Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10982/16.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: REJEIÇÃO DO RECURSO
EXTEMPORANEIDADE
SUSPENSÃO DO PRAZO
Nº do Documento: RP2021120210982/16.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO SINGULAR DO RELATOR
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Com a entrada em vigor, no dia 22 de janeiro de 2021, do art.º 6º-B da Lei n° 1-A/2020, de 19 de março, aditado pelo art.º 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, por aplicação da respetiva norma excecional da al. d) do nº 5, não suspendeu o prazo de interposição de recurso que então se encontrava a decorrer.
II - Apresentadas que foram as alegações do recurso principal no dia 14.4.2021, há muito tempo que o mesmo era extemporâneo, devendo ser rejeitado por preclusão do direito, caducando consequentemente o recurso subordinado da Autora. (art.º 633º, nº 3, do Código de Processo Civil), o que se declara ao abrigo do art.º (art.º 652º, nº 1, al. b), da mesma lei do processo).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 10982/16.5T8PRT.P1 (Conferência)

Relator Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam, em conferência, na Relação do Porto

I.
Na sequência do despacho do relator que rejeitou o recurso interposto pela recorrente principal, B…, por extemporaneidade, veio esta parte reclamar para conferência, defendendo a admissibilidade da apelação. Sustentou mais uma vez --- agora ainda com maior desenvolvimento dos argumentos de que se munira já no seu requerimento anterior, pelo qual defendera já a admissibilidade do recurso --- que, por aplicação do nº 1 do art.º 6º-B, da Lei nº 1-A/20202, de 19 de março, aditado pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, o prazo de interposição do recurso esteve suspenso entre os dias 22.1.2021 e 6.4.2021, desde logo e sobretudo porque a decisão recorrida (sentença de 7.1.2021) é anterior ao início de vigência daquela Lei nº 4-B/2021, não lhe sendo, por essa e outras razões, aplicável a não suspensão do prazo em curso prevista na al. d) do nº 5 do referido art.º 6º-D.
Na perspetiva daquela recorrente, o prazo de recurso beneficiou da suspensão prevista no nº 1 do art.º 6º-B daquela mesma lei, cuja vigência se iniciou no dia 22.3.2021, quando então já estava em curso desde o dia 8.2.2021, e terminou no dia 5.4.2001, com a entrada em vigor da Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril. Tendo sido interposta no dia 14.4.2021, a apelação estaria em tempo.
A A. recorrida já se havia pronunciado no sentido de que o recurso principal deveria ser julgado extemporâneo, não tendo, desta feita, respondido à reclamação.
Sobre a matéria, expendeu, além do mais, o relator, no despacho objeto da douta reclamação:
«(…)
Não se nos oferecem dúvidas, face aos considerandos do despacho de 1.10.2021[1] que, se for aplicável a al. d) do nº 5 do referido art.º 6º, como defende a A., o recurso é extemporâneo, mas se for aplicável o nº 1, como defende a R. recorrente principal, a apelação foi apresentada em tempo, por o prazo do recurso ter ficado suspenso entre o início de vigência daquela norma (22.1.2021) e o dia da sua revogação (6.4.2021) --- art.ºs 6º e 7º da Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril.
A questão prende-se com a aplicação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, mais concretamente com o aditamento pelo art.º 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro do art.º 6º-B à Lei nº 1-A/2020, de 19 de março.
Para vigorar a partir de 22 de janeiro de 2021 (respetivo art.º 4º), dispõe o referido art.º 6º-B:
«1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.[2]
(…)
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;
b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.
(…)»[3].
É a própria lei que, naquele nº 1, para evitar dúvidas, consagra que o disposto nos números seguintes condicionam, modificam, alteram ou impedem a suspensão de prazos (só desse modo pode ser interpretada a expressão “sem prejuízo do disposto…”). A questão é inevitavelmente de interpretação das normas legais, de busca do seu sentido, finalidade e coerência lógica.
