Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1437/19.7T8AMT-C.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
DÍVIDAS
LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RP202109231437/19.7T8AMT-C.P2
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A limitação da responsabilidade pelas dívidas de uma pessoa singular não poderá ser efectuada no incidente de qualificação da insolvência, antes deverá passar pelo crivo da exoneração do passivo restante, devendo estar preenchidos os pressupostos previstos no artigo 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e depois do devedor ter mostrado ser merecedor desse “fresh start” durante os cinco anos de cessão (cfr. artigos 239.º, 243.º e 244.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
II - Não pode o devedor pessoa singular que é afectado pela qualificação da insolvência como culposa (o que exclui necessariamente a possibilidade de exoneração do passivo restante - art. 238.º, 1, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), pretender, na própria sentença de qualificação da insolvência como culposa, ver limitada a sua responsabilidade pelas dívidas reconhecidos no processo de insolvência e que sempre seria responsável, ainda que a insolvência fosse julgada fortuita.”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
Processo n.º 1437/19.7T8AMT.P2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
Por apenso aos autos de insolvência n.º 1437/19.7T8AMT em que foi declarado insolvente B…, veio o Sr. Administrador da Insolvência apresentar parecer de qualificação da insolvência, considerando que deve ser declarada como culposa a insolvência de B…, com afectação do mesmo.
Alega, em síntese, que se encontram preenchidas as alíneas a) e d), dos n.ºs 2, 3 e 4, do artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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O Ministério Público deu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, considerando que a insolvência deve ser qualificada como culposa, por se verificarem factos integradores do artigo 186º, nº 2, alíneas a), d) e i), e n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Citado, o requerido deduziu oposição ao incidente, considerando que a insolvência não deve ser considerada como culposa.
Defende-se por excepção, alegando a extemporaneidade do parecer de qualificação da insolvência apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência, impugnando, ainda, os factos alegados no parecer de qualificação de insolvência.
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Foi proferido despacho saneador, sendo que a excepção de extemporaneidade foi julgada improcedente, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Procedeu-se a audiência de julgamento com observância das formalidades prescritas na lei.
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Foi proferida sentença, tendo sido decidido:
- declarar como culposa a insolvência de B…, declarando o mesmo afectado por esta qualificação de insolvência;
- decretar a inibição de B… para administrar patrimónios de terceiro, pelo período de 4 (quatro) anos;
- declarar B… inibido, pelo período de 4 (quatro) anos, para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, por idêntico período de 4 (quatro) anos;
- determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detido por B…, bem como a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
- condenar B… a indemnizar os seus credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, a quantificar em liquidação de sentença, sendo o critério a utilizar no cálculo do montante dos prejuízos sofridos correspondente ao valor dos créditos julgados verificados (no apenso respectivo) não satisfeitos através dos pagamentos eventualmente a efectuar no processo de insolvência.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio B… interpor recurso de apelação, tendo este Tribunal da Relação do Porto anulado a sentença de qualificação de insolvência para efeitos de ampliação da matéria de facto dado que os créditos do Banco c…, S.A e da D… não se encontravam provados por sentença, transitada em julgado, encontrando-se a ser discutidos no apenso de reclamação de créditos.
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Por despacho de 9.11.2020, e dado que a matéria de facto a ser ampliada em conformidade com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, atinente aos créditos sobre o insolvente já se encontrava em discussão no apenso de reclamação de créditos, foi determinada a suspensão da presente instância, por existência de causa prejudicial, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de reclamação de créditos - artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Por despacho de 21.04.2021, atento o trânsito em julgado da sentença proferida no apenso de reclamação de créditos, encontrando-se assente o crédito da D… e não tendo sido reconhecido o crédito do Banco C…, S.A , determinou-se a cessação da suspensão determinada pelo despacho de 9.11.2020.
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Foi, então, determinado o prosseguimento dos presentes autos de qualificação da insolvência, designando-se data para continuação da audiência de julgamento, mantendo-se válida a prova já produzida nas anteriores sessões de julgamento e que não foram inutilizadas/invalidadas por este Tribunal da Relação, a apreciar em sede de nova sentença a proferir, tendo ainda em conta as questões atinentes aos créditos reconhecidos e não reconhecidos no apenso de reclamação de créditos, por decisão transitada em julgado.
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Foi proferida nova sentença, tendo sido decidido:
- declarar como culposa a insolvência de B…, declarando o mesmo afetado por esta qualificação de insolvência;
- decretar a inibição de B… para administrar patrimónios de terceiro, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses;
- declarar B… inibido, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por idêntico período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses;
- determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detido por B…, bem como a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
- condenar B… a indemnizar os seus credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, a quantificar em liquidação de sentença, sendo o critério a utilizar no cálculo do montante dos prejuízos sofridos correspondente ao valor dos créditos julgados verificados (no apenso respetivo) não satisfeitos através dos pagamentos eventualmente a efetuar no processo de insolvência.
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Não se conformando com a sentença proferida, o recorrente B… veio interpor novo recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

“I. A Mma. Juiz “a quo” julgou provados os seguintes factos contidos no objecto do litígio:
a) - A factualidade vertida na segunda parte do ponto 12 dos factos provados a partir de “altura em que se aproximava …” até final.
b) - Toda a factualidade vertida no ponto 13 dos factos provados.
c) - A factualidade vertida no início do ponto 15 dos factos provados, nomeadamente quanto à designação “O que só foi conseguido porque”.
d) - Toda a factualidade vertida nos pontos 22, 23, 24, 25 e 26 dos factos provados; e
e) - Toda a factualidade vertida nos Factos Não Provados, à exceção da que se extrai do primeiro parágrafo destes Factos Não Provados.

II. Esta concreta factualidade que o Tribunal levou à matéria dos factos provados deveria ter sido dada como não provada, uma vez que o pagamento a que alude o ponto 12 dos factos provados nunca seria, em primeira instância da responsabilidade do insolvente; e muito menos tal responsabilidade, atribuída a título pessoal ao insolvente, se venceria em data próxima de 5 de outubro de 2018.

III. De igual modo, vai expressamente impugnada a decisão proferida a respeito da factualidade dada como provada e vertida nos pontos 13 e 22 dos Factos Provados, assim como no que respeita à designação de “O que só foi conseguido” vertida no ponto 15 dos factos provados e ainda no que concerne à matéria factual levada aos factos provados nos pontos 23, 24, 25 e 26.

IV. Com efeito, a única prova testemunhal produzida que, em teoria, pudesse atestar ou validar tal factualidade, haveria de ser a resultante das declarações do Sr. Administrador de Insolvência; Acontece que, lidas e relidas as suas declarações, EM NENHUM MOMENTO SE ALCANÇA QUE O MESMO TIVESSE FEITO PROVA DA CONCRETA FACTUALIDADE LEVADA AOS FACTOS PROVADOS NOS PONTOS 13, 22, 23, 24, 25, 26 e segmento impugnado do ponto 15 dos Factos Provados.

