Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
531/18.6T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
TOMADOR
SEGURADO
DEVERES
Nº do Documento: RP20240220531/18.6T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O tomador do seguro e o segurado devem, dentro dos possíveis, mitigar as consequências danosas do sinistro.
II - O incumprimento deste dever ou o seu cumprimento defeituoso, de forma dolosa, podem, se previstos no contrato, determinar a perda total da cobertura, quando daí resulte dano significativo para o segurador.
III - Compete a este último o ónus da prova desse dolo.
IV - Não se provando tal requisito, a referida exclusão de cobertura é de julgar improcedente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 531/18.6T8PVZ.P1



Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntas: Anabela Andrade Miranda;
Lina Castro Batista.

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Sumário:

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

1- A..., Sociedade Unipessoal, Ldª, intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra B..., Ldª, e C... ([1] ), pedindo que estas últimas sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de 62.330,31€, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.

Baseia este pedido, em síntese, na circunstância de já ter despendido o referido valor na reparação dos danos decorrentes de um sinistro rodoviário que ocorreu em Espanha, durante o transporte de uma carga de cobre, que, enquanto transportadora sucessiva, incumbiu a 1ª Ré de realizar.

Todavia, não obstante a responsabilidade das Rés na reparação de tais danos, nenhuma delas se dispôs a reembolsá-la daquele valor, apesar de interpeladas para o efeito.

2- Contestou a 1ª Ré, aceitando ter celebrado o contrato de transporte, mas não a totalidade da reparação pedida. Isto porque, em resumo, transferiu para a C..., o risco inerente à sua atividade de transportadora, sendo que, quanto aos danos pretensamente verificados no semi roboque que fazia o transporte, apenas aceita a reparação dos danos relacionados com o sinistro.

Conclui em conformidade em esta tese.

3- Por sua vez, a demandada, C..., também contestou reconhecendo a celebração com a 1ª Ré do contrato de seguro de responsabilidade civil por danos causados na atividade de transportadora, mas negando que se trata de um seguro de carga, concluindo pela sua ilegitimidade. Exceção que, de resto, também se verifica em relação à A., uma vez que esta não demonstrou ter efetivamente pago qualquer quantia a título de indemnização e referente ao transporte em causa.

Por outro lado, refere ter havido negligência grosseira da transportadora, porquanto não tomou, como devia, qualquer medida para a imediata salvaguarda da integridade da carga.

Em suma, pede a procedência das exceções por si invocadas e, caso assim não se entenda, a sua parcial absolvição do pedido na decorrência da exclusão e ausência de cobertura de responsabilidade da apólice. Sem prescindir, sustenta que deve ser julgada provada a existência da franquia contratual convencionada, com a sua consequente absolvição parcial do pedido. E, sempre sem prescindir, dada a impugnação deduzida, pede que o pedido seja julgado totalmente improcedente, com a sua total absolvição desse mesmo pedido.

4- A A. respondeu pedindo a improcedência de todas as exceções invocadas.

5- Aperfeiçoada a petição inicial, foi, depois, proferido despacho no qual, para além do mais, se dispensou a audiência prévia, se julgaram improcedentes as exceções de ilegitimidade arguidas e se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo ainda sido identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

6- Suscitado o incidente de habilitação de cessionário, foi nele admitida a substituição da A. pela cessionária, D... Insurançe A/S.

7- Por outro lado, demonstrada a insolvência da 1ª Ré, foi, quanto a ela, julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide.

8- Finalmente, realizou-se o julgamento, após o qual foi proferida sentença na qual se julgou a presente ação improcedente, por não provada, absolvendo a Ré, C..., do pedido.

9- Inconformada com esta sentença, dela recorre a referida sociedade, D... Insurançe A/S, que termina a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“I- A decisão proferida contém erros de julgamento e nulidades;

II- 1ª Nulidade invocada: Foi julgado não provado o que consta da alínea c) dos factos não provados, apesar dos documentos juntos de fls. 228 e 229 e apesar do depoimento da testemunha AA (depoimento registado na ata da audiência de 29-3-2022) que os confirmou.

III-Acontece que, face à acérrima impugnação deste facto pela ré seguradora, a autora, para esclarecer esta questão, pediu a notificação da E... LIMITED, para que esta confirmasse o recebimento da quantia de € 59.008,56;

IV- O Tribunal deferiu o pedido formulado, mas reteve a notificação até que fosse apresentada a tradução daqueles documentos, o que ocorreu. Apresentada a tradução em 1-10-2019, o tribunal não ordenou a notificação, sinal que estaria esclarecido quanto a esse facto;

V- Porém o Tribunal viria a dar o facto como não provado, para surpresa da autora, verificando-se então, só então, a necessidade da expedição da notificação que o tribunal não poderia omitir.

VI- Resulta daqui que ou o Tribunal corrige a decisão de facto que se impugnará, ou então tem que ordenar a notificação que não promoveu, apesar de por despacho ter considerado pertinente fazê-lo.

VII- Até que a decisão seja corrigida ou a notificação ordenada, a decisão é nula, já que é ininteligível. Com efeito os fundamentos estão em oposição com a decisão e ocorre ambiguidade/obscuridade que torne a decisão ininteligível (artigo 615º nº1 alínea c) do CPC);

VIII- 2ª nulidade: O Tribunal considerou não provado o seguinte facto: “a Guardia Civil deslocou-se ao local do acidente após o telefonema identificado em 19)”;

IX- Acontece que esse facto contém grave erro de julgamento e de fundamentação, o que torna a decisão ininteligível.

X- Na parte da motivação da decisão da facto consta o seguinte: “…aquando da abordagem dos ciganos, sendo-lhe recomendado para chamar a polícia; referiu que chegou a sair do camião com um ferro para afastar os indivíduos, a polícia esteve lá várias vezes e mandou-os embora, o que fizeram na ocasião, mas regressaram, verificando-se, pela manhã, que tinha sido levado cobre e que havia uma tesoura de cortar no local, o que levou o patrão a chamar a Guardia Civil.”

XI- Mas depois também se lê: “…a versão do acidente e dos contornos do assalto mostraram-se credíveis, contribuindo para a fixação dos pontos 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22) e 23) da fundamentação de facto. Não referiu qualquer deslocação imediatamente subsequente ao acidente, levando à alínea a) dos factos não provados.”

XII- Ora, uma e outra das afirmações anteriores são incompatíveis, pois num o Tribunal diz que a polícia foi ao local, e noutro diz que não foi ao local depois do acidente. Com efeito não se pode assumir que a policia esteve no local do acidente e, depois, dizer-se que a policia não se deslocou ao local depois do acidente.

XIII-, mas a verdade é que só poderia ir ao local depois, porque antes do acidente não havia nada; a decisão é, por isso, nula por ser ininteligível, nos termos do nº1 da alínea a), b), e c) do artigo 615º do C.P.C

DO RECURSO

DA DECISÃO DE FACTO

XIV- O Tribunal considerou provado o facto que identifica como 39: “A primeira Ré não providenciou pela recolha da mercadoria durante o período noturno, nem tomou outras medidas, para além das referidas em 19) e 21), para evitar o seu desaparecimento [resposta aos artigos 16º, 20º da contestação da segunda Ré].”

XV- Esta parte da decisão não contém um facto mas sim uma conclusão, ao mesmo tempo que retira importância aos esforços do motorista e entidade patronal para manter a carga em segurança.

