Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
440/16.3T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
TRACTOR AGRÍCOLA
SEGURO OBRIGATÓRIO
REENVIO PREJUDICIAL
SINISTRO DE LABORAÇÃO
Nº do Documento: RP20180507440/16.3T8FLG.P1
Data do Acordão: 05/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 674, FLS.162-177)
Área Temática: .
Sumário: I - Para que um acidente provocado, quer por veículo automóvel, quer por uma qualquer unidade circulante, possa ser qualificado de acidente de viação, exige-se sempre que o veículo tenha sido causa direta ou indirecta do sinistro, ou seja, que resulte da função de veículo circulante que lhe é caraterística.
II - Não integra o conceito de acidente de circulação de veículos, quando um trator se encontra imobilizado, servindo o seu motor, na circunstância, apenas para fazer laborar o guincho acoplado à traseira daquele na sua habitual e exclusiva função de deslocação de troncos de madeira.
III - Neste caso, o trator não é gerador de riscos derivados da sua circulação ou utilização enquanto veículo e, como tal, o acidente não está coberto pelo regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel previsto no citado Decreto-Lei nº 291/2007.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 440/16.3T8FLG.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B… intentou a presente ação com processo comum de declaração contra C… – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €22.387,91, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

A fundamentar aquele pedido, alega que, no dia 22 de janeiro de 2014, pelas 15,00h, na …, …, freguesia e concelho de …, ocorreu um acidente, no qual foram intervenientes o autor e D…, tripulando o trator agrícola com a matrícula OG-..-.., e cuja responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação com aquele estava transferida para a ré seguradora, mediante a Apólice nº ………, propriedade da empresa E…, Lda., sita em Vila Nova de Gaia, cujo objeto social é o corte de árvores e madeireira.
Na data do sinistro, o veículo estava operar na …, na …, com a ajuda de um guincho para coadjuvar ao abate e queda de árvores, acoplado ao trator, estando o autor junto à parte traseira do trator a manobrar o referido guincho enquanto procediam ao corte de um eucalipto.
A certa altura, com o guincho a funcionar e quando este puxava um tronco de madeira, o trator cedeu, deslizou e virou, ficando na vertical e com as rodas do lado direito no ar.
Quando se virou, o trator atingiu o autor com um dos seus componentes de natureza contundente, na perna direita, causando-lhe ferimentos que descreve, internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas.
O acidente em apreço deu origem ao processo de Acidente de Trabalho com nº 277/14.4T8PNF, que correu termos na 5.ª Secção de Trabalho, J1, da Instância Central de Vila Nova de Gaia, comarca do Porto, tendo sido parcialmente indemnizado pela ré seguradora de acidentes de trabalho.
Pese embora os tratamentos a que foi sujeito, resultaram para si variados danos, nomeadamente, cicatriz extensa e distrófica ao nível da face interna da coxa direita, perda da sensibilidade e parestesia em zona mal definida na região gemelar e lesão sensitiva do ramo do nervo peroneal, que lhe determinam 4% de incapacidade de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e incapacidades temporárias absolutas.
O acidente transformou-o enquanto pessoa, pelas dores que lhe causou e pelas sequelas que lhe deixou, tornando-o uma pessoa triste.
Contabiliza os danos sofridos, e ainda não indemnizados pela seguradora dos acidentes do trabalho, pedindo a condenação da ré no seu ressarcimento.

A ré contestou, referindo que o proprietário do trator agrícola de matrícula OG-..-.. transferiu para a ora contestante C… a respectiva responsabilidade civil decorrente da circulação desse veículo, através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ……… e que consiste num seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, ou seja, de um seguro de responsabilidade civil individual, pela culpa e pelo risco da circulação automóvel.
O seguro contratado não cobre o acidente dos autos, porquanto não se tratou de um acidente de circulação automóvel, mas sim de um acidente de laboração do trator agrícola.
O trator não estava em circulação na data do sinistro, que não houve qualquer violação de norma estradal e que tal sinistro ocorreu num terreno particular.
Conclui pela improcedência da ação.

Procedeu-se a julgamento e, a final, proferida sentença, na qual a acção foi julgada totalmente improcedente e, em consequência a ré C… – Sucursal em Portugal absolvida do pedido.

Inconformado, o autor recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. A questão fundamental prende-se com a subsunção do sinistro em causa como acidente de viação e consequente obrigatoriedade da ré liquidar os danos decorrentes do mesmo. Importa, por isso, atender à Diretiva 72/166/CEE de 24-4-1972 que se reporta à obrigatoriedade do seguro automóvel.
2. Ora, como prescreve o artigo 267º, al. a) e b), do Tratado da União Europeia, o juiz nacional está obrigado a reenviar ao Tribunal de Justiça da União Europeia qualquer questão pertinente de interpretação/validade de normas do Direito da União desde que, de acordo com as regras processuais aplicáveis, a sua decisão seja insusceptível de recurso, ou seja, decida em última instância.
