Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
106/10.8GTVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RICARDO COSTA E SILVA
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RP20110706106/10.8GTVRL.P1
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Actualmente, a lei fixa o momento até ao qual tem de ser requerido o apoio judiciário: na generalidade dos processos, até à primeira intervenção; no processo penal, até ao trânsito em julgado da sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 106/10.8GTVRL.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,
I.
1. Por sentença, proferida e depositada em 2010/05/12, no processo sumário n.º 106/10.8GBTVRL, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Real, foi o arguido B…, com os demais sinais dos autos, condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. p. art.º 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a multa de € 420,00 (quatrocentos e vinte euros).
1.1. Os factos correspondentes à prática do crime por que o arguido foi condenado datam de 2010/05/12, ou seja, do próprio dia da condenação.
2. Em 2010/05/14, o arguido requereu apoio judiciário (cfr. fls. 20).
3. E em 2010/05/20 o requerimento de apoio judiciário foi-lhe deferido, tendo-lhe sido conferido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de defensor oficioso (cfr. fls. 22).
4. O documento certificativo do deferimento do pedido de concessão de apoio judiciário requerido pelo arguido, deu entrada no processo em 2010/05/21.
5. Em 2010/07/06 foi liquidada a multa penal em que o arguido foi condenado e emitidas guias para pagamento, que o mesmo pagou em 2010/07/30.
6. Em 2010/07/07, o Ministério Público (MP) lavrou nos autos a promoção que, na parte que ora interessa, infra se transcreve:
« Apoio judiciário – verifica-se que foi requerido após a leitura da sentença, razão pela qual somos de parecer que apenas relevaria para efeitos de recurso, razão pela qual s se promove que se liquidem as custas do processo.»
7. A douta promoção, douto despacho; e, assim, em 2010/09/08 foi proferido nos autos o despacho judicial que, também apenas na parte que ora interessa, se passa a transcrever:
« (…)
« Concordando com a promoção do M.P. considera-se irrelevante o apoio judiciário concedido ao arguido nesta fase dos autos, considerando que a decisão transitou em julgado.
« Liquide as custas como promovido.
« (…)»

8. Inconformado com esta decisão dela recorreu o destinatário da mesma, o arguido B….
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«– O Arguido requereu em 14/05/2010 a concessão de Apoio Judiciário no âmbito do Processo Sumário n2 106/10.8GTVRL – 1.º Juízo tendo obtido deferimento da sua pretensão, no dia 20/05/2010, da qual deu conhecimento no Processo em 21/05/2010.
«– Precedendo promoção do M.º Público, foi proferido douto despacho em 08/09/2010 mandando liquidar as custas a cargo do Arguido.
«– Nos termos do artigo 44.º nº 1 da Lei nº 24/2007, de 29/07, o Apoio Judiciário deve ser requerido até ao prazo do trânsito em julgado da sentença.
«– O arguido não só requereu oportunamente, em 14/05/2010 dentro desse prazo o Apoio Judiciário como foi dado conhecimento (21/05/2010) nos Autos a sua concessão.
«– Por consequência, deveria ter sido proferido despacho concedendo ao Arguido o Apoio Judiciário e isentando-o do pagamento das custas judiciais e da compensação do seu defensor oficioso.
«– Não o tendo assim entendido, o douto despacho violou o disposto no artigo 1.º e 44.º n.º 1 da Lei n.º 34/2007 de 29 de 07, pelo que deve tal despacho ser anulado e substituído por outro que conceda ao Arguido o Apoio Judiciário na dupla modalidade por si requerida e deferida pela Segurança Social.
9. Notificado da apresentação do recurso, o MP não lhe apresentou qualquer resposta.
10. Admitido o recuso, neste tribunal da relação, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto juntou aos autos parecer em que se pronunciou por dever ser negado provimento em recurso.
Entre outros subsídios para a decisão a proferir, louvou-se na doutrina expressa no sumário [1] do acórdão da Relação do Porto de 2009/07/08, proferido no processo n.º 1452/08.6PTPORT.P1, sendo relatora Maria do Carmo Silva Dias, do seguinte teor:
« Em processo penal, o pedido de apoio judiciário pode ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância. Contudo, se tal pedido for requerido depois de proferida a sentença, mas antes do seu trânsito, só é legalmente admissível se for interposto recurso da mesma.
11. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
12. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, a questão posta no recurso é a de saber se o apoio judiciário concedido pela Assistência Social perde eficácia quando tiver sido requerido após a prolação da decisão final em primeira instância, relativamente, às custas correspondentes à fase pregressa do processo.
2. Salvaguardado muito respeito pelas opiniões contrárias, nomeadamente pela do acórdão acima citado, a nossa resposta não pode deixar de ser negativa.
Admitimos que a doutrina enunciada possa ser verdadeira para as condenações em custas já proferidas e transitadas em julgado aquando da dedução do pedido de apoio judiciário, o que, se bem pensamos, só poderá ocorrer em casos de recursos intercalares de decisões interlocutórias, nunca no na decisão fina dos autos. As demais devem ser automaticamente abrangidas pela concessão do apoio, desde que comportadas na modalidade de apoio concedida.
