Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12627/19.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: PENHORA DE EXPECTATIVA DE AQUISIÇÃO
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: RP2021092012627/19.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Sendo penhorada expectativa de aquisição de bem em sede de contrato de locação financeira, haverá depois que aguardar pela possível futura aquisição do bem objecto de locação pelo executado, pois só a partir de tal aquisição é que o tribunal passa a ter poderes de gozo sobre tal bem de modo a sobre ele poder prosseguir a execução, tudo conforme decorre do nº3 do art. 778º do CPC;
II – Ocorrendo um regime de indisponibilidade subjectiva de posição contratual, por haver normas que restringem o poder de disposição da mesma – como é caso da exigência de consentimento do outro contraente para a transmissão/cessão de posição contratual prevista no art. 424º nº1 do C.Civil –, tal regime, caso se considere como bem susceptível de penhora tal posição contratual, gera a impenhorabilidade desta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº12627/19.2T8PRT-A.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 4)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

No âmbito de execução sob a forma sumária movida por B… contra “C…, Lda.”, que corre termos sob o nº 12627/19.2T8PRT no Juízo de Execução do Porto, ocorreu o seguinte circunstancialismo (que se considera pertinente para a análise do recurso):
a) – por notificação datada de 15/8/2019, enviada para a locadora – que é actualmente o “Banco D…, S.A.” (na sequência da incorporação por parte deste do primitivo locador “D1…, S.A.”) – a agente de execução procedeu à penhora da “posição contratual que a Executada detém no contrato de locação financeira imobiliária nº ……., que lhe permitirá adquirir o direito de propriedade”;
b) – por ofício datado de 1/10/2019, aquela locadora respondeu a tal notificação dizendo o seguinte:
Em resposta à notificação de V.Exa., datada de 15-08-2019, cumpre-nos informar que o contrato celebrado com C… com o nº……. em 19-03-2010, tem data prevista de término a 15/3/2022.
Mais informamos que registámos em sistema a informação de penhora de posição contratual sobre o imóvel locado”.
c) – o exequente, a 2/12/2019, veio, por email enviado à agente de execução, requerer “a adjudicação do dinheiro penhorado à ordem dos autos acima identificados, pelo valor da quantia exequenda”;
d) – a agente de execução, por ofício datado de 26/1/2020, notificou a executada para esta, no prazo de 10 dias, informar se aceitava tal pedido de adjudicação e que, na ausência de resposta, se considerava aceite o mesmo pelo valor proposto;
e) – não tendo deduzido a executada qualquer oposição, a agente de execução proferiu decisão em 17/2/2020 a considerar que “estão reunidas as condições para que se concretize a adjudicação do direito (posição contratual)” logo que o exequente demonstre o pagamento de quantias que explicitou (que identificou como atinentes ao cumprimento de obrigações fiscais, cumprimento do pagamento de juros compulsórios devidos ao estado no montante de € 272,92 e cumprimento do pagamento dos honorários e despesas da agente de execução no montante de € 1.837,88) e, na mesma data, emitiu “Documento de liquidação de Imposto de IVA e IS”, onde fez constar o seguinte:
Vai B…, contribuinte n.º ………, na qualidade de Exequente, proceder ao pagamento do imposto iva e de selo (casa haja lugar ao pagamento), pela aquisição do bem infra discriminado, pelo preço de 16.919,16 euros, efectuada mediante a adjudicação no âmbito da acção executiva.
BEM ADJUDICADO: Posição contratual que a Executada detém no contrato de locação financeira imobiliária n.º ……. celebrado com o D1…, S.A..
O direito pertence a C…, Lda., NIF ..........
f) – a agente de execução, em 12/3/2020, elaborou “Título de Transmissão” referente àquela adjudicação do aludido “direito (posição contratual)” ao exequente e, por oficio com aquela mesma data, notificou a locadora de tal adjudicação e daquele título de transmissão;
g) – consta da cláusula IX, nº1, do contrato de locação em causa – junto aos autos de execução pela locadora em 2/4/2020 – o seguinte: “A locatária só poderá transmitir a sua posição contratual após obtenção do consentimento escrito da locadora para a transmissão”;
h) – a locadora, após ter sido notificada pela agente de execução nos termos referidos sob a anterior alínea f), apresentou em 2/4/2020 uma reclamação nos autos, endereçado ao Sr. Juiz, com o seguinte teor:

Da nulidade da penhora efectuada e da nulidade da subsequente venda
O ora Reclamante é locador no contrato de locação financeira n.º ……., celebrado com Executada C…, LDA. enquanto locatária.