A recorrente principal defende essencialmente que aquela al. d) se aplica apenas aos prazos relativos aos recursos de sentenças proferidas após a entrada em vigor da lei em causa, a Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, sendo aplicável ao caso o nº 1 do mesmo art.º 6º-B.
É indispensável recorrer ao disposto no art.º 9º do Código Civil, segundo o qual:
«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»
É sabido que toda a norma legal carece de interpretação, isto é, que sobre ela seja exercida uma tarefa de determinação do seu sentido para que ela possa ser aplicada corretamente a um caso concreto, uma tarefa de descoberta e atribuição de um significado ao enunciado linguístico da norma.
As normas legais carecem sempre de interpretação, mesmo quando a solução parece óbvia ou é conveniente.
Mais do que aplicar a norma, o aplicador deve aplicar o sentido normativo pretendido pelo legislador, a regulamentação que o legislador pretendeu consagrar. O que implica ir além do texto, colocá-lo no respetivo contexto, recorrer aos fins da lei, às circunstâncias da lei, à mente do legislador. Tudo para lograr descobrir por trás da força das palavras a razão da lei, fixando-lhe o alcance e o sentido.
A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, fatores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente. Ela compreende elementos textuais e extratextuais que permitam alcançar a compreensão de um enunciado.
Desde logo, o chamado elemento literal que é a letra da lei, depois os elementos lógicos, como o histórico, o racional e o teleológico, que no seu conjunto e de modo concatenado, permitirão apreender o sentido da norma.
Segundo o ensinamento de Santos Justo[4], o elemento literal, também dito gramatical, são as palavras em que a lei se exprime. Ele constitui apenas o ponto de partida da interpretação jurídica. As suas funções são duas: afastar a interpretação que não tenha uma base de apoio na letra lei, ainda que mínima; privilegiar de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem. Em relação ao primeiro, há que ter presente a suposição de que o legislador soube exprimir corretamente o seu pensamento e, por isso, serviu-se do vocabulário jurídico adequado. Quanto ao segundo, ocorre em matérias técnicas, onde assume um sentido próprio ou peculiar. Sobre o último, que é o sentido comummente entendido, dir-se-á que o legislador se dirige a todos os cidadãos e é necessário que o entendam.
Quanto aos elementos lógicos, o elemento histórico reflete a história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei) e as circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada; o elemento sistemático advém de a ordem jurídica formar um sistema e a norma dever ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; o elemento racional ou teleológico leva a atender-se ao fim ou objetivo que a norma visa realizar, à sua razão de ser (ratio legis).
Se o legislador entendeu que os prazos de interposição de recurso das decisões proferidas já em pleno período de confinamento não se suspendem (sobre esse aspeto não há dúvida alguma), entendeu seguramente que as razões e as implicações do confinamento não impediam os mandatários de reagir em tempo, através da interposição de recurso, contra as decisões judiciais proferidas nesse contexto e período, isto é, que a actividade dos mandatários de estudo, preparação e apresentação de recursos não estava limitada pelo confinamento ao ponto de justificar a suspensão de prazos por se tratar de um trabalho exclusivo do mandatário que o mesmo pode executar sozinho, em isolamento social, sem necessidade de contacto pessoal com outras pessoas ou ainda que necessitando de um serviço de secretariado que pode perfeitamente funcionar à distância.
O art.º 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, radica na Proposta de Lei nº 70/XIV, de cuja exposição de motivos transparece a intenção de prevenir a proliferação de casos registados de contágio da pandemia da doença COVID-19 através da aplicação de medidas excecionais e de caráter urgente no âmbito do desenvolvimento da atividade judicial e administrativa, à semelhança do que resultou também daquela Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, para o 1º semestre de 2020. Porém, fazendo-o agora de forma mitigada, quando comparado com aquele regime mais intenso da suspensão de prazos, de modo a garantir, mesmo no que respeita aos processos não urgentes, a sua tramitação, quando não é necessário realizar novas diligências. Tirando-se partido da experiência anterior e visando, tanto quanto possível aproveitar os meios disponíveis, foi criada uma série de exceções para assegurar a realização de todos os atos que razoavelmente podiam ter lugar e, assim, viabilizar, tanto quanto possível, o funcionamento das entidades referidas no nº 1 do art.º 6º-B.[5]
Resulta dali, mais concretamente, que existiu preocupação do legislador em não parar totalmente a tramitação dos processos e procedimentos não urgentes, aceitando que o processo possa avançar quando não implique contactos presenciais com sujeitos ou participantes processuais, o que é o caso da interposição de recursos, efetuada por via eletrónica.
