença que julgou parcialmente procedente a presente ação e
a) condenou os réus:
BB;
CC e
DD
a pagar, cada um deles, ao autor AA a quantia de 3.695,47€, acrescido de juros de mora cíveis vencidos até integral pagamento;
b) condenou a primeira ré, BB, a ver reconhecido o direito de crédito do autor de 62.413,13€, a ser pago no momento em que for efetuada a partilha do património comum do casal subsequente ao divórcio.
c) sobre o crédito referido em b) operar a compensação do crédito da ré BB no valor de 330,00€ mensais, contados desde 30.3.2005 e que aquando da contestação perfazia a quantia de 47.400,00€.
Julgou-se ainda improcedente o remanescente do pedido no valor de 780,81€ peticionado pelo autor, dele se absolvendo os réus.
Inconformados com o decidido interpuseram recurso tanto o autor como os réus.
O autor finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Os réus, por seu turno, finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:

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A ré BB respondeu também ao recurso interposto pelo autor AA, tendo formulado as seguintes conclusões:
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O autor AA, por seu turno, respondeu ao recurso interposto pelos réus.
Finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Foi proferido despacho de admissão de recurso.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Recurso interposto pelos réus:
a) Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
b) Abuso do direito por parte do autor.
IIRecurso interposto pelo autor:
- Compensação da 1ª ré pelo uso exclusivo da casa de morada de família por parte do autor.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
1) O Autor foi casado com a primeira Ré e, por força da relação conjugal, era genro da segunda e do terceiro Réus, vide doc. 1 da contestação.
2) O Autor divorciou-se da Ré em 30/03/2003, doc. 4 da contestação.
3) Enquanto casados, Autor e Primeira Ré contraíram em 20.08.2001 um empréstimo pessoal junto do hoje denominado Banco 1..., relacionado com a denominada “C... Lda.” no valor de 19.951,52, empréstimo esse que foi avalizado pelos segunda e terceiros Réus e bem assim pelos progenitores do Autor, vide doc. a fls. 262 e junto a fls. 311 a 313.
4) Esse contrato entrou em incumprimento em 07.03.2008, vide doc. 1 da p.i..
5) Ainda na constância do matrimónio, Autor e primeira Ré outorgaram em nome da sociedade “C... Lda.” um contrato de leasing com o hoje denominado Banco 1... para aquisição de imóvel para essa sociedade, tendo então ambos subscrito como avalistas uma livrança no valor de €10.920,63 (execução de 11.033,63 euros), título que foi igualmente avalizado pelos segunda e terceiros Réus e bem assim pelos progenitores do Autor, documento fls. 262 e ss. e 274, 277, 278, 279.
6) Esse contrato entrou em incumprimento em 07.03.2008, vide doc. 1 da p.i..
7) A dita sociedade “C... Lda.” veio a ser declarada insolvente em 17.07.2009 no processo 77/09.3TYVNG que pendeu no então 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, tendo acabado por entregar o imóvel ao Banco no âmbito da resolução do contrato de Leasing, vide doc. 14 da contestação.
8) Mercê dos incumprimentos de ambos os contratos, o Banco 1... executou as livranças que os titulavam, tendo demandado todos, Autor e Réus, e bem assim os progenitores do Autor, como executados.
9) As execuções correram termos nos então Juízos de Execução do Porto, a primeira sob o nº 1676/08.6YYPRT no então 2.º Juízo Cível – 2ª secção com o Valor de 14.615,36 euros e a segunda com o nº 1677/08.6YYPRT no então 2.º Juízo Cível – 3ª secção do Tribunal de Execução do Porto com o Valor de 11.033,63 euros, vide doc. junto a fls. 274 a 278, 388 a 398.
10) Após a citação e penhora de bens dos executados, o Autor foi obrigado a encetar diligências para pôr termo às execuções, tendo conseguido negociar com o banco exequente o pagamento da quantia de 21.000,00€.
11) O Autor pagou assim ao Banco 1..., por depósito na conta com o NIB: ... do banco a quantia de 21.000,00 euros em 23 de maio de 2012. (doc. nº 2 da p.i. e doc. 4 de fls. 425).
12) Em face disso o Banco 1... deu entrada em juízo de requerimentos de desistência de ambas as execuções. (doc. nº 3 e 4 da p.i.).
13) O Autor pagou ainda as custas de cada uma das execuções, tendo despendido com a primeira a quantia de 384,00 euros liquidada em 10.09.2012 e da segunda 788,83 euros entregues em 04.10.2012 (doc. nº 5 e 6 da p.i.).
14) Para aquisição de habitação para o então casal e respetivo recheio, Autor e primeira Ré outorgaram dois contratos de mútuo com o então “Banco 2... SA” em 23.03.2000: um com o número ... no valor de 20.400.000$00 (101.754,77 euros) e outro com o número ... no valor de 9.500.000$00 (47.385,80 euros), vide docs. Fls. 282 a 307, bem como fls. 401.
15) Contratos esses que ficaram garantidos por hipoteca sobre o imóvel que Autor e primeira Ré adquiriram.
16) E que hoje ainda pertence a ambos, uma vez que não foi efetuada partilha por divórcio.
17) Tais contratos de mútuo entraram em incumprimento em 05.08.2007, tendo o banco, agora já o Banco 3... (...) que tomou a posição do mutuante, declarado vencidas todas as prestações contratuais, nos termos do clausulado subscrito pelas partes, vide fls. 401. e ss.
18) O banco executou os contratos de mútuo, tendo demandado os devedores principais, o Autor e a primeira Ré e bem assim os fiadores, os progenitores do Autor, vide fls. 401.
19) A execução correu termos no então Tribunal Judicial da Maia sob o nº 5961/09.1TBMAI com o valor de 148.580,55 euros, vide fls. 400v. e ss.
20) O Autor viu de novo o seu património e de seus progenitores agredido com penhoras e, ao fim de alguns anos de pendência do processo, foi obrigado a encetar negociações com vista a tentar pôr termo à execução.
21) Assim, em 04.04.2012 o Autor pagou ao então Banco 3... S.A. a quantia de 22.100,00 euros para fazer cessar o processo, doc. 7 da p.i., 423v e doc. 5 de fls. 425v.
22) E assumiu a obrigação de, para além de continuar a pagar a prestação mensal do empréstimo contratado, pagar ainda um acréscimo de 276,45 euros mensais com início em 09.04.2012 e durante os 84 meses subsequentes por conta das prestações em atraso. (doc. nº 7 da p.i.).
23) O Autor já tinha pago ao banco mutuante entre 01 de janeiro de 2004, - após a separação e divórcio -, e 31 de dezembro de 2012 a quantia de 49.415,62 euros do empréstimo nº ... e ..., ... euros do empréstimo .... (doc. nº 8 e 8ª da p.i.)
24) O Autor pagou ao Banco 3... S. A. de 01-01-2013 até 01-04-2015, um total de 28 meses as prestações mensais dos empréstimos (551,68 euros), mais as prestações mensais do acordo judicial (276,45 euros), ou seja 828,13 euros mensais, fazendo um total de 23.187,64 euros, vide doc. 6 de fls. 426 a 433, conjugado com doc. 7 da p.i/423v.
25) Em 05-03-2015, o Autor fez a liquidação total do acordo judicial, antecipando as prestações vincendas, pagando o remanescente de 11.734,72 euros (doc. nº 9 da p.i.).
