Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1902/17.0T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
BENS DE CONSUMO
REGIME JURÍDICO
RESOLUÇÃO
INADIMPLEMENTO INSIGNIFICANTE
Nº do Documento: RP202002201902/17.0T8AMT.P1
Data do Acordão: 02/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Um inadimplemento insignificante ou com escassa gravidade, aferida segundo as circunstâncias do caso, não é suficiente para conferir o direito de resolução do contrato.
II - No contrato de compra e venda de veículo usado, a não entrega de uma segunda chave do veículo, cuja falta era conhecida do adquirente e que o vendedor se obrigou a obter para entregar ao comprador mas sem prazo para o efeito, não pode servir de fundamento à resolução do contrato, quando, apesar da falta da segunda chave, o comprador passou a fazer a utilização normal do veículo e comunicou a resolução sem proceder previamente à interpelação admonitória do vendedor.
III - Nos contratos que constituam ou transfiram um direito real sobre certa coisa, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente (artigo 796.º/1 do Código Civil), razão pela qual este não pode invocar o desaparecimento da coisa para fundar a perda objectiva de interesse na parte da prestação em falta.
IV - O regime jurídico da venda de bens de consumo (Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8-4) aplica-se aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, pelo que é necessário que os autos permitam apurar que o adquirente do bem o destina a uso não profissional.
V - O tribunal está obrigado, sempre que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para tal ou deles possa dispor mediante mero pedido de esclarecimento, a verificar se o comprador pode ser qualificado de consumidor, ainda que este não tenha expressamente invocado essa qualidade (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 04-06-2015, no processo C-497/13).
VI - O regime jurídico da venda de bens de consumo aplica-se à compra e venda de bens desconformes, não à compra e venda de bens conformes nos quais ocorre o incumprimento de uma prestação secundária.
VII - Também neste regime o direito de resolução não se constitui perante incumprimentos insignificantes ou de escassa importância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:1902.17.0T8AMT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, Celorico de Basto, instaurou acção judicial contra C…, Unipessoal, Lda., pessoa colectiva n.º ………, com sede em …, e contra Banco D…, S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede em Lisboa, formulando contra estes os seguintes pedidos:
> 1) declarado que foi resolvido o contrato de compra e venda, bem como o de financiamento (contrato n.º ……./CCL) relativo à viatura com a matrícula ..-JB-..; 2) o 1.º Réu condenado a entregar ao Réu D… o valor integral do financiamento que recebeu, no montante de €17.200,00, para pagamento da aquisição do veículo pelo autor, conforme consta do contrato n.º ……./CCL; 3) este Réu condenado a pagar ao autor todas as prestações que este pagou, no valor total de €5.105,03, bem como todas as prestações vincendas que o autor pagar até trânsito em julgado da sentença a proferir, acrescido dos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento; 4) condenar solidariamente todos os réus na quantia de €5.000,00, a título de danos morais. 5) Ser declarada a não obrigação do autor de restituir o veículo com a matrícula ..-JB-.., visto que o mesmo foi furtado e até à data não foi encontrado.
Para o efeito alegou que em Junho de 2016, se deslocou ao Stand Automóvel da ré C…, Unipessoal, Lda., onde adquiriu o veículo automóvel BMW … com a matrícula ..-JB-.., com recurso ao financiamento da ré Banco D…, S.A., a qual entregou à àquela ré a quantia de €17.200, celebrando com o autor o contrato de financiamento n.º ……./CCL nos termos do qual o autor devia pagar 96 mensalidades de €277,05 euros, vencendo-se a 1.ª em 05.07.2016 e as restantes, sucessivamente, em igual dia dos meses subsequentes.
No acto da entrega do veículo apenas foi entregue ao autor uma chave do veículo, tendo a vendedora garantido que entregaria a segunda chave logo que estivesse concluído o registo da viatura, da mesma forma que faltavam alguns documentos que deviam acompanhar o veículo, nomeadamente o livro de revisões e etiquetas do óleo. O autor tentou por diversas vezes, sem sucesso, obter da vendedora a entrega da chave e desses documentos, bem como a reparação de anomalias que o veículo tinha. Em 15 de Julho de 2016 o veículo foi furtado ao autor por desconhecidos, não mais tendo sido recuperado. Em 2 de Agosto de 2016, o autor comunicou a resolução do contrato de compra e venda do veículo à vendedora e a resolução do contrato de crédito à sociedade financeiras com fundamento na não entrega da chave e dos documentos do veículo, sendo certo que se soubesse que a chave e a restante documentação jamais lhe seriam entregues nunca teria comprado aquele veículo ou celebrado com os réus os negócios referidos.
Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pelo autor e pugnando pela improcedência da acção.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e decidindo: declarar resolvidos os contratos de compra e venda e de financiamento (n.º ……./CCL) relativos ao veículo matrícula ..-JB-..; condenar a 1.ª ré a entregar à 2.ª ré o valor de €17.200 do financiamento que recebeu para pagamento do preço do veículo, deduzido da margem de lucro na venda da viatura e do montante de € 1.693,90 das prestações pagas pelo autor; declarar que o autor não tem a obrigação de restituir o veículo de matrícula ..-JB-...
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, o qual terminou as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
a) Quanto aos efeitos da resolução do contrato de compra e venda do veículo e da resolução do contrato de mútuo, andou mal o Tribunal ao considerar que o A. não poderá reaver o valor das prestações que pagou (1.693,90€), porque aquele não está em condições de restituir a viatura.
b) Há impossibilidade objectiva de restituição do veículo - artigo 1269.º do CC ex vi artigo 289.º, n.º 3 do CC.
c) Nos termos do art.º 433.º do Código Civil, a resolução é equiparada quanto aos seus efeitos à nulidade do negócio jurídico, sem prejuízo do disposto nos arts. 434.º a 436.º do Código Civil.
d) Nos termos do art.º 434.º do CC que, em regra, a resolução tem efeito retroactivo e deverá ser restituído tudo o que foi prestado (art.º 289.º do CC).
e) Considerando que o contrato foi resolvido nos termos do art.º 18.º n.º 3, al. c) do Dec. Lei 133/2009 é de atender ao disposto no seu número 4, o qual prescreve que "nos casos previstos nas alíneas b) ou c) do número anterior, o consumidor não está obrigado a pagar ao credor o montante correspondente àquele que foi recebido pelo vendedor."
f) Ainda que o contrato de crédito seja, quanto à obrigação do consumidor, um contrato de execução duradoura, a causa da resolução, isto é, a extinção retroactiva do contrato que deu origem ao contrato de crédito (contrato de compra e venda), legitima a restituição de todas as prestações (art. 434.º n.º 2, in fine, do CC).
g) Ficando somente reservada ao credor (2.º Réu) a possibilidade de reclamar do vendedor (1.ª Ré) uma indemnização pela perda do valor dos juros que deveria ter recebido do consumidor.
h) Na sequência da Directiva 2008/48/CE, de 23-04, o DL n.º 133/2009, de 02-06, consagrou, entre nós, a responsabilidade do financiador perante o consumidor, na área dos contratos de crédito ao consumo, surgindo, assim, a figura do contrato de crédito coligado e da inerente responsabilidade do concedente do crédito, prevista genericamente no art. 18.º do DL n.º 133/2009, de 02-06.
i) Entre os participantes nesta cadeia contratual estabelece-se uma coligação ou dependência negocial em que as vicissitudes de cada um desses contratos se reflectem reciprocamente no outro, ficando, por isso, o financiador também responsável perante o comprador pelo cumprimento do contrato celebrado com o vendedor.
j) Tendo em consideração que o contrato de compra e venda e o contrato de financiamento (contrato de crédito n.º ……./CCL), relativos à viatura com a matrícula ..-JB-.., foram validamente resolvidos,
k) Deverá a 1.ª Ré ser condenada a entregar à 2.ª Ré o valor que recebeu do financiamento (€17.200,00) e deverá a 2.ª Ré - Banco D… - ser condenado a restituir ao A. todas as prestações que este liquidou (€1.693,90), acrescido dos juros de mora computados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
l) Quanto aos danos não patrimoniais, ficou provado que o veículo desapareceu, que foi apresentada queixa-crime, que ao A. nunca foi entregue a 2.ª chave, nem o livro de revisões, nem as etiquetas do óleo e que assim o A. ficou sem aquela viatura.
m) A impossibilidade do adquirente retirar proveito e utilidades de uma coisa por culpa do vendedor, constituiu seguramente um dano de natureza não patrimonial.
n) No caso em apreço, o veículo foi furtado e encontra-se desaparecido e, daí que haja perda das utilidades que o A. poderia tirar de tal bem.
o) A perda dessas utilidades, constitui um dano que merece a tutela do direito e por conseguinte indemnizável.
p) Considera-se os RR. ser condenados por tais danos não patrimoniais no montante peticionado de €5.000,00.
