Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2668/23.0T8VNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: RESOLUÇÃO DE ACTO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
CARTA RESOLUTIVA
REQUISITOS
Nº do Documento: RP202402202668/23.0T8VNG-C.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Uma carta registada anunciando a intenção de resolução de um negócio em benefício da massa não pode ser descaracterizada enquanto tal pelo facto de carecer flagrantemente de elementos essenciais à sua eficácia.
II - Ao comunicar a resolução de um negócio em benefício da massa insolvente, o administrador da insolvência deve indicar os concretos factos que fundamentam essa resolução, por tal ser essencial à possibilidade de o impugnante a contestar. A deficiência de fundamentação do acto não poderá ser suprida ulteriormente, em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 2668/23.0T8VNG-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 5

REL. N.º 837
Relator: Rui Moreira
Anabela Dias da Silva
Lina Castro Baptista
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO
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AA, solteira, maior, residente na Rua ..., ..., 3º esq., freguesia e concelho ... veio interpor acção de impugnação de resolução em benefício da massa por apenso à acção em que foi decretada a insolvência de BB, alegando que, após ter adquirido a este a propriedade de um imóvel sito em ..., lote ..., rés-do-chão Esquerdo, fração Q, da freguesia e concelho ..., com o número matricial ...-Q, e descrito sob o nº ... da CRP, por escritura pública de 13 de Setembro de 2021, retificada em 22 de Setembro de 2021, veio a ser notificada da resolução de tal negócio, pelo administrador da insolvência em funções no processo.
Admitiu a dificuldade na interpretação da carta recebida a comunicar a resolução, mas, perante o seu teor, concluiu dever impugnar o que entendeu ser uma declaração de resolução. Alegou que a falta de motivação da declaração de resolução logo a fere de nulidade e sustentou a regularidade e validade do negócio, justificando o preço pago – de 20.000,00€ - pela circunstância de o imóvel se encontrar hipotecado. E afirmou que tal negócio não poderá ter-se como prejudicial nem para o credor hipotecário, nem para qualquer outro credor nem para a massa insolvente.
Rejeitou a verificação de qualquer pressuposto da declarada resolução.
A MASSA INSOLVENTE DE BB apresentou contestação. Alegou não ter a autora demonstrado o pagamento do preço, bem como que a venda do imóvel hipotecado foi feita à revelia do respectivo credor e contra o que estava clausulado no contrato de mútuo garantido por essa hipoteca, além de que feita por um preço inferior ao do imóvel vendido. Concluiu pela improcedência da acção.
A autora ofereceu réplica.
Foi, de seguida, proferido o despacho recorrido, que se fundou no teor da carta remetida pelo administrador da insolvência à autora e que apresentava o seguinte teor: “(…) tendo sido nomeado Administrador da Insolvência no processo à margem referenciado, vem informar V. Exas. que e em conformidade com os artigos 120º e 121º do CIRE, vai proceder à anulação da venda efectuada em 13 de Setembro de 2021, pelo aqui insolvente, do prédio sido em ..., inscrito na matriz predial pelo n.º ...-Q”.
Afirmou ter tido em consideração o requerimento do administrador da insolvência, no processo principal, o qual se traduziu na comunicação de que a carta invocada pela autora lhe havia sido remetida, tal como outra, de igual teor, aos mandatários do insolvente.
Sucessivamente, o tribunal decidiu:
(…) Ora, a declaração constante da carta remetida pelo Sr. Administrador da Insolvência não corresponde a qualquer declaração resolutiva. O Sr. Administrador da Insolvência, através da referida carta, apenas comunica à autora que “vai proceder à anulação da venda efectuada em 13 de Setembro de 2021”.
A declaração remetida pelo Sr. Administrador da Insolvência apenas nos diz que é sua intenção proceder à resolução em benefício da massa insolvente da compra e venda realizada a 13 de Setembro de 2021, sendo certo que, para esse efeito, terá que especificar os fundamentos que a originam e poderá utilizar vários meios, como já referimos.
Assim, não podendo a carta remetida pelo Sr. Administrador da Insolvência corresponder a qualquer declaração resolutiva para efeitos do disposto no art. 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, concluímos que a presente acção carece de objecto, devendo ser extinta por impossibilidade (originária) da lide (art. 277º, alínea e), do Código de Processo Civil).
