Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1255/16.4T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE ALUGUER DE VEÍCULO
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201804111255/16.4T8VFR.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º129, FLS.226-236)
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de aluguer de veículo para transporte escolar celebrado entre um Município e uma empresa de transportes é um contrato a favor de terceiro porque os beneficiários da prestação são os estudantes - transportados - e os titulares das respectivas responsabilidades parentais - assim dispensados de assegurarem o transporte que tinham a obrigação de proporcionar aos estudantes.
II - Independentemente do direito de indemnização da menor que a empresa transportadora não entregou no infantário e abandonou durante horas no interior do autocarro estacionado, a mãe pode exigir da empresa transportadora responsabilidade pelo incumprimento da prestação de transporte da criança para o infantário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 1255/16.4T8VFR.P1 [Comarca de Aveiro / Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, contribuinte n.º ………, e C…, contribuinte n.º ………, residentes em …, Santa Maria da Feira, por si próprios e em representação da sua filha menor D…, instauraram acção judicial contra E…, motorista, contribuinte n.º ………, F…, vigilante/acompanhante, contribuinte n.º ………, ambos com domicílio profissional em Albergaria-a-Velha, e G… S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede em Albergaria-a-Velha, terminando a petição inicial pedindo a condenação solidária dos réus a pagar aos autores a quantia de €20.000,00 a título de indemnização por danos morais.
Para o efeito, alegaram que a sociedade ré realiza mediante contrato celebrado com a Câmara Municipal o transporte das crianças para escolas e infantários; no dia 11 de Novembro de 2014, pela manhã, a autora B… colocou a sua filha D… no autocarro da ré conduzido pelo 1.º réu e no qual o 2.º réu exercia as funções de acompanhante/vigilante; estes, em vez de entregarem a criança no infantário a que se destinava deixaram-na abandonada no interior do autocarro, o qual foi estacionado junto da via pública com a porta da frente aberta, tendo a criança permanecido sozinha no autocarro até ao final da manhã quando a mãe a procurou para levar para casa e deu pela sua falta; a criança e os pais sofreram, em consequência dessa situação, danos não patrimoniais cujo ressarcimento reclamam na acção.
O réu E… contestou alegando que era ao vigilante e não a si, motorista, que incumbia vigiar as crianças, que ignora se, no dia 11 de Novembro de 2014, a autora colocou a sua filha no autocarro, que nesse dia estava a conduzir um veículo diferente com crianças com as quais não estava familiarizado, que quando imobilizou o veículo confiou que o vigilante tenha retirado todas as crianças, que o veículo ficou estacionado numa estação de abastecimento de combustível com a porta dianteira aberta e ninguém se apercebeu da presença da menor.
O réu F… contestou, alegando que a sua função era apenas recolher as crianças nos pontos de paragem, vigiá-las durante o transporte e deixá-las nos estabelecimentos de ensino, que ignora se a autora colocou a sua filha no autocarro no dia 11 de Novembro de 2014, que nesse dia o veículo transportava crianças com as quais não estava familiarizado, que nem ele nem o motorista se aperceberam de ter ficado qualquer criança no autocarro.
A ré sociedade contestou, alegando que cumpriu com as regras relativas ao transporte colectivo de crianças, que desconhece se corresponde ou não à verdade que, no dia 11 de Novembro de 2014, a autora colocou a sua filha no autocarro, que o motorista e o vigilante cumpriram com os seus deveres, que os pais não têm direito a serem indemnizados.
Após julgamento foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando os réus, solidariamente, a pagar à menor D… a indemnização de €1.500,00 e à mãe B… a indemnização de €2.000,00, ambas acrescida de juros civis desde a data da sentença até integral pagamento.
Do assim decidido, a sociedade ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1] Há erro na apreciação da matéria de facto - isto nunca pondo em causa o princípio da livre apreciação das provas pelo Tribunal - pois, segundo a opinião da Apelante - e salvo o devido respeito e vénia - não foi dada a resposta que as provas produzidas impunham.
2] Pelo que considerar como provados os factos 6º e 7º, é não dar-se a resposta adequada face à prova produzida em audiência de julgamento, e que não tem um mínimo de correspondência com a mesma prova produzida e com a verdade dos factos, e é ainda não se fazer uma aplicação correcta do ónus da prova.
3] Com efeito, considerar-se tal é não ter em consideração que, competindo aos autores o ónus da prova dos factos por si carreados para o processo, nenhuma prova foi feita, e a eles lhes competia, que, no dia 11 de Novembro de 2014, a autora mãe, colocou a sua filha no autocarro da mencionada empresa, com a matrícula .. – BM - .., por volta das 8h40, numa paragem perto da Rua … em …, residência nessa data dos autores, para daí, o autocarro fazer o percurso para o Infantário H… em … e que a mesma ficou à responsabilidade do motorista e do vigilante.
4] Por isso, deve ser alterada a decisão dada sobre os factos 6º e 7º e os mesmos considerados como não provados;
5] De igual modo, considerar como provado o facto 23º, é não dar-se a resposta adequada face à prova produzida em audiência de julgamento, e que não tem um mínimo de correspondência com a mesma prova produzida e com a verdade dos factos, não ter em consideração o depoimento da testemunha I… e é ainda não se fazer uma aplicação correcta do ónus da prova.
6] Esta testemunha é peremptória em esclarecer, que a menor D… não sentiu susto, insegurança e medo.
7] Por isso, deve ser alterada a decisão dada sobre o facto 23º e o mesmo considerado como não provado.
8] A decisão sobre a matéria de facto que considerou os supracitados factos como provados deve ser anulada e alterada por esse Tribunal da Relação - dado que existem os circunstancialismos constantes do artº 662º do Cód. Proc. Civil - que lhes deverá dar as respostas acima enunciadas.
9] Devendo ser considerados como não provados, que, na opinião da Apelante - e salvo o devido respeito e vénia - as provas produzidas impõem.