V. E assim, porque não foi produzida outra qualquer prova, fosse testemunhal ou documental, por total e absoluta falta de prova, impunha-se que a concreta factualidade vertida nos pontos 13, 22, 23, 24, 25 e 26 dos factos provados e bem assim o segmento da expressão O que só foi conseguido, vertido no ponto 15 dos factos provados, fosse dada como não provada.

VI. Por tal motivo, vai expressamente impugnada a decisão proferida sobre esta concreta e invocada matéria factual, indevidamente levada à matéria dos factos provados.

VII. Já quanto à factualidade dada como provada no ponto 26 dos factos provados, sempre a decisão respetiva teria de ir impugnada, na medida em que não foi produzida qualquer prova de que o insolvente continue a manter a disponibilidade e a usufruir do património e dos imóveis da “I1…”.

VIII. Ao invés, o que resultou demonstrado da prova testemunhal produzida - nomeadamente da testemunha arrolada pelo insolvente – F… - sem que as suas declarações tivessem sido infirmadas ou contraditadas por qualquer outro meio de prova - foi que a sociedade G…, Lda sempre necessitou ou careceu de dispor de uma quantia aproximada de 10.000,00€ (dez mil euros) em numerário para fazer face ao pagamento de horas extraordinárias e ao pagamento de “ordenados a mais” não declarados.

IX. Do depoimento desta testemunha decorre, sem margem para quaisquer dúvidas, que durante anos sempre foi necessário garantir, em numerário, um quantitativo mensal na ordem dos 10.000,00€ para fazer face a “horas extras e salários por fora” relativamente à empresa G…, Lda, que continua a laborar e a cumprir pontualmente as responsabilidades assumidas no Processo especial de Revitalização.

X. Tal prova - testemunhal - foi corroborada pela prova documental junta com a Oposição à qualificação de insolvência, nomeadamente através de extractos bancários, através dos quais é possível extrair o levantamento regular de quantia próxima dos 10.000,00€ para o efeito, conforme testemunhado pela referida F…, que desempenha funções administrativas na empresa há vários anos.

XI. E como se não bastasse, com a Oposição à Qualificação de insolvência, foi igualmente junto um relatório inspetivo, da autoria da Autoridade Tributária, referente a uma sociedade do mesmo sector de atividade, no qual foi validado e reconhecido o pagamento de ordenados não declarados, o que só se admite e reconhece por, naturalmente, ser prática corrente no sector de atividade do calçado, pois caso contrário, jamais se conceberia que a Administração Tributária tivesse aceitado tais custos.

XII. Daí que, conjugados todos estes elementos probatórios – prova testemunhal; prova documental (extratos bancários) e prova pericial (relatório inspectivo da autoria da Autoridade Tributária) – é incompreensível que pudesse o Tribunal desvalorizar, por completo, o depoimento e o efeito probatório das declarações da testemunha F…, quando se sabe que tal depoimento não foi infirmado ou contraditado por qualquer outro meio de prova e, antes pelo contrário, foi corroborado pela mencionada prova documental e prova pericial.

XIII. Do acabado de expor reforça-se a impugnação da decisão proferida a respeito da matéria de facto vertida nos pontos 13, 22, 24, 25 e 26 dos factos provados, nomeadamente na parte em que o Tribunal deu como provado que o insolvente ter-se-á apropriado do valor correspondente à alienação das ações ou terá dado destino diverso e não apurado a tal quantitativo.

XIV. É que, como assim resultou demonstrado do depoimento da testemunha F…, o proveito retirado da venda das ações foi canalizado para pagamento de diversas responsabilidades contraídas pelo insolvente e pela sociedade G…, Lda, do qual o devedor é sócio e gerente, nomeadamente para pagamento de horas extraordinárias e complementos salariais não declarados pelos funcionários; cujo pagamento fora essencial para conseguir manter em atividade a empresa, contribuindo desse modo para a diminuição das responsabilidades daquela empresa e, concomitantemente, das responsabilidades do insolvente (que se resumem a responsabilidades decorrentes de avais e/ou fianças prestados à sociedade).

XV. Daí que esta concreta factualidade - levada indevidamente à matéria dos factos não provados - tenha, necessariamente, de ser levada à matéria dos factos provados, porque a única prova produzida - testemunhal, documental e pericial - conduz a esse destino, pelo que vai a decisão proferida e vertida na matéria dos factos não provados expressamente impugnada.

XVI. Acresce que todas as responsabilidades contraídas pelo devedor - como se extrai dos créditos reclamados - foram-no na qualidade de avalista e/ou fiador da sociedade G…, Lda, que sendo a devedora principal foi quem, naturalmente, beneficiou das quantias mutuadas; Acresce que foi também isso que a testemunha F… referiu; e, para além disso, nenhuma prova foi produzida no sentido diferente daquele que o Tribunal, indevidamente, fez levar à matéria dos factos não provados.

XVII. Logo, toda a matéria factual levada à matéria dos factos não provados - à exceção do primeiro parágrafo - impõe-se seja levada à matéria dos factos provados, indo, assim, impugnada expressamente a decisão vertida a respeito dessa concreta factualidade.

XVIII. Aliás, insurge-se igualmente o recorrente com a decisão proferida neste segmento da matéria de facto, nomeadamente a vertida no último parágrafo dos factos não provados, nomeadamente quando ali se faz referência à redução do salário do insolvente e outras regalias remuneratórias, porquanto essa concreta factualidade consta expressamente da sentença de declaração de insolvência.

XIX. Vai, por isso, impugnada a decisão proferida a respeito da matéria de facto dada como não provada, que se requer seja, em consequência, levada à matéria dos factos provados.