3. Sendo que o reenvio será obrigatório também nos casos em que a jurisprudência europeia anteriormente proferida não seja totalmente clara ou não traduza uma total identidade nas situações de facto em litígio; o que se verifica no caso em análise se se atender às diversas interpretações da Diretiva preconizadas pela União Europeia.
4. No caso concreto, o tribunal de 1ª instância absolveu a ré seguradora, por ter entendido que o sinistro não se enquadrava nos riscos de circulação do trator, pois este apenas estava com o motor ligado para fornecer energia ao guincho, cumprindo uma função de força motriz; enquadrando-se num sinistro de laboração e não de circulação ou utilização do veículo.
5. Como no caso em apreço, o Tribunal da Relação poderá constituir a última instância (atendendo à dupla conforme); o dever de reenvio deste Tribunal é obrigatório, além de necessário para a decisão e enquadramento da questão em apreço. Devendo, por isso, suscitar-se a intervenção do TJUE.
6. Tanto mais que a Comissão sustentou, a propósito do artigo 3.º, nº 1, da Diretiva que este se aplica à utilização de veículos, seja como meio de transporte, ou como máquina, em qualquer lugar, público ou privado, onde possam ter lugar riscos inerentes à utilização de veículos quer estes últimos se encontrem, ou não, em movimento.
7. Sendo que o TJ já decidiu no Acórdão Vnuk que a circulação de veículos abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode ser assim abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro.
8. Decisão que parece dar razão à dinâmica do acidente considerada provada nos autos assente no ponto 7 da sentença parece decorrer que o veículo estava a ser utilizado na sua função habitual de atividade agrícola e ou florestal.
9. No entanto, caso Vs. Exas. assim não entendam e consideram que o Acórdão citado não é totalmente esclarecedor, pois centrou-se na questão da função habitual implicar movimento; tratando-se no caso concreto, de um veículo de natureza mista, usado como meio de transporte e como máquina, designadamente na atividade agrícola florestal, suscetível de causar danos a terceiros, decorrente dessa utilização, quando circulam, mas também estando imobilizados, impõe-se solicitar ao TJUE a interpretação do conceito de “circulação de veículos”, previsto no artigo 3º, nº 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, nos casos em que um veículo de natureza mista, é utilizado na sua função habitual de máquina, causando danos a terceiros, ainda que se encontre imobilizado.
10. Suspendendo-se, assim, a instância ao abrigo dos artigos 269º, nº 1, al. c), 1ª parte e 272º, n.º 1, do C.P.C., a fim de submeter ao TJUE a aludida questão de interpretação.
11. Por outro lado, a sentença recorrida deu como provado que o trator agrícola seguro encontrava-se imobilizado, o guincho acoplado ao trator deslocava os troncos de madeira, era manobrado sem que fosse necessário mover o trator do local onde o mesmo se encontrava e ainda que aquando do sinistro o trator encontrava-se imobilizado de modo permanente (pontos 38 a 41 da matéria de facto).
12. Sobre esta factualidade, D… explicou que na altura do acidente o trator estaria momentaneamente parado no local, com o motor a trabalhar e que se encontrava a puxar o eucalipto para virar. Afirmou ser o condutor o trator, mudando-o de lugar e estabilizando-o. Explicitando ainda que a função do guincho acoplado ao trator constituído por um cabo de aço destinava-se a puxar as árvores, daí que fosse necessário posicionar o trator no local em que as árvores iam sendo sucessivamente cortadas.
13. Do depoimento da testemunha infere-se que este considerou vários factores que poderiam ter contribuído para o sinistro, tais como a operação de virar a árvore, o deslize do trator, o deixar a alavanca, o capotamento do mesmo (“virar para o lado”), a possível insistência do autor em colocar o cabo de aço, referindo claramente que o trator tem de estar estabilizado para permitir a concretização do trabalho.
14. No que concerne à testemunha F…, esta esclareceu que consultou a participação policial lavrada pela GNR, onde consta como causa do acidente o deslizamento do trator.
15. Atentando, então, às declarações destas testemunhas verifica-se que a factualidade descrita nos pontos 38 a 41 da decisão foi incorrectamente apreciada pela Meritíssima Juiz a quo.
16. A factualidade constante do ponto 38 é parcialmente contrariada pelo ponto 41. É que na altura do sinistro o trator ou se encontrava imobilizado – ponto 38 –, o que dá a entender que era naquele momento, ou encontrava-se imobilizado, de modo permanente – ponto 41.
17. Sendo que o guincho acoplado ao trator ajudava a puxar as árvores, entretanto cortadas, não deslocando os troncos de madeira, como menos corretamente ficou provado em 39 da sentença já que o trator ia sendo movimentado de modo a posicionar-se junto das árvores que iam sendo cortadas; nunca estando imobilizado de modo permanente como incorretamente consta do ponto 41.