A Senhora Agente de Execução praticou actos nesta execução (dos quais pela presente se reclama e se requer a declaração de nulidade) que afectam a sua posição jurídica, designadamente no aludido contrato.
Tem pois um interesse directo no processo e legitimidade para nele intervir, pelo que deverá ser admitida a sua intervenção nos presentes autos.
Isto posto,
Foi o Banco aqui Reclamante surpreendido pela recepção da notificação da Senhora Agente de Execução datada de 12.03.2020 (documento NYrBOWoTN8A), pela qual lhe deu conhecimento do Título de Transmissão emitido no âmbito do presente processo e pelo qual terá transmitido para o Exequente B… o direito (posição contratual) que a Executada acima melhor identificada detém no contrato de locação financeira imobiliária n.º ……., celebrado com o ora Reclamante – contrato que adiante se junta sob o doc. n.º 1 e cujo teor aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos legais.
O aludido Título de Transmissão deve ser declarado nulo e de nenhum efeito, o que expressamente se requer, por não ser admissível a penhora efectuada nos termos em que o foi.

Com efeito,
De acordo com os elementos a que o aqui Requerente conseguiu aceder referentes a estes autos, a Senhora Agente de Execução diligenciou pela penhora da posição contratual da Executada no contrato de locação financeira acima identificado, direito esse que, porém, não é susceptível de penhora.
O que deveria ter sido objecto de penhora era a expectativa de aquisição emergente do contrato de locação financeira, conforme vem previsto no artigo 778.º do CPC e a penhora passará a incidir sobre o bem penhorado se for consumada a aquisição.
Não quis o legislador que o bem penhorável fosse a posição contratual, antes sim a expectativa de aquisição, sendo que do próprio regime se infere tal conclusão.
Conjugadas as normas do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 149/95 e do artigo 778.º, verifica-se que não se pretendeu com este regime dar a possibilidade de o adquirente judicial vir a assumir a posição contratual do Executado em contratos em curso, substituindo-se a este.
10º
Bem pelo contrário: a penhora da expectativa converter-se-á na penhora do próprio bem quando se consumar a aquisição.
11º
Tal é o que decorre do artigo 778º, n.º 3 do CPC que se a aquisição for consumada, a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido.
12º
O escopo da norma não é desencadear cessões de posição contratual por via judicial, ao arrepio da vontade das contrapartes nos contratos e ao arrepio do que dispõe do artigo 11.º do Decreto-lei 149/95 (regime da locação financeira), que faz depender da anuência do locador a cessão de posição contratual.
13º
Se se admitisse a penhora e a adjudicação nos termos feitos pela Senhora Agente de Execução, o que de forma alguma se aceita, estar-se-ia a provocar-se uma cessão da posição contratual forçada, em que o locador desconhece, por completo, a sua contraparte, o que é inaceitável à luz do Direito.
14º
Além do previsto no referido artigo 11.º, a transmissão da posição contratual do locatário em contrato de locação financeira (que não de bens de equipamento, como é o caso do contrato ora em causa) carece do consentimento do locador, nos termos do contrato (cfr. Cláusula IX das Condições Gerais do Contrato).
15º
Dispõe o artigo 11º, n.º 2 do DL n.º 149/95, de 24 de Junho que “[n]ão se tratando de bens de consumo, a posição do locatário pode ser transmitida nos termos previstos para a locação”.
16º
Resultando, por sua vez, da leitura conjugada dos artigos 1059º, n.º 2 e 424º, n.º 1 do Código Civil que tal transmissão carece do consentimento do locador.