XX. Por mera cautela, e sem prescindir, sempre se imporia fosse revogada a sentença proferida na parte em que condenou o insolvente a indemnizar os seus credores no montante dos créditos não satisfeitos.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. Em 09 de Abril de 2018, e através de contrato de mútuo com livrança, aval e fiança, a D… concedeu à sociedade “G…, Lda.” um empréstimo no montante de 1.000.000,00€ (um milhão de euros), destinado a financiar a tesouraria daquela sociedade.
2. Para garantia do cumprimento das obrigações assumidas nesse contrato, foi entregue à D… uma livrança em branco, subscrita pela gerência da referida sociedade e avalizada pelos sócios H… e B…, aqui insolvente.
3. H… e B… (aqui insolvente) outorgaram nesse contrato, ainda na qualidade de fiadores, assumindo-se solidariamente responsáveis e principais pagadores de todas as obrigações assumidas perante a D…, em caso de incumprimento por parte da sociedade mutuária.
4. Os fiadores (incluindo o aqui insolvente) renunciaram ao benefício da excussão prévia.
5. O empréstimo seria reembolsado em 5 (cinco) prestações de 200.000,00€ cada, vencendo-se a primeira em 01 de Julho de 2018, a segunda em 01 de Agosto de 2018, a terceira em 01 de Outubro de 2018, a quarta em 01 de Novembro de 2018 e a quinta e última em 01 de Dezembro de 2018.
6. No dia 25 de Setembro de 2018, a sociedade mutuária solicitou à D… a prorrogação do pagamento da prestação que se vencia em 01 de Outubro de 2018, o que era do conhecimento do insolvente.
7. No dia 11 de Outubro de 2018, último dia da prorrogação do prazo, a conta bancária da sociedade mutuária não tinha liquidez suficiente para saldar os montantes em dívida.
8. Por esse motivo, em 31 de Outubro de 2018, foi efetuada pela D… uma amortização parcial da prestação em dívida, no montante de 22.483,45€.
9. Nem a sociedade mutuária, nem os fiadores (incluindo o aqui insolvente), pagaram à D… a prestação do empréstimo que se venceu em 11 de Outubro de 2018, nem as que se venceram posteriormente.
10. Nessa sequência, a D… intentou ação executiva contra a sociedade mutuária, H… e o ora insolvente para cobrança coerciva da quantia de € 586.682,20€ (decorrente do crédito acima referido), valor ao qual acresciam as despesas com honorários e despesas previsíveis com o Agente de Execução; processo executivo para o qual o insolvente fora citado em Janeiro de 2019, e que correu termos sob o n.º 4200/18.9T8LOU, pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Execução de Lousada, Juiz 1.
11. Através de documento particular, datado de 03 de Outubro de 2018, denominado “contrato de compra e venda de ações”, o insolvente, na qualidade de acionista da sociedade que gira sob a firma “I…, S.A.” – sociedade em plena atividade , cedeu as 59.998 ações nominativas, no valor atribuído de 6,00€ por cada uma, representativas da respetiva participação social, à sociedade que gira sob a firma “J…, Limitada”, pelo preço de 359.988,00€.
12. O preço do referido negócio foi recebido pelo insolvente através de cheque com o n.º ………., sacado da conta bancária de que a sociedade “J…, S.A.” era titular no K…, S.A., datado de 05 de Outubro de 2018, altura em que se aproximava a data de vencimento de uma prestação de 200.000,00 € a pagar à D… (e que só não se encontrava vencida a 1.10.2018, dado que havia sido objeto de prorrogação a pedido da sociedade mutuária), referente ao referido empréstimo no montante de 1.000.000,00 € feito por esta entidade bancária em 09.04.2018 à sociedade “G…, Lda”, pagamento da responsabilidade do insolvente na qualidade de fiador, por ter renunciado ao benefício da excussão prévia e por aquela sociedade “G…, Lda” não dispor de meios financeiros para o efeito.
13. Quantia que o ora insolvente, para evitar que viesse a ser objeto de penhora por parte dos seus credores, de imediato levantou da conta bancária e a que deu destino não concretamente apurado, mas em proveito próprio ou benefício de terceiros, e em prejuízo dos seus credores.
14. Para além disso, como contrapartida da venda das ações pelo preço mencionado, segundo o mencionado contrato, a D. L…, mãe do insolvente, ficou com o direito de gozar plenamente o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana com o artigo 1063.º, e a fração autónoma designada pelas letras “EQ”, correspondente ao terceiro andar esquerdo, com garagem integrada na fração “A”, que fazem parte do prédio [...] inscrito na matriz sob o artigo 3738.º, imóveis que formalmente pertencem à sociedade I…, SA.
15. O que só foi conseguido porque os administradores da J…, SA, são a M…, irmã do insolvente B…, na qualidade de presidente do conselho de administração, e N…, na qualidade de vogal, ambos com residência desde 18.01.2019 na Rua …, nº …, ….-…, Porto, atual sede da J…, e antes na Rua …, Lote .., Felgueiras, sendo M… e N… companheiros.
16. Acresce que o capital social da sociedade I…, SA sempre pertenceu ao insolvente B…, à sua irmã M… e ao pai de ambos, H…, tendo todos eles ocupado cargos na administração, os dois primeiros como vogais e o último como presidente, funções que o H… e B… cessaram formalmente em 07.02.2019, passando nesta data a presidência do conselho de administração para o N… e mantendo-se a M… como vogal.
17. Em 17 de Maio de 2019 – data na qual se encontrava pendente o processo executivo com o n.º 4200/18.9T8LOU –, B… – aí na qualidade de devedor –, lançou mão do processo especial para acordo de pagamento –PEAP –, o qual foi distribuído com o n.º 826/19.1T8AMT, e que correu os respetivos termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Comércio de Amarante, Juiz 1.
18. Em consequência da instauração daquele PEAP, e face aos efeitos deste tipo de processos, o sobredito processo executivo viu a sua tramitação suspensa.
19. Posteriormente, e porque as negociações ali encetadas malograram, foi, por sentença proferida em 31 de Outubro de 2019, no âmbito dos presentes autos n.º 1437/19.7T8AMT, declarada a insolvência de B….
20. Assim que o Administrador da Insolvência teve conhecimento que o insolvente outorgou, em 03 de Outubro de 2018, um “contrato de compra e venda de ações”, pelo valor de 359’988,00€, notificou-o no imediato para comprovar, devendo juntar documentos de prova, o depósito em conta do insolvente da sobredita quantia e, além disso, o destino dado a toda a respetiva receita recebida (cfr. e-mails de fls. 73 a 76).
21. O insolvente respondeu a essa notificação através do email remetido pelo seu ilustre mandatário judicial, através do qual apenas comprovou o depósito do valor correspondente ao preço recebido em conta do próprio (cfr. e-mails de fls. 73 a 76).
22. O insolvente B… fez desaparecer o produto da venda das ações recebido a 8.10.2018, dando-lhe destino contrário aos interesses dos credores, em prejuízo dos seus credores, e em benefício próprio ou de terceiro, não efetuando pagamentos aos seus credores com tais montantes, designadamente, não utilizando esse montante para proceder ao pagamento da prestação acima referida de € 200.000,00 devida à D… que se vencia inicialmente a 1.10.2018 e, após pedido de prorrogação, se venceu a 11.10.2018.
