Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24893/17.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
COBRANÇA COERCIVA
CONTRIBUIÇÕES NÃO PAGAS POR BENEFICIÁRIO
COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO TRIBUTÁRIA
Nº do Documento: RP2018022124893/17.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º811, FLS.217-220)
Área Temática: .
Sumário: I - A Caixa de Previdência B… (….) é uma pessoa colectiva pública que prossegue finalidades de previdência e que realiza uma função de segurança social, estando sujeita à legislação que a regula, ainda que subsidiariamente.
II - Estando em causa a cobrança coerciva de contribuições não pagas por beneficiário da B…, são competentes os tribunais da jurisdição tributária, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. o) do ETAF.
III - Uma orientação da Autoridade Tributária e Aduaneira que ponha em causa esta competência do tribunal tributário deve considerar-se desconforme com a lei e potencialmente impeditiva do direito constitucional a uma tutela jurisdicional efectiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Processo 24893/17.3T8PRT.P1

Recorrente(s): Caixa de Previdência B…;
Recorrido(s): C….
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Execução do Porto
I – Relatório
A Caixa de Previdência B… deduziu a presente execução contra C…, apresentando como título executivo a certidão de dívida emitida pela Direcção da mesma relativamente ao ora executado.
A exequente foi ouvida sobre a eventual incompetência material deste Tribunal para tramitar a presente execução tendo se pronunciando pela competência do mesmo invocando, “inter alia”, o entendimento da Autoridade Tributária.
Cumprido o contraditório, o tribunal de primeira instância proferiu a decisão liminar, ora sob recurso, a qual se transcreve na íntegra na parte dispositiva:
Pelo exposto, julgo procedente a incompetência em razão da matéria deste Tribunal, pelo que indefiro liminarmente o requerimento executivo, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 99°, n° 1, 100°, 577°, al. a), 578° e 726°, n° 2, al. b), do C.P.CiviI.
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Custas a cargo da exequente - art. 527°, nºs 1 e 2, do CPC.
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A exequente não se conformou com o decidido e deduziu recurso apresentando as seguintes conclusões que se sintetizam:
1.ª O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.
2.ª Pois a B…, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,
3.ª A B… “é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social.
4.ª A B… não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art.º 97.º do dito regulamento) e de natureza inspectiva.
5.ª A B… não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.
6.ª Os seus membros directivos são eleitos pelas assembleias dos B2… e dos associados da B1… e não designados pelo Governo
7.ª Além disso a B… não é financiada com dinheiros públicos.
8.ª A B… não deve, portanto, ser qualificada como uma mera “entidade pública”.
9.ª As contribuições para a B… não têm natureza tributária antes se assemelham a contribuições para um fundo de pensões.
10.ª As contribuições para a B… assentam numa relação sinalagmática.
11.ª Acrescendo que, nos termos do artigo 80º, nº4 do referenciado Regulamento o montante das contribuições depende da vontade do beneficiário.
12.ª A sentença recorrida entendeu serem competentes os tribunais administrativos e fiscais para a presente execução.
13.ª Todavia, o n.º 2 do art. 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso do processo de execução fiscal, no caso de “dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo”, que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
14.ª No novo regulamento da B…, não existe norma que determine que as dívidas à B… sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças.
15.ª O que foi confirmado já depois da entrada em vigor deste regulamento da B… pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
16.ª E porque “não há direito sem acção”, não resta à B… outro caminho senão o recurso aos tribunais judiciais sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.
17.ª Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal “a quo”, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais.
18.ª Tendo em conta o citado preceito constitucional, a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e do n. 2 do art.º 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, atribuindo competência material aos tribunais administrativos neste tipo de litígios, é inconstitucional por violação do citado artigo 20º, n.º 1 da CRP, na medida em que levará a um verdadeiro “beco sem saída” impossibilitando a B… de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários.
19.ª Já que tais dívidas não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, por meio de execuções fiscais promovidas pela AT ou pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito.
20.ª A sentença recorrida violou, assim, o art.º 2.º, n.º 2 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; o art.º 81.º, n.º 5 do RB…; a alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída é inconstitucional por violar o artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Termina a recorrente peticionando a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue o Tribunal “a quo” como competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente acção executiva.
II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações dos recorrentes.
Em causa nos autos apenas a questão da definição da jurisdição competente para a presente lide – tribunais administrativos ou tribunais comuns.
III -Fundamentação de Direito
Resulta pacífico que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir).
Por outro lado, em termos de competência residual, regula o art. 64º do C.P.C. que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” sendo certo que a nossa Constituição define no seu art.º 212.º, n.º 3, que a competência dos Tribunais Administrativos diz respeito ao julgamento das acções cujo objecto tenha por fundamento apenas “os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”
O caso dos autos é idêntico a outros recentemente decididos pelos nossos tribunais superiores.
Em especial o Tribunal dos Conflitos já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão colocada nos autos e, inequivocamente, pronunciou-se pela competência material dos tribunais administrativos.
Assim, como se lê no sumário dessa decisão proferida em 27 de Abril do ano transacto, processo 037/16, já transcrito na douta decisão apelada:
I – A Caixa de Previdência B… (….), pessoa colectiva pública que tem por fim estatutário conceder pensões de reforma aos seus beneficiários e subsídios por morte às respectivas famílias, prossegue finalidades de previdência e, consequentemente, realiza uma função de segurança social, estando incluída na organização desta e sujeita desde sempre à legislação que a regula, ainda que de forma subsidiária.