17º
E resulta do n.º 3 do mesmo artigo 11.º que, em qualquer dos casos o locador pode opor-se à cessão da posição contratual, o que aqui expressamente se declara.
18º
Isto é, para que dúvidas não restem o Banco aqui Reclamante não consente na cessão da posição contratual da locatária aqui Executada.
19º
Acresce que, ao aceitar-se a penhora (e subsequente transmissão) da posição contratual, o que de modo algum se concede ou admite, poderá colocar-se o adquirente numa posição desproporcionalmente vantajosa, enriquecendo à custa do Executado, na medida em que poderá por um valor que será sempre muito inferior ao do imóvel objecto do contrato, vir a adquiri-lo, aumentando desproporcionalmente o seu património.
20º
A situação será tanto assim quanto mais antigo for o contrato subjacente, o que é evitado no caso da (correcta) penhora da expectativa, que virá a converter-se na penhora do próprio bem, na hipótese de se consumar a aquisição pelo Executado.
21º
Indo à venda judicial, nessa ocasião, o próprio bem, cujo produto da venda servirá para pagar a quantia exequenda, parcial ou integralmente, podendo até vir o Executado a ser restituído pelo montante que exceder aquela.
22º
Por tudo quanto se expôs, deve a penhora da posição contratual que a Executada detém no contrato de locação financeira imobiliária n.º ……., celebrado com o aqui Reclamante, ser declarada nula e de nenhum efeito, por impenhorabilidade do seu objecto, com as legais consequências, designadamente a afectação com o mesmo vício de todos os actos dela dependentes, tais como a venda do dito direito e do título de transmissão a ela subjacente.

Por mera cautela de patrocínio
23º
Por mera cautela de patrocínio e dado que o aqui Requerente não teve oportunidade de consultar estes autos pelas circunstâncias que são públicas e notórias e conhecidas de todos, sempre se dirá ainda que a penhora e adjudicação, nos termos em que foram feitas, não são mais do que uma forma de o adjudicante e a Executada contornarem o disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 149/95 relativamente à anuência da Locadora quanto à cessão de posição contratual.
24º
A presente execução é, portanto, uma simulação processual.
25º
O negócio simulado é nulo e não produz quaisquer efeitos, pelo que não existe qualquer crédito que possa ser peticionado na presente execução.

Termos em que a presente reclamação de acto deve ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, ser declarada nula e de nenhum efeito a penhora da posição contratual, bem como todos os actos dela dependentes, maxime a venda da aludida posição e o título de transmissão a ela subjacente.

i) – sobre tal requerimento foi pelo Sr. Juiz proferido, em 20/1/2021, o seguinte despacho (transcreve-se):
Compulsados os autos, e atentos todos os atos praticados pelo Sr. AE e pelas partes, e considerando ainda todas as notificações realizadas à executada, considerando também a fundamentação de facto exposta pela Sr. AE na sua decisão de 17/02/2020 e na exposição de 12/06/2020, cremos que a reclamação/requerimento do Banco D…, SA, apresentado em 02/04/2020 carece de suficiente e adequada fundamentação.
Com efeito, a executada foi citada e não ofereceu oposição nos autos.
Foi depois efetuada a penhora do direito – posição contratual da executada (enquanto locatária) no contrato de leasing imobiliário celebrado com o Banco agora reclamante/locador – como tudo consta do auto de penhora de 26/10/2019.
Antes da elaboração do citado auto de penhora, a Sra. AE, mediante notificação datada de 15/08/2019, procedeu, nos termos da Lei, à notificação do Reclamante Banco D…, S.A., de que “…..se considera penhorada a posição contratual que a Executada detém no contrato de locação financeira imobiliária n.º …….”, como consta dos autos.
Na sequência de tal notificação, o reclamante Banco D…, S.A., mediante comunicação datada de 01/10/2019, respondeu à notificação da Sra. AE, informando-a que o contrato em causa tinha data prevista de término a 15/03/2022 e ainda nos seguintes termos: “Mais informamos que registámos em sistema a informação de penhora de posição contratual sobre o imóvel locado”.