10] No presente caso, o Mº Juiz a quo não fez uma correcta aplicação da Lei, da Justiça e do Direito, tendo violado as normas jurídicas e a lei, nomeadamente: artºs 8º, 9º, 342º, do Cód. Civil; artºs 152º, 607º e 615º do Cód. Proc. Civil - com as quais se devia conformar.
11] E o Mº Juiz ao proferir a sentença terá de interpretar correctamente a lei aplicável ao caso sub judice. Não o fez, e, daí ter considerado parcialmente procedente por parcialmente provada a presente acção - quando em face dos factos provados - tal decisão terá de ser ao contrário.
12] Face aos factos que se tem de considerar provados - ter-se-á de considerar improcedente a presente acção - na sua totalidade.
13] Assim, na apreciação da prova o tribunal "a quo" violou as regras da prova, nomeadamente o disposto nos artigos 414º, 607º, nº 4 e 5 do CPC e os artigos 342º, e 376º ambos do CC.
14] O Mº Juiz a quo não interpretou e aplicou correctamente as normas jurídicas correspondentes ao caso sub judice - face à constatação dos factos considerados provados, violando a lei.
15] Nos presentes autos o Tribunal recorrido condenou, solidariamente, os réus a indemnizar a autora B… no valor de €2.000,00, pelos danos não patrimoniais que esta diz ter sofrido com o facto de os demandados terem sido responsabilizados por terem deixado esquecida a sua filha menor, por umas horas, dentro de um autocarro.
16] Ou seja, o Tribunal recorrido considerou indemnizáveis os danos de natureza não patrimonial sofridos por um familiar da vítima directa da conduta geradora de responsabilidade civil extracontratual, ao arrepio da letra da lei.
17] Entendimento este que não sufragamos no caso concreto e que aqui impugnamos.
- Como é sabido, a respeito dos danos não patrimoniais, o Estudo/Projeto do Código Civil de Vaz Serra, incluía, no artigo 759.º, o § 5 (que se pode ver no BMJ, n.º 101, página 138), assim redigido: "No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2.º, têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores; mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata."
- Este texto não passou para o Código Civil, sendo ignorado nos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º
- No n.º 3 (agora n.º 4) deste último consignou-se mesmo que: "... no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior."
18] Face ao constante do projecto e, bem assim, ao acabado de transcrever, podemos mesmo inferir que a lei trouxe consigo a opção consciente pela recusa relativamente à tutela de direitos não patrimoniais de pessoa diferente vítima, quando esta se mantém viva.
19] Do disposto nos arts. 483º, 495º, nº 2 e 496º, nº 2, todos do Cód. Civil, resulta a regra de que a ressarcibilidade dos danos está reservada aos danos directos sofridos pela vítima da conduta do lesante, salvo as excepções fixadas no nº 2 do artigo 495º referido, aplicável quer em caso de morte da vítima quer em caso de simples lesão corporal não mortal, e salvo o caso de morte da vítima, segundo o previsto no nº 2 do artigo 496º mencionado.
20] Destas disposições resulta, em nosso entender, que apenas nessas situações excepcionais ali previstas, a lei permite o ressarcimento destes danos de terceiros, sendo a regra a da não ressarcibilidade destes danos de terceiros que decorrem indirecta ou reflexamente dos danos causados à vítima directa.
21] A entender-se da forma oposta, ficava sem razão de ser a previsão da ressarcimento constante do nº 2 do artigo 495º referido, pois tal já estaria contido na regra geral da ressarcibilidade de todos os lesados quer fossem lesados directos quer reflexos.
22] Poder-se-ia dizer que o citado preceito apenas visava delimitar as pessoas a quem a lei atribui esse direito.
23] Não é essa a nossa opinião pois a interpretação oposta impõe-se com o recurso ao elemento de interpretação histórico.
24] Com efeito, conforme se pode ver no Boletim do Ministério da Justiça, nº 101, pág. 138 e segs., o Prof. Vaz Serra que interveio activamente nos trabalhos preparatórios do Cód. Civil de 1966, formulou uma norma que previa clara e directamente a ressarcibilidade daquele tipo de danos, no § 5 da proposta de redacção oferecida para o art. 759º da parte do Direito das Obrigações daquele código, preceito este que não passou para o texto final por ter essa pretensão sido rejeitada.
25] Por outro lado, tendo o legislador regulamentado os familiares que têm direito a serem indemnizados em caso de morte da vítima, não o fez para o caso de a mesma não haver falecido, o que também aponta para a interpretação no sentido da não ter querido admitir a ressarcibilidade deste tipo de danos.
26] Foi assim uma opção consciente do legislador que pode ser discutível e que o tempo pode ter tornado ainda mais discutível, mas que temos de respeitar sob pena de o intérprete estar a invadir o campo de actuação do legislador, violando o princípio constitucional da separação dos poderes soberanos.
27] Neste entendimento, só excepcionalmente os danos sofridos por terceiros serão indemnizáveis, tendo sido para assegurar esse objectivo que foram introduzidos os dispositivos do nº 2 do artigo 495º e o nº 2 do artigo 496º já mencionados.
28] A estes argumentos poderíamos aduzir um outro: o da impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e a impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do argumento histórico, a exclusão impõe-se (Neste sentido, Dario de Almeida, Manual, p. 165, Antunes Varela, RLJ, ano 103.º, p. 250, nota 1, Revista dos Tribunais, ano 82.º, p. 409; Ac. da RP de 4.4.91, CJ, ano XVI, tomo I, p. 255; Ac. da RC de 20.9.94, CJ, ano XIX, tomo IV, p. 35, Ac. da RC de 26.10.93, CJ, ano XVIII, tomo IV, p. 69, Ac. da RL de 6.5.99, CJ, ano XXIV, tomo III, p. 88, Acs. do STJ de 13.1.70, BMJ n.º 193, p. 349 e de 21.3.2000, CJ, ano VIII, tomo I, p.138).