26) Daí para cá, ou seja desde 01.04.2015 até 25 de janeiro de 2018 o Autor pagou ao Banco 3... a quantia de 12.474,76 euros do empréstimo ... e ..., ... euros do empréstimo .... (doc. nº 10 e 10ª da p.i.)
27) No total, o Autor fez o pagamento ao Banco 3... S.A., pelo menos, das quantias de: - 49.415,62€ de 01.01.2004 a 31.12.2012; - 24.705,96€ de 01.01.2004 a 31.12.2012; - 23.187,64€ de 01.01.2013 a 01.04.2015; - 11.734,72€ em 05.03.2015; - 12.474,76€ de 01.04.2015 até hoje; - 6.262,56 € de 01.04.2015 até hoje de forma a regularizar parte substancial da dívida ao Banco.
28) Continuando a pagar a prestação mensal dos empréstimos no valor de 544,56 euros, vide doc. 6 e de fls. 431 a 433.
29) Ao Autor ficou atribuída a utilização da casa de morada da família até à partilha.
30) E é ali que o Autor de facto reside, utilizando-a com exclusão da primeira Ré.
31) Isto é, é ele quem beneficia de todas as utilidades contidas no direito de ali habitar, apesar de tal imóvel ser propriedade comum do casal, ainda não partilhada.
32) Trata-se de um “T3”, com lugar de garagem e arrumos, com boas áreas, cujo valor locativo mensal é de pelo menos 600,00 euros, vide relatório pericial de fls. 439.
33) O Autor é médico dentista, usando o nome profissional de “AA” (doc. nº 2 da contestação.
34) A sociedade “C... Lda.”, cuja denominação social contém o próprio nome profissional do Autor, foi por este constituída para o exercício pessoal da sua actividade profissional, isto é, para no seu âmbito o Autor exercer a sua actividade de médico dentista.
35) O contrato de leasing relativo às instalações da Clínica, as obras de adaptação do local e a aquisição de todos os equipamentos médicos necessários, tiveram por causa única esse exercício profissional do Autor, do qual sairiam os rendimentos necessários ao respectivo pagamento.
36) Em Janeiro de 2004 a primeira Ré instaurou contra o Autor acção de divórcio litigioso, conforme documento 3 da contestação.
37) Em 30/03/2005 foi decretado o divórcio, após ter sido convertido em divórcio por mútuo consentimento, conforme doc. nº 4 da contestação.
38) Para tal fim foi por Autor e primeira Ré junta aos autos, além do mais, o que nessa data disseram ser a relação dos bens comuns, da qual consta sob a verba nº 5 do activo a quota maioritária do capital social da referida sociedade “C... Lda.”, conforme doc. nº 5 da contestação.
39) Em 9 de Maio de 2005 a primeira Ré requereu a partilha tendo instaurado o devido processo especial de inventário, conforme doc. nº 6 da contestação.
40) E nesse processo apresentou a relação de bens que se junta, da qual faz parte a referida quota maioritária do capital social sob a verba nº 1, conforme doc. nº 7 da contestação.
41) Em 20/05/2006 realizou-se a conferência de interessados à qual não compareceu o Autor e na qual a primeira Ré licitou essa mesma verba nº 1, conforme doc. nº 8 da contestação.
42) Em 9 de Junho de 2006 a primeira Ré deu entrada nesses autos do requerimento da forma à partilha, conforme doc. nº 9 da contestação.
43) Tendo sido judicialmente determinado que se procedesse dessa forma à partilha, conforme doc. nº 10 da contestação.
44) Em 20 de Junho de 2006 o Autor veio reclamar e arguir nulidades, procurando invalidar a conferência de interessados pedindo a anulação das licitações efectuadas, conforme doc. nº 11 da contestação.
45) Tal pedido foi indeferido, conforme doc. nº 12 da contestação.
46) A partir daí, sendo o titular da restante quota do capital social, à data, pai da R. BB, conforme doc. nº 13 da contestação.
47) O Autor deixou de exercer no âmbito desta a sua actividade profissional e desviou dela toda a sua clientela.
48) Na sequência de tal facto a C..., Limitada, ficou sem actividade e deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo Autor referidos.
49) E embora ele mantivesse a sua actividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua referida sociedade, vide docs. de fls. 446 a 452.
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Não se provaram os seguintes factos:
a) O valor da livrança referida em 5) dos factos provados fosse no valor €11.033,63;
b) O A. tenha deixado de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício constante de tal actividade profissional, manteve exactamente o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a utilização de veículos automóveis, a frequência de hotéis e restaurantes, etc..
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Passemos à apreciação do mérito dos recursos.
I – Recurso interposto pelos réus
a) Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto
Os réus, nas suas alegações de recurso, tendo cumprido adequadamente os ónus previstos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, insurgiram-se contra os nºs 3, 5, 11, 12, 13, 21, 22, 23, 24 e 26 da factualidade dada como provada, pretendendo que os mesmos transitem para o elenco dos factos não provados.
Quanto ao nº 27 da factualidade provada [No total, o Autor fez o pagamento ao Banco 3... S.A., pelo menos, das quantias de: - 49.415,62€ de 01.01.2004 a 31.12.2012; - 24.705,96€ de 01.01.2004 a 31.12.2012; - 23.187,64€ de 01.01.2013 a 01.04.2015; - 11.734,72€ em 05.03.2015; - 12.474,76€ de 01.04.2015 até hoje; - 6.262,56 € de 01.04.2015 até hoje de forma a regularizar parte substancial da dívida ao Banco] entendem que a sua redação deverá passar a ser a seguinte: - O autor fez o pagamento ao Banco 3... S.A. do valor de 11.734,12€ em 05.03.2015.
No tocante aos nºs 48 [Na sequência de tal facto a C..., Limitada, ficou sem actividade e deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo Autor referidos] e 49 [E embora ele mantivesse a sua actividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua referida sociedade, vide docs. de fls. 446 a 452] sustentam que a sua redação deverá ser modificada pela seguinte forma:
48 - Sem actividade por exclusiva iniciativa e vontade do Autor, a C..., Limitada, ficou sem actividade e deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo Autor referidos;
49 - E embora ele mantivesse a sua actividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua sociedade, tendo sido por isso e apenas por isso que a partir de Março de 2007 deixou de cumprir perante os credores dos contratos de leasing e de mútuo por ele referidos nos artigos 3 e 5 da PI, tendo com esse propósito deliberado provocado o insolvência da sociedade.
E quanto ao facto não provado b) [não se provou que… o A. tenha deixado de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício constante de tal actividade profissional, manteve exactamente o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a utilização de veículos automóveis, a frequência de hotéis e restaurantes, etc..] defendem os réus/recorrentes que o mesmo deverá transitar para os factos provados com a seguinte redação:
- O A. deixou de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício constante de tal actividade profissional, manteve exactamente o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a utilização de veículos automóveis, a frequência de hotéis e restaurantes.
Tendo em atenção que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – cfr. art. 662º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil – ir-se-á então averiguar se a pretensão recursiva dos réus merece acolhimento em termos fácticos.
1. No que concerne ao nº 3 [Enquanto casados, Autor e Primeira Ré contraíram em 20.08.2001 um empréstimo pessoal junto do hoje denominado Banco 1..., relacionado com a denominada “C... Lda.” no valor de 19.951,52, empréstimo esse que foi avalizado pelos segunda e terceiros Réus e bem assim pelos progenitores do Autor, vide doc. a fls. 262 e junto a fls. 311 a 313] os réus/recorrentes sustentam que o mesmo deve ser eliminado dos factos provados, transitando para os não provados.