Resulta assim dos autos que o reclamante/locador Banco D…, S.A., reconheceu em 01/10/2019 de forma expressa e inequívoca a existência do direito/posição contratual objeto da penhora pela Sra. AE, sendo extemporânea e abusiva a sua posterior reclamação de 02/04/2020.
Perante o estado dos autos e toda a documentação junta aos autos, por falta de suficiente e adequada justificação, inexistia fundamento legal para não realizar a penhora citada penhora do direito/posição contratual -, tratando-se da penhora de uma simples expetativa de aquisição no futuro (art.º 778.º do CPC)-, e tendo sido cumprido o disposto na lei quanto à penhora de tal direito/expetativa da executada/locatária financeira.
Não foi penhorado pela Sra. AE o imóvel locado, mas apenas o direito da executada derivado do contrato de leasing.
O citado direito da executada/expetativa de aquisição do bem locado tem um valor patrimonial, o bem a adquirir pode ser alienado, nada obstando à sua penhora como direito/expetativa (cfr., entre outros, o Prof. Gravato Morais, in Manual da Locação Financeira, 2011, 2.ª edição, Almedina, em especial p. 287-290; e o Prof. Rui Pinto, in A Ação Executiva, AAFDL, 2018, em especial p. 617-618).
O citado direito da locatária/executada em contrato de locação financeira podia ser penhorado nestes autos, tal como aqui sucedeu, nada obstando à sua posterior alienação (cfr. os arts. 1.º, 9.º, n.º1, al. c), 10.º, n.º 2, al. f), e 11.º do DL n.º 144/95, de 24/06).
É irrelevante nestes autos a oposição à referida penhora do direito/expetativa de aquisição apresentada pelo Banco reclamante/locador, não sendo necessária a sua prévia autorização para realizar a referida penhora nem para depois alienar tal direito/expetativa.
A citada penhora do direito/expetativa de aquisição não afeta o direito de propriedade do Banco reclamante/locador sobre o imóvel locado, nem lhe retira qualquer direito, incluindo o direito a receber as rendas vencidas ou as rendas vincendas ou o valor residual.
Tal como resulta dos autos e esclareceu a Sra. AE, a penhora efetuada à ordem dos presentes autos cumpriu todos os formalismos legais, pelo que a mesma não é nula, e também não é nula a venda/adjudicação efetuada.
Nenhuma falta foi cometida e em nada foi prejudicada nestes autos a posição do Banco reclamante/locador, estando devidamente justificada a atuação e a decisão da Sra. AE de 17/02/2020 e sgs., inexistindo qualquer simulação, fraude ou uso anormal deste processo, tal como alegou a Sra. AE e o exequente.
Com o devido respeito pela sua posição, extrai-se dos autos que inexiste qualquer nulidade ou irregularidade ou razões válidas para a revogação da decisão da Sra. AE, sendo o pedido do Banco reclamante/locador manifestamente injustificado e extemporâneo.
Pelo exposto, não se verificando qualquer nulidade ou irregularidade relevante nem motivos para alterar a decisão da Sra. AE, vai indeferido o que aqui foi aqui requerido a tal respeito pelo Banco reclamante/locador, mantendo-se a decisão da Sra. AE.
Custas do incidente pelo Banco reclamante/locador, sendo de 2 UC a taxa de justiça (cfr. os arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 539.º, n.º 1, e 723.º, n.º 2, do CPC, bem como o art.º 7.º, n.º 4, do RCP e respetiva tabela II).
Notifique e comunique à Sra. AE.

De tal despacho veio a locadora interpor recurso, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões:
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O exequente apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do despacho recorrido.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: apurar da invocada nulidade da penhora e seus efeitos.
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II – Fundamentação

Os dados a ter em conta são os acima alinhados no relatório.
Vamos ao tratamento da questão enunciada.
Começa-se desde já por precisar que, ao contrário do referido no despacho recorrido, não é de considerar extemporânea nem abusiva a reclamação da locadora apresentada em 2/4/2020 nos autos de execução, por esta, após ter sido notificada pela agente da execução nos termos referidos sob a alínea a) do elenco de factualidade referida no relatório desta peça, ter respondido em 1/10/2019 que “registámos em sistema a informação de penhora de posição contratual sobre o imóvel locado” e que com isso reconheceu logo naquela data de forma expressa e inequívoca a existência do direito/posição contratual objecto de penhora.