29] Obviamente que, com tudo o que se acaba de defender, não procuramos ignorar a posição adoptada pelo STJ no acórdão de uniformização do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2014 (Diário da República n.º 98/2014, Série I de 2014-05-22), mencionado na sentença recorrida;
30] Porém, importa, por um lado ter bem presente que a realidade sobre a qual versa o mencionado aresto é bem diferente - em termos qualitativos e de gravidade - daquela sobre a qual versa a sentença recorrida;
31] Com efeito, mesmo à luz da interpretação "evolutiva" defendida na fundamentação do Acórdão n.º 6/2014, para que tenha lugar indemnização de outrem exige-se que o dano psíquico por este sofrido seja grave, que seja compreensível face ao seu motivo e que exista entre ele e o lesado uma relação pessoal especial.
32] Mais concretamente - sempre pressupondo o atingimento do lesado de modo grave ou mortal - exige-se que o dano tenha atingido o chegado àquele na sua saúde de modo nítido e tenha ultrapassado claramente o normalmente sofrido por outras pessoas colocadas na mesma situação, sendo excluído se corresponder ao "normal risco da vida" em virtude da "envolvência nos acontecimentos do mundo.
33] O Supremo Tribunal tem sido muito rigoroso na aferição concreta destes requisitos, de sorte que está longe de se poder dizer que o ressarcimento seja a regra.
34] Não pode "abrir-se" a compensabilidade a todos os que, chegados ao lesado, sofram com o que aconteceu a este. Como refere Philippe Brun (Responsabilité Civile Extracontractuelle, 354): "...supondo admitido o princípio da reparação do prejuízo moral por ricochete, seria bom fixar-se regras simples evitando a inflação do coro de chorosos."
35] Assim como não podemos abrir a compensabilidade a todo um "coro de chorosos", também não a podemos abrir a todo o dano não patrimonial que, no caso do lesado, justificaria a tutela do direito.
36] Toda a argumentação que justifica a interpretação actualista defendida no Acórdão n.º 6/2014 tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no outro sofrimento muito relevante. Já Vaz Serra, no apontado texto da RLJ, justificava a sua posição com o caso dum filho que é atingido tão gravemente que os pais têm sofrimento não inferior ao que teria lugar se tivesse falecido.
37] A interpretação actualista arrasta consigo, limitando-a, a sua própria justificação.
38] Que inexiste no caso em que as lesões não são graves e ou o chegado ao lesado não tem sofrimento intenso. Repare-se que lesões ligeiras, demandando, por regra, compensação por danos não patrimoniais, demandam também, principalmente no caso de crianças ou outros dependentes, danos não patrimoniais aos ligados afectivamente àqueles. Por isso, não podemos interpretar o artigo 496.º, n.º 1 equiparando a vítima ao que lhe está afectivamente ligado.
39] Passaria a ser regra a "pulverização" indemnizatória, em dissintonia com o princípio-base de que é àquela que assiste o direito à compensação.
40] Temos de ter sempre presente que estamos a abrir uma brecha na dogmática geral de que é a vítima, se sobreviver, a pessoa a indemnizar.
41] Ora, de regresso ao caso dos autos, em face dos factos dados assentes pelo Tribunal recorrido quando comparados com as situações tidas em vista pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n.º 6/2014, forçoso será concluir que a situação dos autos não assumiu quanto à autora B… o grau de gravidade pressuposto pelo Supremo Tribunal de Justiça no mencionado aresto, em termos que justifiquem o abandono da posição "regra" assumida pelo legislador no artigo 496.º do Cód. Civil.
42] O que, de resto, é reconhecido pelo próprio Tribunal recorrido atentos à medida em que este fixou a quantificação da indemnização pelo dano não patrimonial sofrido pela mãe da menor, a autora B… (€2.000,00).
43] Ao decidir nos termos em que o fez, violou o Tribunal recorrido as disposições conjugadas dos artigos 483.º e 496.º, ambos do Cód. Civil.
44] O que, no nosso modesto entendimento, justificará a reformulação da sentença recorrida em termos quem neguem à autora B… o direito a ser indemnizada pelos danos de natureza patrimonial, alegadamente, sofridos pelo episódio dos autos.
A decisão recorrida viola a lei e determinadas normas jurídicas - havendo assim nulidade da mesma sentença - de acordo com os artºs 8º, 9º, 342º, 483.º e 496.º do Cód. Civil; artºs 152º, 607º e 615º do Cód. Proc. Civil.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a sentença recorrida é nula.
ii) Se deve ser alterada a decisão de julgar provados os factos dos pontos 6, 7 e 23.
iii) Se existe fundamento jurídico para condenar os réus a indemnizar a mãe da criança deixada ao abandono no autocarro pelos danos morais que esta situação lhe causou a si.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1) Os autores são progenitores da menor D…, nascida a 15 de Setembro de 2011.
2) Assim que a D… completou 3 anos de idade, os autores matricularam-na no Jardim de Infância H…, pertencente ao agrupamento escolar de …, Santa Maria da Feira.
3) E numa primeira fase de adaptação, a D… frequentava apenas o horário da manhã, ou seja das 9.00 às 12,00 h., após o qual, diariamente, a autora progenitora, ia buscar a menor ao mencionado Jardim de Infância.
4) A condução da menor pela manhã para a escola, era feita diariamente, pelos autocarros da empresa "G…, S.A.", empresa com a qual o Município de …., representado pelo seu então Presidente, tinha celebrado um contrato de transporte, pelo qual a mencionada empresa se obrigou a transportar crianças em idade pré e escolar.
5) Existiam locais de paragem (recolha) previamente definidos pela Câmara Municipal no trajecto para as escolas, locais onde os pais das crianças iam levar os seus filhos para serem "recolhidos" pelo autocarro para serem transportados até às escolas e onde os pais das crianças esperavam para lhes serem entregues os filhos quando do trajecto inverso.
