Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18884/18.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP2019102118884/18.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 10/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes.
II - Destarte, não se excluem, para o despoletar, alertas, sugestões e, mesmo, requerimentos, a apresentar pela parte nelas interessadas, tendo, cada uma delas o direito de influenciar o Tribunal em busca de decisão, a si, favorável.
III - O art. 526º, do CPC, materializando aquele princípio, visa salvaguardar a possibilidade de se inquirir uma pessoa sobre quem se gerou a convicção de o seu depoimento se revelar importante para a boa decisão da causa, por dos autos (dos articulados da causa ou de qualquer meio de prova produzido ao longo do processo e não, meramente, em audiência de julgamento) decorrer a presunção de conhecer os factos em discussão, impondo-se, nesse caso, ao juiz que ordene a sua notificação para depor.
IV - Tal imposição é independente e autónoma da posição que as partes tenham tomado quanto à seleção de meios de prova e da possibilidade, que tenha havido, de indicação do concreto meio em causa, bastando que objetivamente se revele necessário à realização dos referidos fins.
V - A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC - porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa –, pode, validamente, ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 18884/18.4T8PRT-A.P1
Processo do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 6
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, Lda
Recorrida: C…, Lda

Veio a Autora, B…, Lda., recorrer do despacho, proferido em audiência de julgamento, realizada em 19 de Junho de 2019, que se pronunciou sobre o seu requerimento a solicitar, ao abrigo do disposto no artigo 526º do CPC, a inquirição de D… para depor em audiência de julgamento, por a mesma ter conhecimento de factos importantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, “para clarificar o ato das funções desempenhadas na Ré”,uma vez que uma das questões controvertidas nestes autos é justamente a prestação desta mesma testemunha e a influência do trabalho desenvolvido pela Autora, mormente face à interpretação da cláusula nº 7 do contrato, e da consequente cessação do contrato, com base no fundamento de tal cláusula, tal matéria foi objeto de discussão, nomeadamente, no depoimento de parte do sócio gerente da Autora e da testemunha E…, bem como das restantes testemunhas arroladas pela autora e já inquiridas, embora de uma forma mais genérica, a propósito das funções que são atribuídas a um técnico de contabilidade, além disso, também foi aflorado nos depoimentos das testemunhas F… e G…, bem como, pela testemunha H…, as quais se referiram à prestação da atividade da Ré por tal testemunha”.
O referido requerimento, que teve a oposição da Ré, C…, Lda, por a requerida inquirição ser por iniciativa do Tribunal e não das partes, e por a questão -“se existiu, ou não, a funcionária” (sendo ela D…) - se ter já colocado e a Autora ter tido a possibilidade de a indicar como testemunha, não o tendo feito, mereceu o seguinte despacho:
Considerando que a questão da funcionária e as suas funções foi debatida nos respetivos articulados e que terá sido opção da Autora não a arrolar como testemunha, não poderá agora atender-se do seu eventual arrependimento com recurso ao disposto no artigo 526º, que se destina a chamar pessoas a depor cuja revelação dos conhecimentos possuídos acerca da questão debatida surge no âmbito da audiência final, o que manifestamente não é o caso.
Assim sendo, indefere-se o requerido”.
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A Autora apresentou recurso de apelação, pugnando por que o referido despacho seja revogado, determinando-se a notificação de D… para depor na audiência de julgamento, formulando, para tanto, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. O despacho proferido pelo Tribunal a quo, na audiência de julgamento que se realizou em 19.06.2019, na sequência do requerimento apresentado pela Autora que indeferiu a inquirição de D… por entender que, tendo a questão sido debatida nos articulados, a mesma deveria ter sido, oportunamente, arrolada pela Autora e que o artigo 526º do CPC se destina a chamar pessoas a depor cuja revelação dos conhecimentos possuídos acerca da questão debatida surge no âmbito da audiência final, viola os princípios basilares de direito adjetivo do inquisitório e da descoberta da verdade material.
2. Pois, da análise do referido normativo legal resulta que o que releva para a inquirição oficiosa ou a requerimento das partes é que se presuma que determinada pessoa tem conhecimento de factos importantes para a boa e sã decisão da causa, tudo em prol do apuramento da verdade e justa composição do litígio.