23. Ao outorgar esse contrato de compra e venda de ações, o insolvente pretendeu (e conseguiu) fazer desaparecer do seu próprio património participações sociais – “ações” – de que era proprietário, dispondo das mesmas, fazendo, assim, do seu património, um uso contrário ao interesse dos seus credores e fazendo ainda desaparecer o produto da venda daquelas ações, impossibilitando os credores de verem ressarcidos os seus créditos pelo valor correspondente daquelas ações.
24. Ao levantar essa quantia da sua conta bancária, não a servindo para o pagamento dos seus credores, o insolvente apropriou-se de tal quantia, prejudicando os seus credores que se viram desapossados da mesma.
25. Ademais, com a venda de tais ações por parte do insolvente B…, o mesmo despojou-se dos únicos bens com valor económico que possuía, já que as quotas das demais sociedades, “G…, Limitada”, “O…, Limitada” e “P…, Limitada”, não têm qualquer valor porque sujeita a plano de recuperação a primeira e já não estão em atividade as demais.
26. Toda esta factualidade levada a efeito pelo B… com o propósito de subtrair aos credores o património que possuía e impedir que pudessem ressarcir-se, ainda que parcialmente, dos seus créditos, mantendo no seio familiar a disponibilidade dos imóveis de que a sociedade “I…” é titular e sobre os quais fora estabelecido o direito de gozo pleno e registado usufruto a favor da sua mãe, permitindo à sua mãe (e através de sua mãe, também a si) usufruir desses imóveis de que era titular a sociedade “I…”, através do clausulado naquele contrato de compra e venda de ações.
27. O Administrador da Insolvência, por comunicação sob registo com A/R, datada de 08 de Janeiro de 2020 (cfr. carta de fls. 77 a 81), resolveu em benefício da massa insolvente o sobredito negócio de compra e venda de ações, encontrando-se pendente ação de impugnação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente.
28. No âmbito do processo de insolvência a que se reportam os presentes autos foram reconhecidos créditos sobre o insolvente na ordem global dos 2.162.938,82 €, que se discriminam do seguinte modo:
- D…: crédito no montante global de 1.652.603,90€;
- Q…, S.A.: crédito no montante global de 489.507,08€;
- Direção de Finanças do Porto – Serviço de Finanças de Felgueiras: crédito no montante global de 2.850,31€;
- S…, s.a.: crédito no montante global de 17.857,14€;
- T…, S.A.: crédito no montante global de 120,39€,
Sendo que todos os créditos (com exceção do crédito da Autoridade Tributária e T…) dizem respeito a responsabilidades da sociedade “G…, Lda” garantidas pessoalmente pelo ora insolvente.
29. O Sr. Administrador da Insolvência, até ao momento, apenas logrou apreender por auto de apreensão de 20.08.2020, o reembolso de IRS referente aos rendimentos do ano de 2019, no montante de € 1.772,27, não tendo logrado apreender quaisquer outros bens para o processo de insolvência, não tendo o AI encontrado qualquer saldo bancário suscetível de apreensão ou qualquer bem imóvel e/ou bem móvel sujeito a registo e/ou participação social com valor venal.
30. Com efeito, não obstante o insolvente ser titular de quotas nas sociedades que giram sob as fimas “G…, Limitada”, “O…, Limitada” e “P…, Limitada”, as respetivas participações sociais não apresentam qualquer valor venal, pois que a sociedade “G…, Limitada” encontra-se em Processo Especial de Revitalização, homologado que foi por sentença proferida no processo que, sob o n.º 1588/18.5T8AMT, Juiz 1 - Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este; e as sociedades “O…, Limitada” e “P…, Limitada” não têm qualquer atividade.
31. Consta da sentença de declaração de insolvência, transitada em julgado, além do mais, o seguinte:
“Examinados os factos alegados no parecer da Sra. AJP e requerimento de PEAP, resulta que:
- O devedor é solteiro;
- O devedor tendo vindo a exercer a função de gerente na sociedade por quotas denominada G…, Lda., da qual retira a sua única fonte de rendimento.
- A empresa G…, Lda. atravessou um período de fortes restrições financeiras e dificuldades económicas, culminando com a instauração, no decurso do transato ano de 2018, de um Plano Especial de Revitalização que viria a ser aprovado pela maioria dos seus credores, e homologado nos autos do processo n.º 1588/18.5T8AMT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo de Comércio Amarante – Juiz 1.
- O requerente, na qualidade de gerente da indicada sociedade foi objeto de uma redução salarial substancial, nomeadamente pela perda de um conjunto de regalias extra salariais, concretamente, a utilização de cartão de crédito e a beneficiação de ajudas de custo, de que o mesmo auferia especialmente no exercício das suas funções de comercial da empresa.
- Na atualidade, o requerente aufere a título de rendimentos mensais a quantia aproximada de dois mil e quinhentos euros, sem qualquer outro complemento ou regalia.
- No âmbito do PEAP foram reconhecidos créditos no valor de € 1.649.100,33.
- O devedor não se encontra capaz de saldar as suas dívidas, atenta a falta de património que o permita e por falta de liquidez do património existente.
- O património do devedor é insuficiente para o cumprimento das suas obrigações; encontrando-se impossibilitado de cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações vencidas.”
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2.2 Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
1. O insolvente B… violou os deveres de colaboração que lhe eram impostos pelo art. 83.º CIRE.
2. O proveito retirado da venda das ações foi canalizado para pagamento de diversas responsabilidades contraídas pelo insolvente e pela sociedade G…, Lda, da qual o devedor é sócio e gerente, nomeadamente para pagamento de horas extraordinárias e complementos salariais não declarados pelos funcionários.
3. O pagamento dessas horas extraordinárias e horas suplementares fora essencial para conseguir manter em atividade a empresa G…, Lda, contribuindo desse modo para a diminuição das responsabilidades daquela empresa e, concomitantemente, das responsabilidades pessoais do insolvente.
4. Essas concretas responsabilidades estão a ser pontualmente liquidadas e amortizadas ao abrigo do PER a que a sociedade se submeteu, para tal contribuindo o empenho, dedicação e sacrifícios que o aqui devedor tem feito em prol da sociedade, quer por força da redução do seu salário e outras regalias remuneratórias, quer por força de todas as economias que teve necessidade de injetar na empresa.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões por resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Do mérito do decidido.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1. Da impugnação da Matéria de facto
O apelante em sede recursiva manifesta-se discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, impugnando a matéria de facto dada como provada sob os nº 12 a partir de “altura em que se aproximava(…)”, 13, 15 sobretudo na expressão “o que só foi conseguido porque”, 22, 23, 24, 25 e 26, bem como a factualidade vertida nos factos dados como não provados, por considerar que foi incorretamente julgada.

Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelo recorrente e, se necessário, outras provas, maxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes meios de prova:
“A convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto resultou da análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, conjugada com critérios das regras da experiência e da normalidade.
Desde logo, o Tribunal começou por atentar na prova documental constante dos autos, e bem assim na prova documental constante dos autos principais de insolvência e respetivos apensos, designadamente:
- sentença de declaração de insolvência (também constante destes autos a fls. 63 e ss.);
- lista de Créditos reconhecidos no processo de insolvência (também constante destes autos a fls. 66 e ss.) e sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado e da qual resulta o reconhecimento do crédito da D… e o não reconhecimento do crédito do Banco C…, sendo certo que os factos atinentes ao contrato de mútuo celebrado entre a sociedade “G…” e a D…, garantido por fiança do ora insolvente, com renúncia ao benefício da excussão prévia, e bem assim o pedido de prorrogação da prestação que se vencia a 1.10.2018, decorre também da demais prova constante dos autos;
- relatório a que alude o art. 155.º CIRE (constante de fls. 10 e ss. destes autos);
- documentação referente à sociedade “G…, Lda.” de fls. 19-verso e ss., publicidade de homologação de PER referente a essa sociedade de fls. 21-verso, fls. 72;
- documentação referente a outras sociedades participadas/ geridas pelo insolvente anexas ao relatório a que alude o art. 155.º CIRE;
- cheque de fls. 29 e comprovativo de depósito de fls. 29-verso e fls. 75/84; nota de lançamento de fls. 30/ 76, valorado nos termos infra expostos;
- documentos referentes ao processo executivo n.º 4200/18.9T8LOU de fls. 34 a 38; reclamação de créditos da D… de fls. 39 e ss. (elementos essenciais para prova dos factos descritos nos pontos 1 a 10 dos factos provados, conjugado com a sentença de verificação e graduação de créditos, já transitada em julgado), extrato de conta de empréstimo da sociedade G…, Lda. junto da D… de fls. 43-verso e ss.;
- contrato de compra e venda de ações de fls. 45-verso e ss.;
- petição inicial do devedor e que dera início ao PER (fls. 50 e ss);
- Lista Provisória de créditos reconhecidos naquele PEAP de fls. 61 e ss.
- resultados de pesquisas efetuadas pelo AI, com vista à apreensão de bens e no âmbito das suas competências de administrador da insolvência de fls. 68 a 71;
- elementos de contabilidade referente à sociedade “G…” de fls. 76-verso e ss.;
- carta de resolução de negócio enviada pelo AI de fls. 77-verso e ss. e resposta da sociedade “J…, SA”, valorado nos termos infra expostos;
- certidão de registo predial do prédio urbano descrito na CRP do Porto sob o n.º 148 (sito na … no Porto), e estando registado a propriedade a favor da sociedade “I…” e usufruto a favor da mãe do insolvente, sendo este um dos prédios aludidos na cláusula 6.ª e 8.ª do contrato de compra e venda de acções;
- certidão permanente da sociedade J…, S.A. de fls. 89 e ss.;
- certidão permanente da sociedade I…, S.A de fls. 93-verso e ss;
- certidão do assento de nascimento da M… de fls. 100-verso e 101, sendo que pela análise conjugada com a certidão de nascimento do insolvente (fls. 101-verso e 102), verifica-se que é irmã do insolvente;
- auto de apreensão de bens.
Essencial para a formação da nossa convicção revelaram-se, ainda, as declarações do Sr. Administrador da Insolvência Dr. U…, que depôs de forma clara, precisa e credível, expondo ao Tribunal aquilo que sustentou no seu parecer quanto à qualificação da insolvência e descrevendo objetiva e pormenorizadamente a forma como concluiu pela verificação dos factos alegados no parecer.
Expôs ao Tribunal de forma objetiva, circunstanciada e credível a forma como conclui que o negócio de venda de ações efetuada pelo insolvente e em causa nos autos consubstanciara um ato de dissipação de património, sendo que tais ações consubstanciavam o único bem do insolvente com valor, sendo que as demais participações sociais detidas pelo insolvente não têm valor comercial, pelo que não foram apreendidas no processo de insolvência.
Salientou que a sociedade “I…” tem valor comercial, tinha património imobilizado, sendo que por via daquele negócio de venda de ações os imóveis foram onerados com ónus a favor da mãe do insolvente; destacou que o capital social da sociedade “I…” era detido pelo insolvente, irmã do insolvente e pai do insolvente; por sua vez, a sociedade “J…” é administrada pela irmã do insolvente e seu companheiro; o negócio de venda das ações é efetuado precisamente numa altura em que se encontrava iminente o vencimento da prestação de € 200.000,00 do empréstimo celebrado com a D… e a sociedade “G…, Lda”, prestação de que era devedor o aqui insolvente (que renunciara ao benefício da excussão prévia) e que só não se encontrava vencida desde 1.10.2019, porque fora requerida e concedida prorrogação de prazo para pagamento daquela prestação. Apesar de depositado na conta do insolvente o montante de € 359.988,00 proveniente da venda das ações, o certo é que tal montante não fora destinado à liquidação daquela prestação vencida, pois que a mesma fora apenas amortizada parcialmente (€22.483,45).
Explicitou de forma clara, sustentada e convincente a razão pela qual considera que a insolvência deve ser culposa, tendo o devedor feito desaparecer o seu património de considerável valor e disposto do preço da venda das ações recebido, em proveito próprio e em prejuízo dos credores. Na verdade, está documentado o recebimento do preço, mas o devedor fez desaparecer essa quantia em prejuízo dos credores, pois desconhece-se por completo o concreto destino dado a essa elevada quantia, estando ainda documentado que tal quantia não serviu para pagar aos credores do insolvente, cujos créditos se encontram reconhecidos no processo de insolvência, designadamente, a D… que teve uma prestação vencida em data muita próxima à data do negócio e recebimento daquela quantia, prestação essa de que era devedor o insolvente e que só não se vencera em data anterior ao próprio negócio, face ao pedido de prorrogação por 10 dias daquela prestação efetuado pela sociedade de que é sócio e gerente o ora insolvente.
Importa destacar que resulta dos autos que as ações alienadas pelo insolvente em outubro de 2018 eram o único património valioso do insolvente e, único que poderá vir a ser apreendido para o processo de insolvência (além do reembolso de IRS, que entretanto veio a ser apreendido), caso contrário o processo será encerrado por insuficiência da massa insolvente.
Com efeito, decorre dos autos, e no seguimento das diligências encetadas pelo AI, designadamente, pela consulta às intuições bancárias e ao IGCP - Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, que não fora encontrado qualquer saldo suscetível de apreensão.
Também fruto das buscas realizadas junto dos Serviços de Conservatórias do Registo Predial, Comercial e Automóvel, e Serviços de Finanças não foi possível apreender qualquer bem imóvel e/ou bem móvel sujeito a registo e/ou participação social com valor venal.
Tal como explicitara o Sr. AI, o insolvente é titular de uma quota no valor nominal de 124’699,47€, na sociedade que gira sob a firma “G…, Limitada”, com o NIPC ………, com sede na …, ….-… …, com o capital social de 249’398,95€.
Dado que a sobredita sociedade se encontra em Processo Especial de Revitalização, homologado que foi por sentença proferida no processo que, sob o n.º 1588/18.5T8AMT, corre os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Comércio de Amarante, Juiz 1, a referida quota não apesenta qualquer valor venal.
