Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
324/14.0PAGDM.P2.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA AGRAVADA PELO RESULTADO
PERDA DO BAÇO
Nº do Documento: RP20170308324/14.0PAGDM.P2.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTO Nº 11/2017, FLS. 241-251)
Área Temática: .
Sumário: I - Se se provou que o arguido não previu que o seu pontapé, dado de forma repentina e sem preparação, pudesse provocar a laceração do baço do ofendido e como consequência a sua remoção, que não quis e com a qual não se conformou, está afastada possibilidade de integração de tal conduta na previsão do tipo do artigo 144.º alínea a) C Penal.
II - E, assim perante a negligência quanto a este resultado justifica uma menor, em relação a um resultado imputado a título doloso, valor a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 324/14.0PAGDM.P2.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. O Ministério Público junto da Comarca do Porto, Gondomar, Instância Local, Secção Criminal, J2, requereu o julgamento em processo comum e perante o tribunal singular de B…, devidamente identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições dos artigos 143°, n.º 1 e 144º, alínea a), ambos do Código Penal.
1.2. C… apresentou pedido de indemnização civil, reclamando o pagamento de uma indemnização no valor de €50.000,00.
1.3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com a seguinte decisão (transcrição):
“(…)
Pelo exposto, convolando a incriminação efetuada em sede de acusação,
a) Condeno o arguido B… pela prática de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p. pelos artºs 143º, nº 1, 144º, nº1, alª a) e 147º, nº 2 do C.P, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
b) Suspendo a pena acima aplicada pelo período de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses.
c) A referida suspensão será acompanhada de regime de prova, acompanhada de regime de prova assente em plano a elaborar pelo Grupo de Atendimento de Agressores e Vítimas (GEAV) da Faculdade de Psicologia da Universidade …, por forma a assegurar que o arguido, quando colocado novamente em situações de stress, que suscitem a sua agressividade ou descontrolo emocional, conseguirá lidar com a contrariedade de forma não violenta.
d) Na procedência parcial do pedido de indemnização civil contra si deduzido por C…, condeno o arguido ao pagamento ao demandante civil da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), absolvendo-o do demais peticionado.
e) Condeno o arguido ao pagamento das custas criminais que, atento o número de sessões do julgamento e a sua complexidade, fixo em 3 (três) UC.
f) As custas do pedido de indemnização civil ficarão a cargo do demandante e do demandado, em função dos respetivos decaimentos.
g) Lida, vai ser depositada.
h) Após trânsito, remeta boletins ao registo e solicite ao Grupo de Atendimento de Agressores e Vítimas (GEAV) da Faculdade de Psicologia da Universidade … a elaboração do plano acima referido.”
1.4. Inconformado com tal decisão, o assistente recorreu para este Tribunal da Relação, pedindo revogação da sentença e a condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos artigos 143º, nº1 e 144º, alínea a), ambos do CP e, ainda, a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 50.000,00 euros a título de indemnização civil
1.5. O MP respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
1.9. Por acórdão desta Relação, de 15-06-2016, foi anulada a referida sentença, por falta de fundamentação.
1.10. O processo baixou à primeira instância, tendo sido proferida nova sentença com a seguinte decisão:
“(…)
Pelo exposto, convolando a incriminação efetuada em sede de acusação,
a) Condeno o arguido B… pela prática de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p. pelos artºs 143º, nº 1, 144º, nº1, alª a) e 147º, nº 2 do C.P, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
b) Suspendo a pena acima aplicada pelo período de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses.
c) A referida suspensão será acompanhada de regime de prova, acompanhada de regime de prova assente em plano a elaborar pelo Grupo de Atendimento de Agressores e Vítimas (GEAV) da Faculdade de Psicologia da Universidade …, por forma a assegurar que o arguido, quando colocado novamente em situações de stress, que suscitem a sua agressividade ou descontrolo emocional, conseguirá lidar com a contrariedade de forma não violenta.
d) Na procedência parcial do pedido de indemnização civil contra si deduzido por C…, condeno o arguido ao pagamento ao demandante civil da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), absolvendo-o do demais peticionado.
e) Condeno o arguido ao pagamento das custas criminais que, atento o número de sessões do julgamento e a sua complexidade, fixo em 3 (três) UC.
f) As custas do pedido de indemnização civil ficarão a cargo do demandante e do demandado, em função dos respetivos decaimentos.
g) Lida, vai ser depositada.
h) Após trânsito, remeta boletins ao registo e solicite ao Grupo de Atendimento de Agressores e Vítimas (GEAV) da Faculdade de Psicologia da Universidade … a elaboração do plano acima referido.
(…). ”
1.11. Inconformado com a nova decisão, o assistente recorreu de novo para esta Relação, terminando a motivação com as seguintes conclusões:
“ (…)
I- A factualidade apresentada em audiência de julgamento conjugada com o teor do certificado de registo criminal e relatório social do arguido deveria ter permitido ao tribunal “ quo”, ter dado como provado que o arguido ao atuar da forma que fez, equacionou/previu a hipótese de provocar ao Assistente, aqui recorrente, a ruptura de um órgão do corpo.
II – Desta forma deveria o arguido ter sido condenado por um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 144º, a) do CP, conforme vinha acusado.