3. Não sendo impeditivo o facto da testemunha não ter sido arrolada pela parte que a pretende chamar a depor, nem os conhecimentos que aquela possui acerca da questão debatida apenas terem surgido no âmbito da audiência final, não se afigurando, por isso, como correto o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo.
4. Conforme é amplamente defendido na jurisprudência o poder de investigação oficiosa plasmado no artigo 411º e 526º do CPC, em prol da descoberta da verdade, constitui um desvio à regra do princípio do dispositivo, segundo o qual a parte tem o ónus de indicar as provas que pretende ver produzidas.
5. Ora, no caso dos presentes autos, a Autora, aqui Recorrente, não arrolou a sobredita D… no seu requerimento probatório, por entender que, de acordo com a alegação produzida, apenas teria de provar que a Ré/Recorrida incumpriu o contrato de prestação de serviços que celebrou com a aqui Recorrente por, entre outros, não dispor de técnico de contabilidade para exercer as funções referidas em 3 e 5 da cláusula sétima do aludido contrato;
6. Pelo que não se pode afirmar que a Autora não cumpriu o ónus que sobre ela recai de tempestivamente oferecer a prova que pretende ver produzida. Por sua vez,
7. Na contestação que apresentou em juízo, a Ré alega que cumpriu com a obrigação ínsita na cláusula 7ª, uma vez que tinha duas funcionárias ao seu serviço que coadjuvaram a Autora, donde se retira que, no entendimento da Ré, as funções em causa não tinham de ser executadas por pessoa com conhecimentos específicos, i.e, por um técnico de contabilidade, incumbindo a Ré as funcionárias D… e H…, de coadjuvar o contabilista certificado indicado pela Autora.
8. Aliás, tendo a testemunha D… sido arrolada pela Ré, a Autora tinha a legitima expetativa de a vir a inquirir em sede de audiência de julgamento para contraprova do alegado pela Ré, ou seja: contrariar que aquela teria competência para o exercício das funções constantes da cláusula 7, nº 5 e 7 do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes.
9. Porém, no decurso da audiência de julgamento, após declarações de parte dos sócios gerentes da Autora e depoimentos das testemunhas arroladas pelas partes acerca da questão das funções exercidas pela funcionária em questão e competência para o efeito, a Ré prescindiu da inquirição da testemunha D….
10. Nessas circunstâncias, em face dos depoimentos prestados pelas testemunhas e partes inquiridas, a Autora requereu a inquirição de D…, por entender que a funcionária em questão terá conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, mormente esclarecendo o tribunal das funções que lhe foram acometidas pela Ré, da experiência profissional no desempenho daquelas funções e formação profissional que possui.
11. Pelo que, s.m.o., ao contrário do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo não está em causa a preclusão de qualquer prazo por parte da Autora para apresentação da testemunha em questão, a qual, como supra referido, foi arrolada pela Ré que dela prescindiu em sede de audiência de julgamento, mas sim a audição da mesma para a descoberta da verdade material em face dos factos vertidos em sede de articulados e da prova produzida em sede de audiência de julgamento.
12. E conforme amplamente sublinhado na jurisprudência, a inquirição por iniciativa do Tribunal prevista no artigo 526º do CPC é um poder dever que se impõe ao juiz sempre que haja razões para presumir que determinada pessoa tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
13. Sendo tal circunstancialismo o que releva para a utilização do aludido poder-dever, mas relativamente ao qual o Tribunal a quo nada diz para fundamentar o indeferimento da pretensão da Autora.
14. Ao decidir como efetivamente decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 526º e 411º do Código de Processo Civil.
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Não foram apresentadas contra alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se o Tribunal a quo incumpriu o poder-dever, que lhe é imposto pelos artigos 411º e 526º, do Código de Processo Civil, de inquirição de testemunha, com conhecimento de factos importantes para a decisão da causa, em violação dos princípios do inquisitório e o da descoberta da verdade material.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Do incumprimento do princípio do inquisitório e consequências de tal inobservância
O princípio do inquisitório, apontado pela apelante como violado, “no seu sentido restrito”, “que é o rigoroso”, “opera no domínio da instrução do processo” tendo o juiz aí “poderes mais amplos do que no domínio da investigação dos factos, na medida em que pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes”[1].
Tal princípio, consagrado no art. 411º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, abreviadamente CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, que determine, oficiosamente, diligências probatórias complementares, necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente de solicitação das partes.
No caso, tendo o Tribunal a quo indeferido o requerimento da Autora a solicitar, ao abrigo do disposto no artigo 526º, do CPC, a inquirição de D… para depor em audiência de julgamento, por a mesma ter conhecimento de factos importantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, “para clarificar o ato das funções desempenhadas na Ré”, indeferiu o Tribunal a quo tal requerimento, “Considerando que a questão da funcionária e as suas funções foi debatida nos respetivos articulados e que terá sido opção da Autora não a arrolar como testemunha”, entendendo que, por isso, “não poderá agora atender-se do seu eventual arrependimento com recurso ao disposto no artigo 526º”.
Para além disso, fundamenta o indeferimento no entendimento de que o referido artigo “se destina a chamar pessoas a depor cuja revelação dos conhecimentos possuídos acerca da questão debatida surge no âmbito da audiência final, o que manifestamente não é o caso”.
Ora, o objeto do recurso centra-se precisamente na questão, não da oportunidade de a parte indicar uma testemunha, mas na do incumprimento pelo Tribunal a quo do poder-dever, que lhe é imposto, no domínio da instrução da causa, pelos artigos 411º e 526º, de, em completo das provas oferecidas pelas partes, inquirir testemunha com conhecimento de factos importantes para a decisão da causa.
Não fundamenta o Tribunal a quo o indeferimento na falta de convicção de a testemunha ter conhecimento de factos importantes para a decisão da causa e para a descoberta da verdade, antes, até, o reconhece ao afirmar que a questão da funcionária e as suas funções, antes de ser discutida em audiência de julgamento, foi debatida nos articulados.
E, sendo, na verdade, relevante para a decisão a questão da funcionária da Ré D… coadjuvar a Autora e as suas funções e qualificações, como as partes e o Tribunal a quo denotam e transparece da contestação (v. fls 57 e segs) e “resposta” (v. fls 93 e segs), apenas é objeto do recurso a questão de saber se, na sequência do referido requerimento, efetuado em audiência, devia ter sido despoletada a inquisitoriedade e inquirida a testemunha em causa, para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Vejamos a lei e a interpretação que dela é feita pela doutrina e pela jurisprudência e as consequências do não uso dos poderes inquisitórios pelo juiz, na instrução da causa.
O ónus da prova dos factos relevantes para a decisão da causa encontra-se distribuído pelas partes segundo rigorosas regras, sendo que as normas substantivas, consagradas no art. 342º, do Código Civil, sobre a distribuição do ónus da prova constituem normas de decisão, pois se destinam em primeira linha a possibilitar a decisão no caso de falta de prova; mas não deixam de influenciar o comportamento das partes, consequentemente levadas a ter a iniciativa da prova para evitar o risco duma decisão desfavorável[2].
O referido preceito pretende dar resposta ao dever de julgar que resulta para o juiz do nº1, do artigo 8º, do CC, mesmo perante dúvida insanável acerca dos factos em litígio. O non liquit no plano de facto não pode nunca traduzir-se num non liquit jurídico. Ao invés de atribuir ao juiz a faculdade de distribuir o ónus da prova perante cada caso concreto, é por este meio criado um critério legal de decisão que lhe permite decidir contra a parte a quem o legislador atribui, em abstrato, o ónus da prova dos factos em litígio. Um non liquit sobre os factos é decidido contra a parte onerada[3].
Não obstante o artigo ter por epígrafe ónus da prova, em rigor, no nosso sistema processual as partes não têm um ónus de prova em sentido rigoroso. O princípio da aquisição processual (artigo 413º do CPC), bem como o princípio do inquisitório em matéria de prova (artigo 411º, do CPC), permitem concluir que, ainda que a parte onerada não logre a prova dos factos que lhe aproveitam, isso não significa que estes não resultem provados em virtude daqueles princípios. Daí que as regras sobre o ónus da prova sejam mais regras de decisão do que regras de distribuição de prova propriamente ditas.
Em suma, no nosso direito processual, ter o ónus da prova significa sobretudo determinar qual a parte que suporta a falta de prova de determinado facto, mais do que saber qual a parte que tem de efetuar a prova de determinado facto. Tendencialmente, todavia, será natural que a parte que suporta o ónus da prova venha a ser aquela que tenha a iniciativa da prova, procurando afastar o risco da falta de prova que sobre ela recai. E que, na perspectiva inversa, a contraparte se possa sentir legitimada a uma inacção probatória até à prova do facto pela parte onerada (Teixeira de Sousa, 1984:116).[4]
Por imposição do referido princípio do inquisitório, consagrado no art. 411º e materializado em inúmeros preceitos, ao juiz incumbe “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”. E adianta-se, desde já, que se o pode fazer oficiosamente, nenhuma razão se vislumbra para que o não possa fazer a sugestão, ou mesmo a solicitação, de uma das partes.
Tal princípio, “porém, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes, de modo que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.
O princípio do dispositivo funciona de um modo geral no que concerne à alegação dos factos, mas concede-se ao juiz a faculdade e, simultaneamente, o dever de, tanto quanto possível, aferir a veracidade desses factos. Continua a impender sobre as partes o ónus de indicação dos meios de prova, a observar, em regra nos articulados (arts. 552º, nº2 e 572º, al. d)), mantendo-se o normativo do art. 139º, nº3, segundo a qual o decurso de um prazo perentório extingue o direito de praticar o ato. Mas, por outro lado, o preceito faz apelo à realização de diligências que importem à justa composição do litígio, enquanto o art. 526º impõe ao juiz um verdadeiro dever jurídico que deve exercer sempre que no decurso da ação se revele a existência de testemunhas não arroladas[5].
Da conjugação dos artigos 411º e 526º, este que constitui mais uma materialização do princípio do inquisitório, resulta que o juiz deve exercitar os seus poderes inquisitórios, que são poderes vinculados (nunca discricionários), embora “preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade”[6], quando concluir pela necessidade ou conveniência, ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, de realização de diligências de prova suplementares às promovidas pelas partes.
Assim, a “intervenção oficiosa do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas designadamente através da omissão de apresentação do requerimento probatório em devido tempo ou sequer da alteração do rol de testemunhas até ao limite definido pelo art. 598º, nº2[7]. O art. 526º visa salvaguardar a possibilidade de se inquirir uma pessoa sobre quem, ao longo do processo (primordialmente, numa fase em que já não há possibilidade de as partes a arrolarem como testemunha) se gerou a convicção de o seu depoimento se revelar importante para a boa decisão da causa, por ter conhecimento de factos relevantes, em discussão.
Ora, é precisamente o que se verifica in casu. Apesar de a questão “se existiu, ou não, a funcionária” (D…) se poder ter colocado muito antes de designada a audiência de julgamento e de a Autora ter tido a possibilidade de a indicar como testemunha e o não ter feito, tal não constitui impedimento de, apesar de a Autora a já não poder indicar, vir alertar, sugerir ou mesmo requerer ao Tribunal que, lançando mãos dos seus poderes inquisitórios, proceda à sua inquirição. Questão diversa da referida pelo Tribunal a quo - a de a funcionária e as suas funções ter sido debatida nos respetivos articulados e que terá sido opção da Autora não a arrolar como testemunha - é a de o juiz, ao abrigo do disposto no nº1, do artigo 526º, chamar pessoas a depor. Não é necessário que a “revelação dos conhecimentos possuídos acerca da questão debatida” surja “no âmbito da audiência final”, sendo isso que decorre da expressão constante do referido preceito “Quando, no decurso da ação”. Basta que o juiz (por si ou alertado para isso, mesmo que por requerimento) constate, objetivamente, ser a situação presumida a de que “determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa” para que se lhe imponha o desencadear dos seus poderes-deveres de inquisitoriedade e, com vista à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, oiça quem já não podia validamente ser indicado como testemunha pelas partes(v. preceito “deve o juiz ordenar que seja notificada para depor”).