A recorrida Banco D…, S.A. respondeu a estas alegações, pugnando pela manutenção do julgado.
Em simultâneo, apresentou recurso subordinado da sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões relativas a essa parte:
a- Deve a sentença ser mantida, condenando-se o 1.º réu a entregar ao 2.º réu o valor do financiamento que recebeu, no montante de € 17.200,00 euros (dezassete mil e duzentos euros), no entanto,
b- Deve a sentença ser alterada na parte em que condena a deduzir aos € 17.200,00 a margem de lucro na venda da viatura, bem como no abatimento do valor total das prestações pagas pelo autor, na quantia de € 1.693.90 euros (mil seiscentos e noventa e três euros e noventa cêntimos), sob pena de se violar o disposto no artº 609º do Código de Processo Civil.
Recorreu igualmente a ré C…, Unipessoal, Lda. a qual apresentou alegações nas quais depois da epígrafe conclusões faz constar o seguinte:
A. O presente recurso tem por objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
B. [repetição do dispositivo da sentença].
C. No entendimento da Recorrente a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação dos factos nem, tão pouco, uma adequada subsunção dos mesmos às normas jurídicas aplicáveis, entendendo-se que a decisão ora posta em crise, padece de vícios de apreciação quer factual quer de Direito, conforme infra se propugna.
D. E. F. [repetição dos factos provados e não provados especificados na sentença].
G. Não obstante, existem factos que foram indevidamente dados como provados, desde logo pela falta de sustentabilidade empírica e prova científica, demonstrando claramente que a convicção do Tribunal a quo foi formulada com base no depoimento de parte do autor e das suas testemunhas, sendo igualmente certo que, mesmo neste casos, não resultaram sequer destes depoimentos elementos suficientes para dar como provados factos que o foram pelo Tribunal.
H. Da sentença constam os seguintes factos dados como provados, e que a defesa entende terem sido indevidamente valorados: [segue-se a reprodução dos factos dos pontos 1, 2, 9 - por lapso indicado como sendo o 10 - e 11].
I. A convicção da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, claramente, se formou com base nas declarações do autor e das suas testemunhas, parecendo, desde logo, altamente redutor e atentatório dos princípios da legalidade e proporcionalidade, não obstante o preceituado no CPC quanto à livre apreciação da prova.
J. Em relação aos factos provenientes da audiência de julgamento, dados como provados em 1 [segue-se a reprodução do facto]
K. Face a toda a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, apenas o Autor e o legal representante da 1.ª Ré sabiam o que foi acordado na data da entrega do veículo.
L. Ora, o legal representante da Ré, para além de não ter confessado o ponto 1 dos factos provados disse, categoricamente, que na altura do negócio com o Autor, comunicou-lhe que o veículo não possuía nem o livro de revisões nem a 2ª chave, quando afirma ao minuto l:48m da respectiva gravação, o seguinte: Legal representante da 1ª Ré: "A visei o cliente que não tinha o livro de revisões nem a 2ª chave e ele não fez qualquer tipo de impedimento para o negócio concluir"
M. Ou seja, o legal representante da Ré, jamais em tempo algum, falou de quaisquer registos do veículo ou colocou como data limite para a entrega, fosse do que fosse, a data do registo do veículo.
N. O próprio Autor, nas declarações de parte que prestou em audiência de discussão e julgamento, jamais refere tal momento temporal como o limite para ter a 2ª chave do veículo, afirmando antes que o legal representante da 1ª Ré lhe disse que o veículo era de serviço e que iria a Lisboa na próxima semana buscar a 2ª chave.
O. Ou seja, nem das declarações do legal representante da 1ª Ré, nem das declarações do próprio Autor resulta que este último estava à espera da 2ª chave do veículo aquando do registo da viatura, não existindo assim, desde logo, qualquer momento temporal a partir do qual o Autor pudesse estar a contar com a entrega da 2ª chave, caso tivesse sido prometida a entrega como o mesmo alega.
P. Por outro lado, nem tão pouco da carta que o Autor enviou à 1ª Ré a comunicar a vontade de resolver o contrato, consta sequer o momento temporal a partir do qual o Autor passaria a ter a 2ª chave do veículo.
Q. Como resulta de tal documento, junto a fls. 13 dos presentes autos e na qual o Tribunal a quo igualmente fundamenta a sua convicção, o que o Autor aí diz é que, supostamente, lhe ficaram de entregar a chave posteriormente. Não refere em lado algum a entrega da chave logo que estivesse efectuado o registo da viatura.
R. Assim, o que efectivamente resultou provado quer do depoimento do Autor quer do legal representante da 1ª Ré foi que, na altura da entrega do veículo, a 1ª Ré apenas entregou ao Autor um só exemplar das chaves do carro.
S. Considerar mais do que esta realidade, carece, no nosso entendimento, em absoluto, de qualquer base ou fundamento de prova testemunhal ou documental bastante, considerando-se por essa razão que o Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação e interpretação da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, dando como provado, erradamente, que a 1ª Ré havia "referido que entregava a 2ª chave logo que estivesse efectuado o registo da viatura."
T. O Autor não fez qualquer prova, para além das suas declarações, sobre o que a 1ª Ré lhe tinha ou não prometido em relação à 2ª chave do veículo, sendo certo que o legal representante da Ré apresenta, com lógica e de forma coerente, a sua versão dos factos que contraria em absoluto a versão apresentada pelo Autor, dizendo que, desde o início, o Autor sabia da inexistência da 2ª chave e, mesmo assim, não deixou de querer adquirir o veículo.
U. O Autor e a 1ª Ré apresentam versões absolutamente contraditórias em relação a este facto e, como tal, jamais o Tribunal a quo poderia valorar, como valorou, as declarações do Autor em detrimento do depoimento de parte prestado pelo legal representante da Ré, sem qualquer justificação para tal, e, em consequência, dar como provada, como deu, a matéria de facto em causa.
V. Em relação aos factos provenientes da audiência de julgamento, dados como provados em 2 [segue-se a reprodução do facto].
X. O Tribunal a quo não andou bem ao dar como provada tal matéria de facto, dado que carece tal consideração de fundamento probatório bastante, uma vez que quer o Autor quer o legal representante da Ré nas suas declarações jamais referem que a chave do veículo se encontrava na posse da sociedade E…, S.A."
Y. Embora o Autor tenha alegado tais factos na sua petição inicial, o certo é que nem das suas próprias declarações nem de quaisquer outras resultou provado tal matéria de facto, revelando a contradição na posição do Autor, alegando nos seus articulados determinados factos que depois, em audiência de discussão e julgamento, os reputa como falsos ou apresenta uma versão completamente distinta dos mesmos.
Z. Por essas razões, o Tribunal a quo andou mal ao dar como provada a matéria de facto do ponto 2 dos factos provados, dada a manifesta ausência de qualquer elemento de prova que a corroborasse.
AA. Em relação aos factos provenientes da audiência de julgamento, dados como provados em 9 [segue-se a reprodução do facto] andou mal o Tribunal a quo na análise crítica que fez da prova produzida dando como provado tal matéria de facto, na medida em que tirou conclusões que contrariam em absoluto o depoimento do próprio Autor.
AB. Ora, a Recorrente não pode deixar de discordar mais com o entendimento da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo quando afirma, na análise crítica da prova, que a 1ª Ré se teria comprometido a efectivar determinados consertos e que, ao não realizá-los, incorreu em inadimplemento contratual.
AC. Corresponde à verdade que o legal representante da 1ª Ré confessou que o Autor lhe tinha pedido a realização de pequenos consertos no veículo, não podendo igualmente deixar de se considerar que tais reparações foram realizadas pela 1ª Ré, sendo o próprio Autor que o afirma, expressa e claramente, nas suas declarações a instâncias da Meritíssima Juiz.
AD. Também a testemunha do Autor Sr. F…, refere expressamente no seu depoimento a realização dos consertos por parte da 1ª Ré, afirmando a instâncias do Ilustre Mandatário do Autor refere a testemunha o seguinte, ao minuto 51:26 da respectiva gravação: Mandatário do Autor: E depois o carro desapareceu? Testemunha: “....o senhor do stand pegou e trouxe-nos a nossa casa, a casa do meu filho e levou o carro para o stand para a oficina para compor"
AE. O Autor, na carta de resolução que envia à Ré não alega sequer como motivo dessa resolução a falta de cumprimento por parte da Ré dos ditos consertos ou reparações, sendo o único motivo que serve de fundamento ao Autor para a resolução do contrato de compra e venda celebrado com a 1ª Ré é a alegada falta de entrega da 2ª chave do veículo.
AF. Do próprio certificado de transcrição de mensagens de fls. 11 dos presentes autos, no qual o Tribunal a quo fundamenta igualmente a sua convicção, resulta claramente que o Autor deixou de falar nas reparações, e que até é combinado o dia para o Autor vir levantar o carro depois de estarem feitas as reparações.