III – A quantia arbitrada pelo tribunal a quo a título de danos não patrimoniais é manifestamente insuficiente e injusta, face às lesões e danos que o Assistente, aqui recorrente sofreu.
IV – Se tais danos não patrimoniais, dados como provados em audiência de julgamento, tivesse sido arbitrados tendo em conta a gravidade das consequências, lesões provocadas, tempo necessário para a cura, o valor peticionado pelo recorrente seria considerado justo e equitativo”.
1.12. O arguido respondeu, pugnando pela manutenção da sentença recorrida, concluindo:
“(…)
1º - A sentença recorrida não merece qualquer reparo, já que a mesma resultou de uma apreciação cuidada da prova produzida.
2º - As alegações apresentadas pelo recorrente são extemporâneas por apresentadas no 1º dia do prazo com multa, não tendo sido efectuado, no entanto, qualquer pagamento a tal título.
3º - Tendo sido efectuada uma valoração criteriosa e prudente das provas produzidas, quer as provas documentais trazidas pelas partes, quer testemunhais, produzidas em audiência de julgamento.
4º - Inexiste qualquer prova que pudesse levar a decisão diversa da proferida pelo tribunal a qual quanto à matéria de facto e, concomitantemente à decisão final proferida.
5º - Pelo que a douta sentença é, assim, inatacável.
1.13. O MP na 1ª instância respondeu também à motivação do recurso, concluindo que a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” não merece censura.
1.14. Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1.15. Deu-se cumprimento ao art. 417º do CPP.
1.16. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:
Factos Provados
Da acusação:
1. No dia 28 de Julho de 2014, cerca das 18h00m, C… encontrava-se sentado num dos bancos existentes no jardim público, sito na …, em…, Gondomar, quando foi abordado pelo arguido B…, seu conhecido, o qual lhe solicitou que lhe desse um charro.
2. C… acedeu ao solicitado tendo-lhe entregado um charro mas deixando-lhe o reparo de que não poderia ser sempre assim, porque também ele estava desempregado.
3. O arguido ficou desagradado com tal afirmação e lançou ao solo o sobredito charro.
4. Nessa altura C… vergou-se para o apanhar e, quando já se estava a erguer para retomar a posição vertical, o arguido, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe um pontapé imprimindo bastante força, atingindo-o na zona do hemitórax esquerdo.
5. Como consequência directa e necessária de tal atuação, C… sofreu um traumatismo intra-abdominal, foi submetido a uma intervenção cirúrgica de urgência, tendo sido politransfundido, sendo-lhe diagnosticada laceração do baço.
6. Foi esplenectomizado (remoção total do baço), o que implicará, de futuro, a necessidade se acompanhamento médico regular para reforço do seu estado imunitário, uma vez que o baço tem uma importante função imunológica de produção de anticorpos e a sua falta importará, consequentemente, um maior risco de infeções por bactérias capsuladas.
7. Por força da intervenção cirúrgica a que foi submetido, o arguido ficou com uma cicatriz linear na linha média do abdómen estendendo-se desde a região xifóide até à cicatriz umbilical, de coloração avermelhada, não aderente aos planos profundos, com 16 por 0,7 cm de maiores dimensões e uma cicatriz linear na fossa ilíaca esquerda, hipercrómica relativamente à pele circundante com 1,3 cm por 0,5 cm de maiores dimensões.
8. As lesões sofridas demandaram 86 dias de doença para cura, 12 dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral.
9. O arguido sabia que o descrito comportamento era proibido e penalmente punível.
10. Agiu livre, deliberada e conscientemente com o propósito alcançado de atingir C… no seu corpo e, desse modo, causar-lhe sofrimento físico.
11. Não previu, contudo, que o seu gesto pudesse provocar a laceração do baço do ofendido e, como consequência disso, a sua remoção, resultado que não quis e com o qual não se conformou.
Também se provou:
12. O arguido é proveniente de agregado residente em conjunto habitacional de cariz social localizado em zona central de Gondomar e assinalado por problemáticas de exclusão e desvio social relativamente às quais o casal progenitor observava algum distanciamento, observando imagem de adequação social e suporte protector às necessidades dos descendentes (alargada igualmente a dois sobrinhos do arguido, relativamente aos quais assumiram desde muito cedo funções parentais de substituição).
13. O arguido iniciou a frequência escolar em idade adequada, não tendo registado problemas de insucesso ou de adaptação a este contexto de relevo até ao início da adolescência. Durante a frequência do 2º ciclo do ensino básico começou a observar comportamentos de inadequação no contexto escolar, consubstanciados em absentismo, insucesso e integração grupal reforçadora daquele padrão comporta mental.
14. Por volta dos 14 anos, na decorrência da sinalização do respectivo estabelecimento de ensino por comportamento de apropriação indevida de telemóvel de um colega, foi objecto de intervenção tutelar com execução de medida de acompanhamento por parte da equipa de reinserção social e encaminhado para programa local de erradicação do trabalho infantil para integração em plano de educação e formação com vista à prossecução do seu percurso formativo.
15. Foi posteriormente integrado em curso de formação profissional na área de hotelaria na Escola Profissional …, cuja conclusão foi comprometida pela inserção em grupos de pares associados a comportamentos de inadequação associados à ambiência do consumo de estupefacientes.