18. Deste modo, as declarações prestadas pelas testemunhas e as regras de experiência comum que nos permitem concluir qual o modo de funcionamento de um trator agrícola com um guincho acoplado, impõem a alteração da matéria fáctica dos pontos 38 a 41, como se passa a explanar: Na altura do sinistro, o tractor agrícola seguro encontrava-se momentaneamente imóvel, com o motor a trabalhar, num terreno particular, denominado de …, na …, em …. O guincho acoplado ao trator puxava os troncos de madeira, enquanto o trator estava estabilizado num determinado local. O trator ia-se posicionando, movimentando-se de modo a colocar-se próximo das árvores que iam sendo cortadas. Esta era a utilização habitual do trator agrícola identificado em 2.
19. No que concerne à análise jurídica, há que referir o Acórdão de 4-9-14, 3ª Secção, proferido no âmbito do reenvio prejudicial nº C-162/13, que visou clarificar uma dúvida suscitada em torno do conceito de “circulação de veículos”, mais concretamente se o regime do seguro de responsabilidade civil automóvel abrangeria ou não a utilização de um tractor agrícola no terreiro de uma quinta.
20. Ponderou o TJUE que o facto de o trator ser utilizado como máquina agrícola não interfere naquela inclusão (no regime do seguro de responsabilidade civil automóvel), desde que, ao abrigo do artigo 4º da 1ª Diretiva, essa espécie de veículos não tenha sido excluída pelo respetivo Estado-Membro.
21. Em Portugal, a exclusão restringe-se aos veículos referidos no artigo 4º, nº 2, do Dec. Lei nº 291/07, nos termos do qual estão isentos do regime do seguro automóvel as “máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula”.
22. Pelo que, o trator de matrícula OG-...-.. interveniente no sinistro dos autos, não se encontra excluído do âmbito de aplicação do diploma acima referido, o que é também confirmado na sentença em análise.
23. Esta decisão, contudo, considerou incorretamente que o trator em causa não contribuiu para a eclosão do sinistro, pois, este encontrava-se imobilizado e apenas tinha o motor ligado para fornecer energia ao guincho, constituindo mera função de força motriz do mesmo.
24. Contudo, não resultou provado, ao invés do referido na mesma, que o veículo estava a funcionar apenas para emitir energia ao funcionamento do guincho e muito menos que este não trabalhasse sem o motor do trator pois podia ter outra fonte de energia.
25. Com efeito, atendendo à matéria de facto cuja alteração se peticionou (mormente ao facto 41 da sentença) resulta que o tractor se encontrava em plena laboração e apenas momentaneamente parado, de modo a serem transportados troncos de madeira tombados nas proximidades. Pelo que, o trator ia-se reposicionando à medida que os trabalhos de corte e arrastamento de troncos se iam desenvolvendo, adaptando-se, constantemente, às funções de laboração que lhe estavam adstritas.
26. Concluindo-se, que o funcionamento do trator não se destinava apenas a accionar o funcionamento do guincho, desempenhando outrossim, uma função de laboração no corte e transporte dos troncos, em plena “faina florestal”.
27. Sem conceder, mesmo improcedendo a alteração da matéria de facto, dos pontos 7 e 8 da sentença consta que quando o guincho estava a funcionar e quando puxava um tronco de madeira, o trator cedeu, deslizou e virou, ficando na vertical e com as rodas do lado direito no ar; bem como que foi ao virar que o trator atingiu o autor na perna direita, com um dos seus componentes de natureza contundente.
28. Daqui resulta que o funcionamento do veículo, no caso trator, contribuiu decisivamente para o sinistro pois foi a sua cedência e subsequente viragem que provocaram as lesões e sequelas de que o autor ficou a padecer.
29. Com efeito, não ficou assente que tenha sido apenas o movimento ou manuseamento do guincho que tenha causado o deslize e capotamento do tractor.
30. Considerando a facticidade provada, não se logrou apurar a(s) causa(s) da cedência, do deslize e consequente viragem do tractor. Tal pode perfeitamente ter sido originado por alguma falha mecânica do mesmo, falha de posicionamento deste no terreno ou outra qualquer eventualidade que possa ter surgido e que se interliga aos próprios riscos de laboração/circulação do mesmo.
31. Tanto mais que, tratando-se de um trator agrícola particular, devidamente homologado para ter o guincho acoplado, destinando-se ao corte de árvores e madeira com um guincho para puxar as árvores abatidas, necessariamente o trator tinha de estar preparado para aguentar com o peso, movimento e trepidação resultante desta actividade laboral.
32. Por conseguinte, não se excluindo que o acidente tenha sido provocado pelos riscos próprios do veículo, nem se apurando que apenas foi causado pelo funcionamento do guincho, deve ter-se como verificado o nexo causal entre estes riscos e o sinistro em questão.