XVI- Esse facto “oferece” à ré seguradora a procedência da excepção, sem alegar factos que possibilitassem perceber de que forma poderia ter sido protegida a carga.

XVII- A ré seguradora imputou culpa ao transportador por só ter chamado a polícia no dia seguinte, o que é redondamente falso. Isso resulta essencialmente da certidão de fls. 77 (que faz registo das chamadas no próprio dia do acidente) e do depoimento de BB, depoimento registado na ata de 29-3-2022, que disse o seguinte: “Minuto 4.10: “depois do acidente comuniquei á entidade patronal…entretanto como estava fora da estrada a guardia civil esteve lá e disse que não podia fazer nada estava fora da via publica…a entidade patronal pegou noutro camião para carregar…estive lá a aguardar toda a noite…durante a noite tentaram assaltar várias vezes e fiz vários telefonemas…a guardia civil veio lá duas ou três vezes….fui ameaçado…era ciganos ou qualquer coisa..”

XVIII – Acresce que para além de ter sido chamada a polícia, a 1ª ré procurou, sem sucesso, contratar segurança. Isso resulta do depoimento do motorista aos minutos 6 e 19, altura em que afirmou: “não podia fazer mais nada para proteger a carga…tentaram arranjar empresa de segurança…não conseguiram nada nesse momento”

XIX- Ainda no minuto 16.20 do seu depoimento referiu “que o acidente ocorreu num sábado e que as autoridades não agiram no sentido de remover a carga”;

XX- Ainda ao minuto 19 e ss explicou que:

- o patrão se deslocou com o irmão de Amarante ao local do acidente, a quase 600km.

-Que contratou uma retroescavadora, levou um mecânico para poder trazer o carro e o resto da carga, onde se apresentou com semirreboque e máquina capaz de recolher a carga que sobrava, o que afirmou ao minuto 19 e ss do seu depoimento.

XXI- Ora tendo em conta aquele depoimento, a certidão de fls.77, as fotografias e factos provados nºs 19,20,21,22 e as circunstâncias do acidente, tem que concluir-se que o facto 39 dos factos provados foi mal julgado, com erro notório, porque não considerou aqueles concretos meios de prova, em particular o depoimento da testemunha BB. Assim o facto provado deveria ter o seguinte conteúdo:

“A primeira Ré, para além das medidas referidas em 19) e 21), chamou a polícia que não colaborou na proteção e recolha da carga, porque não estava a obstruir a via publica, procurou contratar segurança para evitar o desaparecimento da carga, mas em vão, por ser sábado, tendo a recolha das mercadorias ocorrido por volta das 7 da manhã do dia seguinte ao acidente após viagem de Amarante ao local do acidente, que se iniciou após a organização dos meios necessários para a recolha

XXII-AMPLIAÇÃODAMATÉRIADE FACTO-1º FACTO A ADITAR: Importa evidenciar na matéria de facto provada que o acidente se verificou num sábado, o que naturalmente dificulta a contratação de meios para proteger a carga.

XXIII- Ao minuto 16,30 e 19`do depoimento a testemunha BB, referiu que não foi possível contratar transportador por ser sábado, pelo que deve ser aditado o seguinte facto: “O dia da ocorrência era um sábado pelo que não foi possível contratar transportador e/ou segurança”

XXIV- 2º FACTO A ADITAR: Do depoimento do motorista resulta que a mercadoria caiu para lá da berma (ao minuto 12,50 disse que “…a mercadoria foi para o interior do campo, do lado direito do camião…”), o que aliás está retratado nas fotografias apresentadas no requerimento de 22-12-2021. Tivesse a carga obstruído a via e, certamente, as autoridades teriam reunido meios oficiais para a sua recolha. Não sendo assim, as autoridades não se envolveram na recolha das mercadorias, apesar de se terem deslocado ao local três vezes

XXV- Esta circunstância é importante para se perceber que a primeira ré não tinha facilidade em reunir os meios necessários à realização dessa operação, pelo que, com base naquele depoimento e documentos, deve aditar-se o seguinte facto: “Que as autoridades não agiram no sentido de remover/recolher a carga, porque elas não obstruíam a via.”

XXVI- ERRO DE JULGAMENTO DA ALINEA A) DOS FACTOS NÃO PROVADOS: (“a Guardia Civil deslocou-se ao local do acidente após o telefonema identificado em 19))

XXVII- Acontece que esse facto contém grave erro de julgamento e até de fundamentação, já que o Tribunal assume, erradamente, que a polícia não foi ao local após o incidente.

XXVIII- Essa conclusão/DECISÃO, pode estar na génese da convicção do Tribunal ao considerar que considerou que o motorista agiu com negligência grosseira.

XXIX- A resposta a este facto deve privilegiar a prova obtida por meios de prova diretos, pelo que é fundamental para a decisão o depoimento do motorista BB (ata de 29-3-2022), testemunha considerada credível (Ver motivação).

XXX- Ao minuto, 4, 4.10, 5,02 e 5,17 (já transcritos atrás) do depoimento da aludida testemunha, aquele confirmou que a polícia se dirigiu ao local três vezes e que entregou listagem de chamadas feitas pelo seu telemóvel ( ver certidão de fls.77).

XXXI- a propósito da visita da polícia chegou a dizer que a polícia esteve no local e que até o viu com um ferro na mão, de que se tinha munido para se defender dos assaltantes que ali apareceram, uma hora depois do acidente, numa carrinha Peugeot vermelha.

XXXII- Isso resulta, pelo menos, das seguintes passagens;

- ao minuto 31m30s disse: “uma da vez cheguei cá fora com um ferro na mão…e a policia aconselhou a ficar dentro da cabine…”(nesta altura a mandatária da 2ª ré insurgiu-se com a testemunha)

- ao minuto 33 a testemunha disse: “…a única coisa que eles fizeram foi mandá-los embora…perguntou o que queriam e eles disseram que só estavam a ver… e a policia mandou embora” ( isso aconteceu quando ele tinha saído com um ferro na mão que era aquilo de que estava munido face ao risco que sentia)

- Também esclareceu que aquelas pessoas se deslocavam numa carrinha vermelha (minuto 36 e ss) ”andavam numa carrinha destas de nove lugares… peugeot… vermelha”...” eram cinco ou seis”…”não a policia não identificou porque só estavam a ver e não estavam a fazer nada

XXXIII- Disse ainda que nada mais podia fazer contra as ameaças sofridas e que quer ele quer o patrão tentaram arranjar segurança, mas não conseguiram (Minuto 19 do depoimento do motorista).

XXXIV- Ora deste depoimento, do auto de ocorrência, da listagem de telefonemas (certidão de fls.77) resulta que o facto da alínea a) dos factos não provados deverá ser direcionado para os factos provados. Considerar esse facto provado é, ainda, compatível com os factos provados 19, 20, 21 e 22

XXXV- ERRO DE JULGAMENTO DAS ALINEA B) e C) DOS FACTOS NÃO PROVADOS

XXXVII- Diga-se que a discussão deste facto não faz sentido a partir do momento em que a 2ª ré se disponibilizou a ressarcir a E..., conforme consta do ponto 41 dos factos assentes.

XXXIX- Durante os articulados, a autora foi notificada para apresentar documentos relativos a esse pagamento, o que fez através da junção aos autos de um recibo e um comprovativo de transferência (fls.228 e 229).