16. De acordo com as suas referências iniciou consumos de haxixe por volta dos 16 anos, progressivamente intensificados em termos de padrões de regularidade diária e cumulados pontualmente, sobretudo aos fins de semana e por ocasião da frequência de espaços de diversão nocturna com drogas de síntese.
17. Neste contexto, adoptou estilo de vida e quotidiano caracterizado pela integração em grupo de pares maioritariamente residente no mesmo conjunto habitacional associado a práticas de desvio de natureza patrimonial.
18. Laboralmente conheceu algumas experiências de trabalho, iniciadas por volta dos 19 anos, em regime de prestação de serviços como empregado de mesa em restaurantes e espaços de eventos e mais tarde por conta de outrem, de curta duração, em estaleiro de terraplanagem e ajudante de ferrageiro, tendo abandonado estas últimas funções em Dezembro de 2008 por as considerar excessivamente exigentes. Depois disso, permaneceu inativo, sem nenhuma ocupação estruturada, observando quotidiano e ritmos diários desenvolvidos em torno do convívio com o grupo de pares em cafés e outros espaços de diversão nocturno situados no Porto e em Gondomar, a partir do final da tarde. Entretanto, em Setembro de 2011 iniciou frequência de acção de reconhecimento, validação e certificação de competências que concluiu a 20.02.12, tendo obtido habilitações escolares correspondentes ao 2º ciclo do ensino básico.
19. O arguido mantém inserção no núcleo familiar de origem, composto pelos pais, de 70 e 69 anos, e um irmão mais velho, de 43 anos de idade, inactivo, beneficiário do rendimento social de inserção, com história prolongada de consumo de estupefacientes e quadro associado de saúde mental que se acolheu transitoriamente junto do agregado de origem no decurso da ruptura do seu relacionamento conjugal.
20. A economia familiar baseia-se nos rendimentos dos pais, provenientes das respectivas pensões de reforma e complemento solidário de idoso, superiores a €500,00, sendo que a dinâmica e organização familiar assinalam desgaste e perturbação significativas no decurso dos comportamentos de desorientação e agitação comportamental do pai que permanece acamado e dependente após ter perdido a visão e alguma mobilidade após ter sofrido um enfarte do miocárdio e acidente vascular cerebral em Janeiro do presente ano.
21. O arguido iniciou a 15.12.2014 curso de educação e formação de adultos de nível 3 de marcenaria, com a duração total de 1960h no Centro de Formação Profissional do Porto, cujo termo está previsto para 30.03.2016.
22. No decurso do mesmo, executou as 55 horas de serviço de interesse público determinadas no âmbito do Proc. n.º 474/13.0PAGDM-D desse mesmo Tribunal, em sede de suspensão provisória de processo aplicada pelos crimes de receptação e auxílio material, aos sábados, nos Bombeiros Voluntários de …, de modo investido e adequado, com adopção de conduta ajustada. Apesar das competências denotadas e reforçadas no contexto formativo e da motivação inicialmente demonstrada, registou absentismo assinalável durante o mês de Junho, motivo pelo que lhe foi cancelada a bolsa de formação, após o que deixou de frequentar o mesmo.
23. Desde então permanece inactivo, sem qualquer ocupação estruturada, observando horários muito desfasados do restante agregado, associados a perturbações do sono, com desenvolvimento de actividades de carácter individual ao final da tarde, na residência, como a manufactura de peças artesanais em osso ou madeira ou o cuidado dos pássaros pertencentes ao pai, ou área circundantes – ida a café, passeios a pé ou de bicicleta.
24. O arguido apresenta história de consumos regulares de haxixe no contexto das suas actividades recreativas, associado a estilo de vida caracterizado pela centralidade das relações de pares que mantinha e lhe proporcionava a satisfação das suas necessidades materiais e de afirmação pessoal e social, acrescido de alguns abusos etílicos e sintomatologia, em virtude dos quais acedeu recorrer a ajuda terapêutica e efectuar medicação antidepressiva e ansiolítica prescrita pela respectiva médica de família, com realização subsequente, entre Dezembro de 2010 e Abril de 2011 que favoreceu evolução em termos de humor, mobilização, auto-controlo e gestão de contrariedades.
25. Abandonou igualmente acompanhamento psicológico iniciado em Novembro de 2012 na Comissão de Dissuasão de Toxicodependência, alegadamente devido a dificuldades materiais para suportar os custos das deslocações, continuando desde então a manter consumos regulares de haxixe.
26. Desvaloriza estes consumos, às quais atribuiu efeitos tranquilizantes, apesar de reconhecer efeitos benéficos da respectiva supressão nos seus ritmos de sono e descanso, não se mostrando receptivo para retomar qualquer ajuda terapêutica ou medicação, invocando alegados efeitos secundários desta última.
27. Associado anteriormente, devido à sua trajectória pregressa, à prática, em grupo, de actividades de desvio de natureza patrimonial, contidas há cerca de quatro anos e meio, não lhe têm vindo a ser atribuído por parte das autoridades policiais locais registo de comportamentos de desvio.