Na verdade, uma coisa é admitir a existência daquela posição contratual – na qual se integra o direito de, em determinados termos, adquirir o bem imóvel objecto da locação – e a sua penhora, pois a lei é clara quanto a admitir expressamente no art. 778º nº1 do CPC a penhora de expectativas de aquisição derivadas daquele tipo de posição contratual (é um dos exemplos dados, entre outros, pelo professor Rui Pinto no seu “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, 2013, pág. 660), e outra coisa é a locadora, após a efectivação daquela penhora e muito antes de se verificar o circunstancialismo contratual que poderá permitir a aquisição do bem pela executada, deparar-se, como aconteceu, com a transmissão daquela posição contratual, por via da sua adjudicação, a uma terceira pessoa e sem o seu consentimento, a qual, assim, passa a ser parte no contrato de locação financeira em substituição da locatária inicial.
Ora, a locadora, só após ter sido notificada em 12/3/2020 pela agente de execução nos termos supra referidos em f) é que tomou conhecimento de tal modo de fazer processual.
Como tal, pretendo contra ele reagir, faz todo o sentido que o tenha feito através da referida reclamação (com evidente cabimento processual, como decorre do disposto no art. 723º nº1 d) do CPC).
Vamos agora apurar da regularidade da penhora efectuada nos autos e da subsequente transmissão do bem objecto de tal penhora.
Como acima já se referiu, em casos como o dos autos, em que está em causa a existência de um contrato de locação financeira imobiliária em que a executada é parte como locatária, a lei (art. 778º nº1 do CPCP) permite a penhora da expectativa de aquisição do bem locado por parte desta, a qual é inerente à sua posição contratual em tal contrato (é expectativa porque, estando o contrato ainda em curso, depende do pagamento de rendas contratuais e da futura opção de compra do bem pelo preço contratualmente fixado por parte da locatária – como se define no art. 1º do Dec.lei 149/95, de 24/6, “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”).
Sendo penhorada tal expectativa de aquisição, haverá depois que aguardar pela possível futura aquisição do bem objecto de locação pela executada, pois só a partir de tal aquisição é que o tribunal passa a ter poderes de gozo sobre tal bem de modo a sobre ele poder prosseguir a execução, tudo conforme decorre do nº3 do art. 778º do CPC.
Efectivamente, como refere o Prof. José Lebre de Freitas, in “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 7ª edição, págs. 302 e 304, na linha da consideração que “[p]ela penhora, o direito do executado é esvaziado dos poderes de gozo que o integram, os quais passam para o tribunal”, “a penhora da expectativa de aquisição, dando apenas lugar a que se aguarde a verificação da condição, só quando, por esta se verificar, passa a incidir sobre o bem transmitido é que se traduz no exercício de poderes de gozo (já sobre a coisa) pelo tribunal” (sublinhado e negrito nossos).
Nesta mesma linha, e aliás referidos pela Recorrente na sua motivação, podem ainda apontar-se os entendimentos do Professor Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Direito das Garantias”, 2ª edição, Almedina, págs. 518 e 519, onde refere que “(…) os credores do locatário financeiro podem meramente penhorar a expectativa jurídica à aquisição do direito de adquirir o bem e não à aquisição do próprio bem. É esta expetativa que pode ser penhorada e que se o locatário cumprir integralmente as suas prestações dará lugar ao direito à aquisição do bem sobre que recairá depois a penhora.” e do Professor Gravato Morais, in “Manual da Locação Financeira”, 2011, 2ª edição, Almedina, pág. 289, onde refere que “[i]nerente à posição do locatário existe uma situação em que se verifica a possibilidade de aquisição futura do direito de propriedade da coisa (que pode, contudo, não se efectivar se não for exercido pelo locatário o direito de compra) – cfr. arts. 1º, 9º, n.º 1, al. c) e 10º, n.º 2, al.f) do DL 149/95 -, sendo certo que se encontra parcialmente verificado o facto jurídico (o contrato) que está na base da constituição de tal direito. Acresce que não restam dúvidas de que o bem cedido em locação financeira é susceptível de ser alienado (art. 7º do DL 149/95). Ora, é esta mera possibilidade que é tutelada por lei e que está na base da aplicação do art. 860º-A, n.º 1 do CPC.” (os sublinhados são nossos e faz-se notar que o art. 860º-A, nº1 do CPC referido nesta última citação era do CPC anterior ao de 2013 e corresponde ao actual art. 778º nº1 deste diploma).