(…)”
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É desta decisão que vem interposto recurso, pela autora, que o terminou formulando as seguintes conclusões das quais se transcrevem apenas as que se revelam como pertinentes nesta sede, onde não cabe relatar o processo, mas circunscrever as questões que devem ser reapreciadas e as razões para isso:
(…)
XIII. A questão de facto que se leva à análise e decisão do Tribunal de recurso é o de se a carta enviada com registo e aviso de receção enviada pelo Sr. Administrador de Insolvência é ou não a carta de resolução do negócio do negócio de compra e venda celebrado entre a Recorrente e o ora e depois insolvente, realizada ao abrigo do disposto no artigo 123º do CIRE, no enquadramento que a tal declaração deve ser dada pela Recorrente, que deve ser considerada como um destinatário normal nos termos do artigo 236º do CC.
XIV. E consequentemente a reação da Recorrente usando do seu direito a impugnar tal resolução era ou não possível e oportuna, e não ferida de qualquer impossibilidade originária, que a impedisse.
XV. Constam dos autos todos os elementos de prova de que o ato de resolução do contrato de compra e venda realizado pela Recorrente enquanto compradora não tem fundamentação suficiente no enquadramento em qualquer das alíneas dos artigos 120º e 121º do CIRE; aliás de aplicação incompatível; e de que não existem factos alegados na contestação que permitam provar sequer que tal operação foi realizada com o intuito de prejudicar credores, ou de algum tenha sido prejudicado com o ato; ou que a falta de alegada comunicação ao banco beneficiário da hipoteca da venda, (alegado pela Ré em sede de contestação) tenha alguma influência possível sobre a compradora e recorrente, que a tal nem estava obrigada nem teria a possibilidade de realizar.
XVI. Pelo que será desde já possível ao Tribunal da Relação do Porto, proferir decisão que não apenas revogue a sentença recorrida, considerando a existência de um ato de resolução atempadamente impugnado, e que apreciando o ato em si, a prova produzida documentalmente, e a falta e insuficiência do alegado pela Ré na sua contestação, seja emitida sentença que considere a ação de impugnação como procedente.”
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Não foi oferecida resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
Em ordem à realização dessa função, em face das posições das partes no âmbito deste recurso e para que a solução do mesmo pudesse alcançar inteiramente o seu objectivo, foram as mesmas notificadas para se pronunciarem quanto à hipótese de a apelação proceder e de ser sucessivamente decidida a questão que havia ficado prejudicada pela decisão recorrida, relativa à eficácia das cartas enquanto declaração de resolução.
Quer a apelante, quer a Massa Insolvente de BB se pronunciaram sobre o real objectivo das cartas remetidas à apelante e aos Il. Mandatários do insolvente, considerando que pretendiam operar de imediato a efectiva resolução daquele negócio, acrescentando a Massa Insolvente tê-las por eficazes para esse efeito.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, cumpre decidir se o administrador de insolvência, através das cartas enviadas à autora e ao insolvente, operou a resolução do negócio de venda do imóvel em questão, justificando assim o recurso da autora à presente acção, para a impugnação do referido acto.
Sucessivamente, sendo caso disso, haverá que decidir se a acção deve prosseguir ou pode ser decidida no imediato. Nesta hipótese, caberá decidir se as cartas de resolução se podem ter por eficazes e, só então, se se verificam os fundamentos da impugnação.
Como resulta do excerto da decisão acima transcrita, ali se entendeu que as cartas remetidas pelo administrador da insolvência apenas traduziam ser “…sua intenção proceder à resolução em benefício da massa insolvente da compra e venda realizada (…) não podendo a carta remetida pelo Sr. Administrador da Insolvência corresponder a qualquer declaração resolutiva …”.
Todavia, já resultava dos autos, qual a vontade declarada nas cartas remetidas à ora apelante e aos mandatários do insolvente: o próprio administrador, antes da decisão, esclareceu-o expressamente no requerimento apresentado no processo principal, em 16-6-2023, respondendo a interpelação do tribunal. Afirmou então que enviara as cartas em questão “… afim de proceder à anulação do prédio que pertenceu ao insolvente.”