O insolvente é ainda titular de uma quota no valor nominal de 4’750,00€, na sociedade que gira sob a firma “O…, Limitada”, com o NIPC ………, com sede no …, ….-… …, com o capital social de 5’000,00€.
No seguimento da tomada de conhecimento pelo insolvente que a quota na sobredita sociedade iria ser objeto de apreensão para a massa insolvente, veio o mesmo, entre outras coisas, esclarecer que a mesma não tem valor venal, uma vez que a sociedade em causa se encontra sem atividade.
O insolvente é, ainda, titular de uma quota no valor nominal de 2’500,00€, na sociedade que gira sob a firma “P…, Limitada”, com o NIPC ………, com sede na Rua …, ….-… Felgueiras, com o capital social de 5000,00€.
Também no seguimento da tomada de conhecimento pelo insolvente que a quota na sobredita sociedade iria ser objeto de apreensão para a massa insolvente, veio o mesmo, entre outras coisas, esclarecer que a mesma não tem valor venal, uma vez que a sociedade em causa se encontra encerrada e sem qualquer atividade.
Importa constatar que, à data da formalização da alienação das participações sociais pelo insolvente - 03 de outubro de 2018 -, já aquela obrigação objeto do processo executivo n.º 4200/18.9T8LOU apresentado pela D... se encontrava na iminência de se vencer.
E só não se encontrava vencida naquela data porque a sociedade mutuária – “G…, Limitada”, da qual era gerente o aqui insolvente – havia solicitado à credora reclamante D… em 25 de setembro de 2018, a prorrogação do pagamento da prestação que se iria vencer em 01 de outubro de 2018, pelo prazo de 10 (dez) dias.
Ou seja, caso não existisse da parte da sociedade mutuária (gerida pelo aqui insolvente) um pedido de prorrogação daquele prazo de pagamento em 10 dias a 25 de setembro de 2018, a obrigação em causa ter-se-ia vencido, em condições normais, no dia 01 de Outubro de 2018, sendo que o aqui devedor era devedor solidário daquela obrigação.
Chegados ao dia 11 de outubro de 2018 (último dia da prorrogação do prazo), a conta bancária da sociedade mutuária não tinha liquidez suficiente para saldar a totalidade dos montantes em dívida, tendo apenas sido paga parcialmente a prestação de € 200.000,00, tendo a D… efetuado uma amortização parcial da prestação em dívida no montante de € 22.483,45, conforme decorre dos elementos juntos ao seu requerimento executivo e reclamação de créditos.
Nem a sociedade mutuária, nem o insolvente ou o outro devedor solidário, pagaram à credora reclamante a prestação do empréstimo que se venceu naquele dia 11 de outubro de 2018, sendo que o aqui insolvente bem sabia dessa obrigação de pagamento e era fiador daquela obrigação (tendo renunciado ao benefício da excussão prévia).
É de destacar que as ações são precisamente vendidas a sociedade administrada pelo companheiro da irmã do insolvente e pela própria irmã do insolvente, que também é sócia da sociedade “I…”, sendo que até fevereiro era também administrada pelo insolvente e seu pai.
O devedor desfez-se desse património elevado correspondente às ações naquela sociedade “I…”, evitando desse modo que os credores viessem a ser ressarcidos pelo produto da sua venda, dando o devedor sumiço ao preço recebido pela venda, não sem antes salvaguardar que a sua mãe ficasse com o gozo de imóveis pertencentes à sociedade “I…”, dessa forma também mantendo disponibilidade, através da sua mãe (que reside consigo, conforme consta no relatório do art. 155.º CIRE), sobre os imóveis pertencentes à sociedade, cujas ações aliena.
Quanto ao destino dado a esse produto da venda das ações, o insolvente apenas esclareceu (sem qualquer suporte documental) que “esse valor foi utilizado para pagamento de diversas responsabilidades contraídas por si e pela sociedade “G…, Limitada”, inclusive horas extras e valores suplementares realizados aos funcionários da empresa, pagamentos esses que se mostraram essenciais e imprescindíveis para que essa sociedade continue a laborar e a honrar, pontual e integralmente, com os compromissos e responsabilidades que assumiu perante os credores no Processo Especial de Revitalização” (cfr. e-mail de fls. 73 a 76).
Da conjugação da informação prestada pelo insolvente com documentos de suporte contabilístico da sociedade “G…, Limitada” não ficou minimamente demonstrado que tal quantia tenha revertido a favor desta sociedade, tal como bem explicitou o Sr. AI em sede de audiência de julgamento e parecer de qualificação da insolvência.
Repare-se, e tal como refere o Sr. AI, na respetiva contabilidade da sociedade “G…, Lda.” nada está refletido quanto ao alegado empréstimo do insolvente à sociedade. Com efeito, do quadro 06-A (fls. 76-verso, extraído da contabilidade da sociedade “G…, Limitada” e fornecido ao AI pelo próprio insolvente) “outras informações contabilísticas e fiscais” resulta que a conta 26 “acionistas/sócios” se encontra saldada; o mesmo resulta do quadro 063, concretamente, da conta “suprimentos” que também se encontra saldada.
Sublinha-se que, dos elementos contabilísticos da mencionada sociedade nenhuma menção existe a refletir a entrada de qualquer quantia que tenha sido entregue pelo B… ou que este tenha pago com o seu dinheiro quaisquer dívidas da mencionada sociedade em montante equivalente àquele valor ou ainda de valor inferior.
Da prova documental junta pelo insolvente, designadamente extratos bancários e cópia de cheques de fls. 115 e ss. não resulta minimamente que o preço da venda de ações tenha sido utilizado pelo devedor para pagamento de responsabilidades da sociedade “G…”.
Analisando discriminadamente tais documentos.
Não se vê como tal se pode retirar do extrato de depósitos à ordem de fls. 115, sendo que tal extrato se refere a período distinto ao período em causa nos autos (contemporâneo ou posterior ao recebimento do preço da venda das ações (outubro de 2018). Nos extratos de depósito à ordem vemos refletidos débitos de cheque, sendo que a fls. 115-verso temos a cópia de um cheque de € 5.000,00 datado de 14.01.2015 (pelo que não releva para dar como provado o alegado destino do preço da venda das ações apenas recebido em outubro de 2018). Também este cheque não fora sacado pelo insolvente ou sobre uma conta de que é titular, antes fora sacado sobre conta da sociedade “G…, Lda.” e fora emitido à ordem de H…. O mesmo se diga quanto aos extratos bancários desta sociedade “G…, Lda.” de fls. 116 a 164, referentes a período compreendido entre janeiro de 2015 e agosto de 2018 e cópias de cheques sacados sobre esta conta à ordem de H… durante este mesmo período (fls. 116 a 164). Também neste sentido foram as análise efetuadas pelo Administrador da Insolvência (em sede de declarações), que salientara que os cheques emitidos pela sociedade “G…” à ordem do pai do insolvente (entre 2015 e agosto de 2018) não provam minimamente que o dinheiro recebido pelo insolvente em outubro de 2018 entrou naquela sociedade; e essa prova de alegada entrada de dinheiro na sociedade “G…” não fora efetuada, seja através de elementos contabilísticos com a indicação dessa entrada em dinheiro, seja através de documentos comprovativos do pagamento de dívidas da sociedade.