6) No dia 11 de Novembro de 2014, como habitualmente fazia, a autora mãe, colocou a sua filha no autocarro da mencionada empresa, com a matrícula .. – BM -..., por volta das 8h40, numa paragem perto da Rua …, em …, residência nessa data dos autores, para daí, o autocarro fazer o percurso para o Infantário H… em ….
7) Ficando à responsabilidade do motorista e do vigilante, a D…, bem como todas as outras crianças que seguiam no mencionado autocarro, aliás, como diariamente acontecia.
8) Cerca das 12 horas, quando a autora foi buscar a sua filha ao Infantário, a funcionária perguntou-lhe o que estava ali a fazer, pois a D… não tinha ido à escola nessa manhã.
9) A autora respondeu que tinha ido buscar a D… e que sim, a menina tinha vindo para a escola.
10) Todavia, ninguém na escola tinha visto a D… nessa manhã e a verdade é que a menina não estava na escola/infantário.
11) Com estas palavras, a autora ficou sem reacção, completamente em pânico, a pensar somente no que teria acontecido à sua filha e onde estaria ela.
12) Auxiliada e amparada pela tia da menor, J…, que se encontrava com ela e por outra mãe que ali se encontrava, começaram a procurar a D… pelas várias salas da escola e pelas imediações.
13) Seguiram-se momentos de desespero.
14) Entretanto, o Infantário entrou em contacto com o agrupamento de escolas a que pertence e, cerca das 12.45h tiveram conhecimento que a GNR tinha constatado, por volta das 12.15h, que se encontrava uma criança pequena, sozinha, dentro de uma carrinha de transporte escolar, com a matrícula .. – BM - .., pertencente à empresa G…, S.A..
15) O dito veículo encontrava-se estacionado na berma oposta às Bombas de Combustível …, na Av. … em …, sem nenhum responsável por perto.
16) A criança encontrava-se sozinha, chorosa, assustada e molhada, em virtude de ter urinado.
17) O condutor do referido autocarro era E… e o vigilante, F…, ambos funcionários da mencionada empresa "G…, S.A.", os quais esqueceram-se da menor D… no autocarro.
18) A GNR constatou ainda que uma das portas do autocarro estava aberta.
19) Posteriormente, quando entregaram a D… à autora cerca das 13,00h e esta lhe pegou ao colo, a criança ficou mais calma.
20) Não obstante, continuava chorosa e sem calções e questionada pela mãe por que razão não trazia calções, respondeu que os tinha tirado por ter feito "xixi" e estar molhada.
21) Nesse mesmo dia, a autora levou a D… ao pediatra, para aferir se havia algum sinal de abuso sexual, tendo o resultado sido negativo.
22) Durante essa semana a D… teve algumas dificuldades em dormir.
23) A menor D… sentiu susto, insegurança e medo.
24) A mãe viveu cerca de uma hora de desespero, pânico, sem saber onde estava a sua filha, ou o que lhe teria acontecido, constantemente a vir-lhe ao pensamento a ideia de que talvez nunca mais viesse a ver a sua menina.
25) Naquele dia foi confiado ao réu motorista o autocarro de maiores dimensões.
26) Porque foi atribuído ao réu um autocarro de maiores dimensões do que o habitual, o que tornava impossível o seu acesso ao Infantário H…, as crianças terem de sair a cerca de 50 metros deste estabelecimento de ensino e seguirem a pé até lá, e assim, nesse dia, o réu imobilizou o autocarro que conduzia e aguardou que as crianças saíssem do mesmo, auxiliadas pelo vigilante.
27) Quando este terminou a retirada das crianças do autocarro, com excepção da menor D…, por uma questão de segurança e pela distância que teriam de percorrer, o réu ainda ajudou aquele a levar os menores até ao infantário H….
28) Depois de terminado o serviço matinal de transporte das crianças, o réu conduziu o Réu vigilante a sua casa e depois conduziu o autocarro até junto da estação de abastecimento de combustível sita na Avenida …, em …, onde esteve imobilizado toda a manhã.
IV. O mérito do recurso:
A] nulidade da sentença:
No § que se segue ao último artigo das conclusões das alegações de recurso a recorrente afirma que a decisão recorrida é nula e cita o artigo 615.º do Código de Processo Civil que concerne precisamente aos casos de nulidade da sentença.
Trata-se, no entanto, de uma afirmação sem qualquer suporte uma vez que a recorrente não alega sequer em que consiste essa nulidade, qual das situações, diversas e diferenciadas entre si, previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil estaria verificada no caso.
Acresce que são consabidamente distintas as situações em que a decisão fez uma errada qualificação jurídica dos factos, aplicou norma legal que não devia ter aplicado ou que não gera a solução pronunciada, e as situações em que a sentença é nula, o que apenas ocorre se e quando a sentença estiver compreendida nalguma das situações típica e taxativamente indicadas no artigo 615.º do Código de Processo Civil.
No primeiro caso, estamos perante uma deficiência do nível do mérito da sentença, que motivará a sua revogação ou alteração pelo tribunal de recurso, no segundo caso estaremos perante uma deficiência ao nível do conteúdo estrutural da decisão, que motivará a necessidade de refeitura da decisão, antes de se entrar na análise do respectivo mérito. A circunstância de uma determinada sentença ter aplicado lei não aplicável ou desaplicado lei aplicável ou ter suportado a decisão numa interpretação errada de normas jurídicas prende-se com o (de)mérito da sentença e não gera em caso algum a sua nulidade.
Desatende-se por isso a (suposta) arguição de nulidade da sentença.
B] recurso da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente defende que os factos dos itens 6 e 7 devem ser julgados não provados uma vez que «nenhuma prova foi produzida» pelos autores.