Entendemos, em qualquer caso, que mesmo sem essa explicitação enunciada pelo administrador da insolvência, só podia ser esse o significado das referidas cartas. Embora o seu texto não fosse absolutamente claro, a remessa das cartas à adquirente da fracção e ao insolvente (através dos seus mandatários) não seria explicável como um simples acto desnecessário, inconsequente e inútil: para quê anunciar que, num momento ulterior, haveria de ser emitida uma declaração de resolução de um negócio, que o administrador apontava como destinado a resolução? Assim sendo, e porque a resolução do negócio em causa tinha prazo para ser operada, as referidas cartas tinham um efectivo e inequívoco objectivo: a declaração de resolução do negócio de compra da fracção Q pela ora apelante.
Para descaracterizar as referidas comunicações à apelante e ao insolvente, o tribunal considerou a falta de requisitos que as mesmas deveriam conter, para serem eficazes, designadamente a enunciação de fundamentos da resolução. No entanto, não se nos afigura adequada tal iter decisório. A análise do preenchimento dos requisitos de eficácia de tais comunicações é uma tarefa subsequente; não pode ser realizada a montante da determinação da função das referidas comunicações. Uma carta registada anunciando a intenção de resolução de um negócio em benefício da massa, dirigida aos respectivos contraentes, não pode ser descaracterizada enquanto tal pelo facto de carecer flagrantemente de elementos essenciais à sua eficácia. Simplesmente haverá de admitir-se a sua natureza e, sucessivamente, avaliar a sua regularidade e eficácia.
Temos, pois, sem necessidade de outras considerações que a própria a falta de controvérsia entre as partes dispensa, que concluir pela procedência da apelação, no que respeita à impertinência da decisão recorrida, ao decretar a extinção da instância por impossibilidade da lide.
Assim, revogando-se o decidido e reconhecendo-se o significado das comunicações dirigidas pelo administrador de insolvência à ora apelante e aos mandatários da insolvente como efectivas declarações de resolução do negócio efectuado em 13 de Setembro de 2021, por insolvente e apelante, do prédio sido em ..., inscrito na matriz predial pelo n.º ...-Q, cumpre determinar o prosseguimento da instância, em ordem à apreciação da pretensão de impugnação de tal resolução.
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Como se declarou em anterior despacho, o processo compreende os elementos necessários a que se aprecie uma tal pretensão da autora. Essa apreciação havia ficado prejudicada pela decisão agora revogada, mas pode este tribunal de recurso decidir sobre o mérito da acção, nos termos do disposto no art. 665º, nº 2 do CPC. As partes foram ouvidas (nº 3 do mesmo art. 665º).
É útil ter presente o teor das comunicações dirigidas aos contraentes do negócio objecto da resolução pretendida, na sua parte útil: “… vem informar V. Exas. que e em conformidade com os artigos 120º e 121º do CIRE, vai proceder à anulação da venda efectuada em 13 de Setembro de 2021, pelo aqui insolvente, do prédio sido em ..., inscrito na matriz predial pelo n.º ...-Q”.
Dispõem estas normas:
Artigo 120.º
Princípios gerais
1 - Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
2 - Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.
3 - Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.
4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.
5 - Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias:
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;
c) Do início do processo de insolvência.
6 - São insuscetíveis de resolução por aplicação das regras previstas no presente capítulo os negócios jurídicos celebrados no âmbito de processo especial de revitalização ou de processo especial para acordo de pagamento regulados no presente diploma, de providência de recuperação ou saneamento, ou de adoção de medidas de resolução previstas no título VIII do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, bem como os realizados no âmbito do Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas ou de outro procedimento equivalente previsto em legislação especial, cuja finalidade seja prover o devedor com meios de financiamento suficientes para viabilizar a sua recuperação.
Artigo 121.º
Resolução incondicional
1 - São resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos:
a) Partilha celebrada menos de um ano antes da data do início do processo de insolvência em que o quinhão do insolvente haja sido essencialmente preenchido com bens de fácil sonegação, cabendo aos co-interessados a generalidade dos imóveis e dos valores nominativos;
b) Actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais;
c) Constituição pelo devedor de garantias reais relativas a obrigações preexistentes ou de outras que as substituam, nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência;
d) Fiança, subfiança, aval e mandatos de crédito, em que o insolvente haja outorgado no período referido na alínea anterior e que não respeitem a operações negociais com real interesse para ele;
e) Constituição pelo devedor de garantias reais em simultâneo com a criação das obrigações garantidas, dentro dos 60 dias anteriores à data do início do processo de insolvência;
f) Pagamento ou outros actos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de insolvência, ocorridos nos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ou depois desta mas anteriormente ao vencimento;
g) Pagamento ou outra forma de extinção de obrigações efectuados dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir;
h) Actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte;
i) Reembolso de suprimentos, quando tenha lugar dentro do mesmo período referido na alínea anterior.