Se o confinamento não justificava a suspensão dos prazos para esses atos no respetivo período, o que justificaria a suspensão de prazos absolutamente idênticos mas iniciados ainda antes do confinamento?! Se esses prazos (os relativos a atos que o mandatário podia perfeitamente praticar) não se suspenderam no confinamento, porque se haviam de suspender antes do confinamento?!
Embora a letra da norma do art.º 6º-B, nº 5, al. d), pareça apontar para o futuro, a ratio legis a ter em consideração visa limitar ao essencial a presença física nas diligências e permitir que, desde que haja decisão final, o processo possa prosseguir os seus termos até tal decisão se tornar definitiva, sendo que, nos recursos, quer as decisões tenham sido proferidas antes ou depois da entrada em vigor da norma, a sua interposição que é efetuada via eletrónica, não implica presença física de qualquer pessoa ou interveniente processual no tribunal, pelo que nessa medida, não há justificação alguma para distinção entre decisões anteriores ou posteriores à entrada em vigor daquela Lei nº 4-B/2021.
Como se extrai do citado acórdão da Relação de Évora, se na vigência da legislação mais restritiva em que a generalidade dos prazos está suspensa, das decisões que no âmbito da mesma vierem a ser proferidas, quanto a elas, não se suspendem os prazos de interposição de recurso, não faz sentido, até por maioria de razão, que das decisões já proferidas nos processos em que a legislação até era menos restritiva se faça operar a suspensão do prazo para interposição do recurso, que se encontrava em curso, por tal conduzir a situações de manifesta desigualdade ao deixar paralisadas de produção de efeitos as decisões mais antigas, permitindo-se que decisões mais recentes consigam alcançar tal desiderato em virtude da inexistência de barreiras à contagem de prazos relativos à tramitação e julgamento dos recursos.
O fim visado pelo legislador ao editar a norma contida na al. d) do n.º 5 do art.º 6-B foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do momento em que ocorra a prolação da mesma, por ser essa a interpretação que se deve dar ao texto, mais consentânea e correspondente quer ao pensamento legislativo quer à razão e espírito da lei.
Seria insensato seguir um regime diferente em função da data da sentença quando o que se pretende é evitar a aglomeração de pessoas nos tribunais e viabilizar, tanto quanto possível, a contar da entrada em vigor da lei, a prática de atos processuais, sendo indiferente à interposição do recurso a data em que a sentença foi proferida para efeito da aplicação da citada al. d) do nº 5º do art.º 6º-B.
Este pensamento está também desenvolvido na fundamentação do recente acórdão da Relação de Lisboa de 13.5.2021[6], com o qual concordamos, não havendo razão válida que justifique a diferença de regime que a recorrente agora tenta sustentar.
Igualmente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.4.2021[7] concluiu que «a não suspensão dos prazos “para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento de retificação ou reforma da decisão”, tanto vale para os que tenham por objecto decisões finais anteriores a 22.01.2021, como as proferidas depois desta data, por ser a mesma a razão de ser da lei: atenuar os efeitos negativos da suspensão dos prazos previstos no nº 1 do art. 6-B.».
Seria ilógico e incoerente que a Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, tendo por objetivo regular uma nova suspensão de prazos numa nova (segunda) fase de pandemia/confinamento, mas, avisadamente, de modo a permitir já o desenvolvimento processual nas situações em que o processo pode prosseguir sem intervenção de proximidade entre pessoas (sem os maiores riscos da pandemia), permitisse a suspensão dos prazos de recurso em marcha e suspendesse apenas os prazos de recurso que impugnassem decisões posteriores ao seu início de vigência. Teríamos então uma lei que frustrava o seu próprio objetivo, suspendendo prazos em marcha, relativamente aos quais o ato da parte já estava praticado e o perigo de contágio ultrapassado (a interposição do recurso, por exemplo), sem se entender --- sendo até estranho ao espírito e à sua ratio --- o motivo pelo qual o prazo não pudesse continuar a correr e o tribunal superior não pudesse conhecer do recurso; um desperdício temporal absolutamente incompreensível.
Para além de dali resultar um atraso injustificado de recursos mais antigos relativamente aos recursos mais recentes, nem sequer estaríamos, verdadeiramente, face a uma suspensão de um prazo, pois que o mesmo não se chega a iniciar (para se poder suspender) nas situações em que a decisão recorrida é posterior à vigência da lei. Foi numa perspetiva de abrangência que o legislador da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, se referiu à suspensão ou à não suspensão dos prazos, para os que já se iniciaram e para os que ainda não se iniciaram.
Tratando-se de uma lei excecional e transitória, destinada a rentabilizar, tanto quanto possível, o desenvolvimento do processo, no imediato e, previsivelmente, por um curto e limitado período de tempo incerto, à utilidade direta da al. d) do nº 5 do art.º 6º-B não poderia deixar de estar associada a sua aplicação aos prazos de interposição de recurso, de arguição de nulidades ou a requerimento de retificação ou reforma da decisão que estavam a decorrer no momento em que entrou em vigor.
É contraditório defender-se a não aplicação (alegadamente retroativa) da al. d) do nº 5 do art.º 6º-B aos casos em que a decisão recorrida é anterior ao início de vigência daquele artigo (22.1.2021) e, simultaneamente, sustentar a aplicação do nº 1 do mesmo artigo para justificar a suspensão do prazo na mesma situação de prazo em curso (com decisão anterior) no início de vigência. Estaríamos então perante uma situação em que o art.º 6º-B, simplesmente, não seria aplicável ao caso (seja o nº 1, seja o nº 5, ou mesmo a Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro), em que se imporia considerar que o prazo de recurso já iniciado não poderia deixar de continuar a contar-se até ao seu termo normal (art.º 638º do Código de Processo Civil).
A expressão legal utilizada na al. d) do nº 5 do art.º 6º-B “caso em que não se suspendem os prazos” não tem propriamente uma dimensão temporal; antes prevê para os casos em que haja decisão final no processo.
Que assim é parece também confirmar o processo legislativo de produção da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, que veio fazer cessar o regime de suspensão de prazos processuais.
Voltando ao referido acórdão da Relação de Évora, expende-se ali que a al. d) do nº 5 do art.º 6º-B foi transposta na sua redação da proposta de alteração à proposta de Lei n.º 70/XIV, alteração que foi apresentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista. “Este Grupo Parlamentar, pela palavra do deputado Pedro Delgado Alves, salientava a “necessidade imperiosa de tentar provocar o mínimo de dano ao funcionamento da justiça, procurando acautelar o funcionamento tão normal quanto possível do sistema judiciário e garantir os princípios fundamentais que o norteiam, tendo em conta, naturalmente, as muitas condicionantes a que todos estamos vinculados” reconhecendo ser necessário ter em conta um conjunto de exceções à suspensão dos prazos e diligências “para se poderem praticar aqueles actos que são indispensáveis: os tribunais superiores poderem continuar a tramitar por via electrónica; a prática de actos por via remota quando há condições e acordo das partes para que se assegure que, nas circunstâncias em que todos estão de acordo, ela pode prosseguir; assegurar que as decisões finais podem ser proferidas”.