Basta ler a motivação da decisão sobre a matéria de facto para verificar que, segundo o Mmo. Juiz a quo, foram produzidos meios de prova sobre estes factos. Na motivação são referidos os depoimentos da tia da menor J… mas também os depoimentos dos dois soldados da GNR que participaram nas diligências para localização da menor e a encontraram no autocarro, acrescentando-se que «o aspecto da mesma reflectia que tinha estado abandonada durante a manhã».
Nessa medida, o argumento de que não foi produzida prova improcede em absoluto. O mais que se pode questionar é se os meios de prova produzidos são suficientes para essa matéria de facto ser julgada provada. É isso, afinal, o que a recorrente sustenta no corpo das alegações, mas que não transportou para as respectivas conclusões.
Defende a recorrente que o relato que a mãe, a tia e outra mãe fazem das diligências realizadas desde que se deu pela falta da criança na escola até que ela foi encontrada não pode ser aceite porque o lapso de tempo em que referem que tal aconteceu não é compatível com a realização de tudo o que foi descrito.
A recorrente termina perguntando: «Caberá tal situação, muito mal explicada em audiência de julgamento, nas regras do bom senso? Terá critério de razoabilidade? Certamente que não.»
Seguindo a lógica da recorrente, então a criança não foi entregue para ser transportada no autocarro. Mas como a recorrente não questiona que ela foi encontrada ao final da manhã no interior do autocarro no local onde este foi estacionado pelo respectivo motorista depois do transporte, só restaria a explicação de a mãe da criança ter inventado tudo isto, ter ido procurar onde estava estacionado o autocarro depois do transporte, ter apurado que este tinha uma porta aberta e que não estava lá ninguém para a ver, e ter ido ao final da manhã colocar a filha no autocarro, para depois ir a correr à escola perguntar pela filha e mostrar uma falsa preocupação por a filha ali não se encontrar, não deixando de instruir a filha de três anos para simular o desespero que mostrou quando foi encontrada.
Cabe então perguntar: essa explicação é verosímil?, tem razoabilidade?, cabe nas regras do bom senso?
A audição integral da gravação da audiência de julgamento e dos depoimentos nela produzidos, designadamente os depoimentos referidos na motivação da decisão recorrida, não nos deixa a mais pequena dúvida de que a criança foi levada ao autocarro para ser transportada neste para a escola.
Talvez por isso, a recorrente não impugna a decisão relativa aos factos 17, no qual foi dado como provado que o motorista e o vigilante «esqueceram-se da menor D… no autocarro» - o que pressupõe obviamente que ela já lá estava - e 27, no qual foi dado como provado que o vigilante retirou as crianças do autocarro «com excepção da menor D…» - o que significa que ela estava lá e foi deixada lá -!
Acresce que nem os réus motorista e vigilante do autocarro - que eram quem podia ter presenciado o facto - sustentam coisa diversa nas suas contestações, limitando-se a afirmar que não se aperceberam disso, quando a sua obrigação era precisamente a de saberem exactamente que crianças lhe eram entregues para transportarem!
Os factos 6 e 7 foram pois correctamente julgados provados e como tal se manterão.
A impugnação da decisão relativa ao facto do item 23 é também surpreendente.
Com efeito, bastava à recorrente ler com atenção a transcrição que fez no corpo das alegações do depoimento da psicóloga I… para, independentemente da forte ligação familiar desta testemunha aos próprios réus, constatar que mesmo esta testemunha afirmou considerar normal - «normativo», segundo as suas palavras - que a criança se tenha assustado por ter estado algumas horas sozinha no autocarro, sem ninguém que olhasse por ela, sem saber quando essa situação iria terminar.
Usando a fórmula da recorrente, caberia perguntar se não será normal, provável, verosímil e correspondente às regras da experiência comum e do bom senso que uma criança de três anos que se vê abandonada no interior de um autocarro e onde permanece sozinha durante várias horas sinta medo e insegurança e fique assustada? A resposta parece-nos de tal modo óbvia, que apenas se estranha como é possível defender o contrário. A decisão de julgar provado este facto afigura-se-nos, pois, igualmente correcta.
Improcede assim a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
C] matéria de direito:
Na sentença recorrida os réus foram todos condenados, solidariamente, a pagar as indemnizações por danos não patrimoniais, no valor de €1.500,00 à autora D… (filha) e no valor de €2.000,00 à autora B… (mãe).
Desta decisão recorre apenas a ré sociedade, não recorreram os réus motorista e vigilantes.
No tocante à indemnização fixada à menor a ré sociedade apenas funda o pedido de revogação da decisão na modificação da matéria de facto, que, como ficou já decidido, improcedeu.
A recorrente não suscita qualquer questão de direito relativa à aplicação do direito aos factos para fundamentar a revogação da decisão dessa parte, pelo que não é objecto de recurso nem pode ser apreciado o modo como essa aplicação foi feita da sentença recorrida e conduziu à decisão de condenação no pagamento à autora menor.
Nessa medida, no que concerne à matéria de direito o objecto do recurso é composto exclusivamente pela decisão de condenação no pagamento de indemnização à autora B… (mãe).
Para condenar no pagamento da indemnização à mãe, o Mmo. Juiz a quo entendeu que a menor D… ficou sozinha no interior do autocarro durante várias horas, aí esquecida pelo motorista e pelo vigilante do autocarro que a deveriam ter transportado e deixado na respectiva escola, e, por esse motivo, a mãe, em resultado do pânico que vivenciou ao tomar conhecimento disso e até encontrar a filha, sofreu uma «violação dos seus direitos de personalidade» - nas dimensões de «direito à tranquilidade», «direito ao repouso», «direito à sua integridade moral e à paz de espírito» - geradora de um dano próprio, o qual é indemnizável.