2 - O disposto no número anterior cede perante normas legais que excepcionalmente exijam sempre a má fé ou a verificação de outros requisitos.
Uma forma admissível para se operar esta resolução é o envio da respectiva declaração, por carta registada, aos intervenientes no negócio, como previsto no art. 123º do CIRE.
O que deva conter essa carta é alvo de alguma controvérsia, nem tanto na doutrina, mas sobretudo na jurisprudência. Sobre isto, já nos pronunciámos em anterior acórdão, em termos que agora reproduzimos (ac. de 7/4/2016, proc. nº 2418/12.7T2AVR-E.P1).
Gravato de Morais, in “Resolução em Benefício da Massa Insolvente” pág. 54, aponta a necessidade de uma motivação específica, compreendendo os factos que originam a resolução, pois caberá ao administrador da insolvência “fazer a prova da natureza do acto, caso haja impugnação do mesmo, nos termos do artigo 125.º CIRE. Realce-se que se impõe, de todo o modo, que as circunstâncias que fundam a prejudicialidade do acto sejam invocadas quando se declara a resolução”. E prossegue o autor “Para além da invocação do acto em concreto há ainda que enunciar, quando não funcionar a presunção inilidível do art.º 120.º, n.º 3 do CIRE, a causa que leva a considerar aquele acto como prejudicial, assim como, o circunstancialismo que envolve a má-fé, quando não funcione a presunção juris tantum do art.º 120.º n.º 4 do CIRE.”
Já a jurisprudência, naquilo que se pode designar como posição mais moderada, afirma que o terceiro tem o direito de impugnar o acto de resolução, pelo que ele não pode deixar de conhecer os concretos factos ou fundamentos que contra ele foram invocados. Sem prejuízo, a declaração de resolução apenas carece da indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução, da qual se depreenda o porquê da decisão tomada.
Numa compreensão mais rigorosa do regime, afirma-se que o administrador da insolvência deve indicar os concretos factos que são o fundamento da resolução, por tal ser essencial à possibilidade de o impugnante a contestar. A deficiência de fundamentação do acto não poderá ser suprida ulteriormente, em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios. (cfr. Ac. do STJ de 17.09.2009, proc. nº 307/09.1YFLSB, cujo sumário refere precisamente isso).
Esta última compreensão do regime legal descrito é a que vem sendo genericamente seguida neste TRP, como se verifica designadamente no Ac. desta secção, proferido em 11-11-2014, no proc. nº 616/13.5TJVNF-C.P1: (II- O referido direito de resolução, porém, tal como no regime geral, é um direito potestativo extintivo, dependente de um fundamento. III - Esse fundamento deve ser exteriorizado na carta de resolução, através de factos concretos que permitam ao destinatário saber, claramente, o porquê da resolução. IV - Em qualquer caso, nunca o resolvente pode invocar na acção de impugnação factos que não indicou na comunicação à contraparte).
Como aí se entendeu, deve ter-se presente o objectivo do envio da declaração de resolução. Esse envio só realiza o seu fim se facultar ao destinatário a percepção dos elementos que necessariamente compreende, seja quanto à identificação do negócio resolvido, seja quanto aos fundamentos dessa resolução. Estes elementos, sejam de ordem cronológica, material, psicológica ou jurídica não podem deixar de ser plasmados na declaração, sob pena de ela ser reduzida a um acto formal e vazio de significado.
Remeter uma declaração escrita é comunicar o teor dessa mesma declaração. Comunicar é pôr em comum. Pôr em comum o conhecimento de razões e acções é identificá-las e caracterizá-las até onde isso for necessário para que o interlocutor adquira ou possa adquirir a sua consciência. Se a declaração comunicada não facultar a aquisição dessa consciência, não pode ter-se por eficaz.
Em resumo, partilhando tal entendimento e a forma como foi enunciado no Ac. deste TRP de 1/10/2013, (proc. nº 251/09.2TYVNG-H.P1) concluímos que: “na carta pela qual exerce a resolução do contrato, terá de concretizar quais os factos que traduzem a prejudicialidade para a massa (ou, quando haja presunção desta, ao abrigo do nº3 do art. 120º, pelo menos identificar o acto em causa, a data da sua celebração e as circunstâncias que reconduzam a algum dos casos previstos no nº1 do art. 121º) e o circunstancialismo que envolve a má-fé do terceiro (quando não funcione a presunção iuris tantum prevista no nº4 do art. 120º).