XL- Esses documentos chegaram a ser discutidos em julgamento, com testemunhas, que são funcionários da A... (anteriormente autora e que cedeu créditos à D... Insurance A/S), nomeadamente com AA, cujo depoimento está identificado na ata de audiência e julgamento de 29 de março de 2022, e foi registado com início às 11h40 e fim às 12h24, e ao minuto 31 confirmou que esse pagamento foi feito pela A... ( disse: “isso é uma transferência e uma carta da E... a dizer que recebeu o dinheiro”) e ao minuto 33,47 e ss explicou a ligeira diferença entre o valor comunicado pela E... e o efetivamente pago, dizendo: “Tenho ideia que estes 190€ de diferença têm a haver com juros entre a data do documento e a data em que pagou…”

XLI- Este depoimento de AA foi seguro, credível, alicerçado em documentos que sempre funcionariam como princípio de prova pelo que esses factos das alíneas B) e C) devem transitar os factos não provados para factos provados.

RECURSO DE DIREITO

XLII- Na decisão recorrida a Meritíssima fundamenta a absolvição da ré seguradora da seguinte forma:

Verifica-se que a solução adotada pelo legal representante da B... constituiu uma medida inadequada, por extemporânea, uma vez que o lapso de tempo necessário à deslocação de novo semireboque, com meios de recolha da mercadoria sinistrada, para completar o transporte interrompido com o acidente, foi excessivo, como se viu pelo resultado, já que no período intermédio desconhecidos aproveitaram as circunstâncias para se apropriar de uma boa parte do cobre. Aliás, abandonando a mercadoria à mera vigilância do motorista, que não dispunha de meios capazes de garantir a sua segurança e integridade, tanto mais que a mesma se encontrava fora do semireboque, espalhada na berma e no terreno adjacente, tornada mais visível, o legal representante da Ré agiu com ligeireza, pois era previsível que aquelas circunstâncias suscitassem o interesse de terceiros e que a obscuridade do período noturno fosse propícia a um assalto. Impunha-se que o legal representante da transportadora diligenciasse pela contratação de pessoal que removesse em tempo útil aquela mercadoria, por forma a que não ficasse exposta durante a noite e que a transportasse para local seguro, designadamente, para parque fechado e vigiado ou armazém, o que não fez. Temos de considerar, como a Ré C..., que existiu um comportamento da segurada que traduz negligência grosseira, o que conduz à aplicação da cláusula 4.2 das condições especiais da apólice e leva à exclusão da sua responsabilidade.

XLIII- Na construção da decisão a Meritíssima considerou jurisprudência que citou sem a cotejar adequadamente com o caso concreto.

XLIV- Note-se que a ré seguradora no artigo 14º da sua contestação alegou, apenas, que a 1ª ré só no dia seguinte é que chamou a polícia o que, como vimos, é falso.

XLV- Tendo a polícia sido informada, não deveria ter sido julgada procedente essa excepção e não deveria ter sido excluída a responsabilidade da seguradora.

XLVI- Apesar disso o tribunal, influenciado pela citada jurisprudência, considerou que a entidade patronal não fez tudo o que estava ao seu alcance, sem, no entanto, dizer, em concreto, o que devia ter sido feito.

XLVII- A Meritíssima limita-se a dizer que a deslocação de Amarante a Burgos foi demorada (no que a recorrente discorda, já que assegurar um semi-reboque, uma restroescavadora e conseguir estar às 7 da manhã do dia seguinte em Burgos, é fantástico), e que não assegurou outros meios de segurança.

XLVIII- Há no entanto que considerar que era um sábado, que a mercadoria não obstruiu a estrada (aí as autoridades teriam feiro a remoção) e que a policia se demitiu de qualquer apoio ou vigilância.

XLIX- O Tribunal também não pondera que tendo o acidente ocorrido ao final da tarde e que o furto se iniciou poucas horas depois, sempre seria impossível chegar a tempo por muito rápido que tivessem agido (os meios estava a 600km de distância).

L- A verdade é que a 1ª ré não conseguiu contratar outros meios, nomeadamente segurança, porque era sábado.

LI- Isto posto é forçoso concluir que a ré fez tudo o que conseguiu para evitar o sucedido.

LII- E tudo foi feito pela 1ª ré como pelo seu motorista que, contra tudo e contra todos, permaneceu no camião, só não conseguiu evitar o furto parcial da carga.

LIII- O motorista pediu ajuda à Polícia, telefonou ao patrão, não abandonou a viatura, foi ameaçado. Ora, que podia ele fazer de diferente ?

LIV- é de admitir que a carga não foi toda furtada porque o motorista esteve presente e vigiou e porque a polícia se deslocou ao local três vezes, após os seus telefonemas.

LV- Isto posto, se na jurisprudência citada um motorista abandonou a viatura durante 17 horas, então as situações não são comparáveis porque o motorista da 1ª ré não abandonou a viatura em momento algum.

LVI- E assim sendo deve a 2ª ré suportar o valor reclamado, porque nada poderia ter sido feito para evitar o furto cujo risco a ré C... assegurou.

LVII- De facto o contrato de seguro é aleatório, impõe riscos aos contratantes, não devendo a seguradora afastar a sua responsabilidade com alegações vagas e insuficientes, nem pode ser o segurado a provar um facto negativo, sem fim, pois haverá sempre um se…

LVIII- Nestas circunstâncias não pode o Tribunal absolver e ré C... do pedido no pedido.

LIX- A RÉ C... deve, pelo menos, pagar uma parte do valor reclamado (nunca menos de 50% e a arbitrar por equidade), já que a atuação do transportador foi empenhada, interessada, nem foi grosseiramente negligente.

LXI- Quanto ao direito de regresso tratado subsidiariamente na sentença, sempre se dirá que não há dúvida que a D... Insurance A/S adquiriu de A... o direito que exerce nesta ação, direito que veio a transmitir-se sucessivamente, tal como ficou provado quer por documentos quer por depoimentos prestados nos autos.

LXII- Atento exposto devem ser conhecidas as nulidades invocadas, devem alterar-se a decisão de facto no sentido proposto e deve ser modificada a decisão de direito no sentido de não dever dela constar “que existiu um comportamento da seguradora que traduz negligência grosseira, o que conduz à aplicação da cláusula 4.2 das condições especiais da apólice e leva á exclusão da sua responsabilidade”.

LXIII- A segurada não agiu com negligência grosseira, antes foi bastante diligente, cumpriu a obrigação de meios.

LXIV- A decisão recorrida viola as seguintes disposições:

- Artigo 615 nº1 alíneas a) b) e c) do C.P.C;

- Artigo 607º nº4 do C.P.C;

- Artigo 342º nº2 do C.P.C ( ónus da prova da exclusão da responsabilidade a cargo da seguradora)”.

Termina pedindo que se revogue a sentença recorrida, condenando a Ré no pagamento da indemnização reclamada.

10- A Ré seguradora respondeu pugnando pela solução contrária. Isto porque, a seu ver, nem ocorrem as nulidades suscitadas, nem deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto, nem o direito deve ser diferentemente aplicado.

11- Recebido o recurso nesta instância, foi decidido recolher informação e elementos documentais comprovativos da mesma, junto da sociedade, E... Limited, com Sucursal em Espanha, no sentido de saber se esta recebeu da A. (A..., Sociedade Unipessoal, Ldª), a quantia que esta refere ter-lhe pago.

