Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
63556/21.8YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
APRECIAÇÃO APÓS A SENTENÇA FINAL
Nº do Documento: RP2024031863556/21.8YIPRT.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A apreciação da litigância de má-fé deve ocorrer até à decisão final do processo, apenas se podendo relegar para momento posterior a determinação da indemnização que tenha sido pedida pela parte contrária, se não houver elementos para a fixar logo na sentença.
II – O despacho proferido já depois da sentença final que aprecie a referida litigância nessas circunstâncias será juridicamente inexistente por estar esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria da causa.
III – Só assim não será se o comportamento processual a apreciar for posterior à referida sentença, caso em que deverá ser apreciado até à decisão que puser termo ao incidente em que esse comportamento se inseriu.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 63556/21.8YIPRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Matosinhos-J3


Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. António Mendes Coelho
2º Adjunto Des. Drª Anabela Mendes Morais


Sumário:
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I - RELATÓRIO


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., São Mamede de Infesta, veio propor providência de injunção contra AA,  pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 642,06 euros, acrescida do montante de juros de mora vencidos, no valor de 32,02 euros, e os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, bem assim, 51 euros, a título de outras quantias, e a mesma quantia de 51 euros, a título de taxa de justiça paga.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou que, no exercício da sua atividade comercial de obras de construção civil, e a pedido do R., efetuou uma intervenção/remodelação no quarto de banho do apartamento deste cujo preço, nos termos do orçamento aceite pelo R., ascendeu ao valor de 1.070,10 euros; alegou igualmente que o R, pese embora as diversas insistências, apenas liquidou o valor de 428,04 euros, permanecendo em dívida, até ao presente, o valor de 642,06 euros.
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Notificado, veio o R. deduzir oposição, alegando, desde logo, que a solicitação da intervenção da A. ocorreu num quadro de sinistro no qual era lesado o vizinho do apartamento que se situa abaixo da sua fração, em Junho de 2020 e que foi participado à Companhia de Seguros B...–Grupo C...; mais alegou que a origem da infiltração era uma fuga de água no referido cómodo e que havia danificado os tetos da fração abaixo, tendo, nessa sequência, contactado a A. para proceder á reparação da infiltração e dos danos; mais alegou que, neste contexto, a A. enviou um seu representante que fez o levantamento das necessidades da obra e que propôs a realização de certas obras que resolveriam o problema o que, não obstante, não ocorreu, tendo a obra ficado mal executada e permanecendo o problema da infiltração; alegou, ainda, que não obstante as reclamação apresentadas, a A. nunca se predispôs a corrigir o problema, furtando-se inclusivamente aos contactos, razão pela qual o R. se recusou, até ao presente, a liquidar o valor em causa nos autos.
Conclui pela procedência da oposição nos termos por si formulados e pela condenação da A. como litigante de má-fé.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento da causa com respeito pelas formalidades legais, conforme melhor resulta da ata da diligência junta aos autos.
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Foi, em sede de alegações finais, formulado pela A. o pedido de condenação da R. como litigante de má-fé.
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Afinal foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:
Em face do exposto, julga-se a ação procedente e, em consequência:
1) Condena-se o R. no pagamento à A. da quantia de 642,06 euros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, contados desde 14.10.2020 até efetivo e integral pagamento;
a) Condena-se o R. no pagamento à A. da quantia de 40 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, nos termos do disposto no art.7.º do DL 62/2013 de 10.05, absolvendo-se o R. no demais peticionado a este título;
b) Absolve-se a A. do pedido de condenação como litigante de má-fé.
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A seguir a essa decisão foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique o R. para, no prazo de 10 dias, e querendo, pronunciar-se sobre o pedido de condenação como litigante de má-fé formulado pela A., em sede de alegações e, bem assim, tendo em conta os factos 12) e 14) do elenco dos factos não provados e factos d, f), g) e h) do elenco de factos não provados.
Volvido o prazo, e nada sendo dito entretanto, conclua.”
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Em 29/09/2023 o Réu impetrou requerimento arguindo a nulidade da decisão.
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Nulidade que, por decisão de 24/11/2023, foi julgada por inverificada.