Também do depoimento da testemunha F…, contabilista na sociedade G…, Lda., não é possível formar convicção quanto ao concreto destino dado ao produto da venda das ações e que esse preço se destinou a pagamento de responsabilidades da sociedade G…, Lda., designadamente horas extra e suplementares a trabalhadores. Desde logo, importa denotar que o seu depoimento se afigurou parcial, procurando a testemunha tentar justificar e endeusar o comportamento do requerido e ainda de seu pai, procurando eximir de qualquer responsabilidade o aqui requerido. O depoimento mostrou-se toldado pela falta de objetividade e vontade de ajudar aquele que considera ser seu patrão, eventualmente, pelo facto de trabalhar para aquela sociedade da qual é gerente o ora insolvente e temendo pelo seu posto de trabalho. Frisa-se, ainda, a inconsistência do depoimento e incongruência da justificação avançada para a falta de suporte documental quanto aos alegados pagamentos de responsabilidades da sociedade “G…” pelo ora insolvente; sendo a testemunha contabilística tem obrigação de saber que todos os atos com relevo na contabilidade devem ficar registados. É inadmissível a facilidade com que uma testemunha contabilista vem depor em Tribunal e afirma que a regra é serem efetuados pagamentos de horas extra a trabalhadores e ainda a alguns fornecedores e costureiras, tudo sem qualquer documentação e registo e em dinheiro. Não pode o Tribunal, com base apenas nas afirmações de uma trabalhadora contabilista da sociedade gerida pelo insolvente (e que denotara parcialidade ao longo do seu depoimento, desculpabilizando o insolvente) ficar convencida que o insolvente utilizou o preço recebido com a venda das ações (€ 359.988,00) em pagamento de responsabilidades da sociedade “G…”, quando da prova documental constante dos autos (analisada de acordo com as regras da experiência) o que resulta é exatamente o contrário, o devedor quis salvaguardar esse seu património valioso (ações de sociedade que detém imóveis), fez desaparecer o produto da venda, quis eximir-se das suas responsabilidades (que eram também responsabilidades daquela sociedade “G…”), designadamente, daquela prestação de € 200.000,00 que se venceria a 11.10.2018 (após pedido de prorrogação por 10 dias) e ainda manteve na disponibilidade do seu agregado familiar (através da sua mãe, que nos termos do relatório previsto no art. 155.º CIRE faz parte do agregado do insolvente) os imóveis de que é titular aquela sociedade “I…”, cujas ações foram alienadas a sociedade administrada pela sua irmã e companheiro. Se o relacionamento entre insolvente e irmã é ou não próximo, isso não é relevante, pois por certo a irmã do insolvente (ainda que com ele não tenha um bom relacionamento) prefere que as ações por si administradas não sejam penhoras em processo executivo ou apreendidas em processo de insolvência e com aquele negócio ainda permitira à mãe ficar com a disponibilidade dos imóveis, onerando os imóveis com esse ónus.
De igual forma, afigura-se-nos irrelevante para a boa decisão da causa o projeto de relatório da Autoridade Tributária de fls. 170 e ss. referente a uma outra sociedade distinta da sociedade “G…” ou outra sociedade gerida ou detida pelo insolvente, não se podendo extrapolar considerações daquele relatório para o caso sub judice, conforme aliás exposto de forma clara pela testemunha inspetora da Autoridade Tributária V….
Na verdade, da prova produzida, seja documental, seja testemunhal, e bem assim esclarecimentos prestados pelo insolvente, resulta que o insolvente se desfez daquele património de que era titular (ações no valor de 359.988,00€), recebendo tal valor e dando-lhe destino contrário aos interesses dos seus credores, esquivando-se ao pagamento daquela prestação que se encontrava na iminência de vencimento (prestação de € 200.000,00) que se vencia a 11.10.2018 e que apenas não se venceu a 1.10.2018, por força de pedido de prorrogação de vencimento da prestação. Através daquela venda de ações, o devedor colocou a salvo de execuções dos credores (designadamente do credor D… que intentara ação executiva em janeiro de 2019) aquelas ações na sociedade “I…, S.A.”, sendo que a sociedade “I…, S.A.” é titular de imóveis e tendo sido estipulado no contrato de compra e venda de ações o direito da mãe do insolvente ao gozo pleno de imóveis de que é titular a sociedade “I…”.
Também não é despiciendo destacar aqui o que consta do relatório a que alude o art. 155.º CIRE (fls. 14 dos presentes autos e fls. 7 do relatório): o insolvente reside numa habitação propriedade da progenitora, em regime de comodato, sendo o seu agregado familiar composto por si próprio, pela sua companheira, pela filha menor e pela sua mãe. O facto de residir em casa da mãe (casa propriedade da mãe e em regime de comodato) e o facto de a sua mãe fazer parte do seu agregado familiar também aponta no sentido de conluio entre as partes naquele negócio de venda das ações, ao deixar à sua mãe o gozo pleno de prédios urbanos.
Destaca-se que nenhum dos prédios, em relação aos quais fora estipulado o mencionado direito de gozo pleno dos prédios pela mãe da insolvente corresponde à habitação do insolvente e propriedade de sua mãe (segundo o relatório a que alude o art. 155.º CIRE e indicada pelo próprio devedor na oposição deduzida nos presentes autos, a sua habitação corresponde ao n.º 82 em Margaride, Felgueiras), sendo que estes prédios mencionados na cláusula 6.º do contrato de compra e venda de ações situam-se em Lousada e Porto.
Toda esta sequência da realidade indica claramente que este negócio de compra e venda de ações visou colocar a salvo o património do devedor da cobrança coerciva dos seus créditos pelos credores, dando destino ao dinheiro recebido contrário aos interesses dos seus credores e em proveito próprio.
A sociedade “J…” terá já alienado aquelas ações (conforme refere na sua carta de resposta ao AI de fls. 82 e ss.).
Também é de destacar, tal como referido pelo AI, que o Sr. AI apenas tomou conhecimento deste negócio de venda de ações através das diligências de pesquisa que efetuou, não tendo o insolvente informado previamente o AI ou os autos sobre esta alienação das ações. Não fosse esta pró atividade do AI e o negócio teria escapado ao crivo do AI e Tribunal.
Dos autos o que decorre e não pode deixar de ser considerado é que cerca de um ano antes da declaração da sua insolvência (e ainda cerca de sete meses antes de se apresentar a PEAP), mas quando já se encontrava iminente o vencimento de obrigações que o devedor sabia que não ia cumprir (prestação de € 200.000,00 do empréstimo à D…), o insolvente vendeu um importante e único ativo mobiliário de que era proprietário, sendo que com o produto dessa venda obteve € 359.988,00€, apropriando-se de tal montante, em claro prejuízo dos seus credores, não tendo destinado tal quantia ao pagamento dos seus credores, fazendo desaparecer esse dinheiro, em proveito próprio, não apresentando qualquer rasto do destino dado ao dinheiro.
Destaca-se, uma vez mais, que não ficara demonstrada a alegação do devedor que destinou tal quantia ao pagamento dos trabalhadores em horas extra e valores suplementares dos trabalhadores da sociedade “G…, Lda.”, nem o Tribunal ficara convencido de tal versão. Repare-se que o devedor não juntou, porque não quis, o seu extrato bancário em período posterior ao depósito na sua conta daquela elevada quantia.
O destino de quantia tão elevada (superior a € 359.988,00), a ter entrado na sociedade e a ter sido destinada ao pagamento dos trabalhadores, necessariamente teria de deixar rasto, não sendo minimamente crível que a ter ocorrido tal pagamento dos trabalhadores, não exista registo de movimentações bancárias.
Não pode o Tribunal, sem mais, valorar positivamente a alegação fácil e genérica de que essa elevada quantia resultante da venda das ações se destinou ao pagamento de horas extra e valores suplementares de trabalhadores, quando não existe qualquer registo nesse sentido. E também não é, pelo simples facto, de numa outra sociedade ter ocorrido pagamentos a trabalhadores sem os mesmos terem sido declarados (como alude o projeto de relatório da AT junto aos autos pelo insolvente), que o Tribunal pode considerar isso como regra e permitir que se considere como provado esse pagamento, sem prova documental. Tal seria premiar a ilegalidade.