E isto pela ordem de razões muito simples que, a seguir anunciamos.
O acesso ao direito é universal. A ninguém deve ser dificultado, nomeadamente por insuficiência de meios económicos (art.º 1.º da Lei n.º 34/2004, e 29 de Julho, alterada e republicada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto (L. 34/2004).
Uma vez verificada a insuficiência económica para o pagamento das despesas judiciais pela entidade competente – Segurança Social – não faz qualquer sentido que o tribunal obstaculize a materialização dos efeitos do apoio judiciário, com fundamento em razões de forma.
Até porque, o trânsito em julgado da condenação em custas não impede – nunca impediu – a observância desses efeitos. E a concessão prévia de apoio judiciário – incluída a dispensa do pagamento de custas – também nunca impediu os tribunais de condenar os isentados no pagamento dessas mesmas custas, em decisões que transitam sem que, por isso, se vão liquidar e executar as custas respectivas. Tais condenações visam o “regresso de melhor fortuna” dos beneficiados, porque se entende que seria socialmente injusto que tais pessoas, uma vez adquiridos meios de fortuna que lhes permitissem pagar as custas sem custo – passe o paradoxo – o não fizessem, em detrimento do esforço comunitário para assegurar o acesso ao direito aos efectivamente necessitados.
Pode, assim, afirmar-se, com uma confortável margem de segurança, que a produção dos efeitos da concessão de apoio judiciário está muito mais directamente ligada ao concreto estado socioeconómico dos abrangidos e às concomitantes decisões de concessão de apoio, do que às decisões condenatórias ou absolutórias proferidas nos processos penais em que intervêm os beneficiários do apoio.
A lei não estabelece qualquer prazo limite para o pedido de concessão de apoio judiciário. O art.º 18.º, n.º 2, da L. 34/2004 dispõe que o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, mas esta é uma norma meramente indicativa, que sofre da adaptação imposta pelas circunstâncias. Nomeadamente não pode ser considerada sempre que a primeira intervenção no processo não depende da vontade do sujeito e pode sobrevir de surpresa.
Assim, seria uma solução em tudo contrária ao espírito da lei, que alguém julgado em processo sumário, em sucessão de actos imediatamente seguidos à detenção em flagrante delito, até ao julgamento, não pudesse beneficiar de apoio judiciário, independentemente do seu estatuto económico, pela simples razão de não ter tido oportunidade de o requerer antes da realização do julgamento.
Em sentido muito similar ao exposto decidiu-se no, a nosso ver exemplar, Acórdão da Relação de Guimarães de 2005/10/31, proferido no processo n.º 1783/05-1, sendo relator Fernando Monterroso, consultável em http://www.dgsi.pt...., com o seguinte sumário publicado:
« I – Na vigência da Lei 30-E/90 de 20-12, tal como já acontecia no regime do anterior Dec.-Lei 387-B/87, de 29-12, em que o apoio judiciário podia ser requerido “em qualquer estado da causa”’ – art. 17 n° 2, a jurisprudência veio a fixar-se no entendimento de que o apoio judiciário só operava para o futuro, isto é, a partir do momento em que tinha sido requerido.
« II – Na verdade, destinando-se o sistema de acesso ao direito e aos tribunais a promover que a ninguém seja dificultado ou Impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos, verdadeiramente, o requerente do apoio judiciário só necessitava dele para o que ainda tivesse de litigar, pelo que, fazer retroagir os seus efeitos ao inicio do processo equivaleria a uma isenção do pagamento das quantias já em dívida, o que nada tinha a ver com a possibilidade de defesa.
« III – Mas a Lei 34/04 de 29-7 estabeleceu um regime diferente: o apoio judiciário “deve ser requerido antes primeira intervenção processual” (artº 18,nº 2), salvo se ocorrer facto superveniente, e mesmo neste caso, “o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da respectiva situação” (artº 18 nº 3).
« IV – No entanto, alguma excepção tinha de ser prevista para o processo penal, sob pena de existirem situações em que, simplesmente, seria negada a possibilidade de apoio judiciário a quem dele estivesse carente, pois que, sendo, actualmente, o apoio judiciário sempre decidido pelos serviços da segurança social (art. 20), casos haveria em que, arguido, na prática, estaria impedido de se dirigir àqueles serviços antes da primeira intervenção no processo, como, por exemplo, quando fosse detido em flagrante delito e apresentado nessa situação para primeiro interrogatório ou para julgamento em processo sumário, como é o caso dos autos.
« V – Essa a razão da norma do art. 44 n° 1 da nova Lei, que dispõe que se aplicam ao “processo penal, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do disposto nos nºs 2 e 3 do artº 18º, devendo o apoio judiciário ser requerido, até ao trânsito em julgado da decisão final”.
« VI – Temos, pois que, actualmente, ao contrário do que acontecia anteriormente, a lei fixa o momento até ao qual tem de ser requerido o apoio judiciário: na generalidade dos processos, até à primeira intervenção; no processo penal, até ao trânsito em julgado da sentença.