12- Obtidos esses elementos e dados a conhecer os mesmos às partes, importa, então, deliberar sobre o objeto deste recurso.


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II- Mérito do recurso

A- Definição do seu objeto

O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º nº 2, “in fine”, 635º, nº 4 e 639º nº1 do CPC].

Assim, observando este critério no caso presente, o objeto deste recurso reconduz-se, essencialmente, a saber se:

a) Ocorrem as nulidades suscitadas pela Apelante;

b) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;

c) A A. tem direito ao pagamento da quantia que reclama.


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B- Fundamentação

B.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

 1. A Ré B... é uma sociedade comercial que se dedica aos transportes rodoviários de mercadorias.

  2. A Ré celebrou um contrato de seguro com a seguradora C..., com sede em ...: ..., na Alemanha, no âmbito da cobertura de seguro CMR, apólice n.º ...16 [cuja cópia se encontra junta a fls. 127 e cujo teor aqui damos por reproduzido], em virtude da atividade por si desenvolvida, sendo representada em Portugal pelo F..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., apartado..., ... Vila Nova de Gaia.

  3. A apólice de seguro contratada prevê a cobertura adicional da responsabilidade da Ré B... pelos “Danos sofridos por veículos confiados de terceiros” (constantes da listagem anexa à apólice), tais como reboques, sendo estabelecida, no ponto 4 dessa cobertura, uma franquia a cargo do tomador de seguro de 1.000,00€ por sinistro.

  4. Na cláusula 1ª do anexo das condições especiais da apólice referentes à cobertura identificada em 3) consta “a seguradora garante a cobertura dos danos sofridos por veículos de terceiros confiados ao tomador do seguro para a sua utilização, tais como reboques, semi-reboques, caixas móveis, contentores com chassis ou outros veículos de similar utilização, desde que rebocados ou utilizados em conjunto com um veículo de transporte do tomador que já esteja incluído na cobertura, mas não veículos tais como tratores de conjuntos articulados ou veículos empilhadores, independentemente da existência de um contrato.

  5. Nas condições particulares da apólice identificada em 2) ficou estabelecida a franquia de 500,00€ por sinistro.

  6. Na cláusula 4.2 das condições especiais da apólice identificada em 2) ficou estabelecido “ficam excluídas da cobertura do seguro as reclamações provenientes ou que sejam consequência de (…) danos causados por negligência grosseira do tomador de seguro e/ou do segurado, seus representantes legais, empregados, procuradores ou chefes de sucursais ou resultantes do incumprimento doloso das obrigações assumidas pelo tomador de Seguro/segurado, no âmbito do presente contrato de seguro”.

  7. Consta da cláusula 5.3 das condições especiais da apólice identificada em 2) ser obrigação do tomador/segurado fazer o necessário para evitar ou reduzir o sinistro colocando à disposição do segurador toda a informação necessária e atuar de acordo com as instruções do mesmo, se as houver.

  8. A declaração CMR emitida, junta a fls. 8 verso [cujo teor aqui damos por reproduzido], continha a indicação do peso da mercadoria (peso bruto 24.780Kg), assim como o tipo de mercadoria transportada (cobre), ali constando, como expedidora, a sociedade G..., com sede em ..., Barcelona, Espanha, e destinatária a sociedade H..., sita em ..., Portugal.

  9. A expedidora identificada em 8) incumbiu a sociedade I..., SL da deslocação de cinco bobines de cobre entre as suas instalações e as da destinatária sitas em ..., Portugal.

  10. Por sua vez, I..., SL incumbiu a Autora de levar a cabo a sua execução.

11. A Ré B..., no âmbito da atividade por si desenvolvida, transportes rodoviários de mercadorias (nacionais e internacionais), foi contratada pela Autora para o transporte de uma mercadoria – cobre.

  12. O preço da mercadoria identificada em 8), com o peso líquido total de 24.604 kg, ascendia a 138.982,53€ (sem IVA), correspondente ao valor unitário de 5,648778€/kg.

  13. No dia 25 de Março de 2017, no decurso da viagem iniciada em ..., Barcelona, Espanha, com destino a ..., Portugal, e realizada com o veículo trator com a matrícula ..-PQ-.., pertencente à Ré B..., e o reboque R-....-BCL, ocorreu um acidente em virtude do qual a carga transportada (cobre) terá caído, ficando na berma da estrada.

  14. O reboque identificado em 13) pertencia a J..., S.A..

  15. Cerca das 17h00 do dia referido em 12), ao km 50 da Estrada ... em ..., Burgos, Espanha, devido à chuva miudinha que diminuía a visibilidade, ao pavimento molhado e a distração do motorista, o PQ saiu da faixa de rodagem entrando na berma.

  16. Devido ao declive da berma e à perda de controlo do PQ pelo respetivo motorista, o reboque referido em 13) caiu num terreno adjacente tendo ficado danificado.

  17. Na sequência do referido em 16), o cobre transportado no reboque caiu do estrado para a berma e terreno.

  18. Após o despiste, o motorista do PQ, BB, comunicou o sucedido à primeira Ré.

  19. De seguida, pelas 17h07m, através do número de emergência 062, o motorista contactou a Guardia Civil.

  20. Entre as 21h20m do dia 25 e as 6h07m do dia 26 de Março, indivíduos, cuja identidade não foi possível apurar, subtraíram e fizeram seus 9.484 kg de cobre que se encontrava espalhado no local referido em 17).

  21. No período referido em 20), o motorista do PQ telefonou por três vezes para a Guardia Civil relatando que havia vários desconhecidos que estavam no local com o intuito de fazerem sua a mercadoria e o tinham ameaçado.

  22. A Guardia Civil aconselhou o motorista a não reagir e a recolher-se no camião, o que este fez.

  23. No dia 26 de Março de 2017 pelas 7h00, o legal representante da Ré B... chegou ao local referido em 13) com outro semi-reboque, recolheu, com ajuda de uma máquina, a mercadoria que se encontrava espalhada pelo terreno que marginava a estrada, transportando-a, de seguida, para as suas instalações.

  24. O legal representante da Ré B... apresentou denúncia formal dos factos referidos em 20) às autoridades policiais espanholas de Verin (Orense) em 11 de Maio de 2017.

  25. Da mercadoria recolhida, 15.120 kg de fio de cobre estava danificada.

  26. A mercadoria referida em 25) apresentava detritos (terra, madeiras e plástico) assim como cortes e deformação.

  27. Em 5 de Abril de 2017 a mercadoria referida em 25) regressou às instalações da expedidora identificada em 7).

  28. Após realização de diligências com intervenção de peritos nomeados pela Autora (K...) e pela segunda Ré (L...) foi apurado que o peso da mercadoria referida em 25) e, por dedução, a referida em 20), concluindo-se que esta, após dedução de € 18/kg de margem comercial, valia 59.008,46€.

  29. Em 24 de Maio de 2017 K... emitiu, em nome da Autora, a fatura nº ...42, no montante de 3.158,40€, acrescida de 726,43€ de IVA relativamente ao preço dos serviços referidos em 28).

  30. Na sequência do resultado da perícia referida em 28) a sociedade G... SLU acionou o seguro que celebrara com M..., S.A. reclamando a quantia referida em 27).