33. Neste sentido, prescreve o artigo 503º do C.C. que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo e o utilizar no seu próprio interesse responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
34. Por outro lado, como já se expendeu, dentro daquela fórmula legal aplicável cabem não só os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação, como também pelo veículo estacionado.
35. No mesmo sentido vai a interpretação do TJUE que conclui que o conceito de “circulação de veículos” adoptado nas Diretivas (maxime no artigo 3º, nº 1, da Primeira Diretiva) “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a sua função habitual”, podendo assim, segundo julgamos correcto, ser abrangida pelo referido conceito a dinâmica de um trator que efectua manobras de transporte e arrastamento de um tronco de madeira, ainda que no instante do acidente o veículo se encontrava parado por breves momentos e utilizava para o efeito a ajuda de um guincho.
36. Também o acórdão do TJUE, proferido em reenvio prejudicial, no caso Vnuk, de 4-9-14, ao considerar que o artigo 3º, nº 1, da Diretiva nº 72/166/CEE deve ser interpretado no sentido de que o conceito de "circulação de veículo", para efeito da obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo, em conformidade com a sua função habitual. Acórdão que vincula os Tribunais de todos os Estados-Membros a adoptar uma interpretação idêntica, quando sejam confrontados com uma questão jurídica substancialmente similar, quanto à interpretação desse normativo da aludida Diretiva.
37. No caso em análise, o trator estava a ser utilizado nas suas funções normais e foi nessas funções e por causa delas que deslizou, capotando e provocando os danos que o autor sofreu. Neste sentido decidiram o Acórdão da RP de 31-01-2012, proc. 136/07.7TBFAG.P1 e Acórdão da RL de 23-09-2010, proc. 1138/04.0TBBNV-L1-8 (publicados em www.dgsi.pt), este último dispondo o seguinte: “Constando das condições especiais da apólice de seguro que o veículo seguro é um trator agrícola com utilização exclusiva na agricultura, e na ausência de qualquer cláusula que exclua tal atividade agrícola da cobertura do seguro, devemos entender que tal seguro cobre os acidentes ocorridos por força do funcionamento do trator numa faina agrícola”. Indica-se também o Ac. STJ de 21-02-1980 (publicado na RLJ, ano 114, pág. 201 e seguintes), onde se concluiu que: “Tem-se considerado como facto inerente ao funcionamento do veículo automóvel a derrapagem deste seja como consequência de qualquer defeito mecânico da viatura seja por virtude do piso defeituoso da via”.
38. Mesmo que se discorde das anteriores interpretações, o contrato de seguro em causa sempre incluiria qualquer sinistro ocorrido por força do funcionamento do trator na actividade agrícola atendendo à cobertura da apólice, devendo entender-se que tal seguro cobre os acidentes ocorridos por força do funcionamento do trator numa faina agrícola.
39. Finalmente, não ficou provado que tivesse sido o guincho a despoletar a queda do veículo sobre o autor e muito menos que este sequer tivesse contribuído para o acidente, quanto mais ser considerado culpado pela eclosão do mesmo.
40. Como tal, o autor tem de ser considerado necessariamente lesado e terceiro para efeitos de responsabilidade civil, no que concerne ao acidente dos autos.
41. A sentença violou o disposto nos artigos 503º e 563º, do C.C., 3º, nº 1, da Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas nº 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel), bem como o regulamento do seguro civil de responsabilidade automóvel plasmado no DL 291/2007 de 21 de Agosto, e artigos 607º e seguintes do C.P.C.

A ré apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1) No dia 22 de Janeiro de 2014, pelas 15:00 horas, na …, …, freguesia e concelho de …, ocorreu um acidente.
2. Foram intervenientes, o autor e o trator agrícola com a matrícula OG-..-.., propriedade da empresa E…, Lda., sita em Vila Nova de Gaia, cujo objeto social é o corte de árvores e madeireira.
3. Aquando do sinistro, o veículo com a matrícula OG estava a operar na … na …, com a ajuda de um guincho para coadjuvar ao abate e queda de árvores, acoplado ao trator.
4. O trator agrícola com a matrícula OG-..-.. era tripulado sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade patronal, E…, Lda.
5. A proprietária do veículo OG havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação com aquele para a ré seguradora, mediante a Apólice nº ………, que titulava o respetivo contrato de seguro, então em vigor.
6. Aquando do sinistro, o autor encontrava-se junto à parte traseira do tractor a manobrar o referido guincho enquanto procediam ao corte de um eucalipto.
7. A certa altura, com o guincho a funcionar e quando puxava um tronco de madeira, o trator cedeu, deslizou e virou, ficando na vertical e com as rodas do lado direito no ar.
8. Ao virar o trator atingiu o autor na perna direita, com um dos seus componentes de natureza contundente.
9. Como consequência directa e necessária do descrito acidente, o autor sofreu esfacelo da face interna da coxa direita.
10. Mercê do referido acidente, foi o autor socorrido para o Hospital G… onde foi submetido a cirurgia.
11. Posteriormente, foi evacuado para o Hospital H…, em …, onde fez tratamentos de pensos e foi submetido a duas intervenções cirúrgicas.