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Nessa decorrência foi proferida em 18/12/2023 decisão com a seguinte parte dispositiva:
“Em face do exposto, e nos termos do disposto no art.543.º n.º 2 e 3 do CPC, tendo em conta a natureza dos presentes autos, a concreta conduta processual o R., a sua natureza de pessoa individual, julga-se adequada a indemnização no valor de 150 euros, a cujo pagamento ora se condena a R. e adiante se reitera e, bem assim, no pagamento de multa processual no valor de 150 euros”.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Réu interpor o presente recurso concluindo com extensas alegações que aqui nos abstemos de reproduzir.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar decidir:
a)- saber se após a prolação da sentença ficou, ou não, esgotado o poder jurisdicional do tribunal para apreciar a litigância de má fé por banda do Réu.
b)- saber se foi, ou não, observado o princípio do contraditório em relação ao Réu a anteceder essa mesma decisão.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A dinâmica factual a ter em consideração para apreciar as questões colocadas é que a resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO

Tal como supra se referiu a primeira questão que cumpre apreciar e decidir prende-se com:
a)- saber se após a prolação da sentença ficou, ou não, esgotado o poder jurisdicional do tribunal para apreciar a litigância de má fé por banda do Réu.
O recorrente defende que a decisão que o condenou como litigante de má fé é nula por excesso de pronúncia na medida em que conheceu de uma questão (a litigância de má fé) de que já não podia tomar conhecimento uma vez que tinha sido proferida sentença onde a questão não foi decidida e com esse ato esgotou-se o poder jurisdicional do juiz.
E, salvo melhor entendimento, assiste razão ao recorrente.[1]
A questão supra enunciada não é nova, mas não tem merecido uma resposta unânime na jurisprudência dos Tribunais da Relação, no entanto, pensamos ser maioritária, pelo menos no Tribunal da Relação do Porto, a jurisprudência que preconiza a tese aqui defendida pelo recorrente, a qual também merece a nossa aceitação.
Nos termos do preceituado no artigo 613.º, nº 1 do CPCivil proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença (cfr. nº 2 do mesmo preceito).
Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de atos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inatividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões. No mesmo sentido apontam outros princípios processuais estruturantes, como é o caso dos da boa-fé, cooperação e lealdade processual, os quais obrigam, não só as partes e seus mandatários, mas também os magistrados (cfr. arts. 7.º e 8.º, CPCivil).
Como assim, é inerente à natureza/essência do processo que, proferida a sentença, fique imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613.º, n.º 1, CPC), embora o mesmo possa e deva continuar a exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as “questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu”.[2]
Significa, portanto, que com a sentença fica precludida a possibilidade de o juiz conhecer de qualquer questão (relativa ao antes processado nos autos) que até esse momento não tenha sido suscitada, oficiosamente ou a requerimento, excetuado o que no n.º 2 do mesmo artigo se dispõe em matéria de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença e, por outro lado, o que–em caso de recurso–seja determinado pelo tribunal superior que proceda à anulação da decisão.
A existência do referido princípio (esgotamento do poder jurisdicional) justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão”.[3]
Como já referia o Prof. Alberto dos Reis[4], a justificação deste princípio justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por outra de ordem pragmática, a saber:
“Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever–o dever jurisdicional–que é a contrapartida do direito de ação e defesa. (…) E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respetivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.
(…)
Não há dúvidas de que a questão da litigância de má fé é matéria do conhecimento oficioso, o que bem se compreende porque se trata de um mecanismo que visa regular a disciplina processual e o bom aproveitamento dos recursos afetos ao funcionamento da justiça e à prossecução da verdade que, naturalmente, não podia ficar dependente da vontade das partes.
Acontece que, no momento de proferir a sentença, se as partes tiverem suscitado a questão da litigância de má fé e/ou se entender oficiosamente que tal forma de litigância teve lugar, o juiz deve pronunciar-se sobre mesma a nessa ocasião, condenando a parte que litigou de má fé em multa.
O que significa, portanto, que o juiz só deve deixar de se pronunciar se ninguém lhe colocou a questão e entender que não houve litigância de má fé, não carecendo de justificar, pela negativa, que tal forma de litigância não ocorreu.
Efetivamente, se a litigância de má fé respeita à atuação processual anterior à sentença ela já se encontra evidenciada nos autos; trata-se nesse caso de uma questão a decidir e que não poderá deixar de o ser em virtude do esgotamento do poder jurisdicional subsequente à pronúncia da sentença.
O que poderá acontecer, é não ser ainda possível decidir o “quantum” indemnizatório que o litigante de má fé deve pagar à parte contrária, pelo que, só nessa eventualidade e para essa finalidade estrita a lei processual admite no n.º 3 do artigo 543.º do Código de Processo Civil que a fixação desse segmento da condenação como litigante de má fé seja relegada para momento posterior.
Já o Prof. Alberto dos Reis[5] se pronunciava nesse sentido afirmando: “A apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo em tal multa e indemnização; o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização (…)”.