  31. Em 23 de Junho de 2017, a seguradora referida em 30) pagou a G... SLU 56.008,46€, tendo deduzido o montante de 3.000,00€ correspondente a franquia.

  32. Em 25 de Maio de 2017, G... reclamou a I..., SL o pagamento da franquia referida em 31).

  33. Em 8 de Junho de 2017 E... Limited, seguradora de I..., SL, pagou a G... SU a quantia de 3.000,00€.

  34. E... Limited reclamou da Autora a quantia de 59.008,56€ de indemnização pelos danos na mercadoria, por referência ao acidente referido em 13).

  35. Por missiva datada de 5 de Fevereiro de 2018, a Autora reclamou da Ré B... o valor referido em 34), enviando a fatura nº ...32 datada de 31 de Janeiro de 2018.

  36. Respondendo à missiva referida em 35), a primeira Ré devolveu a fatura respondendo “a B... detinha, como detém uma apólice de seguro válida e que garante este tipo de circunstâncias, tendo de imediato acionado as coberturas que a mesma garantiam” e concluiu “deverá ser a cobertura da apólice (…) a suportar toda e qualquer indemnização”.

  37. Com data de 25 de Fevereiro de 2018 a Autora emitiu em nome da primeira Ré a fatura nº ...51, no montante de 2.700,69€, acrescido de 621,16€ de IVA, relativo ao custo da reparação do reboque identificado em 13).

  38. O reboque identificado em 13) não fazia parte da lista mencionada em 3).

  39. A primeira Ré não providenciou pela recolha da mercadoria durante o período noturno, nem tomou outras medidas, para além das referidas em 19) e 21), para evitar o seu desaparecimento.

  40. Com data de 13 de Dezembro de 2017 a segunda Ré remeteu à primeira Ré uma missiva, invocando a cláusula identificada em 7) e a exclusão da cobertura, informando que, de acordo com aquela cláusula, devia empenhar-se em evitar qualquer perda e tomar todas as medidas necessárias para proteger as mercadorias, por transportar cinco bobinas de cobre de valor muito elevado era importante e indispensável atuar imediatamente e que um dia depois do acidente fora tarde demais, porque durante a noite algumas pessoas haviam roubado uma boa parte das mercadorias.

  41. A Interveniente Principal emitiu um documento intitulado “Claim Release Form”, que corresponde a uma declaração de quitação, em nome da seguradora E..., Limited, propondo-se pagar-lhe 5.606,04€ relativamente à mercadoria referida em 25) tendo em consideração o custo de fio de cobre na origem de 5.630,77€ por tonelada e a dedução de 5.260,00€ por tonelada correspondente ao valor comercial dos salvados.

  42. A seguradora referida em 41) não aceitou o referido valor.


*


B.2- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:

a) A Guardia Civil deslocou-se ao local do acidente após o telefonema identificado em 19);

b) I... reclamou junto da seguradora identificada em 33) pagamento de 59.008,46€, que lhe foi pago;

  c) o valor referido em 34) foi aceite pela Autora e pago no dia 19 de Dezembro de 2017;

d) a Autora suportou o valor referido em 37);

  e) a polícia apenas foi avisada pelas 8h da manhã do dia 26 de Março de 2017.


*

B.3- Análise dos fundamentos do recurso

1- Começa por nele estar em causa, como vimos, a questão de saber se a sentença recorrida é nula. Isto porque o Apelante considera que se verifica esse vício, em virtude de não terem sido julgadas demonstradas as afirmações descritas nas als. a) e c), que acabámos de transcrever. A primeira, porque era inesperada, depois da prova produzida e de não ter sido dado seguimento ao requerimento probatório por si apresentado no sentido de a comprovar. E a segunda, porque é ininteligível e contra os fundamentos invocados a seu respeito na referida sentença.

Ora, o que deve dizer-se, em primeiro lugar é que, se nulidade houve, em relação à decisão tomada a respeito da primeira afirmação indicada, por não ter sido completada a instrução a seu respeito, como havia sido requerido pela Apelante (o que não temos por líquido, com reporte à aludida sentença), essa é questão que está neste momento ultrapassada por tal instrução já ter sido ordenada por esta instância. E, assim, estando prejudicada, não se justificam maiores divagações sobre a matéria. Seriam completamente inúteis e, como tal, proibidas (artigo 150.º, do CPC).

Em relação à segunda afirmação, é para nós líquido que a sentença recorrida não enferma do vício que a Apelante lhe imputa.

Com efeito, se é certo que nessa sentença se refere a versão do motorista do camião acidentado, ou seja, da testemunha, BB, já não se assume aí essa versão (como sendo a do tribunal) quanto à presença da Guardia Civil no local do acidente, imediatamente após este ter ocorrido. Pelo contrário, refere-se que o depoimento de tal testemunha foi algo confuso particularmente no que diz respeito a esse aspeto. E, assim, não se verificando a contradição ou ininteligibilidade referida pela Apelante, não se julga preenchida a previsão contida no artigo 615.º, n.º 1., al. c), do CPC, pelo que improcede este fundamento do recurso.

2- Avancemos, agora, para a análise da questão seguinte: saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto.

Comecemos pela análise da afirmação constante do ponto 39 dos Factos Provados.

Refere-se nesse ponto o seguinte: “A primeira Ré não providenciou pela recolha da mercadoria durante o período noturno, nem tomou outras medidas, para além das referidas em 19) e 21), para evitar o seu desaparecimento”.

Alega a Apelante que esta redação é conclusiva, além de que não reflete a prova produzida; designadamente, o depoimento da testemunha antes indicada (BB), a certidão de fls.77, as fotografias e factos provados nºs 19, 20, 21, 22 e as circunstâncias do acidente”. E, assim, requer que daquele ponto passe a constar o seguinte: “A primeira Ré, para além das medidas referidas em 19) e 21), chamou a polícia que não colaborou na proteção e recolha da carga, porque não estava a obstruir a via publica, procurou contratar segurança para evitar o desaparecimento da carga, mas em vão, por ser sábado, tendo a recolha das mercadorias ocorrido por volta das 7 da manhã do dia seguinte ao acidente após viagem de Amarante ao local do acidente, que se iniciou após a organização dos meios necessários para a recolha”.

Ora, como é facilmente compreensível, este pedido não pode ser acolhido. E não pode ser acolhido, desde logo, porque para além desta factualidade não ter sido oportunamente alegada pela A., aquilo que esta pretende é que se registe a versão contrária àquela que foi alegada pela Ré, C..., na sua contestação, consubstanciando a exceção de não cobertura que aí invocou. O que não pode ser admitido. Com efeito, essa versão pode ser ou não julgada provada (ainda que em parte). O que não pode é, por iniciativa da parte contrária, desvirtuar-se essa versão consagrando a que lhe é oposta.

De resto, mesmo em face da prova indicada pela Apelante sempre seria difícil julgar comprovado, por exemplo, que a 1ª Ré procurou contratar segurança para evitar o desaparecimento da carga, uma vez que só o motorista da viatura, a já referida testemunha, BB, o referenciou em julgamento, por alegadamente lhe ter sido dito pelo patrão, mas ainda assim num depoimento muito difuso, a este respeito.