12. No dia 07 de Fevereiro, foi submetido a uma cirurgia plástica de excisão de retalho cutâneo necroseado.
13. A 18 de Fevereiro, o autor foi alvo de nova cirurgia destinada ao desbridamento de úlcera da face interna da coxa direita, sendo realizada uma plastia com enxerto de pele parcial.
14. O acidente em apreço deu origem ao processo de Acidente de Trabalho com n.º 277/14.4T8PNF, que correu termos na 5.ª Secção de Trabalho, J1, da Instância Central de Vila Nova de Gaia, comarca do Porto.
15. O autor teve alta do serviço de ortopedia da referida unidade hospitalar em 05 de Outubro de 2014.
16. Após a alta o autor passou a ser tratado, por intermédio do Departamento Clínico da Companhia de Seguros I…, ao abrigo da apólice de acidentes de trabalho ……. (sinistro …../…../….).
17. Das lesões sofridas pelo autor, resultaram os seguintes danos sequelares:
a) Cicatriz extensa e distrófica ao nível da face interna da coxa direita;
b) Perda da sensibilidade e parestesia em zona mal definida na região gemelar;
c) Lesão sensitiva do ramo do nervo pleroneal.
18. Que lhe acarretam 4% de incapacidade de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Cap. II 1.4.6) por cicatriz extensa na coxa direita e uma IPP de 3%, tendo por referência a tabela nacional de incapacidades em direito civil.
19. O autor nasceu em 05 de Novembro de 1967.
20. À data do acidente, o autor desempenhava a função de ajudante de serrador na sociedade comercial E…, Lda., sita na Rua …, …, …. - … …, onde auferia o vencimento de €550,00 x 14 meses + subsídio de alimentação no valor de €100,00 x 11 meses.
21. O autor esteve em situação de incapacidade temporária absoluta (ITA) desde 23/01/2014 até 06/05/2014.
22. Após, esteve em situação de incapacidade temporária parcial (ITP) de 20% no período compreendido entre 19/06/2014 a 16/07/2014, de 10% nos períodos compreendidos entre 17/05/2014 até 18/06/2014 e 17/07/2014 até 27/08/2014 e de 5% no período compreendido entre 28/08/2014 até 05/10/2014, data em que lhe foi conferida alta definitiva.
23. Nos referidos períodos de ITA e ITP, o autor foi indemnizado pela Seguradora I… com as seguintes quantias: €1.923,95 a título de ITA e €286,90 a título de ITP.
24. O autor foi indemnizado, a título de capital de remição, com a quantia de €3.516,13.
25. Durante o tempo em que esteve de incapacidade temporária absoluta, o autor recebeu da Seguradora I…, para onde a sua entidade patronal havia transferido a sua responsabilidade laboral, 70% do valor da sua retribuição mensal.
26. O mesmo sucedendo com o valor apurado a título de capital de remição.
27. À data do acidente, o autor era pessoa robusta e dinâmica.
28. O exercício da profissão do autor implica destreza, força e agilidade.
29. O autor passou a ter dificuldades na marcha, devido à instabilidade do membro inferior direito e não consegue permanecer largos períodos de tempo em pé sem que seja assolado por dores no membro inferior direito.
30. O autor sente um formigueiro constante na face posterior da perna direita, obrigando-o a várias paragens durante o trabalho por forma a recuperar das dores que sente e que se agravam com as mudanças de tempo, principalmente no Inverno.
31. O autor era uma pessoa meiga e socialmente querida.
32. O autor deixou de jogar futebol e, consequentemente, treinar equipas de futebol de crianças e jovens.
33. O autor foi submetido a tratamento ambulatório, que incluiu várias sessões de fisioterapia.
34. O autor é pessoa que apresenta comportamentos de irritabilidade fácil e intranquilidade.
35. O autor apresenta somatizações que se traduzem por cefaleias frequentes e agudização das dores osteoarticulares, de origem traumática, recorrendo, amiudadas vezes, a analgésicos para permitir a tolerância das dores que a apoquentam.
36. O que lhe provoca insónias e noites mal passadas.
37. O autor é o beneficiário n.º ……….. da Segurança Social.
38. Na altura do sinistro o tractor agrícola seguro encontrava-se imobilizado num terreno particular, denominado de …, na …, em ….