28. Nessa medida, para além da presente acusação e dos factos que deram origem ao processo atrás referido, no âmbito do qual executou a medida de prestação de interesse público de 50h, na base de dados da PSP não constam outras participações referentes ao arguido desde 2014.
29. O arguido enquadra as circunstâncias que deram origem ao presente processo no contexto da obtenção de substâncias estupefacientes, expressando revolta pela instauração do mesmo e preocupação com o respectivo desfecho.
30. Apesar das dificuldades iniciais registadas para comparência à entrevista, manteve comunicação afável e colaborante com os serviços da DGRSP.
31. No âmbito das medidas de prestação de serviço e trabalho comunitário que executou anteriormente sob a supervisão desta equipa, revelou desempenho globalmente adequado das tarefas que lhe foram cometidas, não obstante na prestação de trabalho comunitário de duração mais prolongada (480h) tenha assinalado comportamentos de absentismo incumprimento dos horários acordados que inflectiram a postura de empenho e investimento significativos que demonstrou nos 2 meses iniciais.
32. Não obstantes as intervenções sociais e tutelares desencadeadas subsequentemente, não correspondeu às oportunidades formativas que lhe foram viabilizadas, tendo depois disso conhecido trajetória laboral muito incipiente.
33. O arguido já foi julgado:
- No processo 740/06.0PAGDM do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Gondomar, pela prática de um crime de furto qualificado, cometido em 11/12/2006, tendo sido condenado na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período mediante regime de prova, por decisão transitada em julgado em 12/12/2011.
- No processo 1095/08.4PJPRT do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Gondomar, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples em concurso com um crime de ofensa à integridade física qualificada, cometidos em 14 e 15/11/2008, respetivamente, tendo sido condenado na pena de 2 anos de prisão substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade, por decisão transitada em julgado em 3/9/2012.
34. No processo 1095/08.4PJPRT do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Gondomar, foram os seguintes os factos considerados provados:
“No dia 14 de Novembro de 2008, pelas 21 horas e 30 minutos, D… circulava no interior da camioneta da empresa denominada “E…”, como passageiro, e saiu na paragem existente na Rua …, em …, Gondomar.
Quando já se encontrava a descer da referida camioneta, atrás da arguida F… que também na mesma seguia, sem que nada o fizesse prever, o arguido B… desferiu-lhe um soco na boca com um objecto não identificado.
Como consequência directa desta agressão, D… sofreu, na face, lesão de 3 mm no lado esquerdo da região mucosa do lábio inferior, lesão arredondada de 1 cm de diâmetro no lado esquerdo do lábio inferior e fractura 1/3 incisal dos dentes 21, 22 e 23.
Tais lesões determinaram 36 dias para a consolidação médico-legal, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.
No dia 15 de Novembro de 2008, pelas 21 horas e 20 minutos, a mãe de D…, G…, deslocou-se ao mesmo local para confrontar o arguido B… e a sua namorada F… com o sucedido.
Nesse momento, aí passou H…, o qual, ao ver a sua prima a falar com os arguidos e temendo que a mesma fosse agredida, dirigiu-se ao local e gritou na direcção dos arguidos, o que provocou a sua fuga.
De seguida, seguiu caminho, em viatura própria, até junto do Centro Comercial I…, e daí se ausentou pouco depois até junto de um patamar de entrada do Centro Comercial J…, muito próximo daquele, na mesma artéria, para fumar um cigarro.
Aí, viu os arguidos B…, K…, L… e F…, acompanhados de outros indivíduos de identidade não apurada, no total cerca de 10, a correrem na sua direcção, sendo que os três primeiros vinham munidos de pedras e tacos de basebol.
De imediato, o arguido K… desferiu-lhe uma pancada na face com uma pedra, o que provocou a sua queda.
De seguida, e quando H… se encontrava caído de joelhos no chão, os arguidos B… e L… desferiram-lhe pancadas com os tacos de basebol, murros e pontapés em diversas partes do corpo.
Como consequência directa destas agressões, H… sofreu:
• no crânio, escoriação na porção média da região frontal com 0,9 cm, duas escoriações supra ciliares à esquerda com 0,4 cm de diâmetro;
• na face, escoriações múltiplas no dorso do nariz numa área com 4 cm por 1,5 cm, escoriação na região infra-ciliar esquerda, superficiais, com 2 por 0,3 cm, sob fundo equimótico roxo, de periferia amarelo-esverdeada em 20-11-2008, em toda a pálpebra superior e também na pálpebra inferior e região infra-orbitária;
• no membro superior direito, edema discreto com dor à palpação na região dorsal do cotovelo direito.
Tais lesões determinaram 30 dias para a consolidação médico-legal com afectação da capacidade de trabalho profissional, 10 dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral.
Das agressões resultaram igualmente consequências permanentes que se traduzem em cicatrizes no crânio e na face, as quais são porém pouco visíveis e não desfigurantes.
O arguido B…, ao actuar da forma descrita, agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de atingir D… e H… nos seus corpos e na sua saúde.
Os arguidos K… e L…, ao actuarem da forma descrita, agiram livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de atingir Márcio Silva no seu corpo e na sua saúde.
Os arguidos B…, K… e L… sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal”.