No caso vertente, como se vê dos dados supra elencados [alíneas a), b), c), d), e) e f)], foi efectuada a penhora de toda a posição contratual da executada no contrato de locação financeira imobiliária – e não apenas (como deveria) a concreta expectativa de aquisição do bem locado que dela faz parte e que a lei prevê como penhorável nos termos que supra se referiram – e, sem se aguardar pela possível futura aquisição do bem locado para sobre ele então prosseguir a execução, procedeu-se logo de seguida, e sem o consentimento da locadora, à transmissão de tal posição contratual, enquanto bem penhorado, por via da sua adjudicação ao exequente, o qual, nessa sequência, passou a ocupar a posição de locatário naquele contrato quando este ainda decorre (o seu término ocorrerá a 15/3/2022) e quando ainda não ocorreu, nem se sabe se vai ocorrer, o circunstancialismo que permitirá a aquisição do bem (até lá, como é óbvio, tal contrato pode, por exemplo, ainda vir a ser resolvido…).
Por outro lado, além do que ora se referiu, há ainda que notar que no caso se verifica um regime de indisponibilidade subjectiva da posição contratual em causa que gera um regime de impenhorabilidade da mesma enquanto tal, pois há normas jurídicas aplicáveis que restringem o poder de disposição daquela posição contratual por parte da locatária/executada (vide sobre tais situações José Lebre de Freitas, ob. cit., págs. 239 a 246).
Efectivamente, a posição contratual da executada no contrato de locação (a admitir-se a susceptibilidade da sua penhora) só seria penhorável se aquela tivesse disponibilidade de tal posição contratual por si própria.
Ora, como resulta da cláusula IX, nº1, do contrato de locação em causa, referida supra sob a alínea g), e como decorre da conjugação do art. 11º nº2 do Dec.lei 149/95 de 24/6 (pois o contrato em causa não respeita a bens de equipamento) com o art. 1059º nº2 e com o art 424º nº1 do C.Civil (preceito este expressamente referido na previsão daquele art. 1059º nº2) – para os quais naquele art. 11º nº2 se remete ao dizer-se ali que “a posição do locatário pode ser transmitida nos termos previstos para a locação” –, aquela disponibilidade de tal posição contratual não ocorre, pois a transmissão/cessão da posição do locatária carece do consentimento da locadora e esta, como se vê dos autos, não o prestou (aliás, reforçou até na reclamação que efectuou para o Sr. Juiz em 2/4/2020 que não dava tal consentimento, como se vê do artigo 18º da mesma).
Como tal, é de concluir pela impenhorabilidade de tal posição contratual (esta situação, atinente ao funcionamento do regime do art. 424º nº1 do C.Civil, é aliás uma das expressamente referidas pelo Prof. José Lebre de Freitas na obra já supra referida, na nota 16-D constante a págs. 239 e 240).
Deste modo, a penhora efectuada e a subsequente transmissão de tal posição contratual nos termos em que o foi são contrárias à lei (por violação daqueles preceitos legais), do que decorre a nulidade de tais actos por via do disposto no art. 280º do C.Civil.
Assim, há que julgar procedente o recurso e, revogando-se o despacho recorrido, declarar nula tal penhora e subsequente transmissão de posição contratual.

As custas do recurso ficam a cargo do Recorrido/Exequente, que nele decaiu (art. 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando-se o despacho recorrido, declara-se nula a penhora e a subsequente transmissão de posição contratual efectuadas nos autos.
Custas pelo Recorrido/Exequente.
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Porto, 12/7/2021
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim