Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
638/22.5T8VCD-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
CRÉDITO COMPENSATÓRIO ENTRE CÔNJUGES
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RP20240205638/22.5T8VCD-C.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crédito compensatório que decorre do disposto no n.º 2 do art. 1676.º CCivil deve exercer-se através de incidente ao processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges.
II - Por assim a ser, competente para o processamento e decisão do referido incidente será o tribunal onde decorreu (decorre) o inventário respetivo e não qualquer outro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 638/22.5T8VCD-C
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores de Vila do Conde-J2


Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª. Ana Paula Amorim  
2º Adjunto Des. Dr. José Eusébio Almeida



Sumário:

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I- RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, divorciada, residente na Avenida ...., Vila do Conde veio por apenso aos autos de inventário propor contra BB, divorciado, residente na Rua ..., Vila do Conde, o presente incidente nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1676.º, nº 2 e 3 do CCivil, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização, no valor de €250.000,00, em consequência de um prejuízo que sofreu na pendência do casamento, resultante do facto desse ter dedicado durante a vida conjugal ao trabalho doméstico e cuidados da família, tendo descurado a sua a valorização profissional, a ponto de hoje em dia não ter qualificações e competências para integrar o mercado de trabalho, ao passo que por força da sua dedicação familiar e doméstica, tal permitiu ao Réu prosperar na sua carreira profissional.
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Conclusos os autos foi proferido decisão que, julgando verificada a exceção dilatória de incompetência material, declarou o tribunal incompetente, em razão da matéria, para a apreciação da presente ação e, consequentemente, absolveu o Réu da instância. 
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Não se conformando com o assim decidido veio a Requerente interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1- No caso previsto no artigo 1676º do CC, trata-se de uma COMPENSAÇÃO, e não de uma qualquer responsabilidade civil extra- contratual;
2- Constituindo um verdadeiro Incidente do Inventário.
3- Com a Sentença Recorrida ficou prejudicada a aplicabilidade dos artº 292º a 295º, 1082º al d) e 1091º todos do CPC, e por consequência deverá ser Revogada a Sentença, determinando-se que os Autos deverão ser tramitados como Apenso ao Processo de Inventário, fazendo-se assim, inteira e sã justiça.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, competente em razão da matéria para o presente incidente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em consideração para a resolução da questão supra enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Isto dito e como supra se referiu é apenas uma a questão que vem posta no recurso:
a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, competente em razão da matéria para o presente incidente.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se entendeu que, no caso, para apreciação do presente litígio era competente o Juízo Central Cível.
É contra este entendimento que se insurge a apelante, defendendo ser o tribunal recorrido competente para o presente incidente.
Quid iuris?
O dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges e pode ser cumprido ou pela afetação de meios (de uma prestação pecuniária) ou pelo trabalho no lar ou educação dos filhos (cfr. 1676.º, nº 1 CCivil).
Sempre que se verificar assimetria entre o contributo dos cônjuges para os encargos da vida familiar, reconhece o nº 2 do citado artigo 1676.º, a possibilidade de atribuição de um crédito, de uma compensação de natureza patrimonial.
Tutela-se, aqui, a diminuição da capacidade aquisitiva do cônjuge que, na vigência do matrimónio, realiza uma contribuição para os encargos da vida familiar manifestamente superior àquela que lhe era exigível sacrificando, designadamente, a sua carreira profissional (por via, por exemplo, do abandono temporário da carreira profissional, de ocupação profissional a tempo parcial que lhe permite responder à maior oneração com os encargos com a vida familiar; Estas situações podem acarretar, como bem se compreenderá, um abrandamento da evolução na carreira, menores oportunidades de progressão e de aumento salarial).
Em suma, o artigo 1676º, nº 2, não reconhece o direito de crédito de um cônjuge sobre o outro, pela sua contribuição excessiva para os encargos da vida familiar, confere o direito a uma compensação financeira ao cônjuge que tenha realizado trabalho doméstico e com a educação dos filhos durante a vida em comum e que o fez por ter renunciado, total ou parcialmente, à sua vida profissional, sofrendo prejuízos patrimoniais importantes em consequência dessa opção em beneficio da vida em comum.
Como assim, ao contrário do que refere o tribunal recorrido, não estamos aqui perante qualquer reparação de danos ao cônjuge lesado e, portanto, como também aí se afirma, no âmbito da responsabilidade extracontratual do artigo 483.º do Código Civil.
Isto dito, a questão que agora importa dilucidar é onde deve tal crédito compensatório ser invocado.
Ora, tal questão tem sido abordada no sentido convergente de que a forma processualmente válida de exigir este crédito é na partilha e, por isso, constituirá aí um incidente.
Refere a tal propósito Sandra Passinhas: “a compensação é, pois, feita após a extinção do casamento e terá, normalmente, lugar na partilha do património conjugal. Será um incidente no processo de inventário com alguma complexidade, é certo, e em alguns casos a discutir nos meios comuns”.[1]
Também Tomé de Almeida Ramião[2], sustenta que deverá ser “(…) processado como um incidente do processo de inventário, uma consideração de ordem funcional. Terá sido a afinidade das matérias a serem abordadas que ditou essa opção. Por se entender que é no processo onde se discutem e avaliam os bens comuns do casal que, com mais propriedade, se poderá apurar a situação patrimonial dos cônjuges durante o casamento, ajuizando dos encargos da vida familiar e da contribuição de cada um dos cônjuges para a satisfação dos mesmos, que são os elementos a ponderar para efeito da atribuição do referido direito a compensação.
Aliás, é significativa, apontando nesse sentido, a passagem da exposição de motivos do projeto daquele diploma Projeto de Lei nº 509/X. em que se diz que “este é apenas um caso em que se aplica o princípio geral de que os movimentos de enriquecimento ou de empobrecimento que ocorrem, por razões diversas, durante o casamento, não devem deixar de ser compensados no momento em que se acertam as contas finais do património”.
Seguindo o mesmo entendimento refere Cristina Dias[3]: “a compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra Da mesma forma também a jurisprudência se pronuncia sobre a exigibilidade do crédito na partilha.
Em confluência com este entendimento também a nossa jurisprudência se pronuncia sobre a exigibilidade do crédito na partilha.[4]
Concluindo, uma vez que a partilha dos bens comuns do casal se processa através de inventário [cfr. art. 1082.º d) CPCivil], a compensação em causa terá nele lugar como um incidente tramitado nesse processo e não por apenso como pretende a apelante.
Efetivamente a disciplina dos incidentes no processo de inventário está contida no artigo 1091.º do CPCivil que estipula:
1 - Aos incidentes do processo aplica-se, salvo indicação em contrário, o disposto nos artigos 292.º a 295.º
2 - A dedução de um incidente implica a suspensão da instância sempre que o juiz assim o determinar, por considerá-la conveniente, e fixar o momento a partir do qual a mesma opera.
Ora, nem as normas relativas ao processo de inventário, nem as relativas aos incidentes se referem ao processamento destes por apenso, mas sim à sua tramitação no próprio processo em que se inserem.
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Assim, pode concluir-se que o crédito compensatório que decorre do disposto no n.º 2 do artigo 1676.º do CCivil deve exercer-se através de incidente autónomo no processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges, não assistindo, assim, razão ao tribunal de primeira instância quando entende que a competência para apreciação do presente litígio é do Juízo Central Cível.
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O incidente em causa, sendo autónomo do inventário, não se processa por apenso, mas integrado naqueles autos, razão porque se não determina, como pretendido pela recorrente, que o incidente continue processado por apenso.
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IV- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, por provada e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido atribuindo-se a competência ao tribunal recorrido para o processamento e decisão do incidente que deverá correr, não por apenso aos autos de inventário, mas no próprio inventário.
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Custas pelo apelante que da decisão tirou proveito (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 05 de fevereiro de 2024.
Manuel Domingos Fernandes
Ana Paula Amorim
José Eusébio Almeida

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[1] Cfr. “O crédito compensatório previsto no artigo 1676, n.º 2, do código civil português: o que o legislador disse e o que realmente quis dizer, atualidade jurídica iberoamericana, issn 2386-4567, idibe, núm. 6, feb. 2017, p. 78, disponível em https://www.fd.uc.pt/~sandrap/pdfs/sandra_passinhas_pp_70-89.pdf.
[2] In O Divórcio e Questões Conexas, Quid Juris, 2009, pág. 112.
[3] O Crédito pela Compensação do Trabalho Doméstico na Constância do Matrimónio, na coletânea Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pág. 206.
[4] Cfr. nesse sentido Acs. da RL de de 14/04/2011, Proc. 2604/08.4TMLSB-A.L1, da RG de 18.10.2011, Proc. 1681/09.5TBBCL.G1 e Ac. desta Relação de 26/04/2021, Processo nº 1167/20.7T8VCD-A.P1, todos consultáveis em dgsi.pt..