Só no caso de se tratar de resolução incondicional, dispensado que está da alegação da prejudicialidade e da má-fé do terceiro (que se presumem), lhe bastará proceder à indicação precisa do acto em causa, data da sua celebração e data do início do processo de insolvência, permitindo ao destinatário perceber em qual das alíneas do nº1, do art. 121º, pretende o AI enquadrar o negócio a resolver.”
No caso, o sr. administrador da insolvência não concretizou qualquer dos fundamentos descritos no art. 121º do CIRE, como motivo da resolução. Isso tenderia a remeter-nos para uma hipótese de resolução sob condição. Por isso, na declaração de resolução, não poderiam deixar de ser enunciados:
1 - o acto jurídico que é objecto da resolução;
2 - a data da sua celebração;
3 - a sua aptidão de ser prejudicial para a massa (já que não foi invocada qualquer circunstância que faça presumir essa vocação para o prejuízo, ao abrigo do nº3 do art. 120º;
4 - o circunstancialismo que envolve a má-fé do terceiro (quando não funcione a presunção prevista no nº4 do art. 120º, ou os factos de onde decorra essa presunção).
No caso, é simples concluir pela ausência completa dos elementos necessários à compreensão das razões motivadoras da resolução declarada. Foi, de resto, por esse motivo que o tribunal a quo chegou a afirmar que as comunicações dirigidas pelo administrador de insolvência à ora apelante e ao insolvente nem por declarações de resolução deviam ser tidas.
É certo que o negócio alvo da resolução se mostra suficientemente identificado nessas comunicações.
Porém, também deveria a declaração de resolução elencar factos de onde resultasse a qualificação do negócio resolvido como prejudicial para a massa. E deveria ainda a declaração invocar factos aptos a fazerem funcionar a presunção de má fé constante do nº 4 do art. 120º, ou alegar factos integradores do conceito de má fé tal como descrito nas als. a) e b) do nº 5 da mesma norma.
Mas nada foi explicitado nas comunicações em questão.
Em suma, analisado o teor das cartas remetidas à apelante e ao insolvente, designadamente quanto à motivação da declaração de resolução em causa, é forçoso concluir pela ausência de factos que preencham os requisitos necessários à eficácia dessas mesmas declarações.
Tal ausência não resulta suprida pela invocação abstracta das regras constantes dos arts. 120º e 121º do CIRE, que sempre carecem da alegação dos factos habilitantes do preenchimento das respectivas previsões legais.
Assim, não pode deixar de se reconhecer que as comunicações remetidas à ora apelante e ao insolvente não satisfizeram os objectivos que lhe eram essenciais e, nessa medida, exactamente como pretendido pela autora, só podem ter-se por nulas e de nenhum efeito, nomeadamente para invalidação do contrato de compra e venda celebrado entre o insolvente e a autora, ora apelante, referente ao imóvel sito em ..., lote ..., rés-do-chão Esquerdo, fração Q, da freguesia e concelho ..., com o número matricial ...-Q, e descrito sob o nº ... da CRP, por escritura pública de 13 de Setembro de 2021, retificada em 22 de Setembro de 2021.
Em substituição do tribunal recorrido, cumpre, pois, proferir decisão com tal dispositivo.
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Sumário:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento à apelação sob apreciação, com o que revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento da instância, por não se ter lide por originariamente impossível.
Sucessivamente, em cumprimento do disposto no art. 665º, nº 2 do CPC, em substituição do tribunal recorrido, acordam em julgar a acção de impugnação de resolução em beneficio da massa insolvente de BB provada e procedente, em razão do que declaram nula e de nenhum efeito a declaração de resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o insolvente e a autora, ora apelante AA, referente ao imóvel sito em ..., lote ..., rés-do-chão Esquerdo, fração Q, da freguesia e concelho ..., com o número matricial ...-Q, e descrito sob o nº ... da CRP, por escritura pública de 13 de Setembro de 2021, retificada em 22 de Setembro de 2021.
Custas pela Massa Insolvente.
Registe e notifique.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Rui Moreira
Anabela Dias da Silva
Lina Baptista