II – Reportando-se o litígio à cobrança coerciva de contribuições não pagas por beneficiário da B…, ele emerge de uma relação jurídica administrativa e fiscal e não de uma relação de direito privado, para cuja apreciação são competentes os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos dos artºs. 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. o), ambos do ETAF.
III – Estando em causa contribuições para um regime de segurança social, embora de natureza especial, são aplicáveis, por força dos artºs. 106.º, da Lei n.º 4/2007, de 16/1 e 1.º, do regulamento anexo ao DL n.º 119/2015, de 29/6, o disposto no art.º 60.º dessa Lei e, com as necessárias adaptações, no DL n.º 42/2001, de 9/2, pelo que será através do processo de execução fiscal nos mesmos termos que são estabelecidos para a cobrança coerciva das dívidas à segurança social que o direito da B… terá de ser exercido.
Esta orientação jurisprudencial vem ao encontro de vários acórdãos no mesmo sentido proferidos por diferentes Tribunais da Relação. Assim, na Relação de Lisboa, processo nº 17398/15.9T8LRS.L1-2 de 9 de Março de 2017 (“As relações jurídicas estabelecidas entre a Caixa de Previdência B… (….) e os seus associados, são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al. o) do nº 1 do art 4º do ETAF”), na de Coimbra, processo nº 6611/17.8T8CBR.C2. de 16 de Janeiro do corrente ano de 2018 (“Sendo a B… uma pessoa colectiva de direito público, a competência para solucionar tal tipo de litígios recai nos tribunais administrativos e fiscais, nos termos da al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”) ou da própria Relação do Porto, processo nº 6988/16.2T8PRT.P1 de 20-06-2016 embora, ao que parece, com referência a uma Caixa de Previdência de uma outra Ordem Profissional ainda que sempre com idênticos fundamentos.
Em todos estes arestos a argumentação é muito semelhante e vem ao encontro da explicação aventada pelo Tribunal dos Conflitos; assim, afirma-se que o já citado novo regulamento da B…, publicado em anexo ao DL n.º 119/2015, de 29/6, ao estabelecer o regime específico de segurança social dos B2… e B1…, reafirmou que essa Caixa era uma instituição de previdência autónoma, visando fins de previdência e de protecção social, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa que se regia por esse regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (cf. art.º 1.º), estando sujeita à tutela do Governo (cf. art.º 97.º) e gozando das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e previdência (cf. art.º 98.º).
Donde conclui-se que o pagamento forçado das contribuições para a segurança social, enquanto verdadeiras quotizações sociais que sendo imposições parafiscais apresentam grande semelhança com os impostos (cf. Ac. do T.Conflitos de 17/1/2008 – Conf. n.º 16/07), será feito através de processo de execução fiscal nas secções de processo executivo do sistema de solidariedade e segurança social, cabendo aos tribunais tributários neles exercer a actividade de natureza jurisdicional (cf. art.º 151.º, n.º 1, do CPPT).
Não vemos motivos, bem pelo contrário, para dissentir deste entendimento uniforme dos nossos tribunais que se apresenta coerente e sustentado.
Contudo, resulta do exposto nas doutas alegações que estas decisões vêm acarretando um novo e complexo problema para a apelante.
É que – segundo alegam - no regulamento da B… não existe norma que determine que as dívidas à B… sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças o que foi já admitido, depois da entrada em vigor deste regulamento da B…, pela própria Autoridade Tributária e Aduaneira. Registe-se que o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso do processo de execução fiscal, no caso de “dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo”, que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer. Ora, no novo regulamento da B… não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à B… sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças.
Assim sendo, “porque não há direito sem acção” a interpretação que conclua pela incompetência dos tribunais comuns acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais.
"Quid iuris"?
Os já citados acórdãos das Relações de Lisboa e Coimbra já se debruçaram igualmente sobre esta aventada inconstitucionalidade.
Naquelas decisões, em particular a da Relação de Lisboa, é referida justamente essa indisponibilidade da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para propor os processos executivos para cobrança das contribuições em dívida à B… por entender que “essa possibilidade não tem cabimento no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), nem está expressamente consagrada em legislação avulsa especial, designadamente no Regulamento da B…, aprovado pelo Decreto-lei n.º 119/2015, e 29 de Junho”.
Porém a mesma decisão logo explica que o entendimento em causa não levou em conta que a remissão para “os requisitos previstos no CPPT”, que resulta do nº 5 do art 81º do referido Regulamento não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o nº 2 do art 148º do CPPT, ao dispor que «poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: a) outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo (…)”.
Ou seja, a orientação plasmada pela Autoridade Tributária e Aduaneira não respeita o que resulta da lei e será esta entidade que coarcta, efectivamente, o direito à tutela jurisdicional efectiva de que desfruta a requerente. Donde, salvo melhor opinião, ter-se-ão que desencadear os procedimentos que estão ao alcance da apelante para que a cobrança dos créditos a esta devidos possam ser feitos na jurisdição competente e, por via, dos mecanismos coercitivos próprios do processo de execução fiscal.
Neste sentido, não existe qualquer inconstitucionalidade decorrente da interpretação presente na sentença apelada à qual aderimos.
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É tempo de sumariar nos termos do artigo 663º, nº7 do Código do Processo Civil:
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V – Decisão
Em conformidade, acorda-se em julgar a presente apelação improcedente e, nesta medida, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 21 de Fevereiro de 2018
José Igreja Matos
Rui Moreira
Lina Baptista