AG. Pelo que, considerar que a 1ª Ré incorreu em incumprimento contratual por não ter feito os consertos solicitados, carece em absoluto de qualquer fundamentação em qualquer elemento de prova existente nos presentes autos, ou produzido em audiência de discussão e julgamento.
AH. Razão pela qual, não podemos de todo concordar com a análise da prova feita pelo Tribunal a quo em relação a este aspecto, jamais se podendo considerar que existiu por parte da 1ª Ré incumprimento contratual pela falta de efectivação de consertos, face à manifesta ausência de prova documental ou testemunhal nesse sentido, bem como à clara e expressa contradição manifestada pelo Autor nas suas declarações.
AI. Em relação aos factos provenientes da audiência de julgamento, dados como provados em 11 [segue-se a reprodução do facto], andou mal o Tribunal a quo ao dar como provada tal factualidade, uma vez que carece de fundamento em qualquer elemento de prova produzido em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, nas próprias declarações do Autor, assim como das restantes testemunhas.
AJ. É o próprio Autor que afirma, de forma expressa e clara, no final do seu depoimento, a instâncias do Ilustre Mandatário da 2ª Ré o seguinte: Mandatário da Segunda Ré: Sr. B… a instâncias aqui do colega perguntou-lhe ...se o carro não tivesse sido furtado e se a chave ainda não estivesse consigo o que é que o Sr. Fazia .... E a sua resposta foi que estava com medo, que iria ter a viatura guardada... foi o que o Sr. disse e a pergunta que eu lhe faço é... mas se necessitasse dela iria usar- se dela, certo?" Autor: "...Ia tentar fazer uma chave... Ia tentar pedir à própria BM uma chave."
AK. Ou seja, o Autor afirma que se fosse hoje possuidor do veículo, apesar de a 1ª Ré não lhe ter entregue a 2ª chave do mesmo, nem por isso resolvia o negócio, mas antes mandava fazer uma segunda chave à BMW.
AL. De tais declarações do Autor não se pode fazer outra interpretação que não seja que a 2ª chave do veículo não era para o mesmo tão essencial, ao ponto de, a sua falta, poder constituir a razão necessária e suficiente para resolver o negócio com a 1ª Ré.
AM. Por outro lado, das várias mensagens enviadas pelo Autor ao legal representante da Ré não resulta, de uma única, que a falta de entrega da 2ª chave por parte da 1ª Ré seria motivo suficiente para o Autor resolver o contrato e entregar o veículo à 1ª Ré.
AN. Por outro lado, se a 1ª Ré tivesse mesmo garantido a entrega da chave e do livro de revisões, o Autor não deixaria de ter resolvido o contrato ao abrigo do direito ao arrependimento, nos 14 dias seguintes à celebração do negócio, tal como era do seu perfeito conhecimento, como disse a sua própria Mulher nas suas declarações gravadas, ao minuto 1:06:38, a instâncias do Ilustre Mandatário do Autor: Mandatário do Autor: Porque é que a senhora garante que não? Testemunha G…: Porque ele chegou a casa e falou logo que sem 2ª chave que ainda dava para anular, tinha uns dias para anular, se ele não trouxesse a 2ª chave.
AO. O Autor a sua mulher sabiam desde o início do negócio que o veículo possuía apenas uma chave e conformaram-se com esse facto, ao ponto de o mesmo não constituir razão suficiente para perder o interesse no veículo e resolver o contrato.
AP. O interesse essencial do Autor na manutenção do negócio não ficou abalado pelo facto e não possuir a 2a chave do veículo, tendo o Autor se conformado com a celebração do negócio nesses termos, ou seja, aceitou a aquisição do veículo apenas com uma chave e, caso o legal representante da Ré conseguisse, entregar-lhe-1ª a 2a chave do veículo.
AQ. O mesmo se diga em relação ao livro de revisões, dado que o Autor nunca invocou, nem na carta de resolução env1ªda à 1ª Ré, nem posteriormente, tal facto como causa ou motivo da resolução do contrato, não alega sequer tal circunstância como essencial à conclusão do negócio ou à sua manutenção.
AR. Pelo que andou mal o Tribunal a quo quando considerou que, para além da não entrega da 2a chave, também a suposta falta do livro de revisões constituiu fundamento para o Autor poder resolver o contrato de compra e venda celebrado com a 1ª Ré.
AS. Como se pode igualmente constatar do certificado de transcrição de fls. 11 dos presentes autos, o Autor apenas reclama o livro de revisões porque o mesmo hav1ª ficado no stand, como resulta da mensagem do dia 15/06, Entregue Qua, 07:18, sendo certo que, depois da mensagem do dia 05/07, Entre, Ter, 09:51, o Autor nunca mais voltou a falar do livro de revisões nem das etiquetas do óleo.
AT. Em todo o discurso do Autor é notória a manutenção do interesse do mesmo no veículo que hav1ª adquirido à 1ª Ré, jamais lhe apontando qualquer anomalia, defeito ou desconformidade com o que lhe havia sido anunciado pelo vendedor, susceptível de o fazer perder o interesse no veículo e, consequentemente, motivar a resolução do contrato de compra e venda.
AU. Aliás, como ficou claramente demonstrado das suas declarações acima transcritas, ainda hoje, se o Autor tivesse o veículo na sua posse, sem a 2ª chave do veículo, mantinha o interesse no veículo, não resolveria o contrato de compra e venda com a 1ª Ré, dirigindo- se antes à BMW para adquirir uma segunda chave do veículo.
AV. Pelo que, o Tribunal a quo faz uma interpretação e valoração errada da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, que analisada criticamente e à luz da experiência comum, jamais se poderia chegar à conclusão que foi garantido ao Autor a entrega de um duplicado das chaves, do livro de reparações e da efectivação dos consertos e que esta obrigação não foi cumprida pela sociedade Ré, fazendo-a incorrer em inadimplemento.
AX. Não pode deixar de discordar mais com a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo face à manifesta insuficiência, e mesmo ausência, de elementos de prova necessários e suficientes, susceptíveis de fundamentar tal entendimento.
AY. Ao partir deste pressuposto de facto errado, ou seja, ao considerar que a 1ª Ré incumpriu as suas obrigações decorrentes do contrato de compra e venda celebrado com o Autor, acabou igualmente o Tribunal a quo por fazer uma incorrecta submissão dos factos ao Direito aplicável.
AZ. A Ré vendedora jamais incorreu em inadimplemento contratual para com o Autor, e muito menos se poderá considerar que a 1ª Ré terá vendido ao Autor o veículo portador de qualquer vício que o desvalorize, que impeça a realização do fim a que se destina, que lhe falte qualidades asseguradas pelo vendedor ou que lhe falte qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
AAA. O Autor e a sua Mulher, G…, aqui sua Testemunha, disseram de forma espontânea que circulavam com o veículo normalmente e nunca assinalaram sequer qualquer anomalia ou vício que os impedisse de o fazer.
AAB. Da mesma forma, resulta de forma clara e expressa, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, que o Autor sabia perfeitamente e tinha consciência das condições em que estava a adquirir o veículo à sociedade 2ª Ré, nomeadamente, tinha perfeito conhecimento de que o veículo em causa não tinha a 2ª chave nem o livro de revisões oficial.
AAC. Ao contrário do que foi considerado pelo Tribunal, na data da celebração do contrato de compra e venda não ocorreu qualquer falta de qualidades asseguradas pelo vendedor. Da mesma forma que não ocorreram quaisquer faltas de qualidades necessárias para a realização do fim a que o veículo se destinava, tanto mais que jamais foram sequer alegadas ou invocadas pelo Autor enquanto se manteve na posse do veículo, ou posteriormente.
AAD. Pelo que, não se verificam preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação in casu do regime jurídico previsto nos artigos 913.º e seguintes do Código Civil, fazendo o Tribunal a quo uma incorrecta interpretação e aplicação de tais normas legais ao caso em concreto.
AAE. Também não se encontram verificados os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação do regime jurídico previsto no DL nº 67/2003 de 08 de Abril. Aliás, em relação à suposta falta de conformidade entendida pelo Tribunal a quo, dispõe o nº 3 do Artigo 2.º (Conformidade com o contrato) do referido diploma legal o seguinte: 3 - Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
AAF. No caso concreto foi precisamente o que aconteceu com o Autor. O mesmo sabia perfeitamente a falta de 2ª chave do veículo e do livro de revisões. Ainda assim, conformou-se com tais condições contratuais, e celebrou o contrato do compra e venda nos seus precisos termos.