Também o grupo parlamentar do PSD, pela palavra da deputada Mónica Quintela, defendeu que não obstante a situação epidemiológica não poderia haver uma paralisação da tramitação processual considerando “fundamental para a realização da justiça, designadamente para a recuperação de pendências, na vertente económica, que determinados actos que não careçam da presença dos intervenientes possam ser praticados. Podem ser proferidas sentenças e interpostos os competentes recursos e os tribunais superiores podem continuar a trabalhar, minimizando os prejuízos causados pela pandemia. O que norteou a proposta do PSD foi o compromisso entre a salvaguarda da saúde dos cidadãos e dos demais intervenientes processuais, por um lado, e a possibilidade da prática de actos que permitam o funcionamento possível do sistema judicial, mitigando os graves efeitos que a paralisação, necessariamente, acarreta”.
Por sua vez, na sua intervenção final no debate, o Secretário de Estado da Justiça salientou que eram de acolher as contribuições resultantes das diversas propostas de alteração apresentadas pelas diversas bancadas parlamentares (o que, efetivamente, pelo teor das respetivas votações se constata que em grande maioria veio a acontecer) e, na impossibilidade de referir todas, referiu expressamente que “a proposta para que não se suspendam os prazos de interposição de recurso, de arguição de nulidades ou de requerimento de rectificação nos casos em que seja preferida a decisão final nos tribunais.”
Passe a insistência da análise comparativa do regime inicial da suspensão dos prazos no âmbito da pandemia, que vigorou no primeiro semestre de 2020, com o regime que foi instituído pela Lei n.º 4-B/2021, resulta que no âmbito deste último, sem pôr em causa a regras da segurança das pessoas, pretendeu-se, na mediada do possível, que a máquina do judiciário, continuasse a tramitar e julgar os processos, constituindo, assim, uma das diferenças concretas entre os dois regimes o facto de proferida sentença em processos não urgentes pelos tribunais de 1.ª instância, os prazos para a prática dos atos subsequentes não se suspenderem, devendo os recursos ser interpostos nos prazos legalmente fixados (de 15, de 30 ou de 40 dias, consoante os casos). Existiu preocupação do legislador em não parar totalmente a tramitação dos processos e procedimentos não urgentes, aceitando que possa avançar quando não implique contactos presenciais com sujeitos ou participantes processuais, o que é o caso da interposição de recursos, efetuada por via eletrónica.
Da conjugação de todos os referidos elementos de interpretação resulta que, embora de forma que não se considera rigorosamente perfeita, a norma do art.º 6º, nº 5, al. d) faz jus ao pensamento legislativo de que o fim visado foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do respetivo momento.
Esta interpretação não viola os princípios constitucionais, designadamente os princípio do Estado de Direito, o princípio da segurança e o princípio da confiança.
Se o princípio da confiança vigorasse para as dúvidas interpretativas do tipo aqui em causa, teríamos de aceitar sempre a interpretação da norma que fosse mais favorável ao destinatário porque é nesse sentido que ele tem interesse e é o correspondente resultado que ele acredita sempre que pode alcançar.
Atentos aos limites objetivamente admissíveis da dúvida interpretativa da recorrente, teria ela de concluir, face a uma criteriosa análise hermenêutica, que deveria apresentar o recurso no seu prazo normal, previsto no art.º 638º do Código de Processo Civil, assim acautelando também a segurança no exercício do seu direito, em vez de presumir que o tribunal iria interpretar as normas em crise no sentido favorável à suspensão que resulta do nº 1 do art.º 6º-B.
Não se observa qualquer inconstitucionalidade na interpretação que fazemos dos referidos normativos legais.
É esta a solução mais acertada e também a que, pelo menos maioritariamente, tem sido seguida nesta 3ª Secção (2ª Secção Cível) da Relação do Porto.
Resumindo, a entrada em vigor, no dia 22 de janeiro de 2021, do art.º 6º-B da Lei n° 1-A/2020, de 19 de março, aditado pelo art.º 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, por aplicação da respetiva norma excecional da al. d) do nº 5, não suspendeu o prazo de interposição de recurso que então se encontrava a decorrer.
Apresentadas que foram as alegações do recurso principal no dia 14.4.2021, há muito tempo que o mesmo era extemporâneo, devendo ser rejeitado por preclusão do direito, caducando consequentemente o recurso subordinado da A. (art.º 633º, nº 3, do Código de Processo Civil), o que se declara ao abrigo do art.º (art.º 652º, nº 1, al. b), da mesma lei do processo).