A recorrente insurge-se contra este entendimento, defendendo que dessa forma o tribunal a quo «considerou indemnizáveis os danos de natureza não patrimonial sofridos por um familiar da vítima directa da conduta geradora de responsabilidade civil extra-contratual», o que vai contra o disposto nos artigos 483.º e 496.º do Código Civil que apenas prevêem a indemnização dos danos reflexos ou indirectos nos casos de morte da vítima, sendo certo que no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014 o Supremo Tribunal de Justiça admite a interpretação extensiva daqueles preceitos em relação a danos não patrimoniais do terceiro que sejam particularmente graves e estejam associados a danos da vítima também particularmente graves, o que de forma alguma aqui ocorre.
No que concerne à menor, não parece haver dúvidas de que o comportamento (por omissão) dos réus traduziu uma ofensa ilícita a um direito de personalidade da própria. Com efeito, ainda que a matéria de facto não o revele de forma explícita, o abandono de uma criança de apenas três anos sozinha durante cerca de três horas num autocarro estacionado e com uma das portas abertas, constituiu seguramente uma exposição a um perigo para a vida e para a integridade física da criança uma vez que esta, pela sua idade, não dispõe de discernimento, capacidade e autonomia para se proteger numa situação dessa natureza.
Como veremos mais à frente, na execução do transporte entre a paragem e o infantário os réus estavam obrigados legalmente a zelar pela segurança das crianças transportadas, pelo que sobre eles recaía o dever jurídico de não sujeitar a criança à situação em que a colocaram (o dever jurídico de a entregar no infantário no final da viagem, confiando-a em segurança aos funcionários e do infantário que a partir desse momento assumiriam a guarda e o cuidado da criança) e, consequentemente, a mera omissão do comportamento devido (o abandono) dá lugar à obrigação de reparar os danos (artigos 483.º e 486.º do Código Civil).
Acresce que precisamente por existir norma legal (artigo 8.º da Lei n.º 13/2006, de 17 de Abril) que no transporte escolar de crianças impõe ao transportador o dever de zelar pela segurança das crianças, utilizando mesmo uma pessoa afecta especialmente a essa função denominado por vigilante, aquela responsabilidade, caso não adviesse da primeira parte do artigo 483.º do Código Civil, adviria da segunda parte da mesma norma, isto é, da violação de disposição legal destinada a protegera interesses alheios.
Não é, todavia, essa a questão que cabe analisar. O que temos para decidir é a responsabilidade perante a mãe da menor. Ora em relação a esta não cremos que se possa afirmar que estamos de facto perante uma situação de responsabilidade civil, leia-se responsabilidade aquiliana ou extracontratual.
Os pressupostos da responsabilidade no domínio contratual e no domínio extracontratual são comuns: para haver responsabilidade é necessário o preenchimento conjunto dos seguintes pressupostos: o facto voluntário (que pode ser uma omissão); a ilicitude do facto; a culpa (dolo ou negligência) do agente; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
A especificidade reside em que enquanto na responsabilidade extracontratual a ilicitude resulta da violação de um direito de outrem ou da violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios (artigo 483.º do Código Civil), na responsabilidade contratual a ilicitude emerge da violação de uma obrigação, da inexecução pelo devedor da prestação a que estava obrigado (artigo 798º do Código Civil).
Para se poder falar em ilicitude no domínio aquiliano é assim necessário que estejamos ou perante a violação de bens e interesses que constituam o conteúdo de um direito subjectivo absoluto do lesado ou perante uma actuação do agente que viole uma norma legal cuja prescrição pretenda, além do mais, proteger determinadas pessoas contra certos tipos de danos. No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem.
O direito subjectivo é, segundo Orlando de Carvalho, in Teoria Geral do Direito Civil, Sumários para o 2º Ano, Centelha, 1981, pág. 31, o mecanismo de regulamentação adoptado pelo Direito, que consiste na concreta situação de poder que faculta a uma pessoa em sentido jurídico intervir autonomamente na esfera jurídica de outrem, seja porque lhe faculta o poder de exigir de outra um determinado comportamento positivo ou negativo seja porque lhe faculta o poder de por um acto de vontade seu produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inelutavelmente a outra pessoa. Entre os direitos subjectivos mais determinantes para a tutela efectiva da personalidade humana contam-se os chamados direitos de personalidade, como o direito à saúde, à integridade física, ao repouso, ao bom-nome, à honra e à reputação.
Tanto quanto a interpretamos, não se vislumbra na matéria de facto a violação de qualquer direito subjectivo absoluto da mãe.
O direito de personalidade, ainda que abarque a totalidade dos interesses que hodiernamente se aceita estarem implicados num desenvolvimento normal, são e pleno da pessoa por forma a alcançar a formação e desenvolvimento de uma personalidade sadia, e para o efeito necessite de possuir elasticidade suficiente para permitir um contínuo incremento, não vai ao ponto de tutelar aquilo que tenha apenas a ver com a causação de medo, preocupação ou mesmo pânico (excepto, talvez, se estes tiverem uma extensão e duração tais que acabem por se traduzir numa afectação da liberdade de autodeterminação da pessoa, num forte e duradouro condicionamento da vivência da pessoa).
Não pode partir-se da ideia de que o medo, o susto e a preocupação foram grandes – estamos a falar do dano -, nem da constatação de que a falha que esteve na origem dessa reacção é grave e revela um desprezo pelos deveres de cuidado – estamos agora a referirmo-nos à culpa, na modalidade da negligência - para daí inferir que houve uma violação do direito de personalidade – agora é de ilicitude que falamos -.
É necessário, em primeiro lugar, afirmar o comportamento – ainda que omissivo, já que as simples omissões também dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido: artigo 496.º do Código Civil – e determinar se o mesmo importa a violação de um direito subjectivo absoluto, sem o que não existe responsabilidade civil por maior que seja a incúria subjacente ao evento lesivo e expressivas as consequências do mesmo.
O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, in D.R. Série I de 2014-05-22, que fixou o entendimento de que «os artigos 483.º, n.º1 e 496.º, n.º1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave», não pode ser invocado para suprir aquele requisito (a ilicitude decorrente da violação de um direito subjectivo absoluto).