Consequentemente, mantém-se a redação adotada na sentença recorrida (que não se tem por conclusiva, uma vez que retrata uma atitude omissiva), embora se considere que é importante introduzir-lhe uma precisão, no sentido de que essa atitude só se reporta ao período noturno. Como se provou (ponto 23), no dia 26/03/2017, o legal representante da 1ª Ré, pelas 7h, deslocou-se ao local “com outro semi-reboque, recolheu, com ajuda de uma máquina, a mercadoria que se encontrava espalhada pelo terreno que marginava a estrada, transportando-a, de seguida, para as suas instalações”, o que se traduz, sem dúvida, numa atitude tendente a evitar o desaparecimento da mercadoria.

A redação do ponto em análise (ponto 39), portanto, passará doravante a ser a seguinte: “A primeira Ré não providenciou pela recolha da mercadoria durante o período noturno, nem tomou outras medidas, para além das referidas em 19) e 21), para evitar o seu desaparecimento, durante esse período”.

Pretende, de seguida, a Apelante que se aditem duas novas afirmações aos factos provados: que “o dia da ocorrência era um sábado pelo que não foi possível contratar transportador e/ou segurança”; e ainda “que as autoridades não agiram no sentido de remover/recolher a carga, porque elas não obstruíam a via”.

Ora, para além do acento tónico da primeira afirmação ser de natureza nitidamente conclusiva, são aqui inteiramente aplicáveis as limitações já antes referidas sobre a circunstância da Apelante não ter direito, nesta fase, de introduzir factos novos em contraposição àqueles que a Ré seguradora oportunamente alegou. De modo que não se atenderá a referida pretensão.

Prossegue, depois, a Apelante pedindo que, ao contrário do que já consta da al. a), dos Factos não Provados, se julgue demonstrado que “a Guardia Civil deslocou-se ao local do acidente após o telefonema identificado em 19)”.

E, do nosso ponto de vista, tem razão.

Com efeito, escutado o depoimento do motorista da viatura em questão, ou seja, a testemunha, BB, ficámos convencidos de que aquela deslocação ocorreu. Não só porque esta testemunha o afirmou perentoriamente em julgamento, mas ainda porque isso se deduz com toda a certeza de outros pormenores que descreveu, como sejam, por exemplo, as reações dos elementos daquela policia aos outros indivíduos que rondavam o local e ao conselho que lhe deram, quando o viram com um ferro na mão, no sentido de se deixar estar dentro do camião porque era melhor para ele não reagir. E não nos pareceu nada artificial este depoimento, na medida em que nenhuma relação mantem com a 1ª Ré, que, de resto, já foi declarada insolvente, não havendo, assim, razões para duvidar deste testemunho. Isto para além de que a pretensão da Apelante, nesta parte, se harmoniza perfeitamente com a factualidade já constante dos pontos 19, 20, 21 e 22.

Em resumo, aditar-se-á aos factos provados um novo ponto com a seguinte denominação e teor: “19-A) - A Guardia Civil deslocou-se ao local do acidente após o telefonema identificado em 19)”.

Por fim, defende a Apelante que se devem julgar demonstrados os factos descritos nas als. b) e c), do capítulo dos Factos não Provados. Porém, ao identificar esses factos e os meios de prova que devem conduzir ao resultado oposto àquele que foi obtido e se encontra expresso na sentença recorrida, apenas se refere à afirmação contida na segunda destas alíneas; isto é, que “o valor referido em 34) foi aceite pela Autora e pago no dia 19 de Dezembro de 2017”.

Assim, tendo em conta os ónus previstos no artigo 640.º, do CPC, apenas essa afirmação será objeto de escrutínio pela nossa parte.

E, nesse âmbito, o que começamos por verificar é que as principais divergências que conduziram à não prova de tais factos, ou seja, à não prova da aceitação pela A. do valor de 59.008,46€ e do pagamento deste montante à E... Limited, foram, por um lado, a diferença entre este valor e aquele que consta do comprovativo de transferência junto com a resposta da A. (doc. n.º3) - no qual está inscrito o montante de 59.205,92€ - e, por outro lado, a circunstância deste comprovativo estar datado de 01/02/2018 e o “recibo de recobro” apresentado pela A. como doc. 18, com a petição inicial, estar datado de 19/12/2017. Assim - concluiu-se na sentença recorrida -, “a transferência em questão não podia corresponder ao recibo de quitação na medida em que é posterior a este, em cerca de dois meses (para valer como tal teria de haver documento que comprovasse o pagamento em data anterior ou contemporânea do recibo”.

Tendo em conta, porém, a prova ulteriormente produzida e a tradução daquele recibo (junta aos autos no dia 01/10/2019), cremos que o referido resultado probatório não é de manter.

Comecemos pelo teor deste recibo (tal qual a aludida tradução).

Refere-se nele, entre o mais, o seguinte:

“Recibo de cobrança

O nosso segurado: I... S.L

N/R: ...35

Danos na mercadoria

Data do sinistro: 25.03.2017

S/ref:...19 Acidente 25/03/2017 Camião ..-PQ-.. / ...19-BCL

A E... Limited (…), em nome de I... S.L aceita receber da empresa A... S.U. Ldª (…) o valor de 59.008,56€ (cinquenta e nove mil e oito euros e cinquenta e seis cêntimos) em compensação por danos na mercadoria.

E... Limited à morada acima referida ou por transferência bancária para a conta do Bank of America

IBAN: (…)

SWIFT: (…)

Com o pagamento do valor expresso, a E... Limited e o seu segurado I... S.L. consideram-se totalmente compensados pela A... S.U Ldª renunciando expressamente a quaisquer ações civis e multas que lhe possam corresponder como resultado dos eventos descritos.

No entanto, a falta de pagamento dará direito a reivindicar legalmente todos os danos sofridos aos bens segurados na Apólice indicada.

Madrid, 19 de dezembro de 2017”.

Pois bem, perante o teor literal desta declaração é óbvio que a E... Limited, não deu como recebido o referido valor. Apenas declarou que consideraria o seu direito de crédito totalmente satisfeito quando lhe fosse pago esse valor.

Ora esse valor – resulta evidente da articulação do comprovativo de transferência bancária junto aos autos (doc. 3 junto com a contestação e original apresentado pela dita E... Limited, no dia 27/10/2023), com a troca de correspondência também apresentada por esta sociedade na mesma data e cuja tradução foi junta pela A. no dia 02/11/2023) – foi pago no dia 01/02/2018.

É verdade que a quantia em dívida era de 59.008,46€([2]) e essa transferência foi no montante de 59.205,92€. Mas a já referida correspondência, além de comprovar, a nosso ver, que o pagamento em causa foi feito por esse meio, ajuda a compreender também este diferencial.  Isto porque, por exemplo, no email datado de 06/02/2018, se alude à indicação da A. no sentido do valor da reparação dos danos derivados deste sinistro ter sido pago juntamente com outro (menor) referente a um sinistro diverso. E se percorrermos essa correspondência também percebemos que foi esse o modo de pagamento adotado para a liquidação do valor que a E... Limited era credora, em virtude do acidente que está em causa nestes autos. Os emails trocados a partir do dia 19/12/2017, comprovam-no, a nosso ver, sem qualquer margem dúvida. O que, de resto, as testemunhas, AA e CC (ambos empregados da A.) também confirmaram, referindo que da parte desta última foi a sua colega de trabalho, DD, quem tratou desse pagamento, o que se harmoniza com o nome da pessoa que na já referida correspondência eletrónica aparece a comunicar em nome da A.