39. O guincho acoplado ao trator deslocava os troncos de madeira que pretendia.
40. O referido “guincho” era manobrado sem que fosse necessário mover o tractor do local onde o mesmo se encontrava.
41. Aquando do sinistro, o trator encontrava-se imobilizado.
42. A ré C… não assistiu clinicamente o autor.
Factos não provados
a) No momento do acidente o trator era tripulado por D… que conduzia a referida viatura.
b) O autor transformou-se numa pessoa amarga e de relacionamento difícil, verificando-se, após o acidente, uma diminuição drástica da sua autoestima, perdendo a sua alegria e entusiasmo de viver.
c) O autor vive parte do seu quotidiano mergulhado na tristeza e insegurança pessoal, sentindo-se complexado e inferiorizado perante familiares e amigos evitando por isso contactos sociais e perdeu jovialidade.
d) Em períodos de maior quebra anímica, o autor chora face à sua impotência em reverter a sua situação.
e) O autor apresenta acentuada diminuição da sua autoestima, sentindo grande inferioridade pela incapacidade física de que padece, designadamente quando se manifesta na sua marcha por vezes claudicante, em função das dores que o assolam.
f) Criando cenários de ensimesmamento e pessimismo e vendo, por via disso, o seu quotidiano difícil, depressivo e com perda de objetivos futuros.
g) O autor apresenta bloqueio de comunicação com progressiva introversão.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do novo C.P.C.
As questões a decidir são as seguintes: se deve ser admitido o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267º do TFUE, no sentido de ser esclarecido se o sinistro se enquadra nos riscos de circulação do trator; impugnação da matéria de facto no que concerne aos pontos 38 a 41 da matéria assente; saber se o acidente em discussão se inclui, ou não, nos riscos cobertos pelo contrato de seguro celebrado entre a empresa proprietária do trator e a seguradora ré.

I. O apelante sugere o reenvio prejudicial para o respetivo TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267º do TFUE, a fim de lhe ser solicitada a interpretação do conceito de circulação de veículos, previsto no artigo 3º, nº 1, da Diretiva 72/166/CEE, do Conselho, de 24 de abril de 1972, nos casos em que um veículo de natureza mista é utilizado na sua função habitual de máquina, causando danos a terceiros, ainda que se encontre imobilizado.
Estabelece o artigo 267º do T.F.U.E. que “o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”.
Desde logo, como se refere no citado preceito, o órgão nacional só é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, relativamente a decisões que não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
Como diz João M. Campos, é ao juiz do processo que cabe decidir se na apreciação do caso em litígio se coloca alguma questão de interpretação ou de apreciação de validade de norma comunitária aplicável que justifique o pedido de intervenção do T.J.U.E., caso em que então formulará ele próprio as questões que entenda necessitarem de ser esclarecidas pelo referido Tribunal.
As quais formulará e enviará no momento em que considerar mais oportuno – de acordo com critérios de economia e utilidade processual. Manual de Direito Comunitário – O Sistema Institucional; A Ordem Jurídica; O Ordenamento Económico da União Europeia, 5ª Edição, págs. 430 e seguintes.
Por outro lado, o Tribunal de Justiça da União Europeia não tem competência, face ao disposto no citado artigo 267º do T.F.U.E., para se pronunciar sobre a compatibilidade de uma disposição nacional com o Direito Comunitário, nem para interpretar disposições legislativas nacionais.
De qualquer modo, sempre se dirá que se o Tribunal de Justiça da União Europeia se fosse chamado a interpretar o Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08, no qual se estabelece o regime do seguro obrigatório, o faria, como já o fez, interpretando o artigo 3º, nº 1, da citada Diretiva, no «sentido de que não está abrangido pelo conceito de circulação de veículos, referido nesta disposição, uma situação em que um trator agrícola esteve envolvido num acidente quando a função principal no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para acionar a bomba de um pulverizador de herbicida». Acórdão do Tribunal de Justiça Europeia, de 4.9.2014, no âmbito do processo de reenvio prejudicial nº C-162/13, citado pelo acórdão do STJ, de 15.12.2015, disponível em www.dgsi.pt.
Como mais à frente se dirá, segundo o entendimento corrente, para que um acidente provocado, quer por veículo automóvel, quer por uma qualquer unidade circulante, possa ser qualificado de acidente de viação, exige-se sempre que o veículo tenha sido causa direta ou indireta do sinistro, ou seja, que resulte da função de veículo circulante que lhe é caraterística.
Não há, pois, lugar ao reenvio prejudicial para o T.J.U.E., ao abrigo do artigo 267º do TFUE.

II. Os casos em que, pela via do recurso, se há-de reapreciar a prova produzida em primeira instância, terão de ser, concretamente, evidenciados pelo recorrente, destacando-os dos demais, indicando os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na ata, nos termos do nº 2, do citado artigo 155º (artigo 640º, nº 2, alínea a), do C. P. C.).
O apelante, mencionando os concretos meios probatórios, constantes do processo que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, preenche aqueles requisitos legalmente impostos, para que se possa apreciar o alegado erro na apreciação da matéria de facto.
Os pontos da matéria de facto que o autor/apelante considera incorretamente julgados são os seguintes: “Na altura do sinistro, o trator agrícola seguro encontrava-se imobilizado num terreno particular, denominado de …, na …, em …”; “O guincho acoplado ao trator deslocava os troncos de madeira que pretendia”; “O referido guincho era manobrado sem que fosse necessário mover o trator do local onde o mesmo se encontrava”; “Aquando do sinistro, o trator encontrava-se imobilizado, de modo permanente”.
Com base na reapreciação de documentos juntos e nos depoimentos das testemunhas D… e F…, o apelante pretende que aos referidos pontos da matéria de facto seja dada a seguinte redação: Na altura do sinistro, o trator agrícola seguro encontrava-se, momentaneamente imóvel, com o motor a trabalhar, num terreno particular, denominado de …, …, em …; O guincho acoplado ao trator puxava os troncos de madeira, enquanto o trator estava estabilizado num determinado local; O trator ia-se posicionando, movimentando-se de modo a colocar-se próximo das árvores que iam sendo cortadas; Esta era a utilização habitual do trator agrícola identificado em 2.
Deve dizer-se que o autor, agora, pretende concretizar melhor o posicionamento e utilização do veículo, uma vez que na petição inicial – artigos 7º a 10º – se limitou a alegar que “o autor se achava junto à parte traseira do trator a manobrar o referido guincho enquanto procediam ao corte de um eucalipto; a certa altura, com o guincho a funcionar quando puxava um tronco de madeira, o trator cedeu, deslizou e virou, ficando na vertical e com as rodas do lado direito no ar; Contudo, o trator ao virar apanhou e atingiu o autor com um dos seus componentes de natureza contundente na perna direita; Que o fez soçobrar imediatamente, atentos os ferimentos da perna direita”.
A matéria dada como provada nos referidos pontos 38 a 41 foi alegada pela ré nos artigos 15º, 16º, 21º, 22º e 23º da contestação.
A testemunha D…, na sua linguagem, explica perfeita e convincentemente o funcionamento do trator em questão, referindo que este “está a trabalhar, mas não precisa de condutor. Está quieto, o operador está atrás dele a trabalhar. O trator está a trabalhar quieto. O operador que está a trabalhar, não está a trabalhar com o trator, está a trabalhar com o guincho. Ele estava a trabalhar na parte de trás. Na parte acoplada ao trator”.
Este depoimento confirma o que o guincho era manobrado sem que fosse necessário mover o trator do local onde o mesmo se encontrava, melhor dizendo, para se manobrar o guincho, forçosamente o trator tem de se encontrar imobilizado.
A testemunha F… é inspetora do trabalho e elaborou o relatório junto a fls. 12 a 15. Não foi ao local e as informações que colheu tiveram na sua base a análise de documentos, nomeadamente o auto da GNR J….
O auto de ocorrência elaborado pela GNR, junto a fls. 170 a 173, refere que o senhor B…, «quando se encontrava a cooperar no corte de um eucalipto com o auxílio de um “guincho florestal” que se encontrava acoplado ao trator e com a força exercida para auxiliar na queda da árvore, o mesmo começou a ceder, desconhecendo-se o motivo, virando, provocando ferimentos na perna direita do senhor B…».
Aquando do sinistro, o trator estava imobilizado, pois é esta posição que deve ter para que o guincho acoplado possa deslocar os troncos de madeira. Como refere a testemunha D…, “o trator está a trabalhar quieto e o operador está atrás dele a trabalhar”.
E o pretendido acrescento ao ponto 38 da expressão “momentaneamente imóvel” é que, decisivamente nunca pode ter lugar.
No ponto 41, a referência ao modo permanente deve se eliminada, pois é evidente que a imobilização não era permanente.
O ponto 41 ficará, então, com a seguinte redação: Aquando do sinistro, o trator encontrava-se imobilizado.
É nossa convicção que a descrição do sinistro constante dos pontos 38 a 41, este com a referida alteração, corresponde à prova documental e testemunhal produzida.
Nestes termos, tendo em conta os documentos juntos e, nomeadamente o inquérito sumário de acidente de trabalho elaborado pela Autoridade para as Condições de Trabalho (fls. 12 a 15) e o Auto de Ocorrência elaborado pela GNR (fls. 171 a 173), conjugados com os depoimentos das testemunhas D… e F…, a convicção desta Relação é a de que as dúvidas levantadas pelo apelante não tinham fundamento, considerando-se, por isso, correta a forma como o tribunal a quo decidiu a matéria de facto questionada.

II. A questão de saber se o acidente em discussão se inclui, ou não, nos riscos cobertos pelo contrato de seguro celebrado entre a empresa proprietária do trator e a seguradora ré.
A empresa proprietária do trator OG-..-.. havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação com aquele para a ré seguradora, mediante a Apólice nº ………, que titulava o respetivo contrato de seguro.
Trata-se de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel cujo âmbito fundamental é a cobertura dos danos decorrentes da circulação do veículo terrestre a motor na via pública, nos termos dos artigos 150º do C.E. e 4º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, com as exclusões previstas no artigo 14º deste último diploma.