Nesse sentido referem que da certidão do processo executivo nº 1676/08.6YYPRT, junta aos autos pelo autor em 20.9.2019, não resulta que essa execução tivesse por causa um empréstimo pessoal da 1ª ré/recorrente, nem que o seu valor fosse de 19.951,52€, nem que da livrança dada à execução tenham sido avalistas os pais do autor/recorrido.
Em sede de motivação da matéria de facto escreveu o seguinte o Mmº Juiz “a quo” quanto a este ponto factual:
“Relativamente ao ponto 3) dos factos assentes é evidente resultar do documento de fls. 311 a 313 o aval dado pelos RR., conjugado com requerimento executivo de fls. 388 a 393, evidenciando-se da livrança dada à execução possuir o mesmo nº do contrato (cls. nº ...), estando avalizada pelos RR., pelo que nenhuma dúvida se suscitou ao Tribunal quanto ao facto dado por provado.”
Da documentação junta ao processo quanto a este empréstimo – carta, com data de 20.8.2001, remetida por instituição bancária depois integrada no Banco 1... à “C..., Lda.” (fls. 311/313) e certidão extraída do processo executivo nº 1676/08.6YYPRT (fls. 388 e segs.) – resulta o seguinte:
- o empréstimo em causa destinou-se a “... – Apoio para a Aquisição de Imóvel” e ascendeu a 4.000.000$00 (19.951,92€);
- funcionou através de conta aberta em nome da sociedade “C..., Lda.” com o nº cls. 3937621;
- foi contraído pelo período de 15 anos a ser reembolsado em 180 prestações mensais;
- foi garantido através de livrança subscrita pela sociedade e avalizada pelo autor e pelos três réus;
- o “Banco 3... S. A.” moveu ação executiva, por falta de pagamento desta livrança, contra a sociedade “C..., Lda.” e os quatro avalistas, aqui autor e réus, que pendeu sob o nº 1676/08.6 YYPRT do extinto 2º Juízo de Execução do Porto – 2ª secção.
Analisando estes elementos documentais, e em particular a certidão extraída do processo executivo, nada autoriza que quanto a este ponto factual, que provém do art. 3º da petição inicial, se conclua que o empréstimo em causa, mesmo que contraído através da sociedade, não tenha sido um empréstimo pessoal do autor e da 1ª ré.
Até porque a referida certidão não pode deixar de ser conjugada com a documentação constante de fls. 311/313.
No entanto, justifica-se que a sua redação seja alterada, de modo a que esta melhor se compatibilize com o referido teor documental, donde flui a contração do empréstimo em nome da sociedade que subscreve a livrança, sendo esta avalizada pelo autor e pelos réus, mas não pelos progenitores do autor.
Passará assim a ser a seguinte:
3- Enquanto casados, autor e primeira ré contraíram em 20.08.2001, em nome da “C... Lda.”, um empréstimo pessoal junto do hoje denominado Banco 1..., no valor de 19.951,52€, empréstimo esse que foi avalizado pelo autor e pelos réus, vide doc. a fls. 262 e junto a fls. 311 a 313.
2. Quanto ao nº 5 [Ainda na constância do matrimónio, Autor e primeira Ré outorgaram em nome da sociedade “C... Lda.” um contrato de leasing com o hoje denominado Banco 1... para aquisição de imóvel para essa sociedade, tendo então ambos subscrito como avalistas uma livrança no valor de €10.920,63 (execução de 11.033,63 euros), título que foi igualmente avalizado pelos segunda e terceiros Réus e bem assim pelos progenitores do Autor, documento fls. 262 e ss. e 274, 277, 278, 279] os réus/recorrentes sustentam também que o mesmo deverá ser eliminado dos factos provados transitando para o elenco dos não provados.
Nesse sentido referem que da certidão do processo executivo nº 1677/08.4YYPRT, junta aos autos pelo autor em 20.9.2019, não resulta que a autora e a 1ª ré outorgaram em nome da sociedade “C..., Lda.” um contrato de leasing, nem que tenham sido subscritores da livrança aí referida, mas apenas seus avalistas.
Em sede de motivação da matéria de facto o Mmº Juiz “a quo” escreveu o seguinte quanto a este ponto factual:
“A propósito, diga-se que quanto ao ponto 5) dos factos provados, conjugando os documentos de fls. 262 e ss. e 274, 277, 278, 279, é manifesto que o valor da livrança era de €10.920,63 e a execução é que foi de €11.033,63.”
Da documentação junta ao processo quanto a este contrato de leasing – contrato de locação financeira imobiliário celebrado em 20.8.2021 entre “Banco 3... Leasing, S.A.” e a sociedade “C..., Lda.” (fls. 262 e segs) e certidão extraída do processo executivo nº 1677/08.4YYPRT (fls. 394 e segs.) - decorre o seguinte:
- o contrato de locação financeira imobiliário tem o nº ... e foi celebrado pelo prazo de 15 anos, nele figurando como locatária a sociedade “C..., Lda.”, sendo esta sociedade representada pelo autor AA e pelo 3º réu DD;
- a livrança dada à execução no processo com o nº 1677/08.4YYPRT refere-se ao contrato de locação financeira com o nº ... e está subscrita pela sociedade “C..., Lda.” e avalizada pelo autor, pelos réus e ainda pelos pais do autor.
Ora, apreciando estes elementos documentais logo se constata que estes não impõem que o nº 5 da matéria de facto, que corresponde ao art. 5º da petição inicial, seja dado como não provado, embora justifiquem a alteração da sua redação, de modo a que esta melhor se compagine com o conteúdo daqueles documentos.
Passará esta a ser a seguinte:
5 - Ainda na constância do matrimónio do autor e da primeira ré, o autor e o terceiro réu outorgaram em nome da sociedade “C... Lda.” um contrato de leasing com o hoje denominado Banco 1... para aquisição de imóvel para essa sociedade, tendo sido subscrita uma livrança no valor de €10.920,63 (execução de 11.033,63 euros), título que foi avalizado pelo autor, pelos réus e bem assim pelos progenitores do autor, documento fls. 262 e ss. e 274, 277, 278, 279.
3. No tocante aos nºs 11 e 12 [11) O Autor pagou assim ao Banco 1..., por depósito na conta com o NIB: ... do banco a quantia de 21.000,00 euros em 23 de maio de 2012. (doc. nº 2 da p.i. e doc. 4 de fls. 425); 12) Em face disso o Banco 1... deu entrada em juízo de requerimentos de desistência de ambas as execuções. (doc. nº 3 e 4 da p.i.)] os réus/recorrentes entendem igualmente que os mesmos devem ser eliminados dos factos provados, passando a integrar os factos não provados.
Nesse sentido afirmam que os documentos mencionados pelo Mmº Juiz “a quo” nos nºs 11 e 12 não demonstram a realidade dos factos que aí foram dados como assentes.
Vejamos.
O Mmº Juiz “a quo”, em sede de análise crítica da prova produzida, consignou o seguinte, a propósito da prova documental:
“…pese a impugnação efectuada pelos RR., impugnando os documentos, não se vislumbrou ao Tribunal qualquer dúvida séria que abalasse o constante dos documentos e levasse a considerar que os mesmos não tivessem credibilidade em retratar o que neles se encontra contido, porquanto nenhuma contraprova foi feita que abalasse tal credibilidade, constituindo os mesmos prova bastante, prova suficiente, a qual conduz a um juízo de certeza, não de certeza absoluta, mas de certeza bastante, como dizia o Sr. Prof. Alberto dos Reis in Código Processo Cível Anotado, vol III, anotação ao artº 517º.