De todo o modo, o que aí se decidiu foi que havendo uma violação de um direito subjectivo do lesado que lhe tenha causado danos particularmente graves, é atendível do ponto de vista indemnizatório a posição do familiar que em virtude dos deveres de assistência e cooperação morais decorrentes da relação familiar (em particular a relação conjugal) acaba por sofrer, de forma particularmente grave, uma perda de autonomia pessoal.
Cremos bem que a situação não é de modo algum comparável à dos autos quando aqui nem sequer foi alegado que a criança (ou a mãe) tenha sofrido um trauma que exija acompanhamento psicológico constante e prolongado e do qual resulte uma afectação significativa e suficientemente duradoura da sua saúde psíquica ou bem-estar psicológico.
Todavia, ao contrário do que sustenta a recorrente, da conclusão de que no caso não ocorreu a violação de qualquer direito subjectivo absoluto da mãe da criança (i.é., um acto ilícito sobre ela) não se pode concluir sem mais que os réus não são responsáveis pelos danos não patrimoniais sofridos pela mãe.
Com efeito, a nosso ver pode encontrar-se fundamento para essa responsabilidade no incumprimento da obrigação – inexecução da prestação – que os réus se obrigaram a realizar através do contrato de transporte escolar celebrado com o Município. Expliquemos porquê.
Resulta da matéria de facto que a ré sociedade celebrou com o Município de … um contrato de transporte escolar através do qual se obrigou a proporcionar aos alunos deste Município em idade escolar e pré-escolar transporte entre um local de recolha definido e a respectiva escola. Resulta ainda que o evento que dá causa de pedir à acção ocorreu quando a sociedade ré, com recurso ao seu veículo e aos seus funcionários – motorista e vigilante – se encontrava a realizar esse serviço de transporte escolar.
O Decreto-Lei n.º 299/84, de 5 de Setembro, transferiu para os municípios as competências em matéria de organização, financiamento e controle de funcionamento dos transportes escolar.
No seu artigo 2.º este diploma estabelece que essas competências «consistem na oferta de serviço de transporte entre o local da sua residência e o local dos estabelecimentos de ensino que frequentam a todos os alunos dos ensinos primário, preparatório TV, preparatório directo e secundário, oficial ou particular e cooperativo com contrato de associação e paralelismo pedagógico quando residam a mais de 3 km ou 4 km dos estabelecimentos de ensino, respectivamente sem ou com refeitório».
O artigo 6.º estabelece que o transporte escolar será feito, em princípio, através dos meios de transporte colectivo que sirvam os locais dos estabelecimentos de ensino e de residência dos alunos, mas sempre que esses meios não satisfaçam regularmente as necessidades do transporte escolar poderão ser utilizados veículos em regime de aluguer para a realização de circuitos especiais. Esta última é precisamente a situação em que no caso a ré realizava o transporte.
O artigo 14.º estabelece que as empresas são obrigadas a assegurar o transporte de todos os estudantes portadores de bilhetes de assinatura, realizando para o efeito os indispensáveis desdobramentos que regularmente se justifiquem.
E os artigos 11.º e 13.º estabelecem que os estudantes têm direito a um passe escolar para poderem usar os transportes escolares e que o pagamento dos respectivos passes é feito pela Câmara Municipal.
Por sua vez a Lei n.º 13/2006, de 17 de Abril, define o regime jurídico do transporte colectivo de crianças e jovens até aos 16 anos, adiante designado por transporte de crianças, de e para os estabelecimentos de educação e ensino, creches, jardins-de-infância.
O artigo 8.º deste diploma estabelece que no transporte de crianças é assegurada, para além do motorista, a presença de um acompanhante adulto designado por vigilante, a quem compete zelar pela segurança das crianças, o qual deve ocupar um lugar que lhe permita aceder facilmente às crianças transportadas, cabendo-lhe, designadamente: a) garantir, relativamente a cada criança, o cumprimento das condições de segurança previstas no diploma; b) acompanhar as crianças no atravessamento da via, usando colete retrorreflector e raqueta de sinalização, devidamente homologados.
O contrato celebrado entre a sociedade ré e o Município de … é um contrato de aluguer de veículo para a realização de transporte escolar. Através dele a ré obrigou-se perante o Município a proporcionar aos estudantes servidos pela linha definida pelo Município e confiada ao serviço da ré o transporte entre os pontos de paragem e as respectivas escolas.
Embora tenha sido o Município, por incumbência legal, a contratar o serviço e a suportar a correspondente remuneração da ré, quem recebe a prestação objecto do serviço não é o Município é o estudante, pois é este que a ré transporta, cumprindo a prestação contratual negociada com o Município. Em rigor, os utilizadores da prestação são, pois, o estudante e os titulares das respectivas responsabilidades parentais.
O estudante, porque é quem tem direito à educação e ao transporte para poder frequentar o ensino obrigatório e que é efectivamente transportado (beneficiário de facto). Os titulares das responsabilidades parentais relativas ao estudante menor, porque são eles que têm a obrigação legal, emergente dessas responsabilidades, de lhe proporcionar alimentos, onde se inclui tudo quanto é necessário para ele ter acesso à educação e formação profissional (artigos 1874.º, n.º 2, e 1878.º, n.º 1, do Código Civil).
Ao proporcionar ao estudante transporte, o Município está a disponibilizar aos titulares das responsabilidades parentais – pais ou não – uma forma de concretizar parte do esforço que a estes era exigível de custear as despesas com a educação, no que se incluem as despesas com o transporte de casa para a escola e de regresso a casa (artigo 1879.º do Código Civil).
Ao facultar, por obrigação legal, transporte aos estudantes, o Município liberta os progenitores e titulares das responsabilidades parentais desse encargo e da necessidade de se organizarem para fazerem o transporte por outra via, dando-lhes o benefício do transporte organizado e regular dos seus filhos, pelo que estes são afinal os beneficiários materiais da prestação do transporte.