Na verdade, os referidos poderes-deveres do juiz decorrentes da inquisitoriedade – art. 411º - “não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”. Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade ou à justa composição do litígio”[8].
E a “inquirição oficiosa não tem lugar apenas quando o conhecimento da importância da testemunha chegue ao juiz através de outros depoimentos (de parte ou de testemunha: ver o ac. do TRE de 1/4/85, CJ, 1985, II, p.289) que a tenham referido, afirmando que ela observou também os factos, também os ouviu narrar (…). Qualquer meio probatório (um documento; uma alegação confirmada pela parte contrária ou por ela não impugnada; uma confissão espontânea) pode servir de veículo de transmissão desse conhecimento, seja qual for o momento processual em que ele seja apresentado ou produzido. Embora continue a ser sobretudo em audiência que a iniciativa oficiosa é exercida, nada impede que, verificados os respetivos requisitos, o seja antes, proporcionando a notificação da pessoa a inquirir para o primeiro dia designado para a audiência”.
Por outro lado, antes de ser ouvida a pessoa em causa, é prematuro dizer que o juiz é confrontado com o seu conhecimento dos factos. Desde que haja elementos do processo que levem a crer que esse conhecimento existe, tal é suficiente para que, considerada a relevância dos factos (ainda não inequivocamente esclarecidos ou suscetíveis de ser postos em causa pelo depoimento da testemunha) para a decisão da causa, o depoimento seja ordenado[9].
A jurisprudência vem, também, seguindo esta orientação[10].
Ora, a inquirição oficiosa da pessoa referida pela Autora impõe-se, in casu, por as funções acometidas pela Ré à mesma, a experiência profissional no desempenho daquelas funções e a formação profissional que a pessoa em causa possui poderem relevar para a decisão da causa e decorrer dos autos, designadamente da alegação fáctica das partes nos articulados, haver razões para presumir que a mesma, que não foi ouvida, tem conhecimento de factos, em discussão, importantes para a boa decisão da causa.
A inobservância do inquisitório gera nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC, porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa. (ac. do TRC de 14.10.15, Carvalho Martins, www.dgsi.pt, proc. 507/10)[11]. E apesar da nulidade processual, decorrente do não uso do poder inquisitório, conferido pelo art. 411º e 526º, relativamente à produção oficiosa de determinada prova testemunhal, dever ser suscitada antes de a audiência de julgamento terminar, nos termos da regra do art. 199º, sendo extemporânea a arguição da mesma apenas em sede de recurso da decisão da causa[12], a nulidade processual por inobservância, pelo juiz, dos poderes instrutórios, pode ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC).
Procedendo as conclusões da apelação, por ocorrer violação princípio do contraditório, consagrado nos artigos 411º e 526º, que permite que o Tribunal, por iniciativa sua ou das partes, oiça a pessoa que, dos autos, resulta decorrer a convicção de ter conhecimento de factos importantes para a decisão da causa e à descoberta da verdade material, deve a decisão recorrida ser revogada e determinada a sua inquirição.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e determinam que a testemunha seja, ao abrigo do nº1, do art. 526º, do CPC, notificada para depor em audiência de julgamento.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 21 de Outubro de 2019
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina, pág 207.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 216.
[3] Rita Lynce de Faria, Anotação ao artigo 342º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 811 e segs.
[4] Ibidem, pág 811 e seg.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina pág. 483 e seg.
[6] Ibidem, pág 484 e 577.
[7] Ibidem, pág 577.
[8] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág. 208.
[9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág.208.
[10] Cfr. Ac. da RP de 16/12/2009, Proc.577/08.2TBVNG-A.P1.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição revista e ampliada, Março de 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 691, onde se decidiu que a inquirição oficiosa de testemunhas deixou de ser uma faculdade e passou a ser um poder-dever a que ele fica vinculado, sempre que se verifique a condição de que depende o seu exercício – haver razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa.
[11] Ibidem, pág.208.
[12] Ac. da RE, de 29/9/2016, Processo 299/10.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição revista e ampliada, Março de 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 603.