Custas pela R.»
A dúvida suscitada por um ilustre causídico junto da Assembleia da República sobre a interpretação do citado art.º 6º-B, designadamente sobre a aplicação do respetivo nº 5, al. d) e de ter merecido o acolhimento (da dúvida) por dois grupos parlamentares que defenderam a criação de uma norma interpretativa, não foi acompanhada por aquele órgão legislativo que, assim, propendeu para a inexistência da dúvida que, como vimos, só pode significar a interpretação que temos vindo a defender.
É com a lei que os cidadãos e, entre eles, as partes no processo, têm que conformar as suas condutas, designadamente no cumprimento de prazos processuais. Uma promessa política ou o anúncio de uma potencial posição legislativa não libera o cumprimento da lei, nem garante a sua conversão em lei efetiva.
É aquela a interpretação que se afigura cumpridora das boas regras da hermenêutica jurídica, seguindo, aliás, a que nos parece ser a melhor jurisprudência.
Não há desigualdade relevante entre os que confiam em promessas não legisladas e os que cumprem as leis em vigor. São os atos legislativos aqueles que todos estão obrigados a observar.
Este coletivo revê-se na argumentação exposta pelo relator no despacho reclamado, sendo este também o entendimento que cada um dos seus elementos tem seguido na decisão de questões semelhantes noutros processos em que intervieram e eu se julga ser, pelo menos, maioritária nesta 2ª Secção Cível da Relação do Porto.
De resto, como tem sido afirmado, desde há muito tempo, pela jurisprudência, o tribunal não tem que rebater todos os argumentos de que as partes se servem para justificar as suas pretensões, bastando que considere os fundamentos necessários e suficientes justificativos da decisão.
*
II.
Nesta decorrência, delibera-se negar procedência a reclamação, mantendo-se o despacho reclamado.

Custas pela reclamante, dado o seu decaimento, fixando-se a taxa de justiça em € 150,00 (Tabela II do Regulamento das Custas Processuais).
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Porto, 2 de dezembro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] A sentença recorrida, proferida no dia 30.11.2020, foi notificada às partes com elaboração de notificação de 4 de janeiro de 2021.
Sendo o prazo de recurso de 30 dias, terminaria no dia 8 de fevereiro de 2021 (art.ºs 138º e 638º, nº 1, do Código de Processo Civil). Em caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, com apelo à gravação da prova, acrescem 10 dias, pelo que o prazo terminaria no dia 17 de fevereiro seguinte (art.º 638º, nº 7, do mesmo código). O ato poderia ainda ser praticado até ao terceiro dia útil seguinte, mediante o pagamento de multa (art.º 139º, nº 5, do mesmo código), ou seja, até ao dia 22 de fevereiro.
O recurso principal foi interposto no dia 14 de abril de 2021.
Terá sido pressuposta a suspensão do prazo de recurso ao abrigo do nº 1 do art.º 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, aditado pelo art.º 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, vigente entre os dias 22 de janeiro de 2021 e 6 de abril de 2021 (cf. art.º 6º da Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril).
No entanto, existe a possibilidade de o recurso principal não ser admitido, por ser extemporâneo ao abrigo da al. d) do nº 5 do citado art.º 6º-B, caso em que fica prejudicado também o conhecimento do recurso subordinado (art.º 633º, nº 3, do Código de Processo Civil).
[2] Realce nosso.
[3] O realce a negrito é nosso.
[4] Introdução ao Estudo do Direito, 11.ª ed., 2020, Petrony Editora, págs. 312-313.
[5] Veja-se, neste sentido, com maior desenvolvimento, o acórdão da Relação de Évora de 13.5.2021, proc. 2161/19.6T8PTM.E1, in www.dgsi.pt.
[6] Proc. 598/18.7T8LSB.L1-8, in www.dgsi.pt.
[7] Proc. 263/19.8YHLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.