Do pedido de indemnização civil:
35. Por não ter baço, o ofendido está mais exposto ao risco de contrair meningite bacteriana ou pneumonia.
36. O ofendido esteve cinco dias internado no Hospital …, no Porto.
37. A esplenectomia a que foi sujeito, implica um acompanhamento médico regular para vigilância do seu estado de saúde, nomeadamente para realização de esquema de vacinação de 6 em 6 anos para reforço do estado imunitário devido à ausência de baço.
38. Como consequência do pontapé recebido, o arguido sofreu dores fortes.
39. Teve vómitos.
40. Sentiu dores também no período pós-operatório.
41. Teve que se deslocar ao Centro de Saúde para efetuar curativos relacionados com as suturas.
42. O arguido sente vergonha das suas cicatrizes.
43. Pelo facto de viver próximo do arguido, o demandante tem receio de o voltar a encontrar.
Factos não provados
Da acusação
1. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a força empregue e a zona atingida podia provocar, como provocou, a remoção de um órgão o baço
Do pedido de indemnização civil:
2. Um indivíduo sem baço tem uma esperança média de vida inferior a quem tem esse órgão a funcionar corretamente.
3. O demandante viu-se impedido de sair da sua residência, exceto para se deslocar às unidades de saúde.
4. Tem receio que a sua vida possa estar em perigo.
5. Por causa das suas cicatrizes, o arguido não pretende voltar a ir à praia.
6. Por ter medo do arguido, das poucas vezes que o demandante sai de casa, tem de o fazer acompanhado.
7. O demandante é pessoa respeitadora e bem vista no meio local onde reside, nunca se tendo visto envolvido em situações semelhantes.
8. Nos dias seguintes à agressão, o demandado não conseguiu dormir corretamente, sempre com o pensamento na agressão de que foi vítima e suas consequências no futuro.
9. É pessoa de bem, séria, honesta e muito estimada por todos.
3. MOTIVAÇÃO
Para a formação da sua convicção, o tribunal analisou criticamente as declarações do arguido e do assistente, os depoimentos das testemunhas M…, N… e O…, os relatórios de exame médico-legal de fls. 6 a 8 e 51 a 53, os elementos clínicos de fls. 18 a 45, o CRC de fls. 271 e ss., a certidão judicial de fls. 183 e ss. e o relatório social de fls. 276 e ss., tudo caldeado pelas regras da experiência.
O arguido negou os factos que lhe são imputados, oferecendo uma versão do sucedido absolutamente inverosímil em quase toda a sua extensão. O zénite dessa inverosimilhança emergiu quando o arguido sugeriu que o ofendido se terá auto-infligido aquela lesão para o incriminar. Estamos a falar de alguém que viu ser-lhe removido o baço- relembra-se. Pretender que alguém possa fazer isso a si mesmo só para prejudicar terceiros é raciocínio do domínio da ficção, que não deve ser levado a sério.
Para além disso, a sua versão de que se limitou a empurrar o arguido fincando-lhe as mãos na zona do peito tendo-se o mesmo desequilibrado e caído, não é compatível com o que resulta do relatório de perícia médico-legal e com os esclarecimentos complementares prestados pelo senhor perito. Segundo este, tal gesto não é idóneo à laceração do baço, exigindo-se, para tanto, um traumatismo na zona do hemitorax esquerdo. Uma queda, ainda segundo este perito, para produzir aquele resultado, não poderia ser de costas como referiu o arguido, teria que ser sobre a referida zona do hemitorax à esquerda.
Assim, por absolutamente inverosímil e desmentida pelos elementos clínicos e juízos científicos trazidos aos autos, teve de se considerar não demonstrada a versão do arguido.
Mas não na totalidade da sua extensão.
Na verdade, parece irrealistíco em face das regras da experiência que a refrega se tivesse dado por causa de uma moeda de um euro.
Até porque, como resultou das declarações do arguido, do ofendido e da testemunha M…, o contacto físico deu-se no local onde o arguido abordou o ofendido e quando este se estava a por a pé depois de apanhar o objeto que aquele tinha jogado ao chão. Ora, se fosse uma moeda a ter sido lançada com o vigor com que o arguido o referiu, naturalmente a mesma não teria ficado naquele local, devendo, de acordo com as regras da experiência, ter rolado ou saltado para outro local, não ficando ali.
Aceita-se, assim, que tivesse sido, outrossim, um charro que o ofendido cedeu ao arguido, já que se trata de material que, lançado ao chão, não tem a consistência suficiente a rolar ou saltar para longe do ponto onde caísse.
Quanto à versão do ofendido, com exceção desta parte, assoma verosímil, foi confirmada pelo depoimento da testemunha M… e aceite como causa provável tanto no relatório de perícia médico-legal, como nos esclarecimentos complementares do senhor perito.
Assim, por ser mais credível em si mesma e ser a única com amparo bastante noutros meios de prova, aqui ressaltando os de caráter técnico-científico, considerou-se provada a versão do ofendido.
No que concerne à matéria do pedido de indemnização civil, o tribunal aceita, por tal ter sido transmitido pelo ofendido, pela sua, à data, mulher e pela sua irmã, as dores, mal-estar e receios pelo mesmo sentido. Tanto mais que os mesmos são compatíveis com as regras da experiência.