No mesmo sentido, Lebre de Freitas[6], refere: “Havendo elementos suficientes para tanto, deve ser fixada a indemnização que deles resulte. Não havendo, o juiz, ouvidas as partes, fixará, já depois da sentença em que profira a condenação por má fé, mas nos autos da acção, aquilo que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável, não havendo assim lugar para a condenação no se liquidar em execução de sentença”.
Já assim não será se, após a prolação da sentença ou despacho que pôs termo ao processo for deduzido algum incidente (p. ex. reclamação da conta, reforma da sentença, fixação do efeito do recurso, prestação de caução, etc.) em cuja dedução ou oposição venha a existir litigância de má fé.
Nessa situação, a conduta enquadrável como litigância de má fé deriva de uma atuação processual posterior à sentença e a apreciação da mesma terá de ser feita na decisão final do incidente no qual ela tenha sido praticada e, ainda assim, com fundamento apenas na atuação posterior à sentença, não sendo, mesmo nessa situação, admissível que o juiz revisite a tramitação anterior à sentença para a qualificar e sancionar como litigância de má fé.
A questão que importa agora dilucidar é se o juiz pode fazer tábua rasa deste dever (de decidir na sentença todas as questões que deve conhecer) e contornar o impedimento decorrente da prolação da sentença determinando, imediatamente, a seguir a esta a notificação das partes para se pronunciarem sobre a eventualidade de uma delas ser condenada como litigante de má fé como, aliás, sucedeu no caso presente.
Entendemos que a resposta deve ser idêntica.
Com efeito, se tivermos presente uma ideia inultrapassável: a obrigação do juiz na sentença não é a de levantar as questões, de aventar a possibilidade de elas virem a ser decididas, é sim, a de as decidir.
O processo está subordinado ao princípio da legalidade das formas de processo e dos atos processuais.
É certo que o juiz tem presentemente poderes de simplificação ou de gestão processual (artigo 6.º) e de adequação formal (artigo 547.º), poderes que, não obstante, só podem ser exercidos para as finalidades que lhe estão assinaladas e cujo exercício carece de ser justificado mediante a invocação dos respetivos fundamentos.
Ora, inexiste, norma processual que permita ao juiz modificar o conteúdo da sentença ou definir caso a caso as questões de que pode ou deve conhecer na sentença.
Da mesma forma que não lhe é consentido por despacho excluir ou limitar as consequências do artigo 613.º do Código de Processo Civil, sendo certo que no caso concreto nenhum daqueles poderes foi invocado para justificar a tramitação seguida.
Como bem se refere no Ac. desta Relação de 05/12/2021[7] (que aqui seguimos de perto) “Admitir que chegado à sentença, o juiz anteveja a possibilidade de condenar a parte como litigante de má fé e, mesmo assim, em vez de fazer o que a lei processual determina (que cumpra previamente o contraditório e depois na sentença profira decisão sobre essa questão), ordene a notificação das partes para se pronunciarem sobre essa eventualidade, relegando a decisão sobre a litigância de má fé para um momento em que o seu poder jurisdicional já se encontra esgotado, seria, bem vistas as coisas, permitir-lhe alterar o objeto da sentença e excluir uma das causas de nulidade desta.
Portanto, se se der essa circunstância, o que o juiz tem de fazer é sobrestar a prolação da sentença e exercer o contraditório que estiver por cumprir e sem o qual ainda não pode decidir a questão. Não o fazendo, a decisão que, depois da sentença, vier a proferir sobre a litigância de má fé não deixa de enfermar de nulidade por conhecer de questão de que nesse momento o juiz já não pode conhecer”.
No caso concreto, decorre do relatório supra e do teor da sentença proferida pela primeira instância o pedido de condenação do Réu como litigante de má-fé foi formulado antes da prolação da sentença, com fundamento no anterior comportamento processual daquela parte, e, por assim ser, o Tribunal recorrido devia ter apreciado e decidido aquele pedido na sentença, e não em despacho posterior.
E não se argumente que, tendo a questão sido suscitada pela primeira vez nas alegações finais e estando o Tribunal a quo obrigado a assegurar o contraditório, se impunha relegar o conhecimento daquele pedido para momento posterior à prolação da sentença.
Não se questiona, naturalmente, a necessidade de assegurar o contraditório, tido pelo legislador em princípio basilar e estruturante do atual processo civil, como decorre do comando geral do artigo 3.º, n.º 3, do CPCivil.
Acontece que, o Tribunal recorrido sempre poderia ter dado imediata e expressamente a palavra ao mandatário do Réu para se pronunciar, querendo, sobre a alegada litigância de má-fé e, se tal se justificasse, poderia ter interrompido a audiência pelo tempo que necessário para a autora responder.