AAG. Aliás, como foi já referido, foi o próprio Autor que, nas suas declarações, afirmou perante este Tribunal que se ainda hoje tivesse o carro na sua posse, não resolveria o contrato de compra e venda por falta da 2ª chave, mas antes comprava ou mandava fazer uma 2ª chave na BMW. Esta postura do Autor não pode deixar de ser valorada como uma manifestação clara e evidente de que a falta da 2ª chave do veículo para o mesmo jamais constituiu fundamento de resolução do contrato de compra e venda com a 1ª Ré, ou seja, jamais foi sua vontade e intenção destruir o negócio celebrado com a sociedade 1ª Ré pelo facto de não possuir a 2ª chave do veículo, e muito menos por não possuir o respectivo livro de revisões, que não foi sequer fundamento da resolução comunicada à sociedade
AAH. Dito de outra forma, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo não ocorreu qualquer falta de conformidade face ao contrato, porquanto a descrição que foi feita ao Autor, e que o próprio confirma nas suas declarações, foi tal e qual como o negócio se veio a concretizar.
AAI. O Tribunal a quo ao considerar que a falta do livro de revisões e, supostamente, das reparações, vai para além do que o próprio Autor alega como causa de resolução do contrato, manifestada expressamente na carta de resolução de fls. 13 dos presentes autos, carecendo em absoluto de qualquer tipo de fundamento legal e factual a consideração do Tribunal a quo de que a falta do livro de revisões e dos alegados consertos são motivo para a resolução do contrato de compra e venda, constituindo falta de conformidade com a descrição que foi feita pelo vendedor.
AAJ. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo interpretou erradamente o disposto nos artigos 913º e seguintes do Código Civil, bem como 874.º e 879.º, e 882.º nº 1 do mesmo diploma legal, o mesmo ocorrendo com o regime jurídico consagrado no DL 67/2003 de 08 de Abril, concretamente, o disposto nos artigos 2º nº 3, 3.º e 4º de tal diploma legal.
AAK. Face a toda a prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos, o Tribunal a quo deveria proferir uma sentença julgando a presente acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo as Rés do pedido formulado pelo Autor.
O autor recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
> Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada;
> Se houve incumprimento pela 1.ª ré do contrato de compra e venda do veículo;
> Se esse incumprimento conferiu ao autor o direito à resolução do contrato;
> Se ao caso é aplicável o regime dos contratos de consumo e para a venda de coisas desconformes ao contrato;
> Se nesse regime o autor podia exercer o direito de resolução do contrato e com que consequências.

III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
O recorrente começa por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mais especificamente a decisão de julgar provados os pontos 1, 2, 9 e 11 dos factos julgados provados.
Mostram-se cumpridos os requisitos específicos dessa impugnação, pelo que cabe proceder à sua apreciação.
Antes, porém, mostra-se necessária uma correcção.
Na sentença recorrida incluiu-se no ponto 10 do elenco dos factos provados o seguinte: «o autor não logrou ajustar um acordo de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, por não ter a 2.ª chave.». Este facto corresponde ao tema de prova n.º 10 (cuja redacção era: o autor não logrou ajustar um acordo de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, por não ter a 2.ª chave) do qual passou para o referido elenco. Todavia, imediatamente a seguir a esse elenco consta o seguinte: «Factos Não Provados: Temas 10 e 12 e 13 da Prova (estes, eliminados por acordo – cfr. acta de fls. 87)».
Sucede assim que por manifesta falta de atenção o facto que o tribunal julgou expressamente não provado, foi inserido no elenco anterior onde apenas deviam constar os factos julgados provados. Lendo a descrição dos meios de prova e a designada «análise critica da prova», verifica-se que foi ouvida uma testemunha que falou na necessidade da segunda chave mas a quem não foi pedido para celebrar um contrato de seguro, qualquer que fosse a respectiva cobertura, e outra testemunha, com quem o autor celebrou de facto o contrato de seguro, a qual referiu não ter conhecimento da necessidade da segunda chave para efeitos de celebrar o seguro, nunca tal exigiu em 20 anos de profissão, e que o autor não o abordou para celebrar qualquer contrato de seguro com a cobertura de danos próprios, nem, ao que se recorda, dos vários seguros que o autor celebrou consigo ao longo dos anos, algum deles teve essa cobertura. Sendo esta a motivação do tribunal a quo parece que a sua decisão só pode ter sido a de julgar não provado o aludido facto, conforme assinalou de modo expresso, aliás.
No caso de se entender, ao invés, que estamos perante uma contradição na decisão, devemos ter presente que nos termos do artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute obscura ou contraditória a decisão sobre ponto determinado da matéria de facto.
Extrai-se desta norma, à contrário sensu, que tendo a Relação à sua disposição todos os elementos probatórios, não deve anular a sentença recorrida mas sim proceder ela mesma à alteração da decisão sobre a matéria de facto de modo a sanar as obscuridades e contradições, recorrendo para o efeito aos elementos probatórios constantes do processo. Essa faculdade, segundo a norma, pode ser exercida de modo oficioso.
No caso, o processo disponibiliza a totalidade dos meios de prova nos quais se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto, uma vez que os documentos estão juntos e os depoimentos produzidos em audiência encontram-se gravados. Por isso, precisamente com base nos meios probatórios referidos, esta Relação decide julgar (ou interpretar/confirmar a decisão recorrida como tendo julgado) não provado o ponto 10 da sentença.
Passemos à análise da impugnação. Para o efeito procedemos à audição integral da gravação da audiência de julgamento, o que se tornou necessário pela circunstância de a motivação da decisão ser deveras insuficiente, não permitindo vislumbrar em vários momentos quais foram mesmo os meios de prova que foram considerados pelo tribunal a quo para julgar provados cada um dos factos.
No ponto 1 foi julgado provado que «em 14-06-2016, a 1.ª ré entregou ao autor um só exemplar das chaves do veículo, tendo referido que entregava a 2.ª chave logo que estivesse efectuado o registo da viatura». No ponto 2 foi julgado provado «uma vez que esta chave se encontrava com a anterior dona do carro “E…, S.A.”».
O que o autor afirmou nas suas declarações de parte foi que ao ser informado que o veículo que estava a comprar só tinha uma chave manifestou ao vendedor interesse na segunda chave, tendo-lhe sido respondido pelo vendedor que ia obter a segunda chave junto de quem lhe vendera o veículo (“a semana que vem vou a Lisboa e trago a chave”) e que depois a entregava ao autor. Mais afirmou que não lhe foi falado na E… nem sabia que esta tivesse ligação com o veículo. Uma vez que este é o único meio de prova produzido que poderia servir para julgar provada a matéria em causa, é manifesto que a decisão proferida não pode ser mantida.
Tendo o legal representante da ré vendedora afirmado no seu depoimento que mandou um mail à pessoa através da qual tinha adquirido o veículo para o revender a solicitar a segunda chave do veículo, é forçoso concluir que o autor lha solicitou – existem aliás mensagens telefónicas a reiterar esse pedido - e este diligenciou para a obter. É (apenas) isso que deve ser julgado provado.
Como tal, o ponto 2 da matéria de facto é julgado não provado e o ponto 1 passa a ter a seguinte redacção:
«1- Em 14-06-2016, a 1.ª ré só entregou ao autor uma das chaves do veículo, ficando de obter a segunda chave para lha entregar.»
No que concerne ao ponto 9 foi julgado provado que «o autor solicitou à 1.ª ré reparações da pintura, ópticas e grelha da frente do veículo e que ela se comprometera a fazer».
A prova produzida também não consente de modo algum esta resposta. É certo que foram pedidos alguns trabalhos no veículo, mas existe prova abundante de que a realização desses trabalhos foi acordada entre o autor e a sociedade vendedora e esta executou os trabalhos que lhe foram pedidos ou, pelo menos, na versão das declarações do próprio autor, embora referindo-se apenas ao tempo que mediou entre a celebração do contrato e a entrega do carro (3/4 dias), «grande parte delas».
O print das mensagens telefónicas junto pelo autor parece revelar que por alturas do dia 30 de Junho, ou seja, depois de ter sido adquirido e levantado pelo autor, o veículo foi entregue à vendedora para esse efeito, não havendo mensagens posteriores a acusar a falta de algum dos trabalhos para execução dos quais o veículo havia sido entregue à vendedora.
Também o pai do autor afirmou que a dada altura o vendedor ficou com o carro em seu poder para “compor uns riscos na carrinha e ver um problema que tinha”, não referindo que esses trabalhos tivessem ficado por fazer, como seria normal que referisse, caso isso se tivesse verificado.
Portanto, o aludido ponto da matéria de facto deverá passar a ter a seguinte redacção:
«O autor solicitou à 1.ª ré que realizasse alguns trabalhos no veículo, o que ela aceitou fazer e fez.»
Por fim, no ponto 11 está julgado provado que «se o autor soubesse que a 2.ª chave e o livro de revisões não lhe seriam entregues, não teria querido esse carro».
Na motivação da decisão não se vislumbra a indicação da razão pela qual a Mma. Juíza a quo julgou provado este facto, o qual não é sequer abordado no único parágrafo que constitui aquilo que com impropriedade se designou por «análise crítica da prova». Apenas no curto relato do teor dos depoimentos produzidos se menciona que esse facto terá sido afirmado pela mulher do autor, a testemunha G…, e pelo próprio autor nas declarações de parte.
Basta ouvir a gravação destes dois depoimentos para encontrar contradições manifestas com interferência sobre esse facto. Enquanto a mulher afirma que quando o marido trouxe o carro sem a outra chave lhe disse que ainda tinha prazo para anular o contrato se não recebesse a chave, o autor declarou que não sabia que podia resolver o contrato num certo prazo porque se soubesse isso teria resolvido o contrato por não lhe entregarem a segunda chave.
No que respeita em particular a este facto, a interpretação dos meios de prova não pode ser feita sem ter presente as regras da experiência e os dados objectivos que o processo fornece.
É evidente que quando o veículo foi furtado e o autor se viu na situação de pagar o preço de um veículo (rectius, o reembolso de um empréstimo que contraiu com essa finalidade) sem ter o veículo, o autor procurou explorar em seu benefício todas as hipóteses de se desobrigar do contrato de mútuo. Foi por esse óbvio motivo que a chave se tornou tão importante para si.
Mas isso não invalida que o autor tivesse adquirido o veículo sabendo que o vendedor só tinha uma chave dele, tivesse formalizado o contrato de compra e venda e de mútuo no mesmo dia em que foi ao stand e viu o veículo, dias depois tivesse ido buscar o veículo só com uma chave e o tivesse utilizado até ao dia em que ele foi furtado apesar de só ter tido em seu poder, durante todo esse tempo, uma chave do mesmo.
A ligeireza com que o autor decidiu comprar o veículo no próprio dia, mesmo sem ter dinheiro para o pagar, e contrair um empréstimo que encareceu sobremaneira o custo dessa aquisição, é perfeitamente incompatível com o cuidado que subjaz à afirmação de que caso não recebesse a segunda chave não celebraria o contrato (repare-se que o autor comprou um veículo usado cuja proveniência não estava comprovada e sem ver sequer o respectivo livro de assistência ou efectuar qualquer averiguação do respectivo estado de conservação ou manutenção!).
O autor, segundo as mensagens que juntou, foi sucessivamente pedindo a segunda chave ao vendedor e este, segundo declarou e em alguma medida é apoiado pelo print dos mails que juntou – no mail do dia do furto são mencionados pedidos anteriores que não estão documentados – fez diligências junto de quem lhe entregou o veículo para que o revendesse para obter essa chave a fim de a entregar ao autor. Daqui retira-se com facilidade que o autor sabia que não tinha a chave, que a desejava ter, que o vendedor quis concretizar esse objectivo mas, até ao dia do furto do veículo, ainda não o tinha concretizado. Mas daí já não se retira necessariamente que nesse contexto, o autor não celebraria o contrato se soubesse que a segunda chave não lhe seria entregue.
Acresce que a existência de uma segunda chave tem por objectivo permitir ao utilizador do veículo, no caso de se perder a respectiva chave, lançar mão da outra para usar o veículo sem necessidade de mais diligências. Esse cuidado pode ser assegurado obtendo num concessionário da marca uma cópia da chave do veículo. Por conseguinte, o autor podia sempre intimar o vendedor para lhe entregar a chave em falta ou uma cópia da chave para ser usada como suplente. Não está junto aos autos qualquer sms que revele esse pedido ou intimação. E não está porque um mês depois de o autor ter passado a ser proprietário e a usar o veículo normalmente, este foi furtado de noite quando estava estacionado na via pública, altura em que a chave deixou de ser o foco do interesse para passar a ser o fundamento do real interesse: a extinção dos contratos.
Quanto ao livro de revisões, não se trata de um documento necessário para qualquer questão formal ou legal e muito menos de um documento autêntico que comprove o que quer que seja quanto à assistência que tem sido feita ao veículo, quer no tocante à sua efectiva realização quer no tocante à sua qualidade. Acresce que é bem mais fiável e fácil saber nos concessionários da marca, através dos respectivos registos informáticos que acompanham a vida dos veículos, em quais o veículo foi assistido e o que lhe foi feito.
Nessas circunstâncias, afigura-se-nos que para demonstrar o facto que alegou e que a decisão impugnada transportou para o ponto 11 o autor necessitava de fazer outra prova, bem mais ampla ou segura, que não apenas as suas próprias declarações e o depoimento da mulher. Estes meios de prova fornecem um contributo probatório que atento o interesse dos depoentes na lide e os dados objectivos que o processo fornece, face às regras de experiência assinaladas, não pode ser tido como bastante ou suficiente para o tribunal julgar provado o facto para efeitos de alicerçar nele uma decisão judicial.
Por conseguinte, do ponto de vista técnico-jurídico que não corresponde a qualquer juízo opinativo mas sim a uma convicção alicerçada e intelectualmente justificada, o facto em questão deve ser julgado não provado, o que aqui se decide.

IV. Os factos:
Ficam definitivamente julgados provados os seguintes factos:
A- Em Junho de 2016, o autor B… dirigiu-se ao Stand Automóvel, denominado “H…”, pertencente à 1.ª ré “C…, Unipessoal, Lda.”, com o intuito de adquirir um veículo automóvel.
B- O autor escolheu e a 1.ª ré forneceu-lhe o veículo automóvel de marca BMW, modelo …, ligeiro de passageiros, de cor preta, com a matrícula ..-JB-.., cuja aquisição foi financiada pela 2.ª Ré “Banco D…, S.A.”, que entregou à 1.ª ré a quantia de €17.200, conforme escrito de fls. 35 intitulado Contrato n.º ……./CCL, datado de 11 de Junho de 2016.
C- Tendo como finalidade exclusiva a aquisição do automóvel, foi ajustado, nas instalações da 1.ª ré, um acordo de concessão de crédito entre o autor e o 2.º réu.
D- Em 14-06-2016 o autor levantou a viatura no Stand da 1.ª ré.
E- Em face do desaparecimento do veículo, o autor apresentou queixa-crime, que deu origem ao processo n.º 459/16.4GBAMT, o qual correu termos no Ministério Público de Amarante.
F- Em 02-08-2016, o autor comunicou a resolução do contrato de compra e venda do veículo à 1.ª ré e a resolução do contrato de crédito automóvel ao 2.º réu, pelas cartas de fls. 13 verso e 19.
G- O 2.º réu “Banco D…, S.A.” dedica-se à actividade de concessão de crédito e no âmbito dessa actividade, foi contactado pelo autor que efectuou um pedido de financiamento, tendo em vista a aquisição a crédito de um veículo automóvel e, após a analisar o pedido de financiamento, o banco apresentou uma proposta de crédito ao autor que a aceitou, pela quantia de €17.200 euros.
H- O autor acordou em pagar ao 2.º réu 96 mensalidades de €277,05, vencendo-se a 1.ª em 05-07-2016 e as restantes, sucessivamente, em igual dia dos meses subsequentes.
I- Com a subscrição do contrato de crédito, o autor ajustou com a «Companhia de Seguros –I…» um acordo de seguro automóvel.
J- Em 04-12-2017, o Banco 2.º réu instaurou um processo de execução baseado em livrança, contra o autor, onde reclama a quantia de €18.376,40.
k- Em 14-06-2016, a 1.ª ré só entregou ao autor uma das chaves do veículo, ficando de obter a segunda chave para lha entregar.
L- Após o levantamento da viatura, o autor verificou ainda que faltava entregar o livro de revisões e etiquetas do óleo, tendo-o solicitado em 15-06-2016.
M- A 1.ª ré nunca entregou a 2.ª chave ao autor, nem o livro de revisões.
N- Em 15-07-2016, pessoa desconhecida levou consigo a viatura que se encontrava estacionada junto a uma casa sita na Rua …, n.º …., 1.º, … (…), Amarante.
O- O autor tinha fechado e trancado o carro.
P- O financiamento foi combinado entre o autor e a 1.ª ré que se predispôs a tratar de toda documentação necessária.
Q- O autor outorgou o escrito de fls. 35, contrato de crédito n.º ……../CCL, para conseguir adquirir a viatura.
R- O autor solicitou à 1.ª ré que realizasse alguns trabalhos no veículo, o que ela aceitou fazer e fez.
S- O autor só liquidou as primeiras 6 mensalidades do contrato de crédito, no valor total de €1.693,90.
T- O último pagamento efectuado pelo autor ao Banco realizou-se em 07-12-2016.

V. Matéria de direito:
Entre as partes nos autos foram celebrados, em simultâneo e de forma coligada, dois contratos. Através de um deles a ré C…, Unipessoal, Lda., transmitiu para o autor a propriedade de um veículo automóvel usado mediante uma contrapartida financeira. Através do outro, a ré Banco D…, S.A., com vista ao pagamento daquela contrapartida, entregou uma determinada quantia que foi usada para essa finalidade, ficando o autor obrigado a reembolsar a ré desse valor, acrescido de juros remuneratórios e encargos.