Passemos agora à questão da representação pelo arguido do resultado da sua conduta e da sua adesão ao mesmo.
Estamos, então, no domínio da intenção do agente.
Ora, como já vimos acima, o arguido não admitiu ter pontapeado o ofendido. Não há, por isso, qualquer contributo por parte do mesmo para que possamos ir directamente ao quadro volitivo com que atuou na ocasião.
Como refere Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II, pág. 292) existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica. E, exceptuando as situações de confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e dessas coisas se conclui pela sua existência; afirma-se, muitas vezes sem mais nada, o elemento intencional, mediante a simples prova do elemento material; quando um meio só corresponde a um dado fim ilícito e criminoso, o agente não pode tê-lo empregado, senão para alcançar aquele fim: Malatesta, a Lógica das Provas em Matéria Criminal, pág.172.
Atendo-nos às declarações do assistente que, como vimos, consideramos fidedignas nesta parte, o arguido atingiu-o quando o mesmo, encontrando-se agachado, já se estava a erguer. Ou seja, o pontapé foi dirigido contra um corpo em movimento, o que faz com que atenta, a “décalage”, por mínima que fosse, entre a formulação da intenção de executar aquele gesto por parte do arguido e o momento em que o mesmo se repercutiu no corpo do visado, o corpo deste tivesse já mudado de sítio, ainda que apenas ligeiramente, entre um e outro momentos.
Por isso, assoma altamente improvável que o arguido tenha apontado a uma zona específica da anatomia do ofendido e atingido exactamente a zona seleccionada.
Para além disso, das declarações do assistente resulta que o pontapé em questão foi desferido de forma repentina, sem preparação, o que atento o tamanho do baço e a zona do corpo onde se insere, exigiriam ao arguido, por um lado, um grande conhecimento da anatomia humana para saber onde se situava exactamente aquele órgão e, por outro lado, uma grande precisão no pontapé para conseguir visar órgão tão pequeno (...) ainda para mais num corpo em movimento.
Parece-nos, assim, de acordo como que sabemos das circunstâncias que envolveram o pontapé em causa e do modo como o mesmo foi desferido, e temperando esse conhecimento com as regras da experiência ordinária, que ao arguido quis atingir o corpo do ofendido, que o quis fazer de forma violenta, mas sem que tenha visado concretamente qualquer órgão daquele, antes indiscriminadamente a parte frontal do tronco.
Por isso se introduziu na matéria provada o (ponto) 11 e se relegou para a matéria não provada 1 – o que em contrário dizia o despacho de acusação.
No que concerne à matéria do pedido cível, o tribunal aceita, por tal ter sido transmitido pelo ofendido, pela sua, à data, mulher e sua irmã, as dores, mal-estar e receios pelo mesmo sentido. Tanto mais que os mesmos são compatíveis com as regras da experiência.
As consequências ao nível do seu estado físico futuro, buscam-se nos relatórios periciais juntos aos autos.
A matéria considerada não provada, com excepção do ponto I, a que acima nos dedicamos especificamente, tem como justificação o facto de nem tais relatórios nem os depoimentos prestados em juízo, nem finalmente, as regras da experiência a terem demonstrado consistente e cabalmente.
2.2. Matéria de Direito
2.2.1. Objecto do recurso – questões a decidir.
O assistente insurge-se novamente contra a sentença proferida – que condenou o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p. pelos artºs 143º, nº 1, 144º, nº1, alª a) e 147º, nº 2 do C.P, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período -, por entender que (i) o arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos artigos 143º, 1 e 144º, a) do C. Penal (ii) e que a quantia arbitrada pelo tribunal, a título indemnização por danos não patrimoniais, é insuficiente e injusta.
Na resposta à motivação do recurso, o arguido não só pugnou pela manutenção da sentença recorrida, como se pronunciou pela extemporaneidade do recurso.
O MP em ambas as instâncias pronunciou-se igualmente pela improcedência do recurso, sendo que o MP na 1ª instância suscitou ainda a “questão prévia” da falta de interesse em agir do assistente, relativamente à parte criminal da sentença (espécie e medida da pena).
Impõe-se, deste modo e sem prejuízo das inerentes relações de prejudicialidade, apreciar as seguintes questões: (i) tempestividade do recurso; (ii) interesse em agir do assistente, relativamente à parte crime da sentença; (iii) qualificação do crime cometido pelo arguido; (iv) quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente.
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2.2.3. Qualificação do crime de ofensa à integridade física.
O assistente insurge-se contra a sentença recorrida, por considerar que a conduta do arguido deveria ter sido enquadrada no crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 144º, al. a) do C. Penal, tal como lhe fora imputado na acusação.
O art. 144º, a) do C.P considera que pratica o crime haver ofensa à integridade física grave “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente”, punindo o seu agente com pena de dois a dez anos de prisão.