É verdade que a primeira daquelas testemunhas, AA, explicou o já aludido diferencial com juros. Mas, a nosso ver, isto não passou de uma opinião encontrada na hora, uma vez que esta testemunha é responsável por outra área e não tratou especificamente deste pagamento. Quem dele tratou, como disse, foi a já aludida DD. Daí que não se atribua qualquer relevo decisivo a esta alusão.

Ou seja, em resumo, considerando toda a prova produzida, designadamente a já indicada, entende-se que está demonstrado o pagamento em questão, da A. à já aludida, E... Limited, no valor de 59.008,46€, embora reportado ao dia 01/02/2018 e não ao dia 19/12/2017.

Consequentemente, elimina-se a al. c), do capítulo dos Factos não Provados e adita-se à rubrica dos Factos Provados um novo ponto com a seguinte denominação e teor:

“43- A A. pagou à E... Limited, no dia 01/02/2018, a quantia de 59.008,46€, para saldar o valor por esta reclamado.

3- Solucionada a impugnação da matéria de facto, vejamos, então, se a Apelante tem direito ao reembolso da quantia global que reclama da Ré seguradora.

Essa quantia, no montante total de 62.330,31€, é constituída por duas rubricas: 59.008,46€, a título de indemnização pela carga perdida e danificada, que a A. alegou já ter pago à seguradora da sociedade I..., SL, ou seja, à seguradora, E... Limited; e 3.321,85€, a título de indemnização pelos danos verificados no semi-reboque R-....-BCL.

Pois bem, quanto a esta última indemnização, concluiu-se na sentença recorrida que a mesma não é devida pela indicada Ré, em virtude do risco de danos nesse semi-reboque, utilizado no transporte da mercadoria em causa pela sociedade B... Unipessoal, Ldª, não ter sido transferido para aquela Ré. Isto, para além de apenas ter ficado demonstrado que A. emitiu a fatura nº ...51, datada de 25/02/2018, em nome da primeira Ré, no valor 2.700,69€, acrescido de 621,16€ de IVA, mas não que tivesse custeado essa reparação. Logo, foi a Ré seguradora absolvida deste pedido. E a Apelante não contradiz neste recurso nenhum destes pressupostos. Por conseguinte, quanto a essa parte, é de manter o decidido na sentença recorrida.

Resta, assim, por saber se a Ré seguradora deve ser responsabilizada pelo pagamento à Apelante do montante de 59.008,46€, a título de indemnização pela carga perdida e danificada.

Na sentença recorrida entendeu-se que não. Por duas ordens de razões: porque, por um lado, não se julgou demonstrado que a A. tivesse pago esse valor à seguradora, E... Limited; e, por outro lado, porque a transportadora efetiva, ou seja, a Ré, B..., Ldª, teria incumprido, com negligência grosseira, o dever de custódia que sobre si impendia, diligenciando pela segurança e integridade do cobre que transportava, nos momentos que se sucederam ao acidente, o que, nos termos do contrato de seguro entre ambas celebrado, é causa de exclusão total da cobertura aí prevista. Isto, aliás, na sequência do defendido e pedido pela Ré seguradora na sua contestação (artigos 11.º a 22.º).

Ora, como veremos, nenhuma destas razões é válida para exonerar essa Ré de tal obrigação.

Quanto à primeira, já o vimos, provou-se que o dito valor foi pago pela A. à E... Limited, no dia 01/02/2018. Logo, nenhum motivo há para isentar a Ré desse pagamento à referida Ré, se bem que limitado pela franquia contratualmente estabelecida, no montante de 500,00€ (ponto 5 dos Factos Provados).

Quanto à segunda, impõem-se maiores desenvolvimentos.

Ficou, efetivamente, demonstrado que, na cláusula 4.2 das condições especiais da apólice relativa ao contrato de seguro celebrado entre as Rés, se convencionou a exclusão “da cobertura do seguro as reclamações provenientes ou que sejam consequência de (…) danos causados por negligência grosseira do tomador de seguro e/ou do segurado, seus representantes legais, empregados, procuradores ou chefes de sucursais ou resultantes do incumprimento doloso das obrigações assumidas pelo tomador de Seguro/segurado, no âmbito do presente contrato de seguro”.

E consta ainda da cláusula 5.3 das condições especiais da apólice referente ao mesmo contrato, ser obrigação do tomador/segurado fazer o necessário para evitar ou reduzir o sinistro colocando à disposição do segurador toda a informação necessária e atuar de acordo com as instruções do mesmo, se as houver.

Isto é, em resumo, convencionou-se, para o que ora interessa, o dever de salvamento, também designado de afastamento e mitigação dos danos decorrentes do sinistro, por parte do tomador/segurado, e estipulou-se como consequência do seu incumprimento doloso, a exclusão da cobertura do seguro.

Não se estipulou, ao contrário do que parece ter-se entendido na sentença recorrida, essa exclusão, em caso de negligência grosseira. E, se se tivesse convencionado, essa estipulação seria nula. Com efeito, também nos termos do artigo 126.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS)[3], a lei impõe ao tomador do seguro ou o segurado esse dever de salvamento[4]. Fá-lo nestes termos: “Em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o segurado deve empregar os meios ao seu alcance para prevenir ou limitar os danos”. Isto é, deve, no cumprimento também do dever de boa fé na execução do contrato (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil)[5], mitigar as consequências do sinistro, na medida do possível, com a finalidade de diminuir ou reduzir os danos que dele possam resultar.  E, se o não fizer, prescreve o n.º 3 do mesmo preceito, “aplica-se o disposto nos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 101.º”.  Ou seja, permite-se que o contrato possa prever a redução da prestação do segurador, atendendo ao dano que lhe cause o incumprimento de tal dever (n.º 1) e permite-se ainda que o contrato possa prever a perda da cobertura, desde que o incumprimento ou cumprimento defeituoso desse mesmo dever seja doloso e tenha determinado dano significativo para o segurador (n.º 2). Isto, sem prejuízo de tais exceções não poderem ser oponíveis aos lesados, em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso nos termos previstos no n.º 4. Mas, não sendo este o caso, quedemo-nos pela análise das consequências do incumprimento do dever de salvamento, ao nível da perda da cobertura, pois que foi essa, como dissemos, uma das razões para a absolvição da Ré seguradora do pedido, tal como esta havia solicitado.

Como vimos, permite a lei que o contrato possa prever a perda da cobertura total, desde que o incumprimento ou cumprimento defeituoso desse mesmo dever seja doloso e tenha determinado dano significativo para o segurador [“O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador”] - n.º 2 do artigo 101.º.

Este regime, como decorre do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJCS, é de imperatividade relativa. Ou seja, ressalvados os casos de seguros de grandes riscos (n.º 2), quer dizer, aqueles que se encontram tipificados no artigo 5.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 147/2015, de 09/09, não pode ser afastado, a não ser para estabelecer um tratamento mais favorável para o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário da prestação do seguro[6].