O que não podia, a nosso ver, era depois de ter encerrado a audiência e proferido a sentença, conceder prazo para a parte se pronunciar sobre uma questão que “deixou pendente” e apreciá-la posteriormente em despacho autónomo, ainda que ao abrigo dos poderes de gestão processual (artigo 6.º do CPC) e de adequação formal (artigo 547.º do CPC), pois estes não permitem modificar o objeto da sentença afastando as consequências do artigo 613.º do CPC.
De resto, no caso concreto, aqueles poderes de gestão processual e adequação formal nem sequer foram invocados e justificados, conforme exige a lei processual.
Neste sentido, para além do Ac. acima citado vide os acórdãos desta Relação de 27/02/2023 (pro. n.º 19346/20.5T8PRT-A.P1) de 02/05/2023 (proc. n.º 3625/21.7T8AVR.P1),  Ac. do TRG, de 02/06/2016 (proc. n.º 128/12.4TBVLN.G2), do TRC, de 08.09.2020 (proc. n.º 197/17.0T8TND.C2), do TRG de 24/03/2022 Processo n.º 7105/19.2T8GMR-A.G1 de 18/01/2024 Processo nº 18/21.0T8AMR.G1[8] bem como a demais jurisprudência citada nestes arestos.
Em sentido contrário pronunciaram-se os acórdãos do TRG de 10/05/2018 (proc. n.º 27/15.8T8TMC.G1) e de 31.10.2019 (proc. n.º 587/18.1T8PTL-A.G1), Ac. do TRL, de 12/07/2012 (proc. n.º 205/06.0TCSNT.L1-2) e Ac. do TRC, de 02.02.2016 (proc. n.º 115/12.2TBPNC.C2).[9]

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Diante do exposto, não tendo o tribunal recorrido conhecido da questão da litigância de má fé na sentença, não o podia ter feito depois da mesma, por tal lhe estar vedado pelos artigos 607.º, ns.º 1 e 2, 608.º, n.º 2, 613.º, ns.º 1 e 2, 543.º, n.º 3 do CPCivil.

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Aqui chegados a questão que agora importa dilucidar é qual o concreto vício que afeta o despacho que, em violação de lei, assim tiver sido proferido?
Debruçando-se sobre a questão, o STJ[10], apelando aos ensinamentos dos Srs. Profs. Paulo Cunha e Castro Mendes, entendeu que o vício aqui em causa é o da falta de poder jurisdicional de quem profere, neste caso concreto, despacho modificativo de decisão anteriormente proferida, gerando a sua inexistência jurídica.
  Na verdade, como refere o Prof. Castro Mendes[11] embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais (artigo 613.º, nº 3 do CPCivil), a verdade é que outros vícios podem afetar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites.
O referido Mestre denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).
Por sua vez Prof. Paulo Cunha[12] dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença (despacho) ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o juiz lavrar segunda sentença.[13]
Portanto, a sentença (despacho) inexistente, no dizer do Prof. Alberto dos Reis[14], é um mero ato material, um ato inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insuscetível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença.[15]
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Procedem, assim, as conclusões 1ª a 9ª formuladas pelo apelante e, com elas, o respetivo recurso e consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das restantes por eles colocadas em sede recursiva.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente, por provada e, consequentemente, declarar a inexistência jurídica da decisão que conheceu e condenou o apelante como litigante de má fé.
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Custas da apelação pelo apelante que do recurso tirou proveito (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 18/3/2024
Manuel Domingos Fernandes
Mendes Coelho
Anabela Mendes Morais
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[1] Alteramos, assim, a nossa posição em relação ao Ac. prolatado no processo nº 2432/18.9 T8GDM.P1 em que interviemos como segundo adjunto.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, 1981, volume V, p. 127, em anotação ao art. 666.º do CPC de 1939.
[3] Cfr. Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174.
[4]  Ibidem.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, 1981, Vol. II, pág. 281, em anotação ao artigo 466º do Código de Processo Civil de 1939.
[6] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2001, pág. 200.
[7] Processo nº 1211/14.7TBMTS.P1, consultável em www.dgsi.pt..
[8] Todos consultáveis em www.dgsi.pt..
[9] Tdos consultáveis em www.dgsi.pt..
[10] Cfr. Ac. de 06-05-2010 in www.dgsi.pt.
[11] In Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg. 369.
[12] In Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360.
[13] Tal posição mereceu, aliás, a discordância do Prof. Alberto dos Reis, Idem, pag. 113 e ss.
[14] Idem, pag. 114.
[15] Em sentido diferente, defendendo uma interpretação extensiva, do preceituado no art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, enquanto nulidade por excesso de pronúncia, vide Ac. da RG de 02/06/2016 já citado, mas com um voto de vencido.