O Tribunal afastou a aplicação do citado art. 144º, a) do CP, por ter dado como provado (ponto 11 da matéria de facto) que o arguido “não previu, contudo, que o seu gesto pudesse provocar a laceração do baço do ofendido e, como consequência disso, a sua remoção que não quis e com o qual não se conformou”. Ao não ter dado como provado o dolo, ainda que na sua forma eventual, a sentença recorrida afastou a aplicação ao caso do art. 144º, a) do C.P, ou seja, a prática do crime de ofensa à integridade física grave. Entendeu antes aplicável o art. 147º, 2 do C.P, “agravação pelo resultado", isto é, considerou que a conduta do arguido era subsumível no tipo de crime de ofensa à integridade simples, agravada pelo resultado, punível com a pena aplicável ao crime respectivo (ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143, 1, do CP), agravada de um quarto nos seus limites mínimo e máximos.
A diferença essencial entre um e outro dos tipos de crime em causa radica na previsão ou não previsão do resultado: (i) se o arguido tiver previsto o resultado (no caso, a laceração e remoção do baço), o crime por si praticado é de ofensa à integridade física grave, previsto no art. 144º, al. a) do C.P, uma vez que este tipo de crime exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades; (ii) se o arguido não tiver previsto o resultado, o mesmo apenas lhe pode ser imputado a título de negligência (falta do cuidado devido e, por esse motivo, falta de previsão do resultado) então o crime que lhe é imputável é o de ofensa à integridade física simples, agravado pelo resultado - crime preterintencional, previsto no artigo 147º, 2 do C. Penal.
Em rigor, neste tipo de crime qualificado pelo resultado, “existe uma especial combinação de dolo e negligência. O delito fundamental doloso (lesão da integridade física) é por si só susceptível de punição, mas no entanto a pena é substancialmente elevada com base numa espacial censurabilidade do agente, uma vez que o perigo específico que envolve esse comportamento se concretiza num resultado agravante negligente” – cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág 240.
Tendo em conta o recorte dos tipos de ilícito em causa, a questão fundamental em causa incide sobre a matéria de facto assente, mais concretamente sobre o facto dado como provado no ponto 11 e no facto dado como não provado ponto 1 e que se traduz em saber se o tribunal “a quo” andou bem quando deu como não provada a previsão do concreto resultado da conduta do arguido.
Na verdade, nos referidos pontos da matéria de facto assente, o tribunal considerou que o arguido “não previu, contudo, que o seu gesto pudesse provocar a laceração do baço do ofendido e, como consequência disso, a sua remoção, resultado que não quis e com o qual não se conformou” e, concomitantemente, não provado que tivesse agido livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a força empregue e a zona atingida podia provocar, como provocou, a remoção de um órgão, o baço”
O Tribunal a quo justificou este seu entendimento (no seguimento do acórdão desta Relação, declarando a nulidade da anterior sentença, por falta de fundamentação, designadamente do facto dado como assente no ponto 11), a partir da dinâmica da agressão (pontapé dado de forma repentina, sem preparação) e do tamanho e localização do órgão atingido (baço). Entendeu assim que, para se poder falar em previsão do resultado, era necessário um grande conhecimento da anatomia humana e uma grande precisão do pontapé. Daí que tenha concluído que o arguido não previu efectivamente o resultado da sua conduta, isto é, que da mesma pudesse resultar a remoção total do baço do ofendido.
O assistente visa, no recurso, a modificação da matéria de facto assente neste ponto, sublinhando (para além de considerações teóricas e acertadas sobre o dolo eventual, mas irrelevantes para o fim pretendido, dado que a questão em causa incide sobre matéria de facto) que, da análise do CRC do arguido e do respectivo relatório social, se denota uma larga experiência do mesmo no mundo do crime, com recurso a violência extrema (“quando algo não lhe corre de feição ou quando alguém não obedece aos seus caprichos”. Alega ainda que o arguido foi já condenado pela prática de crimes semelhantes, tendo inclusivamente utilizado objectos nas agressões, nomeadamente tacos de basebol, potenciando desta forma as lesões infligidas aos ofendidos.
Tendo em conta a motivação da matéria de facto, nomeadamente a relativa à questão da representação, pelo arguido, do resultado da sua conduta e respectiva adesão ao mesmo, entendemos que deve manter-se a matéria de facto assente (provada e não provada), pelos motivos constantes da sentença recorrida.
Com efeito, a previsão do resultado é um facto psicológico que só pode ser demonstrado através de factos exteriores que inequivocamente o revelem. Ora, segundo as regras da experiência comum não é previsível que de um pontapé desferido contra o peito de alguém decorra, em regra, a remoção do baço. Trata-se de um resultado que, apesar de ser causado pela agressão, não ocorre com tal frequência que a sua previsão seja inevitável ou, pelo menos, vista como possível pela generalidade das pessoas. Por outro lado (e contrariamente ao pretendido pelo recorrente) não pode o Tribunal fazer apelo ao passado criminal do arguido para, face ao mesmo, lhe imputar uma determinada e concreta previsão do resultado. A previsão de um evento depende das concretas circunstâncias em que ocorre, e não do passado (mais ou menos) violento do arguido. Daí que a argumentação do assistente/recorrente não seja bastante para impor prova diversa quando aos factos ora em apreço, ou seja, decisão diversa da recorrida. De resto, e neste segmento, também o Ex.º Procurador-geral Adjunto nesta Relação concluiu que“… é por demais evidente que as provas que invoca para modificar a decisão de facto no sentido desejado não permitem e, muito menos impõem, tal alteração” – cfr. folhas 385 dos autos.
Assim, e quanto à pretendida alteração da matéria de facto assente, o recurso deve ser julgado improcedente.
2.2.4. Quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente.
O assistente impugna ainda a parte da sentença relativa à indemnização civil arbitrada pelo Tribunal a quo, a título de reparação dos danos não patrimoniais, cujo montante considera insuficiente e injusto.
A sentença recorrida fixou os danos não patrimoniais sofridos pelo assistente em € 5.000,00 euros. Depois de analisar os pressupostos da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, transcreveu o disposto nos artigos 496º, 1 e 494º do CC, enumerando os factores a ter em conta na fixação do montante dos danos não patrimoniais, concluindo: “Desta forma, face ao circunstancialismo supra enunciado, fixa-se a compensação a atribuir ao demandante a título de danos não patrimoniais em € 5.000,00 (cinco mil euros) ”.
O recorrente pretende que, face à dimensão de tais danos e respectivas sequelas, o montante indemnizatório seja fixado em € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
Vejamos.
A avaliação dos danos não patrimoniais deve atender, como referiu a sentença recorrida, aos factores enumerados no art. 494º do CC, isto é, ao grau de culpabilidade, situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso.
No caso em apreço, deve ser tomada em conta, em primeiro lugar, a gravidade da lesão. Neste sentido, cf. acórdão desta Relação, de 11-02-2015, proferido no processo 6432/12.4TAVNG-P1, numa situação relativa à importância do órgão aqui em causa (baço):
“(…)

Para além das funções imunitárias, têm-se acentuado também as funções a nível da circulação sanguínea, quer pela quantidade quer pela qualidade do sangue. Estas do baço são descritas no Manual Merck; Secção 14; Capítulo 161, nos seguintes termos: “O baço produz, controla, armazena e destrói células sanguíneas. É um órgão esponjoso, liso e de cor púrpura, quase tão grande como o punho; está localizado na parte superior da cavidade abdominal, mesmo por baixo das costelas, no lado esquerdo. O baço funciona como dois órgãos. A polpa branca é parte do sistema de defesa (imunitária) e a polpa vermelha elimina os materiais de eliminação do sangue, como os glóbulos vermelhos defeituosos. Certos glóbulos brancos (os linfócitos) criam anticorpos protectores e têm um importante papel na luta contra a infecção. Os linfócitos são produzidos e amadurecem na polpa branca. A polpa vermelha contém outros glóbulos brancos (fagócitos) que ingerem material não desejado, como bactérias ou células defeituosas, presentes no sangue. A polpa vermelha controla os glóbulos vermelhos, determina quais são anormais ou demasiado velhos ou lesados para funcionar de maneira apropriada, e destrói-os. Por isso, à polpa vermelha, por vezes, dá-se o nome de cemitério de glóbulos vermelhos.”
A remoção total do baço implica (tal como se provou na sentença recorrida) “um acompanhamento médico regular para vigilância do seu estado de saúde, nomeadamente a realização de um esquema de vacinação de 6 em 6 anos para reforço do estado imunitário” (facto 37). O assistente, como consequência do pontapé, “sofreu fortes dores” (facto 38) e teve vómitos (facto 39); sentiu dores no período pós-operatório (facto 40) e sente vergonha das cicatrizes (facto 42).
O dano aqui em causa é moral (não patrimonial), ou seja, traduz-se no sofrimento físico e psicológico sentido pelo assistente, devido às dores, angústia e perda de um importante órgão do corpo (baço), pelo que se está perante um sofrimento bastante intenso.
As circunstâncias do caso não justificam, de modo algum, uma diminuição do montante da indemnização geralmente arbitrada, uma vez que o motivo da agressão e da violência da mesma não têm explicação: o ofendido cedeu um charro ao arguido tendo-lhe feito o reparo de que “não poderia ser assim, porque também ele estava desempregado”.
No acórdão desta Relação, acima citado, foi considerada equitativa uma indemnização no valor de 25.000,00 euros, num caso em que ao ofendido foi também removido o baço. No acórdão desta Relação, de 14/10/2008, proferido no processo 0726521, considerou-se adequado o montante de 35.000,00 euros, num caso em que o ofendido perdeu o baço e o rim, tendo ficado com uma IPP de 30% e perdido o 3º ano da Licenciatura em Matemática.
No presente caso, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, julgamos que deve ser fixada uma indemnização algo menor que a fixada no acórdão desta Relação, de 11-02-2015, acima citado, uma vez que naquele processo a lesão foi provocada com dolo e, no presente caso, houve apenas negligência quanto ao resultado (remoção do baço), isto é, o resultado apenas pode ser imputado ao arguido a título de negligência. Nestes ermos, consideramos adequada e justa arbitar ao ofendido uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €20.000,00 (vinte mil euros).
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso da sentença relativa à parte criminal e conceder parcial provimento ao recurso da parte cível e consequentemente:
a) Condenar o demandado B… a pagar ao assistente, C…, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais;
b) Manter, em tudo o mais, a sentença recorrida.
Custas crime pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
Custas cíveis em ambas as instâncias pelo demandante e demandado, na proporção dos respectivos decaimentos.

Porto, 08/03/2017
Élia São Pedro
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