Ora, na situação em apreço, não sendo caso de seguro de grandes riscos, a considerar-se que no contrato de seguro em análise se teria previsto a exclusão total da cobertura por violação, com negligência grosseira, do dever de salvamento, ter-se-ia infringido aquela imperatividade.  Isto porque, em vez de se ter previsto nas citadas cláusulas a perda total da cobertura apenas para as situações de incumprimento (lato senso) doloso do dever de salvamento, ter-se-ia estipulado também essa consequência para os casos de incumprimento devido a negligência grosseira. O que, é manifesto, representa um tratamento menos favorável para o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário da prestação do seguro e, como tal, esse regime, por ser nulo (artigo 294.º, do Código Civil), nunca poderia aqui ser aplicado, já que esse vício é de conhecimento oficioso (artigo 286.º, do Código Civil). Quando muito, o que poderia ter aplicação era o decorrente do regime legal em vigor, por via da redução do negócio jurídico, prevista no artigo 292.º, do mesmo Código, mas essa redução nem está provado que tenha base contratual[7], nem foi pedida pela Ré seguradora. Logo, devemos cingir-nos aos pressupostos daquele primeiro regime, tal qual o mesmo está legal e contratualmente previsto.

Ora, de acordo com ele, como já vimos, o mesmo pressupõe, por um lado, um incumprimento doloso da parte do tomador do seguro, do segurado ou do beneficiário do seguro do dever de salvamento e, por outro lado, que daí tenha resultado um dano significativo para o segurador.

Acontece que, na situação presente, a Ré seguradora não provou aquele tipo de incumprimento. Isto é não provou que o incumprimento que imputa à sua segurada tivesse sido doloso.

Tinha, no entanto, o ónus de o fazer. Quem invoca o incumprimento enquanto causa de exclusão da sua responsabilidade, tem esse ónus (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). Como refere Júlio Manuel Vieira Gomes[8], “[a] aplicação das regras respeitantes ao incumprimento dos contratos conduziria, em princípio, a que se presumisse a culpa do devedor, uma vez verificado o incumprimento. Contudo, deve ter-se em conta que estes deveres parecem corresponder a uma obrigação legal (ainda que tenham que ter a sua sanção prevista no contrato) e a relevância do grau de culpa é ainda maior do que o que sucede normalmente na responsabilidade contratual. Tal circunstância tem conduzido a que a maior parte da doutrina considere que cabe ao segurador a prova do dolo e, porventura, mas aqui a questão é mais delicada e a doutrina mostra-se muito mais dividida, também na negligência do segurado, tomador do seguro ou beneficiário”.

Ora, repetimos, a Ré seguradora não provou qualquer comportamento doloso, por parte da Ré, sua segurada. Pelo contrário, o que se provou é que, ao contrário do alegado pela Apelante na sua contestação (artigos 15.º e 16.º), o motorista da Ré, B..., Ldª, não só comunicou o sucedido à sua empregadora, como, logo após o acidente, pelas 17h07m, e mesmo mais tarde, entre as 21h20m do dia 25 e as 6h07m do dia 26 de Março, contactou, por várias vezes, a Guardia Civil no sentido de lhes dar conta de “que havia vários desconhecidos que estavam no local com o intuito de fazerem sua a mercadoria e o tinham ameaçado”. Aliás, como se julgou provado nesta instância, os membros desta autoridade policial estiveram no local. Só que não impediram o furto de parte dessa mercadoria e, pelo contrário, aconselharam o dito motorista a não reagir e a recolher-se no camião, o que ele fez.

Por outro lado, provou-se ainda que o legal representante da Ré segurada (que tem sede em Portugal) se deslocou nessa noite para o local do acidente, onde chegou pela 7h do dia seguinte 26/03/2017, e aí “com outro semi-reboque, recolheu, com ajuda de uma máquina, a mercadoria que se encontrava espalhada pelo terreno que marginava a estrada, transportando-a, de seguida, para as suas instalações”.

Ora, neste contexto, temos para nós que não só está completamente afastado o dolo da Ré transportadora, como, ao contrário do decidido na sentença recorrida, cremos não haver sequer dados bastantes para concluir que essa mesma Ré agiu com negligência grosseira.

Pode, evidentemente, especular-se sobre outras condutas teoricamente possíveis, com vista a evitar o desaparecimento da mercadoria, no período noturno. Mas, importava que a Ré alegasse e demonstrasse, enquanto factos constitutivos da exoneração da responsabilidade que pretende (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), que condutas concretas eram essas[9]. O artigo 126.º. n.º 1 do RJCS, como é sabido, incorpora uma obrigação de meios e não de resultado e, assim, impunha-se que aquela Ré especificasse e comprovasse essas ditas condutas (possíveis e exigíveis).

Ora, nada disso consta da factualidade demonstrada. E, assim, porque não se verifica o apontado pressuposto de exclusão da responsabilidade da Ré seguradora e se provou, como vimos, o pagamento pela A. do montante correspondente à carga perdida e danificada, deve aquela ser condenada a pagar essa indemnização, depois de deduzida a franquia convencionada, ou seja, 58.508,46€ (59.008,46€-500,00€).

É essa a medida em que procede este recurso, devendo a sentença recorrida ser também revogada, nessa parte.


*

III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em:

a) Julgar parcialmente procedente o presente recurso e, revogando também parcialmente a sentença recorrida, condena-se a Apelada, C..., a pagar à Apelante, C..., a quantia de 58.508,46€ (cinquenta e oito mil quinhentos e oito euros e quarenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da respetiva citação até integral pagamento.

b) Quanto ao mais, julga-se parcialmente improcedente este recurso e confirma-se a sentença recorrida, na restante parte impugnada.


*

-Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pela Apelante e Apelada, na proporção do respetivo decaimento – artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC.


Porto 20/2/2024.
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
______________________
[1] Inicialmente, a A. demandou C... Portugal – Companhia de Seguros, S.A., mas, ulteriormente, foi ordenada a correção e, além de determinada a intervenção da ora demandada, foi ainda ordenado o arquivamento dos autos contra aquela seguradora (cfr. despachos proferidos nos dias 25/06/2018 e 23/05/2019).
[2] E não 59.008,56€, como se refere naquele recibo, pois já está demonstrado (ponto 28) que foi aquele valor (59.008,46€) e não este que a carga desaparecida e danificada valia e também foi esse valor que a M..., S.A. pagou à sociedade expedidora (G...) – cfr. ponto 31.
[3] Aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008 de 16 de abril.
[4] No n.º 2 impõe o mesmo dever ao beneficiário.
[5] Neste sentido, Pedro Romano Martinez e Outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2020, 4ª Edição, Almedina, pág.438.
[6] Sobre esta temática pode ler-se, entre outros, o escrito por Joana Galvão Teles, Liberdade Contratual, e seus limites – Imperatividade Absoluta e Imperatividade Relativa, Temas de Direito dos Seguros, Almedina, págs. 114 e 115.
[7] O que é obrigatório. Neste sentido, Júlio Manuel Vieira Gomes, “Do dever ou ónus de salvamento no novo regime jurídico do contrato de seguro (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/4)”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 28 – Outubro/Dezembro de 2008, pág. 19.
[8] Artigo citado, pág. 21.
[9] Como refere, Maria Inês de Oliveira Martins, “Regime Jurídico do Contrato de Seguro em Portugal”, pág. 218, consultável em https://revista-aji.com/articulos/2016/num6-ter/199-231.pdf, “não basta a produção do sinistro para presumir que o segurado, ou outro dos obrigados, o podia ter razoavelmente mitigado. O segurador terá ainda que provar a culpa dos sujeitos, no sentido de demonstrar a omissão de medidas razoáveis para o afastamento ou contenção dos danos.