Estamos pois na presença de um contrato de compra e venda e de um contrato de mútuo. Uma vez que este surge como coligado e dependente daquele e o fundamento que foi usado para a sua resolução foi o incumprimento daquele, centremos a atenção no contrato de compra e venda.
O artigo 874º do Código Civil define a compra e venda como o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou direito, mediante um preço. O artigo 879.º do mesmo diploma estabelece que a compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.
Trata-se, pois, de um contrato com efeitos reais (determina a transferência da propriedade de uma coisa ou direito), bilateral ou sinalagmático (pressupõe a existência de, pelo menos, dois contraentes, que reciprocamente se vinculam, sendo ambos sujeitos de direitos e obrigações), oneroso (pressupõe atribuições patrimoniais de ambos os contraentes), em regra comutativo (as duas prestações patrimoniais são certas e tendencialmente equivalentes).
Nos termos do artigo 406º do Código Civil, «o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei» - pacta sunt servanda. Por sua vez o artigo 762º do Código Civil, estabelece que «o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».
A obrigação do vendedor de entregar a coisa vendida, não é uma obrigação simples, cujo cumprimento se baste com a entrega de uma coisa qualquer. O vendedor está obrigado, juridicamente, a entregar ao comprador uma coisa isenta de defeitos, em conformidade com o contratado, com as características e qualidades acordadas, já que só dessa forma opera o cumprimento exacto e pontual da prestação, satisfazendo, como é sua obrigação, o direito do comprador.
O dever de entrega de coisa sem defeitos, cumpre-se quando a coisa entregue não sofre de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada e tem as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim. É o que resulta do artigo 913.º do Código Civil que se refere às coisas defeituosas, às coisas com defeitos, e de entre estas apenas às coisas com defeitos essenciais. Na previsão do preceito compreendem-se mais concretamente os seguintes vícios: a) vício que desvalorize a coisa; b) vício que impeça a realização do fim a que a coisa é destinada; c) falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição revista e actualizada, pág. 211, a propósito do artigo 913.º do Código Civil, “não se tratando de um dos vícios compreendidos na enumeração deste preceito, a anulação não é possível, nem serão aplicáveis as disposições desta secção ou da secção anterior, que concedem outros direitos ao comprador; tais vícios serão irrelevantes”.
Cabe referir que nos termos do nº 2 do preceito, na dúvida quanto ao fim a que a coisa se destina, deve recorrer-se ao critério da normalidade: o fim da coisa é o fim a que normalmente são destinadas as coisas da mesma categoria. Tal como deve considerar-se que as qualidades asseguradas pelo vendedor são apenas aquelas cuja existência ele garantiu, por cuja existência ele se responsabilizou perante o comprador independentemente das qualidades que sejam ou possam ser usuais ou normalmente supostas – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 214 -.
Ao contrário do que é comummente afirmado, este preceito não contém uma definição de coisas defeituosas, contém apenas a delimitação das situações em que os defeitos apresentados pela coisa são juridicamente relevantes, em que a existência do defeito se torna intolerável para o sistema jurídico legitimando a reacção do comprador.
Na procura da definição de defeito ou de coisa defeituosa, não custa recorrer ao regime do contrato de empreitada já que também o empreiteiro se obriga, pelo contrato de empreitada, a realizar uma obra em conformidade com o convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato – artigo 1208º do Código Civil –.
Diz P. Romano Martinez, in Contrato de Empreitada, Almedina, pág. 189, que na empreitada o cumprimento “ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou com vícios. As deformidades são as discordâncias relativamente ao plano convencionado (p. ex., encomendou-se uma mesa com três metros de comprimento e foi realizada uma mesa com dois metros e meio de comprimento). Os vícios são as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato (artª 1208.º), designadamente por violação de regras especiais de segurança. Ao conjunto das deformidades e dos vícios chamar-se-á, tal como faz o Código Civil, defeitos”.
Os defeitos em sentido técnico são assim todas aquelas manifestações ou exteriorizações na coisa que resultam de violações das boas práticas e técnicas de execução da mesma e que consistem na exteriorização na coisa de algo que lá não deveria estar ou da falta de algo que lá deveria estar, num caso ou no outro em prejuízo da funcionalidade, da durabilidade e da qualidade da coisa contratada.
Há situações em que não basta afirmar a existência na coisa de alguma imperfeição, irregularidade ou anomalia para sem mais podermos concluir pela existência de um defeito, quanto mais de um defeito relevante. Nenhum objecto da produção humana, levado a cabo com recurso às técnicas e aos materiais que no momento se conhecem e se usam normalmente, é uma realização eterna, um produto imutável e perene. Por isso, ao adquirente da coisa cabe fazer a prova da existência de defeitos na coisa e a prova de que tais defeitos assumem características ou um grau de gravidade tais que os integram na previsão do artigo 913º do Código Civil. Não basta, portanto, alegar que se verifica determinada anomalia ou imperfeição.
Se não for possível, de acordo com um critério puramente objectivo, extrair da própria configuração da anomalia ou imperfeição a conclusão de que a mesma é um defeito, o adquirente terá de alegar e demonstrar os factos necessários para suportar essa conclusão. A presunção de culpa que onera o contraente em sede de responsabilidade contratual é apenas uma presunção de culpa, ou seja, da imputação subjectiva ao autor do facto do resultado da sua actuação, não é, cremos, uma presunção do facto que constitui o ilícito contratual.
Acresce que a realização da prestação nem sempre implica que o cumprimento haja sido efectuado nos termos devidos. Como salienta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.20103, in www.dgsi.pt, é necessário «distinguir, o cumprimento defeituoso da obrigação (ou falta qualitativa de cumprimento da obrigação) da venda de coisa defeituosa. Naquele, o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato, estava adstrito. Nesta a coisa objecto da transacção sofre dos vícios ou carece das qualidades referenciadas no art. 913º, quer a coisa entregue corresponda, ou não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado».
Na compra e venda, a lei dá especial enfoque à idoneidade e aptidão do bem para o fim a que se destina. Como esclarece Calvão da Silva, in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª ed., págs. 44 e 49, a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.
Por isso diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente - função negocial concreta programada pelas partes - ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº 2)”, acrescentando ainda o mesmo Autor: «a “venda de coisa defeituosa” respeita à falta de conformidade ou qualidade do bem adquirido para o fim (específico e/ou normal) a que é destinado. E na premissa de que parte o Código Civil para considerar a coisa defeituosa, só é directamente contemplado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada, com vista à salvaguarda da equivalência entre a prestação e a contraprestação subjacente ao cumprimento perfeito ou conforme do contrato».
No caso, o veículo vendido e entregue ao autor não padecia de qualquer anomalia, avaria ou deficiência que contendesse com a respectiva utilização para a finalidade própria de um veículo automóvel.
É certo que ficou provado que o autor solicitou à 1.ª ré que realizasse alguns trabalhos no veículo, o que aponta no sentido de que este carecia desses trabalhos, mas também se provou que a sociedade vendedora aceitou fazer e fez esses trabalhos.
Ainda que esses trabalhos tenham correspondido a defeitos do veículo – o que não está demonstrado, sendo de anotar que se tratava de um veículo usado e por isso podia apresentar algum desgaste visível, cabendo às partes decidir se o veículo era vendido no estado em que se encontrava ou depois de reparado -, uma vez que eles já existiam, as partes acordaram – o autor pediu e a ré aceitou – a sua eliminação e esta foi realizada, não é possível descortinar nesse particular qualquer manifestação de incumprimento do vendedor do dever de entrega da coisa vendida.
Aliás, ao comunicar a resolução do contrato o autor nada referiu a esse respeito, não tendo fundamentado a resolução em qualquer defeito do veículo.
O que o autor invocou na carta de resolução foi apenas que não lhe foi entregue a segunda chave do veículo apesar de lhe ter sido dito que esta lhe seria entregue «posteriormente». Argumentou ainda que por esse motivo não conseguiu «celebrar um contrato de seguro contra todos os riscos pois uma das exigências era ter as duas chaves do veículo».
Provou-se que de facto quando o veículo foi entregue ao autor a sociedade vendedora «só entregou ao autor uma das chaves do veículo, ficando de obter a segunda chave para lha entregar». Provou-se ainda que o veículo também não ia acompanhado do respectivo livro de revisões e que esse livro e a segunda chave não chegaram a ser entregues ao autor até ao momento da resolução do contrato.
Ao invés já não se provou a circunstância de o autor não ter «conseguido» celebrar um «seguro contra todos os riscos» (leia-se, um seguro com cobertura de danos próprios do veículo, incluindo o furto, segundo está implícito na alegação do autor) em virtude de não dispor das «duas» chaves do veículo.
O que sobra, portanto, é a circunstância de o veículo ter sido entregue sem estar acompanhado do livro de revisões e de uma segunda chave. A pergunta a que cabe responder é se isto é suficiente para considerar que houve incumprimento do contrato por parte da sociedade vendedora e se esse incumprimento gerou o direito do autor de resolver o(s) contrato(s)?
Cremos que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Estes dois elementos acompanham normalmente qualquer veículo novo. Uma vez que para fazer circular um veículo só é necessária uma chave, a segunda chave serve para acautelar a perda da outra. O livro de revisões serve para anotar a assistência que é feita ao veículo ao longo da sua vida, mas não é nem um documento administrativo necessário, nem é um documento autêntico que possua um registo necessariamente fiel, rigoroso ou exaustivo da assistência realizada. O livro de revisões não garante que os trabalhos anotados foram realizados e/ou se o foram de modo correcto e eficaz. Acresce que a obtenção de uma segunda chave é uma tarefa fácil de concretizar e sem custo significativo e que, pelo menos nos veículos BMW, é possível obter em qualquer concessionário o registo da própria marca e do computador do veículo sobre a assistência que lhe foi prestada.
Portanto, mesmo num veículo novo, esses elementos, sendo embora normais, comuns e expectáveis, não são imprescindíveis para a normal utilização do veículo. Tratando-se de um veículo usado, como aqui sucede, esses elementos já podem existir ou não, depende das situações (imaginemos que o veículo sofreu um acidente no qual se perdeu a chave), mas identicamente não são faltas que interfiram ou prejudiquem a normal utilização do veículo.
No caso, quanto ao livro de revisões não consta da matéria de facto que o autor tenha exigido a sua entrega e que a ré se tenha comprometido a entregar-lho. Apenas sabemos que a vendedora ficou de obter a segunda chave do veículo para entregar ao autor. Foi apenas essa falta e mais nenhuma que o autor invocou na sua carta de resolução.
A partir do momento em que a vendedora se comprometeu a fazer a entrega da chave, ficou obrigada a entregá-la. Por conseguinte, pese embora não estejamos perante um cumprimento de coisa defeituosa (o veículo, repete-se, não tinha vícios ou defeitos que contendessem com a sua normal utilização e/ou privassem o veículo das qualidades asseguradas pelo vendedor), estamos perante um cumprimento defeituoso, no sentido de cumprimento que não esgota a totalidade do dever de prestação (entregou-se o veículo em perfeitas condições de utilização ou funcionalidade, mas não se entregou a segunda chave). Logo não é invocável o regime específico da venda de coisa defeituosas, mas sim o regime geral do cumprimento defeituoso (cumprimento parcial) da obrigação.
Nos termos do n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa fé. Como refere Baptista Machado, in Pressupostos da Resolução por Incumprimento, 1991, pág. 131, que «não basta qualquer inadimplemento para fundar um direito de resolução, importa averiguar se o inadimplemento tem suficiente gravidade para desencadear tal efeito». Também Carneiro da Frada, in Erro e Incumprimento na Não-conformidade da Coisa com o Interesse do Comprador, O Direito, Ano 121º, Vol. III, pág. 470 (15), afirma que «não há tutela jurídica para as hipóteses em que o defeito é de tal modo insignificante que não desvaloriza a coisa ou não impede que a respectiva utilização alcance o fim a que é destinada pelo contrato».
O incumprimento do dever de entrega da segunda chave é, à luz das regras da boa fé, praticamente irrelevante na economia do contrato, na medida em que representa uma falta com pouco conteúdo e/ou implicações práticas. O objecto dessa prestação acaba por ter um interesse diminuto para o credor da prestação já que não prejudica, interfere ou condiciona a normal utilização do veículo, o qual foi recebido com uma chave perfeitamente apta para permitir a sua normal utilização. Por esse motivo, à luz das regras da boa fé, é insustentável defender que a falta de entrega de uma segunda chave pudesse constituir motivo de resolução do contrato de compra e venda do veículo.
Por outro lado, não tendo sido fixado prazo para o cumprimento dessa entrega, a vendedora estaria quando muito em situação de mora no cumprimento da sua prestação. Por esse motivo, uma vez que constitui doutrina e jurisprudência assente que apenas as situações de incumprimento definitivo podem justificar o recurso pelo credor à resolução do contrato, o autor, para poder resolver o contrato, teria de ter procedido à interpelação admonitória do devedor e só se este não viesse a cumprir no prazo essencial supletivo que lhe tivesse sido comunicado incorreria então em incumprimento definitivo susceptível de permitir a resolução do contrato.
Não se diga que tendo o veículo sido furtado o autor perdeu objectivamente o interesse na (parte da) prestação em falta (na outra chave) e que isso determina uma situação de incumprimento definitivo (total) por parte do devedor. Nos termos do artigo 796.º, n.º 1, do Código Civil, nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente. Tendo adquirido e recebido o veículo e dele passado a dispor por sua exclusiva vontade, iniciativa e domínio, o autor passou a ter contra si o risco de perecimento do veículo e não pode mais pretender que seja o vendedor a assumir o risco do desaparecimento do veículo que estava em poder do autor e sob a sua guarda e vigilância. Correndo por conta do autor o risco do furto do veículo, a consequência do furto repercute-se na sua esfera jurídica e por isso ele não pode invocar uma situação objectiva de perda de interesse na chave por razões que lhe sejam alheias, isto é, razões que não funcionem contra si.
Por outro lado, na redacção do artigo 808.º do Código Civil para que a mora se converta de forma automática em incumprimento definitivo não basta que o credor perca o interesse na prestação na pendência da mora do devedor, é indispensável que a perda do interesse ocorra em consequência da mora.
Já Vaz Serra, in Mora do devedor, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 48, pág. 243, afirmava que «para que a falta de interesse do credor justifique o direito de recusar a prestação tardia e exigir indemnização por não-cumprimento, é preciso que aquela falta de interesse seja causada pela mora. Se é anterior a esta, não tem relação com a mora, e o devedor não pode considerar-se responsável pela falta de interesse do credor». Também Nuno Pinto Oliveira, in Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, 2011, pág. 862, afirma que «os requisitos da convolação da mora do devedor em mora qualificada pelo preenchimento dos requisitos do artigo 808.º do Código Civil resumem-se a dois: o primeiro consiste no desaparecimento do interesse do credor na prestação. O segundo, na relação de causalidade entre o desaparecimento do interesse do credor na prestação e o não cumprimento temporário imputável ao devedor […] Coordenando os dois requisitos, concluir-se-á que o art. 808.º do Código Civil deve aplicar-se aos casos em que o credor não possa realizar os fins da prestação, por causa do não cumprimento temporário ou transitório imputável ao devedor: assim, p. ex., o comerciante de vestuário que adquire uma colecção de roupas de primavera/verão ou de outono/inverno, fica sem interesse na prestação, desde que o vendedor não lhas entrega a tempo de serem revendidas na sua estação». Nesse sentido, p. ex. o Acórdão da Relação de Coimbra de 21.05.2013, Jorge Arcanjo, proc. 37/09.4TBCVL.C1, in www.dgsi.pt; procurando justificar entendimento diverso, vide Henrique Sousa Antunes, in A perda de interesse do credor em consequência da mora do devedor, Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 2, 2020, pág. 56.
Ora, no caso, a perda do interesse não foi causada pela mora do devedor na realização da prestação de entrega da segunda chave, foi causada pelo furto do veículo que, como vimos, está compreendido no risco que corria já por conta do adquirente do veículo. Essa perda do interesse ocorreu na pendência da mora, mas deve-se a uma circunstância que não tem como causa adequada a mora. Com ou sem mora, o furto do veículo privou o autor do bem e, consequentemente, sem interesse em qualquer das chaves do veículo pois que, não tendo o veículo para usar, as chaves não lhe servem para rigorosamente nada. Mesmo que o autor já tivesse recebido a segunda chave, o furto do veículo colocá-lo-ia na mesma situação em que acabou colocado tendo apenas em seu poder uma das chaves do mesmo.
Em suma, à face do regime geral do incumprimento dos contratos consagrado no Código Civil, o autor não tinha fundamento para resolver o contrato de compra e venda e, por arrastamento, também não o contrato de mútuo. A resolução que comunicou às rés é assim ilegal, pelo que não lhe podem ser reconhecidos efeitos jurídicos. Com esse enquadramento jurídico a acção devia pois ser julgada improcedente.
Essa consequência altera-se por aplicação do regime jurídico da venda de bens de consumo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril?
Cremos que a resposta é, no caso, igualmente negativa por várias razões.
Em primeiro lugar, não existe na matéria de facto nenhum facto que permita qualificar o autor como consumidor para efeitos do aludido regime jurídico.
Nos termos do respectivo artigo 1.º-A aquele regime jurídico é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, sendo que nos termos do artigo 1.º-B, para esse efeito se entende por consumidor, «aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios».
Neste conceito de consumidor figura, entre outros, o chamado elemento teleológico: é necessário que o bem adquirido se destine a um uso não profissional.
Sendo o «uso não profissional» um elemento imprescindível para a aplicação do regime jurídico especial dos consumidores e não podendo este ser aplicado fora do âmbito para o qual foi criado, recaía sobre a parte interessada nessa aplicação o ónus da alegação e demonstração dos factos necessários para o tribunal poder operar a classificação da relação jurídica como uma relação de consumo e consequentemente lhe aplicar o referido regime jurídico particular.
Como se refere no Considerando 26 do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 21-03-2019, no processo C-590/17, in http://curia.europa.eu, o «juiz nacional que conhece de um litígio que tem por objecto um contrato susceptível de entrar no âmbito de aplicação desta directiva deve verificar, tendo em conta todos os elementos de prova, designadamente os termos desse contrato, se a pessoa em causa, enquanto parte do referido contrato, pode ser qualificada de «consumidor», na acepção da Directiva 93/13. Para tal, o juiz nacional deve ter em conta todas as circunstâncias do caso concreto, designadamente a natureza do bem ou do serviço que constitui objecto do contrato considerado, susceptíveis de demonstrar para que fim o bem ou serviço é adquirido (Acórdão de 3 de Setembro de 2015, Costea, C110/14, EU:C:2015:538, n.os 22 e 23)».
O mesmo Tribunal de Justiça já afirmara no Acórdão de 04-06-2015, no processo C-497/13, in http://curia.europa.eu, que «incumbe ao órgão jurisdicional nacional, para identificar as regras de direito aplicáveis a um litígio que lhe é submetido, qualificar juridicamente os factos e actos invocados pelas partes em apoio das suas pretensões. Essa qualificação jurídica impõese como um requisito prévio num caso em que, como o do processo principal, a garantia do bem vendido, que a recorrida invoca, pode ser regulada por regras distintas em função da qualidade do comprador. Essa qualificação não implica, em si mesma, que o juiz exerça oficiosamente um poder de apreciação, mas apenas que constate e verifique a existência de um requisito legal que determina a norma jurídica aplicável» [Considerando 38] e ainda que o tribunal «está obrigado, sempre que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para tal ou deles possa dispor mediante mero pedido de esclarecimento, a verificar se o comprador pode ser qualificado de consumidor […], ainda que este não tenha expressamente invocado essa qualidade» [Considerando 48].
Ora, não consta da matéria de facto qualquer dado que permita saber qual é a profissão ou ocupação profissional do autor e para que finalidade adquiriu ele o veículo, se foi para uso pessoal, para uso profissional ou para ambos e nesse caso em que medida. Acresce que se trata de um veículo automóvel, mais propriamente de uma «carrinha», pelo que das suas características não é possível retirar a conclusão que ele só poderá ser usado para fins pessoais. Por fim, encontramo-nos já em sede de recurso sem que ao longo do processo ou agora no recurso tenha sido suscitada pela parte qualquer questão sobre a eventual omissão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados para esclarecer esse aspecto. Por isso, recaindo sobre o autor aquele ónus e não se mostrando o mesmo satisfeito é, à partida, impossível considerar aplicável sem mais o regime especial da venda de bens de consumo do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril.
Caso esse regime fosse aplicável, haveria que levar em consideração que o mesmo tem por objecto apenas os contratos em que se dê a circunstância de os bens serem desconformes com o contrato.
Para o efeito, são tidos como desconformes com o contrato os bens em relação aos quais se dê uma das seguintes situações: a) não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem (artigo 2.º, n.º 2).
Porém, nos termos do n.º 3 do artigo 2.º não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
O artigo 4.º, n.º 1, estabelece que, “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”. Além destes direitos, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor também pode recusar a prestação, não recebendo o bem, invocar a excepção de não cumprimento do contrato e exigir uma indemnização em consequência da desconformidade, desde que se encontrem verificados os respectivos pressupostos.
Segue-se, portanto, que a atribuição ao consumidor dos direitos consagrados nesse regime jurídico implica necessariamente que se tenha concluído, em momento anterior, face a uma situação concreta, a existência de falta de conformidade do bem com o contrato, tal como essa desconformidade é caracterizada no próprio diploma (cf. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2017, págs. 235 a 243).
Ora, no caso, conforme já foi assinalado por diversas vezes, o veículo automóvel objecto do negócio e entregue ao adquirente não enferma de qualquer desconformidade na acepção do referido diploma. O que sucedeu foi apenas que o mesmo foi entregue acompanhado de uma chave e não de duas chaves, circunstância que não impedia e não impediu o adquirente de utilizar normalmente o veículo para a finalidade a que o destinava. Não estamos pois perante uma compra e venda de um bem que se veio a revelar ser desconforme com o contrato, mas apenas perante o incumprimento de uma prestação secundária que na economia do contrato não assume um relevo bastante para sujeitar todo o contrato ao regime e consequências do seu incumprimento.
Acresce que no momento em que o veículo lhe foi entregue o autor não podia deixar de conhecer a falta da segunda chave, apesar do que recebeu o veículo e passou a fazer uso do mesmo, situação em que, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º, não se considera existir a falta de conformidade que é pressuposto da aplicação do referido regime jurídico (o que se filia na ideia de que sendo a parte mais frágil na relação com um profissional, o consumidor deve ser tutelado em relação àquilo que desconhecia e não tinha como conhecer ou a obrigação de conhecer, mas não tem de ser protegido da sua própria imprevidência).
Por outro lado, é certo que na venda de bens de consumo, nos termos do artigo 4.º, n.º 4, o risco corre por conta do vendedor, isto é, sendo o bem desconforme, uma vez denunciada a desconformidade e exigida a reparação ou substituição do bem, se antes de efectuada a reparação ou substituição o bem desparecer ou se deteriorar, por motivo não imputável ao comprador, este pode ainda assim exercer os direitos de resolução do contrato e de redução do preço.
Todavia, nos termos do n.º 5 da norma citada, os direitos que o regime jurídico em apreço confere ao consumidor não podem ser exercidos por este quando isso «se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais» - cf. Acórdão da Relação do Porto, de 4-2-2010, proc. n.º 1362/05.9TBGDM.P1, José Ferraz, in www.dgsi.pt -.
Tem-se entendido que a resolução do contrato com fundamento numa falta de conformidade que na economia do contrato deve ser qualificada como insignificante – segundo um critério que leve em conta todo o contexto da contratação e em especial a finalidade do bem, a possibilidade do seu uso e a dimensão ou expressão da falha –, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e constitui por isso um exercício ilegítimo do direito pelo consumidor a tratar nos termos gerais do instituto do abuso do direito – cf. Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 2005, pág. 109, onde se afirma que «constitui a regra geral do direito à resolução: resolução só por incumprimento significativo ou de não escassa importância»).
Na nossa leitura, patenteia um excesso manifesto dos limites da boa fé a resolução do contrato com fundamento na não entrega apenas de uma segunda chave do veículo quando o adquirente aceitou receber o veículo dispondo apenas de uma chave, quando o vendedor mostrou não ter a chave em seu poder mas ir diligenciar pela sua obtenção e entrega, quando não foi fixado qualquer prazo para essa entrega, quando se tratava de um veículo usado que não podia ser comercializado como se se tratasse de um veículo novo, quando o veículo foi usado normalmente pelo autor durante cerca de um mês sem entraves colocados pela falta da segunda chave e quando uma segunda chave pode ser obtida no concessionário pelo comprador, invocando a propriedade do veículo, sem grande dificuldade ou esforço financeiro. Por conseguinte, por aplicação da figura do abuso do direito, mesmo que fosse aplicável o regime jurídico dos bens de consumo, acabaríamos por concluir no sentido da ilegitimidade da resolução do contrato pelo autor.
Por todas estas razões, a acção devia ser julgada improcedente na medida em que a resolução operada pelo autor e na qual se filiam todos os pedidos deduzidos na respectiva petição inicial, é afinal ineficaz por não verificação dos pressupostos imprescindíveis à resolução do contrato de compra e venda e, por arrastamento, do contrato de mútuo.
Aplicando agora esse desfecho jurídico resulta que o recurso da ré vendedora procede totalmente, devendo ser revogada a sentença recorrida e em sua substituição julgada improcedente a acção, absolvendo-se as rés dos pedidos, e improcede totalmente o recurso do autor, ficando ainda prejudicado o conhecimento do recurso subordinado da ré mutuante.

VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da ré C…, Unipessoal, Lda., procedente e o recurso do autor improcedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, substituindo-a por outra julgando a acção improcedente e absolvendo as rés dos pedidos do autor.
Mais consideram prejudicado o conhecimento do recurso subordinado apresentado pela 2.ª ré.
Custas da acção e dos recursos pelo autor - estando o autor dispensado do pagamento de taxa de justiça e encargos, cabe ao Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, I.P suportar o reembolso das taxas de justiça pagas pelos vencedores (artigo 26.º, n.º 6, do RCP) -.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2020.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 540)
Francisca Mota Vieira
Paulo da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]