Tanto é assim que no decurso do transporte (na execução da sua prestação) a transportadora está obrigada, legalmente, a zelar pela segurança dos estudantes transportados, assumindo assim, nesse espaço temporal e nessa actividade, os deveres que cabem aos titulares das responsabilidades parentais, substituindo-os nesse desempenho, pelo que também por essa razão a prestação dos transportes é exercida em benefício desses titulares.
Encontramo-nos assim perante um contrato a favor de terceiro, tal como este é definido no artigo 443.º do Código Civil. De acordo com este preceito, o contrato a favor de terceiro é aquele em que alguém (o promitente) se obriga perante outrem, que nisso tem um interesse digno de protecção legal (o promissário), a efectuar uma prestação a um terceiro estranho ao negócio. Celebrado o contrato, o terceiro adquire o direito à prestação prometida, independentemente de aceitação, razão pela qual poderá, de forma autónoma, exercer o direito ou reclamar o cumprimento da prestação pelo promitente, sem prejuízo de o promissário poder igualmente exigir esse cumprimento.
Uma vez que a sociedade ré estava obrigada a transportar a autora D… para o respectivo infantário, recorrendo para o efeito a um veículo, um motorista e um vigilante encarregue de zelar pela segurança da criança, acompanhando-a na saída do veículo até a confiar às pessoas ao serviço do infantário, temos de concluir que ao não transportar a criança até ao seu respectivo infantário e ao deixá-la esquecida no interior do autocarro estacionado noutro local, a ré não realizou a prestação devida e faltou ao cumprimento da sua obrigação contratual.
Esse incumprimento da ré presume-se culposo (artigo 799.º do Código de Processo Civil), pelo que cabia à ré demonstrar que tal não sucedeu por culpa sua, o que manifestamente não ocorreu. Ao invés, resultou provado que os funcionários da ré, no desempenho das suas funções, se esqueceram da D… no autocarro, o que significa que omitiram o dever de cuidado e de vigilância que a execução do contrato e o regime legal aplicável lhes impunha e por isso incorrerem em negligência.
O cumprimento da prestação contratual podia ser exigido à ré pelo Município, mas também, de forma autónoma pela D… e pelos respectivos pais. Por conseguinte, são também estes que lhe podem exigir responsabilidade pelos danos decorrentes do não cumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação.
Ora, é hoje aceite de forma pacífica na jurisprudência[1] e por alguma doutrina[2] que também em sede de responsabilidade contratual os danos não patrimoniais são indemnizáveis desde que se mostrem merecedores da tutela do direito e estejam preenchidos os respectivos pressupostos.
A nosso ver é, manifestamente, esse o caso, porquanto avaliamos como particularmente intenso o pânico que uma mãe sente ao descobrir que uma filha menor de três anos que supunha estar na escola está afinal desaparecida, em local, condições e circunstâncias que desconhece e pode supor serem as mais trágicas ou penosas, sendo mantida nessa indefinição ao longo de cerca de uma hora.
Nessa medida, este dano, da responsabilidade da ré, merece claramente a tutela do direito e deve ser indemnizado. No que concerne ao montante da indemnização, a qual deve ser fixada com base na equidade, atenta a intensidade da negligência dos réus, o facto de a ré ser uma sociedade comercial que se dedica comercialmente a esta actividade possuindo meios e recursos próprios para o efeito, a necessidade de a gravidade da situação ser interiorizada pela ré e a conduzir à adopção de mecanismos destinados a evitar que torne a acontecer algo semelhante, a situação de enorme indefesa da menor, o tempo que levou até a menor ser localizada e recuperada pela mãe, o nível do pânico e do desespero que numa situação desta uma mãe vivencia e a sua repercussão futura até à recuperação plena da confiança em entregar a filha aos cuidados de terceiros, entendemos que a indemnização fixada é adequada e não excessiva.
Aliás, se nos é permitido, o mais que se pode censurar na decisão recorrida é mesmo o ter fixado uma indemnização a favor da menor aquém do que no nosso critério devia ter ocorrido, situação que não nos é possível alterar por tal não ter sido objecto de recurso.
Cabe referir, a terminar, que muito embora na petição inicial os autores hajam mencionado como fundamento jurídico da sua pretensão o instituto da responsabilidade aquiliana e não o da responsabilidade contratual, os factos nos quais repousa a decisão desta Relação foram expressamente alegados pelos autores no mesmo articulado para alicerçar aquele fundamento, razão pela qual esta decisão se cinge e respeita a causa de pedir (os factos jurídicos concretos) alegada pelos autores e com a qual os réus tinham de contar, divergindo somente na sua qualificação jurídica, sendo que nessa tarefa goza de liberdade que lhe permite afastar-se da qualificação jurídica dos factos formulada na petição inicial (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Improcede assim o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, pelo diferente fundamento jurídico que se expôs, confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.

Porto, 11 de Abril de 2018.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto416)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
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[1] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de 21.03.95, in BMJ 445, pág. 487, de 25.11.97, in CJ-AcSTJ, Ano V, T. 3, pág. 140, de 17.11.98, in CJ, Ano VI, T. 3, pág. 124, de 08.02.2001, in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, 48º, de 19.05.2001, in CJ Ano IX, T. 2, p. 71, de 04.04.2002, de 03.04.2003, de 14.12.2004, de 08.06.2006, de 12.09.2006 e de 22.01.2008, de 12.03.2009, de 21.05.2009, de 24.09.2009, de 30.04.2014, todos in www.dgsi.pt.
[2] Cf. Vaz Serra, in Reparação do dano não patrimonial, Boletim do Ministério da Justiça, 83, pág. 104, e Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual, Boletim do Ministério da Justiça, 85, pág. 115 e seg., Pinto Monteiro, in Cláusula penal e indemnização, pág. 31, nota 77, e Almeida Costa, in Direito das Obrigações, págs. 395-396.