Da análise dos documentos juntos aos autos pelo A, pese a impugnação dos RR, os quais até juntaram aos autos documentação a corroborar alguns factos alegados pelo A., pelo contexto dos documentos, sequência lógica dos pagamentos efectuados e o neles contido, não tendo sido produzida qualquer contraprova credível, nem sequer foi colocado o julgador numa situação de dúvida, que nesse caso tinha de ser valorada contra quem o facto aproveitava, vide artº 346º do CC e artº 414º do CPC.”
Prosseguindo, há a referir que os dois pontos factuais agora em apreciação se articulam com o antecedente nº 10, não impugnado em sede recursiva, no qual se deu como provado o seguinte: “Após a citação e penhora de bens dos executados, o Autor foi obrigado a encetar diligências para pôr termo às execuções, tendo conseguido negociar com o banco exequente o pagamento da quantia de 21.000,00€.”
O documento nº 2 junto com a petição inicial trata-se de um email enviado pelo advogado do autor, no dia 25.5.2012, à colega que representava o banco exequente com o seguinte teor:
“O Cliente fez a transferência na quarta feira da quantia de 21.000 para a conta que a Exma Colega indicou e que transcrevo:
Conta de Recuperação Banco 3...: ...
NIB: ...
(…)
Uma vez confirmado com o banco então espero que seja posto termo a ambos os processos.”
O documento nº 4 junto com o requerimento do autor de 20.9.2019 (fls. 425) é um comprovativo de movimentos de conta emitido pelo Banco 4..., no qual consta registada a transferência da quantia de 21.000,00€ no dia 25.5.2012.
Os documentos nºs 3 e 4 juntos com a petição inicial correspondem a requerimentos apresentados pelo Banco 3... S. A., no dia 29.5.2022, nos processos com os nºs 1676/08.6YYPRT e 1677/08.4YYPRT, visando a extinção da instância em ambos os processos por inutilidade superveniente da lide, uma vez que o Banco exequente se considera ressarcido.
Sucede que destes elementos documentais, conexionados com o não impugnado nº 10 da matéria de facto, flui que o autor pagou ao banco exequente a importância de 21.000,00€ no dia 25.5.2012 e que, por via desse pagamento, o dito banco veio requerer a extinção de ambas as execuções que havia instaurado.
A apreciação feita pela 1ª Instância dos meios documentais produzidos afigura-se-nos correta e, por esse motivo, os nºs 11 e 12 permanecerão na factualidade provada, embora com alteração da sua redação de modo a melhor se compatibilizarem com a referida prova documental.
Os nºs 11 e 12 passarão pois a ter as seguintes redações:
11 - O autor pagou assim ao Banco 1..., por depósito na conta com o NIB: ... do banco a quantia de 21.000,00 euros em 25 de maio de 2012. (doc. nº 2 da p.i. e doc. 4 de fls. 425);
12 - Em face disso o Banco 1... deu entrada em juízo, em ambas as execuções, de requerimentos com vista à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por se considerar ressarcido (doc. nº 3 e 4 da p.i.).[1]
4. Quanto ao nº 13 [O Autor pagou ainda as custas de cada uma das execuções, tendo despendido com a primeira a quantia de 384,00 euros liquidada em 10.09.2012 e da segunda 788,83 euros entregues em 04.10.2012 (doc. nº 5 e 6 da p.i.)] os réus/recorrentes consideram também que o mesmo deve ser eliminado dos factos provados, transitando para o elenco dos factos não provados.
Nesse sentido afirmam que dos documentos mencionados pelo Mmº Juiz “a quo” no nº 13 não resulta que tenha sido o autor a pagar as custas das duas execuções.
Vejamos.
Do documento nº 5 junto com a petição inicial flui que em 20.7.2012 as custas da execução com o nº 1676/08.6YYPRT ascendem a 384,00€ e nele é indicada a referência multibanco para proceder ao respetivo pagamento.
Do documento nº 6, por seu turno, decorre uma outra referência multibanco e uma outra importância – 788,83€ - que, segundo indicação manuscrita nele aposta, corresponderão ao processo com o nº 1677/08.4YYPRT.
Ora, no nº 10 da matéria de facto, não impugnado, deu-se como provado que o autor encetou diligências para pôr termo às execuções, tendo conseguido negociar com o banco exequente o pagamento da quantia de 21.000,00€. Depois, nos nºs 11 e 12 ficou assente que o autor procedeu ao pagamento dessa quantia em 25.5.2012 e que logo a seguir o banco exequente requereu a extinção de ambas as execuções por inutilidade superveniente da lide, por se considerar ressarcido.
Sucede que neste contexto não faz sentido que o autor, que negociou com o banco exequente o pagamento da aludida importância de 21.000,00€ e que efetivamente a pagou, não tenha depois procedido ao pagamento das custas de ambos processos.
Relevante ainda nesse sentido a circunstância de os documentos nºs 5 e 6 juntos com a petição inicial, referentes às custas das execuções se encontrarem na sua posse.
Como tal, o nº 13 manter-se-á na factualidade provada sem qualquer alteração de redação.
5. Quanto aos factos provados nºs 21 e 22 [21) Assim, em 04.04.2012 o Autor pagou ao então Banco 3... S.A. a quantia de 22.100,00 euros para fazer cessar o processo, doc. 7 da p.i., 423v e doc. 5 de fls. 425v.; 22) E assumiu a obrigação de, para além de continuar a pagar a prestação mensal do empréstimo contratado, pagar ainda um acréscimo de 276,45 euros mensais com início em 09.04.2012 e durante os 84 meses subsequentes por conta das prestações em atraso. (doc. nº 7 da p.i.)] os réus/recorrentes entendem que os mesmos devem ser havidos igualmente como não provados.
Nessa linha referem que os documentos mencionados nos nºs 21 e 22 pelo Mmº Juiz “a quo” não permitem, pelo seu conteúdo, que estes factos possam ser dados como assentes.
Vejamos.
Antes de mais, os nºs 21 e 22 têm que ser conexionados com o antecedente nº 20, onde se deu como provado o seguinte: “O Autor viu de novo o seu património e de seus progenitores agredido com penhoras e, ao fim de alguns anos de pendência do processo, foi obrigado a encetar negociações com vista a tentar pôr termo à execução.”
O documento nº 7 junto com a petição inicial corresponde a um requerimento dirigido ao processo com o nº 5961/09.1TBMAI subscrito pelo “Banco 3... S. A.”, pelo autor AA e ainda pelos pais deste, EE e FF, do qual decorre que celebraram um acordo quanto à retoma do contrato de crédito dado à execução, tendo já sido pago o montante de 22.100,00€, valor este imputado a juros.
Nesse acordo foi ainda convencionado que as prestações vincendas, bem como as vencidas, seriam pagas em 84 prestações mensais no valor unitário de 276,45€, com início em 9.4.2012, e que a instância ficaria suspensa pelo prazo de 84 meses para cumprimento do plano de pagamento da dívida.
Por outro lado, o documento junto a fls. 425v trata-se de uma nota de lançamento emitida pelo Banco 1..., em 4.4.2012, dirigida ao aqui autor AA, donde consta que foi efetuada por EE, seu pai, uma transferência para a sua conta à ordem no montante de 22.100,00€.
Montante este que depois passou da conta do autor para o Banco 1..., o que permitiu a celebração do acordo cujo conteúdo vem refletido no documento nº 7 da petição inicial.
Deste modo, face ao teor dos elementos documentais referidos e à inevitável conjugação que se tem de fazer entre estes dois pontos factuais e o antecedente nº 20, consideramos não haver, também aqui, qualquer motivo para dissentir da convicção probatória da 1ª Instância.
Aliás, a prova documental produzida bem espelha que o autor, com dinheiro proveniente de transferência realizada pelo seu pai, pagou ao Banco 3... a importância de 22.100,00€ e que assumiu ainda a obrigação de, para além de continuar a pagar a prestação mensal do empréstimo contratado, pagar um acréscimo de 276,45€ mensais com início em 9.4.2012 e durante os 84 meses subsequentes por conta das prestações em atraso.
Por esse motivo, os nºs 21 e 22 manter-se-ão na factualidade provada sem qualquer alteração de redação.
6. No tocante aos factos provados nºs 23, 24 e 26 [23 - O Autor já tinha pago ao banco mutuante entre 01 de janeiro de 2004, - após a separação e divórcio -, e 31 de dezembro de 2012 a quantia de 49.415,62 euros do empréstimo nº ... e ..., ... euros do empréstimo ... (doc. nº 8 e 8A da p.i.); 24 - O Autor pagou ao Banco 3... S. A. de 01-01-2013 até 01-04-2015, um total de 28 meses as prestações mensais dos empréstimos (551,68 euros), mais as prestações mensais do acordo judicial (276,45 euros), ou seja 828,13 euros mensais, fazendo um total de 23.187,64 euros, vide doc. 6 de fls. 426 a 433, conjugado com doc. 7 da p.i/423v; 26 - Daí para cá, ou seja desde 01.04.2015 até 25 de janeiro de 2018 o Autor pagou ao Banco 3... a quantia de 12.474,76 euros do empréstimo ... e ..., ... euros do empréstimo .... (doc. nº 10 e 10A da p.i.)] pretendem os réus/recorrentes que os mesmos sejam dados como não provados.
Consideram os réus/recorrentes que os documentos apontados nos nºs 23, 24 e 26 não permitem que estes factos possam ser dados como provados.
O Mmº Juiz “a quo”, em sede de motivação da matéria de facto, escreveu o seguinte no tocante ao nº 24:
“Quanto ao ponto 24) dos factos provados, o Tribunal compulsado o documento 6 de fls 426 a 433, conjugado com doc. 7 da p.i/423v, não teve qualquer dúvida sobre o pagamento das aludidas quantias, os quais retratam uma sequência lógica e expressiva dos pagamentos efectuados pelo A., sendo certo que a R. BB não contesta que até hoje os pagamentos tenham sido efectuados pelo A.”
O documento nº 7 junto com a petição inicial corresponde ao acordo já atrás aludido em 5.
A documentação constante de fls. 426 a 433 respeita a extratos combinados da conta nº ... do Banco 1..., da qual era retirado o pagamento das prestações de empréstimos contraídos nesta instituição bancária, e donde flui que o autor AA ia aprovisionando regularmente essa conta, sucedendo ainda que esta é a referenciada no contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 23.3.2000 (cfr. fls. 411 e segs.).
O aprovisionamento frequente desta conta por parte do autor leva a concluir, tal como o fez o Mmº Juiz “a quo”, ter sido este que pagou ao Banco 3... as quantias mencionadas no ponto factual nº 24.
Passando aos nºs 23 e 26, que se conexionam com o agora apreciado nº 24 e também com o nº 25 [Em 05-03-2015, o Autor fez a liquidação total do acordo judicial, antecipando as prestações vincendas, pagando o remanescente de 11.734,72 euros (doc. nº 9 da p.i.)], este não impugnado, e não se vendo razão para divergir da convicção probatória formada pelo Mmº Juiz “a quo” no sentido de que os pagamentos das prestações dos empréstimos foram realizadas apenas pelo autor, teremos que concluir no sentido de que os referidos nºs 23 e 26 deverão permanecer na matéria de facto provada.
E isto apesar das declarações de capital e juros pagos emitidas em 25.1.2018 e 26.1.2018, reportadas aos períodos compreendidos entre 1.1.2004 e 31.12.2012 e 1.4.2015 e 26.1.2018 (documentos nºs 8, 8A, 10 e 10A), referirem que a titularidade dos empréstimos era do autor AA e da 1ª ré BB.
Apesar do teor destas declarações quanto à titularidade dos empréstimos, o que emerge da prova produzida, conforme o salienta o Mmº Juiz “a quo”, e não tendo sido apresentados motivos suficientemente fortes para afastar a sua convicção, é que o pagamento dos montantes referidos nos nºs 23 e 26 foi realizado apenas pelo autor.
Como tal, os nºs 23, 24 e 26 permanecerão na factualidade assente.
7. Quanto ao nº 27 [No total, o Autor fez o pagamento ao Banco 3... S.A., pelo menos, das quantias de: - 49.415,62€ de 01.01.2004 a 31.12.2012; - 24.705,96€ de 01.01.2004 a 31.12.2012; - 23.187,64€ de 01.01.2013 a 01.04.2015; - 11.734,72€ em 05.03.2015; - 12.474,76€ de 01.04.2015 até hoje; - 6.262,56€ de 01.04.2015 até hoje de forma a regularizar parte substancial da dívida ao Banco] pretendem os réus/recorrentes que a sua redação seja alterada de modo a contemplar apenas o valor constante do facto provado 25, passando assim a ser a seguinte: - O autor fez o pagamento ao Banco 3... S.A. do valor de 11.734,72€ em 5.3.2015.
Este nº 27 desenha-se como um facto conclusivo, por nele se reunirem os diversos pagamentos efetuados pelo autor com vista à regularização da dívida contraída junto do Banco 3... e que se encontram assentes nos nºs 23, 24, 25 e 26, sendo que o nº 25 não foi impugnado e os demais, apesar de impugnados, foram mantidos sem qualquer alteração.
Assim, porque estes quatro pontos factuais, que depois convergem para o nº 27, permanecem todos eles na factualidade assente também o nº 27 se manterá sem qualquer alteração de redação.
8. Por último, os réus/recorrentes insurgem-se contra os factos nºs 48 e 49 [48 - Na sequência de tal facto a C..., Limitada, ficou sem atividade e deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo Autor referidos; 49 - E embora ele mantivesse a sua atividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua referida sociedade, vide docs. de fls. 446 a 452] sustentando que a sua redação deverá ser modificada, passando a ser a seguinte:
48 - Sem atividade por exclusiva iniciativa e vontade do Autor, a C..., Limitada, ficou sem atividade e deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo Autor referidos;
49 - E embora ele mantivesse a sua atividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua sociedade, tendo sido por isso e apenas por isso que a partir de Março de 2007 deixou de cumprir perante os credores dos contratos de leasing e de mútuo por ele referidos nos artigos 3 e 5 da PI, tendo com esse propósito deliberado provocado o insolvência da sociedade.
Insurgem-se também quanto ao facto não provado b) [não se provou que… o A. tenha deixado de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício constante de tal actividade profissional, manteve exactamente o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a utilização de veículos automóveis, a frequência de hotéis e restaurantes, etc..] defendendo que este deverá transitar para os factos provados com a seguinte redação:
- O autor deixou de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício constante de tal atividade profissional, manteve exatamente o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a utilização de veículos automóveis, a frequência de hotéis e restaurantes.
No sentido das alterações pretendidas, os réus indicam a declaração emitida, em 2.12.2019, pela “X..., Lda.” e excertos dos depoimentos produzidos pelas testemunhas GG, HH, II, JJ e KK, bem como das declarações de parte prestadas pela 1ª ré BB.
Procedemos à audição destes depoimentos e declarações.
GG é amigo do autor. Disse que jogavam futebol juntos e que nos jantares que tinham depois de jogar, porque estavam ambos em processo de separação, falavam desses problemas. Mais referiu que a clínica do autor, na ..., fechou e este agora tem clínica em Gaia.
HH é amiga do autor. Disse que este teve de fechar a clínica que tinha na ..., onde eram sócios ele, a ex-esposa e o ex-sogro, por falta de condições financeiras. Sabe que a “clínica” foi declarada insolvente. O autor agora tem uma clínica em Gaia.
II é amigo do autor desde criança. É sócio da “X...”. O autor, quando era casado, tinha uma clínica na .... A testemunha esclareceu que tem quota na clínica dentária atrás referida porque emprestou algum dinheiro ao autor (cerca de 5.000,00€) e este achou por bem que ele pertencesse à sociedade. Nunca recebeu lucros da clínica.
JJ é amigo do autor. Sabe que este tinha uma clínica dentária na zona da ... e acrescentou que na clínica que o autor hoje tem – a X..., em Gaia – já teve uma quota. Nessa altura o autor precisava de dinheiro e a testemunha disponibilizou-se-lhe para o emprestar. O autor, como forma de garantia, preferiu que, enquanto não devolvesse o dinheiro, a testemunha tivesse uma participação meramente representativa na clínica. Porém, salientou que nessa altura a clínica não era do autor. Cedeu a quota ao autor depois de ele lhe ter devolvido o dinheiro. Nunca retirou qualquer lucro da clínica.
KK foi colega de curso do autor e este trabalhou no seu consultório. Disse que o autor começou a trabalhar consigo em 99, 2000 e esteve consigo até a testemunha “abraçar” outro projeto em 2009. Trabalhava lá um dia por semana (quinta-feira). Depois ficou com a clínica. Soube que o autor teve uma clínica com a mulher dele na .... Mais referiu que em 2009 cedeu as suas quotas, por 30.000,00€, a dois amigos do autor, porque este estava com problemas de dinheiro. Afirmou que foram os amigos do autor que lhe passaram o cheque, mas depois retificou, dizendo já não se lembrar bem da forma de pagamento.
A ré BB, ouvida em declarações, de relevante limitou-se a confirmar, sem nada acrescentar, a matéria constante dos arts. 54º a 58º da contestação[2] que lhe foram lidos pelo Mmº Juiz “a quo”.
Da documentação junta aos autos em 2.12.2019 (fls. 445 e segs.) pela “X..., Lda.” decorre ter esta declarado que nos anos de 2009 a 2014 o autor não teve rendimentos da firma.
Todavia, dessa documentação resulta igualmente que o autor, enquanto trabalhador independente, recebeu desta clínica os seguintes valores: 3.212,33€ em 2009; 13.500,00€ em 2011; 5.425,00€ em 2012; 7.750,00€ em 2013 e 9.250,00€ em 2014.
Tal como resulta que, a título de rendimentos da firma, o autor recebeu as seguintes importâncias nos anos de 2015 a 2019: 13.556,85€ em 2015; 13.703,50€ em 2016; 13.830,52€ em 2017; 13.982,84€ em 2018 e 11.686,47€ em 2019, até ao mês de outubro.
Ora, apreciando estes elementos probatórios, entendemos não existir motivo para introduzir as alterações pretendidas pelos réus na redação dos nºs 48 e 49 da factualidade assente, isto porque dos depoimentos e declarações indicados pelos recorrentes, bem como da prova documental mencionada, não é possível concluir que a “C..., Lda.” tenha ficado sem atividade por exclusiva iniciativa e vontade do autor e que este com a sua conduta descrita no nº 49 tenha tido o propósito deliberado de provocar a sua insolvência.
Por outro lado, estes elementos probatórios também não permitem dar como assente que o autor tenha deixado de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício da atividade de médico dentista e que tenha mantido exatamente o mesmo nível de vida que tinha anteriormente.
Da circunstância de ter continuado a jogar futebol com amigos não decorre, só por si, que o autor tenha mantido o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a mesma utilização de veículos automóveis, a mesma frequência de hotéis e restaurantes.
Por conseguinte, são de manter nos seus precisos termos os factos provados nºs 48 e 49 e o facto não provado b).
*
Em suma, a impugnação da decisão fáctica efetuada pelos réus/recorrentes, apesar de não acolhida nesta sede recursiva, conduziu à alteração da redação dos nºs 3, 5, 11 e 12 da factualidade assente que, para melhor conjugação com os elementos documentais produzidos, passará a ser a seguinte:
3- Enquanto casados, autor e primeira ré contraíram em 20.08.2001, em nome da “C... Lda.”, um empréstimo pessoal junto do hoje denominado Banco 1..., no valor de 19.951,52€, empréstimo esse que foi avalizado pelo autor e pelos réus, vide doc. a fls. 262 e junto a fls. 311 a 313.
5 - Ainda na constância do matrimónio do autor e da primeira ré, o autor e o terceiro réu outorgaram em nome da sociedade “C... Lda.” um contrato de leasing com o hoje denominado Banco 1... para aquisição de imóvel para essa sociedade, tendo sido subscrita uma livrança no valor de €10.920,63 (execução de 11.033,63 euros), título que foi avalizado pelo autor, pelos réus e bem assim pelos progenitores do autor, documento fls. 262 e ss. e 274, 277, 278, 279.
11 - O autor pagou assim ao Banco 1..., por depósito na conta com o NIB: ... do banco a quantia de 21.000,00 euros em 25 de maio de 2012. (doc. nº 2 da p.i. e doc. 4 de fls. 425);
12 - Em face disso o Banco 1... deu entrada em juízo, em ambas as execuções, de requerimentos com vista à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por se considerar ressarcido (doc. nº 3 e 4 da p.i.).[3]
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b) Abuso do direito por parte do autor
Os réus vieram invocar que a partir da conferência de interessados realizada em 30.5.2006, no âmbito do processo de inventário com o nº 56/04.7TMPRT-A, o autor, receando que a 1ª ré se tornasse dona da totalidade do capital social da sociedade “C..., Lda.”, porquanto licitou a quota maioritária e a outra quota era titulada pelo seu pai, deixou de exercer nesta clínica a sua atividade profissional e desviou dela toda a sua clientela.
Mais invocam que a sociedade ficou sem atividade por exclusiva iniciativa e vontade do autor e que este ao passar a exercer como médico dentista noutros locais e ao deixar de pagar os encargos com os bens relativos à sociedade teve o propósito deliberado de provocar a sua insolvência.
Referem ainda que os contratos de mútuo e de leasing entraram em mora por opção do próprio autor e que este depois regularizou a situação em condições que entendeu e que poderiam, inclusive, fazer surgir um crédito a seu favor, o que nunca teria ocorrido se tivesse continuado a exercer a sua atividade no âmbito daquela sociedade.
Concluindo, os réus entendem que o comportamento do autor configura uma situação de abuso do direito.
Sucede que na sentença recorrida esta exceção foi considerada improcedente, entendimento que teve a discordância dos réus que, em sede recursiva, pugnam novamente pelo comportamento abusivo do autor.
Vejamos.
Dispõe o art. 334º do Cód. Civil, sob a epígrafe «abuso do direito» que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»
Para que haja abuso do direito exige-se que o excesso seja manifesto. Os tribunais só podem, por isso, fiscalizar a moralidade dos atos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. MANUEL DE ANDRADE refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63) e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”.
Ora, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade. Já no que respeita ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei – cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 298/9.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respetivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos. O agir de boa-fé envolve a atuação nas relações em geral e em especial no quadro das relações jurídicas, honesta e conscienciosamente, isto é, numa linha de correção e probidade, não procedendo de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável tolera. Os bons costumes são, por seu turno, o conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade em determinado tempo.
O abuso do direito constitui, pois, uma fórmula tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas. Funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica.
No abuso do direito há uma atuação humana estritamente conforme com as normas imediatamente aplicáveis, mas que, tudo visto, se apresenta ilícita por contrariedade ao sistema, no seu todo - Cfr. MENEZES CORDEIRO, “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “in Agendo””, Almedina, 2006, pág. 33.
Por seu lado, para ALMEIDA COSTA (in “Direito das Obrigações”, Almedina, 11º ed., pág. 83) o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social.
Retornando ao caso dos autos - e salientando-se que a redação dos nºs 48 e 49 ficou inalterada - resulta o seguinte da factualidade dada como provada:
- Em 30.5.2006[4] realizou-se a conferência de interessados à qual não compareceu o autor e na qual a 1ª ré licitou a verba nº 1, que corresponde à quota maioritária do capital social da sociedade “C..., Lda.” – nºs 40 e 41;
- Em 20.6.2006 o autor veio reclamar e arguir nulidades, procurando invalidar a conferência de interessados pedindo a anulação das licitações efetuadas, pedido esse que foi indeferido – nºs 44 e 45;
- A partir daí, sendo o titular da restante quota do capital social, à data, o pai da ré BB, o autor deixou de exercer no âmbito da sociedade a sua atividade profissional e desviou dela toda a sua clientela – nºs 46 e 47;
- Na sequência de tal facto a C..., Limitada, ficou sem atividade e deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo autor referidos – nº 48;
- E embora ele mantivesse a sua atividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua referida sociedade – nº 49.
Conforme bem refere o Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida a circunstância de o autor ter deixado de trabalhar na “C..., Lda.” não significa, desde logo, que este tenha agido em abuso do direito, uma vez que nada o impedia de trabalhar, como médico dentista, noutra clínica.
Ou seja, o autor não estava obrigado a exercer a sua atividade apenas naquela sociedade.
Aliás, todo o ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego, conforme se consagra no art. 23º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Direito ao trabalho que está igualmente consagrado no art. 58º, nº 1 da nossa Constituição da República.
Prosseguindo, há a realçar que no caso “sub judice” ocorre um momento relevante, que corresponde à realização da conferência de interessados em 30.5.2006 na qual a 1ª ré licita a quota maioritária do capital da sociedade “C..., Lda.”
Como o pai da 1ª ré era já titular da quota minoritária dessa sociedade, isso significaria, em termos práticos, que o autor deixaria de ser sócio da Clínica e passaria a ficar na dependência funcional da 1ª ré BB e do seu pai DD, aqui 3º réu.
Neste contexto, tendo ainda em conta que na origem do litígio entre o autor e a 1ª ré se encontra a dissolução do casamento que os unia, iniciado em termos de divórcio litigioso, não era razoável e adequado exigir ao autor que este continuasse a exercer funções na Clínica nas condições referidas.
A partir do momento em que a 1ª ré BB licitou a quota maioritária da sociedade, seguindo princípios normais de diligência, de avisada prudência, caber-lhe-ia a ela e ao pai gerir a Clínica, diligenciando pela sua continuação e aviamento.
Pretender que o autor continuasse na Clínica e nela permanecesse a exercer funções, como se nenhum litígio existisse entre ele e a 1ª ré, não se nos afigura uma solução praticável.
Poderia eventualmente sê-lo se, apesar da rutura da vida conjugal entre o autor e a 1ª ré, o nível de conflitualidade fosse reduzido ou até inexistente, mas não é essa a situação.
Assim, a atuação do autor que, após a conferência de interessados de 30.5.2006 onde a 1ª ré licitou a quota maioritária da sociedade - pertencendo a quota minoritária ao seu pai, aqui 3º réu -, deixou de exercer a sua atividade de médico dentista na Clínica, passando a exercê-la noutros locais para aí desviando os respetivos clientes que, naturalmente, se nele têm confiança, seguem o médico dentista e não a Clínica, não integra o conceito de abuso do direito.
Com efeito, o comportamento do autor em nada excede – e muito menos manifestamente – os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, o que significa a improcedência, neste segmento, do recurso interposto pelos réus.[5]
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Improcedência que se estende também, face ao insucesso da impugnação da matéria de facto, que se manteve praticamente intocada, às pretensões recursivas formuladas no sentido da improcedência da ação quantos aos 2º e 3º réus e da redução do crédito do autor sobre a 1ª ré a 50% do valor constante do facto provado nº 25.
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II – Recurso interposto pelo autor
Compensação da 1ª ré pelo uso exclusivo da casa de morada de família por parte do autor
Na sua contestação a 1ª ré vem invocar que o autor usa em exclusivo a casa de morada de família, beneficiando de utilidades que só lhe caberiam pela metade, razão pela qual entende dever ser compensada pelo valor dessa ocupação exclusiva, na proporção de metade do valor de tal utilização, que corresponderá ao valor locativo do imóvel, o qual no caso dos autos é de pelo menos 600,00€ mensais.
Na sentença recorrida acolheu-se o alegado pela 1ª ré tendo-se reconhecido o direito desta a receber do autor um montante compensatório por este se encontrar a utilizar em exclusivo a casa de morada da família, montante esse que se fixou em 300,00€ mensais e que, por seu turno, foi compensado com o crédito atribuído ao autor.
O autor insurgiu-se, em via recursiva, contra este entendimento, tendo sustentado o seguinte:
- a utilização exclusiva da casa de morada de família pelo autor tem por base acordo celebrado no âmbito do processo de divórcio;
- a ocupação da casa pelo autor não é ilícita;
- os cônjuges poderiam ter determinado uma contrapartida a pagar pelo cônjuge a quem a casa foi atribuída, o que não fizeram;
- a 1ª ré sempre aceitou e deu o seu acordo, expresso ou tácito, à utilização que o autor vem fazendo da casa de morada de família, nada tendo alegado nos autos que demonstre ter existido um qualquer acordo entre ambos relativamente a contrapartidas a suportar pelo autor.
Vejamos então.
O divórcio entre o autor e a 1ª ré, após convolação para mútuo consentimento, foi decretado por sentença proferida em 30.3.2005 e nela se homologaram os acordos respetivos, entre eles o respeitante à utilização da casa de morada de família.
Neste segmento convencionou-se o seguinte (fls. 147/148):
“A casa morada de família sita na Rua ..., ..., Maia, é bem comum do casal fica atribuída ao requerente marido até à partilha ou venda.”
Sucede que nesse acordo se nada se mencionou quanto ao pagamento das dívidas decorrentes das prestações devidas pela amortização do empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, também nada se disse quanto ao eventual pagamento pelo autor à 1ª ré de uma verba, equivalente a uma renda, que seria contrapartida da sua utilização exclusiva da casa de morada de família.
Ora, a questão que aqui está em causa é a de apurar, largos anos já decorridos após o divórcio sem que esteja efetuada a partilha de bens, e estando a casa de morada de família a ser utilizada em exclusivo pelo autor, se este deverá compensar, ou não, a 1ª ré com uma verba mensal correspondente a metade do valor locativo do imóvel.
Apesar de terem cessado, em consequência do divórcio, as relações patrimoniais entre os cônjuges - art. 1688º do Cód. Civil -, até à partilha mantém-se a chamada comunhão de mão comum ou propriedade coletiva (contitularidade de direitos reais), desaparecida que foi a razão de ser do regime específico instituído para o património comum dos ex-cônjuges, com aplicação à mesma das regras da compropriedade – art. 1404º do Cód. Civil.
Acontece que sendo qualitativamente iguais os direitos dos “consortes” - art. 1403º, nº 2 do Cód. Civil - e sendo ainda certo que o uso da “coisa comum” por um dos “comproprietários”, não constitui, em princípio, posse exclusiva ou posse superior à dele - art. 1406º, nº 2 também do Cód. Civil – entende-se ter cabimento que aquele que da sua “quota-parte” não usufrui, tenha igualmente direito a um gozo indireto, que consistirá em perceber, tal como se locação houvesse, compensação pelo valor do uso de tal “quota-parte”.[6]
Assim, mesmo nada tendo sido consignado a este propósito nos acordos que acompanharam o divórcio por mútuo consentimento decretado em 30.3.2005, consideramos não existir motivo para não atribuir à 1ª ré uma compensação pecuniária pelo facto de a casa de morada de família estar a ser usada em exclusivo pelo autor, quando tal bem até à partilha, ainda não realizada, é comum aos dois.
Não se ignora que a 1ª ré, conforme assinalado na sentença recorrida, se manteve inerte quanto à concretização da partilha ao longo de todos estes anos, mas o autor teve idêntico comportamento.
E se o autor peticionou nestes autos, com sucesso, o pagamento de metade das prestações decorrentes do empréstimo bancário contraído para aquisição do respetivo imóvel, tendo-lhe sido reconhecido tal crédito relativamente à 1ª ré, terá também de se atribuir a esta uma compensação monetária pela utilização exclusiva da casa de morada de família pelo autor.
Condenar a 1ª ré em metade do valor correspondente às prestações bancárias assumidas para pagamento do empréstimo destinado à aquisição da casa de morada de família, sem que se atribuísse a esta qualquer compensação em virtude da sua utilização estar a ser feita exclusivamente pelo autor, significaria introduzir um intolerável desequilíbrio entre os dois ex-cônjuges, que não pode ser caucionado pelo direito.
Estaríamos, neste caso, se o recurso do autor viesse a proceder, perante uma situação vizinha do abuso do direito por parte deste – cfr. art. 334º do Cód. Civil.
Deste modo, em sintonia com a sentença recorrida, valorando com particular premência as exigências de equidade e justiça[7], concluímos no sentido de que deve ser fixada a favor da 1ª ré uma compensação pecuniária pela utilização exclusiva da casa de morada da família pelo autor.
Prosseguindo, há a referir que na sentença recorrida, quanto a esta questão, mostra-se provado o seguinte:
- Ao autor ficou atribuída a utilização da casa de morada da família até à partilha – nº 29;
- É ali que o autor de facto reside, utilizando-a com exclusão da primeira ré, sendo ele quem beneficia de todas as utilidades contidas no direito de ali habitar, apesar de tal imóvel ser propriedade comum do casal, ainda não partilhada – nºs 30 e31.
- Esta casa trata-se de um “T3”, com lugar de garagem e arrumos, com boas áreas, cujo valor locativo mensal é de pelo menos 600,00€ - nº 32.
Por conseguinte, o montante da compensação pecuniária a atribuir à 1ª ré deverá ascender a 300,00€ mensais, o que totaliza 47.400,00€ no período compreendido entre as datas do divórcio por mútuo consentimento – 30.3.2005 – e a da apresentação da contestação por parte dos réus – 5.6.2018.
Montante este que será compensado com o crédito do autor referente ao pagamento das prestações decorrentes do empréstimo bancário contraído para aquisição do respetivo imóvel.
Como tal, improcede o recurso interposto pelo autor.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedentes os recursos de apelação interpostos pelo autor AA e pelos réus BB, CC e DD e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Retifica-se, porém, ao abrigo dos arts. 613º, nº 2 e 614º do Cód. de Proc. Civil, a verba constante da alínea c) da parte decisória que passará a ser de 300,00€ mensais, uma vez que o valor aí mencionado – 330,00€ mensais – se ficou a dever a manifesto lapso.
As custas dos recursos, pelo seu decaimento, serão suportadas pelos recorrentes, sem prejuízo de apoio judiciário.

Porto, 13.7.2022
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] O disposto no art. 445º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil, mencionado pelos réus nas suas alegações, não impõe que a parte que apresentou o documento, perante impugnação efetuada pela contraparte, seja obrigada a produzir prova destinada a convencer da sua genuinidade. Trata-se de uma mera faculdade que, não sendo exercida neste caso, não obstaculiza a forma como os documentos referenciados nas alegações, e que se mostravam impugnados, foram analisados e valorados pelo tribunal “a quo”.
[2] É o seguinte o texto destes artigos da contestação:
“54º Sem actividade por exclusiva iniciativa e vontade do Autor, a sociedade deixou de ter quaisquer rendimentos para poder cumprir as suas obrigações, designadamente as decorrentes dos contratos de mútuo e de leasing pelo Autor referidos.
55º E embora ele mantivesse a sua actividade profissional como médico dentista, passou a exercê-la noutros locais, tendo praticamente deixado de emitir recibos pelos serviços que prestava e deixou de pagar todos os encargos com todos os bens do casal e com os bens relativos à sua referida sociedade.
56º E foi por isso e apenas por isso que a partir de Março de 2007 deixou de cumprir perante os credores dos contratos de leasing e de mútuo por ele referidos nos artigos 3 e 5 das PI.
57º E com esse propósito deliberado provocou a insolvência da sociedade, que foi decretada em 17/07/2009 (doc. nº 14 que se junta e aqui dá por inteiramente reproduzido).
58º Mas embora tenha deixado de prestar quaisquer serviços no âmbito dessa sociedade e tenha deixado de declarar os rendimentos reais que continuou a obter do exercício constante de tal actividade profissional, manteve exactamente o mesmo nível de vida, os mesmos hábitos, as mesmas despesas, a utilização de veículos automóveis, a frequência de hotéis e restaurantes, etc..”
[3] Apesar de não se nos afigurar ser uma técnica correta, por misturar factos com meios probatórios, entendemos não eliminar dos pontos factuais impugnados as referências que neles foram feitas aos documentos em que se suportaram em termos de prova.
[4] A data mencionada no nº 41 como sendo a da realização da conferência de interessados – 20.5.2016 – não se encontra correta, conforme se alcança de fls. 109/110.
[5] Em nada contendem com a solução dada à questão do abuso do direito as considerações feitas pelos réus/recorrentes nas suas alegações quanto à ulterior tramitação do inventário nº 56/04.7TMPRT-A, em que ocorreu desistência da instância através de requerimento conjunto apresentado pelo autor e pela 1ª ré, sendo certo que tais incidências processuais, se bem que de escassa relevância, não foram alegadas aquando da invocação da exceção de abuso do direito em sede de contestação.
[6] Cfr. Ac. STJ de 26.4.2012, proc. 33/08.9TMBRG.G1.S1, relator Serra Baptista e Ac. Rel. Évora de 12.6.2019, proc. 1603/18.2T8PTG.E1, relatora Maria João Sousa e Faro, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ac. Rel. Évora de 30.1.2020, proc. 7160/18.2S8STB.E1, relator Tomé de Carvalho, disponível in www.dgsi.pt.