« VII – Finalmente sempre se dirá, (embora como questão prejudicada no caso dos autos, pois o apoio judiciário foi formulado antes do trânsito em julgado da sentença por arguido que havia sido detido e nessa condição apresentado em juízo para julgamento em processo sumário), que nada na letra da norma do art. 44 nº 1 da lei 34/04, permite a conclusão de que o arguido é único sujeito processual por ela abrangido e, mesmo ele, só se estiver detido
« VIII – Efectivamente, onde a lei não distingue não cabe ao julgador diferenciar, nomeadamente censurando tal decisão do legislador de permitir que outros sujeitos processuais também beneficiem de um regime mais favorável que talvez apenas se impusesse relativamente ao arguido detido.»
Neste acórdão, que decide uma questão semelhante à dos presentes autos, afirmou­-se, em fundamentação de direito, o seguinte, que subscrevemos inteiramente:
« Na vigência da Lei 30-E/90 de 20-12, tal como já acontecia no regime do anterior Dec.-Lei 387-B/87 de 29-12, o apoio judiciário podia ser requerido “em qualquer estado da causa” – art. 17 nº 2.
« Tal possibilidade suscitou a questão de saber que actos deviam ser abrangidos pelo apoio judiciário, quando era requerido em fases já adiantadas do processo. A jurisprudência veio a fixar-se no entendimento de que o apoio judiciário só operava para o futuro, isto é, a partir do momento em que tinha sido requerido. Destinando-se o sistema de acesso ao direito e aos tribunais a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos, verdadeiramente, o requerente do apoio judiciário só necessitava dele para o que ainda tivesse de litigar. Fazer retroagir os seus efeitos ao início do processo equivaleria a uma isenção do pagamento das quantias já em dívida, o que nada tinha a ver com a possibilidade de defesa, dali para a frente, dos seus direitos – por todos, v. ac. Rel. Porto de 4-10-00, CJ tomo IV, pag. 230. E, também, todos os acórdãos citados no parecer do sr. procurador geral adjunto nesta Relação, que foram proferidos na vigência de lei que já não está em vigor.
« Mas Lei 34/04 de 29-7 estabeleceu um regime diferente: o apoio judiciário “deve ser requerido antes da primeira intervenção processual” (art. 18 nº 2), salvo se ocorrer facto superveniente. Mesmo neste caso, “o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da respectiva situação” (art. 18 nº 3).
« Alguma excepção tinha de ser prevista para o processo penal, sob pena de existirem situações em que, simplesmente, seria negada a possibilidade de apoio judiciário a quem dele estivesse carente. Sendo, actualmente, o apoio judiciário sempre decidido pelos serviços da segurança social (art. 20), casos haveria em que o arguido, na prática, estaria impedido de se dirigir àqueles serviços antes da primeira intervenção no processo. Seria assim, por exemplo, quando fosse detido em flagrante delito e apresentado nessa situação para primeiro interrogatório ou para julgamento em processo sumário (como é o caso destes autos). Esta questão nunca se pôs na Lei 30-E/90, porque durante a vigência da mesma os pedidos de apoio judiciário formulados pelos arguidos sempre foram “apresentados, instruídos, apreciados e decididos perante a autoridade judiciária” (art. 57 nº 3). Isso permitia que o arguido, no próprio acto do interrogatório ou do julgamento, requeresse ao juiz a concessão do apoio judiciário.
« Essa a razão da norma do art. 44 nº 1 da nova Lei, que dispõe que se aplicam ao “processo penal, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 18, devendo o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final”.
« Temos, pois, que, actualmente, ao contrário do que acontecia anteriormente, a lei fixa o momento até ao qual tem de ser requerido o apoio judiciário: na generalidade dos processos, até à primeira intervenção; no processo penal, até ao trânsito em julgado da sentença.
« Posto isto, não deve o aplicador da lei distinguir onde o legislador nenhuma razão viu para diferenciar. Fixando a lei um prazo final para a formulação do pedido do apoio judiciário, se o mesmo for respeitado, o deferimento abrangerá naturalmente todo o processo.»
« Nada na letra da norma do art. 44 nº 1 da Lei 34/04 permite a conclusão de que o arguido é único sujeito processual por ela abrangido e, mesmo ele, só se estiver detido. Não cabe ao julgador censurar a decisão do legislador de permitir que outros sujeitos processuais também beneficiem de um regime mais favorável que talvez apenas se impusesse relativamente ao arguido detido.»
Tudo o mais que acima transcrevemos se nos afigura irrecusável.
Termos em que, sem necessidade de mais extensa indagação, o recurso deve ser provido e revogado o despacho recorrido.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em dar provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, reconhecendo ao recorrente o direito a que seja observado relativamente a todo o processo o Apoio Judiciário que lhe foi concedido pela Assistência Social, na modalidade em que o foi.

Não há lugar a tributação.

Porto, 2011/07/06
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
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[1] Infelizmente sem referência de local de publicação.