Refere o apelante que, não se excluindo que o acidente tenha sido provocado pelos riscos próprios do veículo, nem se apurando que apenas foi causado pelo funcionamento do guincho, deve ter-se como verificado o nexo causal entre estes riscos e o sinistro em questão.
A seguradora, pelo contrário, defende que o autor estava a operar o mecanismo do guincho e o trator, enquanto máquina circulante, nada teve a ver com o acidente.
A sentença recorrida, por sua vez, entendeu tratar-se de um típico sinistro de laboração e não de circulação ou utilização do veículo, pelo que não estava coberto pelo regime jurídico de seguro de responsabilidade civil previsto no citado Decreto-Lei nº 291/2007.
A respeito da dinâmica do acidente, provou-se que, na altura, o trator agrícola seguro encontrava-se imobilizado num terreno particular, denominado de …, na …, em …; o guincho acoplado ao trator deslocava os troncos de madeira que pretendia; o referido guincho era manobrado sem que fosse necessário mover o trator do local onde o mesmo se encontrava; aquando do sinistro o trator encontrava-se imobilizado, de modo permanente.
De acordo com o entendimento corrente, para que um acidente provocado, quer por veículo automóvel, quer por uma qualquer unidade circulante, possa ser qualificado de acidente de viação, exige-se sempre que o veículo tenha sido causa direta ou indirecta do sinistro, ou seja, que resulte da função de veículo circulante que lhe é caraterística.
É certo que estão excluídos do âmbito da aplicação da legislação estradal os acidentes ocorridos em locais que não sejam abrangidos pelo artigo 2º do C.E. – vias do domínio público ou vias do domínio privado abertas ao público.
Porém, tal não implica que o risco de utilização de um trator, veículo de circulação terrestre e destinado predominantemente a trabalhos agrícolas, fique excluído do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, desde que, como se referiu, seja verificado o nexo de causalidade entre o acidente e o risco próprio do mesmo veículo.
No caso, o acidente não foi provocado pelo trator OG-..-..., enquanto máquina circulante, mas pelo funcionamento do guincho acoplado à sua parte traseira, utilizando a força que lhe era transmitida pelo motor daquele veículo.
No contexto do acidente, o trator encontrava-se imobilizado, servindo o seu motor, na circunstância, apenas para fazer laborar o guincho na sua habitual e exclusiva função de deslocação dos troncos de madeira.
O artigo 1º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, revela que transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2005/14/CE, do Parlamento europeu e do Conselho, de 11 de maio, que altera as Diretivas nºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva nº 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
A propósito das dúvidas suscitadas na interpretação do conceito de veículos em circulação para efeitos de aplicação do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, refere-se no acórdão do STJ, de 17.12.2015, «conforme a interpretação firmada pelo Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 4-9-2014 (no âmbito do reenvio prejudicial nº C-162/13), o conceito de “circulação de veículos”, previsto no artigo 3º, nº 1, da Primeira Diretiva Automóvel, “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade” com a sua “função habitual”, incluindo, em concreto, “a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro”.
(…) A jurisprudência nacional desde há muito vinha admitindo a inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tractores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas, desde que, como se previne no nº 4 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 291/2007, não sejam utilizados em “funções meramente agrícolas ou industriais”.
Tem sido regularmente assumido por este Supremo Tribunal que os acidentes relevantes para o efeito não são apenas os típicos acidentes de circulação rodoviária, mas todos os derivados da utilização de veículos automóveis na sua função habitual, ou seja, como meios de transporte ou de locomoção autónomos». in www.dgsi.pt.
No acórdão do STJ, de 3.5.2001, refere-se que «os acidentes de viação podem ocorrer tanto nas vias públicas como nas particulares e, até, em locais não destinados à circulação, e que não é o facto de o veículo se encontrar parado que impede que como tal se considerem.
Mas nem todo o sinistro em que intervenha um veículo é necessariamente um acidente de viação: para que assim se possa qualificar, exige-se que o veículo tenha sido causa direta ou indireta do evento; que resulte este da função que lhe é própria; isto é, que exista relação – nexo causal – com, na expressão do nº 1 do artigo 503º do C.C., os riscos próprios – o mesmo é dizer, específicos – do veículo, enquanto tal; ou seja, com os especiais perigos que a sua utilização efetivamente comporte». CJ/STJ, Tomo II, pág. 43.
Retornando ao caso em apreço, dir-se-á que, face à referida factualidade provada, o trator não foi gerador de riscos derivados da sua circulação ou utilização enquanto veículo e, como tal, o acidente não está coberto pelo regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel previsto no citado Decreto-Lei nº 291/2007.
Como acima se referiu, o trator encontrava-se imobilizado, servindo o seu motor, em tais circunstâncias, apenas para fazer laborar o guincho na sua habitual e exclusiva função de deslocação dos troncos de madeira.
Improcede, deste modo, o recurso do autor B….
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.
Sumário:
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Porto, 7.5.2018
Augusto de Carvalho
Carlos Gil
Carlos Querido