É, para nós, evidente que ao alienar essas ações, o insolvente prejudicou os seus credores, porquanto o produto dessa venda não serviu para satisfazer os seus credores, nesse sentido vejam-se as reclamações de crédito apresentadas e os credores reconhecidos.
Caso o insolvente não tivesse procedido a essa venda, essas ações teriam sido apreendidas no processo de insolvência, e teria revertido para os credores o valor correspondente a essas ações.
A apreensão das ações apenas será possível, atenta a perspicácia do Sr. AI ao analisar o negócio e resolver o negócio e estando ainda dependente do desfecho da ação de impugnação de resolução de negócio apensa ao processo de insolvência.
O Tribunal dera como não provado que o insolvente B… violou os deveres de colaboração que lhe eram impostos pelo art. 83.º CIRE, uma vez que o devedor remeteu ao Sr. AI diversos documentos, apresentando a sua versão quanto ao destino dado ao dinheiro. Apesar de a justificação apresentada quanto ao desaparecimento do dinheiro resultante da venda das ações não ter sido considerada crível pelo Tribunal, tal não permite concluir ter ocorrido uma violação grave dos deveres de colaboração, tão só integrar outros pressupostos da qualificação da insolência como culposa que (na fundamentação de direito) se exporão.
No que respeita à alegada violação do dever de colaboração pelo insolvente, também as declarações do Sr. AI foram no sentido de considerar que não ocorreu tal violação, porquanto esse dever fora satisfeito razoavelmente, ainda que não aceite a versão do devedor quanto ao alegado destino do preço recebido pela venda das ações.
Este reconhecimento pelo AI da não existência de violação do dever de colaboração do insolvente denota a imparcialidade e objetividade do depoimento do Sr. AI; tendo o mesmo deposto de forma espontânea, isenta e irrepreensível.
Cumpre, ainda, destacar que nada nos autos aponta para que os créditos reconhecidos à Direção de Finanças do Porto – Serviço de Finanças de Felgueiras, no montante global de 2.850,31€ e ao credor T…, S.A., no montante global de 120,39€, tenham sido contraídos diretamente pela sociedade e avalisados pelo aqui devedor, antes decorrendo o contrário da Lista de Créditos reconhecidos.
Dos presentes autos não consta documentação bastante quanto ao alegado cumprimento pontual das prestações previstas no PER homologado e referente àquela sociedade, não bastando para tal os e-mails de fls. 109 a 112, da autoria da sociedade “G…” e as afirmações genéricas e parciais da testemunha F…, cujo depoimento se afigurou parcial, conforme acima exposto. Ainda que tal PER esteja a ser cumprido, o certo é que tal não retira o caráter reprovável e prejudicial aos credores do aqui insolvente do negócio de venda de ações e do subsequente desaparecimento do preço dessa venda.
Acrescente-se ainda que o facto de constar na sentença de declaração de insolvência os factos alegados pelo devedor e AJP no parecer que encerrou o PEAP, o certo é que não fora produzida prova sobre tais factos, nem tais factos foram dados como provados pelo Tribunal, para efeitos de eventual qualificação da insolvência, não tendo ficado demonstrado nos autos os alegados sacrifícios e redução efetiva de salário e perdas de regalias. Ainda que se verificando essa redução de salário e perdas de regalias, tal não retira o caráter reprovável à venda das ações e suscetível de conduzir à qualificação da insolvência como culposa.
Quanto à matéria de facto dada como não provada, para finalizar, destaca-se ainda que sobre tais factos não fora produzida prova suficiente e bastante, sendo que quanto a uns fora produzida prova em sentido contrário, conforme acima exposto.”.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, ouvida que foi a gravação dos depoimentos prestados em audiência, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida.
Insurge-se o recorrente contra tal decisão por entender que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova oferecida no que tange aos pontos mencionados.
Após audição da prova, entendemos que a apreciação da Sr.ª Juiz a quo - efectivada no contexto da imediação da prova -, surge-nos como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.
Na realidade, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Como é sabido, a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão: com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros em termos de racionalidade e perceptibilidade.
A actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
Não esqueçamos, ainda, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
No caso vertente, após audição da prova e análise crítica da prova documental, afigura-se-nos que a impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente não merece provimento.
Com efeito, o Tribunal a quo motivou e analisou, criticamente, de forma ponderada e com recurso às regras da experiência, a globalidade da prova produzida, não padecendo de desconformidade com os elementos probatórios disponíveis.
Afigura-se-nos, assim, não ser aceitável que os meios probatórios especificados pela recorrente imponham uma alteração da decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto provada.
Invoca, porém, o apelante para sustentar a sua pretensão no sentido de dever ser a factualidade do ponto 12 dada como não provada no segmento por si referido, que “a responsabilidade concreta para com a D… era da sociedade de que ele era sócio e não dele e que o seu vencimento tinha sido prorrogado no tempo por solicitação da empresa e foi aceite pela entidade bancária”.
Ora, resulta da factualidade dada como assente que o crédito originário da D… é sobre a sociedade G…, Lda.
Porém, resulta, igualmente, dos autos que o sócio e gerente da referida sociedade, que é o recorrente, foi quem, na referida qualidade e em representação da sociedade, negociou o valor e as condições do empréstimo e recebeu o dinheiro da instituição bancária. Acresce que, no contrato de mútuo, foi o apelante que ficou como avalista e aceitou a cláusula de renúncia ao beneficio da excussão prévia, passando, deste modo, a devedor principal e a assumir a concreta responsabilidade pelo pagamento do valor mutuado.
Afigura-se-nos, por isso, não existir qualquer fundamento para alterar o juízo de apreciação da matéria de facto descrita no referido ponto, como pretende o recorrente.
Ademais, para sustentar a alteração pretendida no que respeita à restante matéria de facto provada e não provada, apoia-se o recorrente, sobretudo, no depoimento da testemunha F….
Ouvindo, no entanto, o depoimento prestado pela referida testemunha não podemos corroborar o juízo do apelante sobre o mesmo.
Note-se, desde logo, a referida testemunha afirma que na empresa G…, Limitada se praticavam atcos “à margem da lei”, nomeadamente, quanto ao pagamento de horas extraordinárias e suplementares.
Ora, como bem refere o Digno Magistrado do Ministério Público, nas suas alegações “Justificar a prática de atos ilegais em tribunal com outros atos ilegais não se afigura que se possa considerar a melhor forma ou, pelo menos, a mais correcta e aceitável de fazer justiça.”.
No entanto, mesmo admitindo que fossem pagas horas extraordinárias sem serem declaradas, o certo é que pagar num ano entre 50, 60 ou 70.000,00 € em horas extraordinárias, quando os vencimentos declarados ascendiam a 140 a 150 mil euros, ou seja, pagar em horas extraordinárias praticamente metade do valor dos salários declarados, quando os salários declarados eram em média de 650,00 €, não se nos afigura credível, à luz das regras da lógica e da experiência comum.
Com efeito, teria a maior parte dos trabalhadores que laborar cerca de quatro horas por dia a mais do que o horário normal, o que apenas teria justificação caso existisse muito trabalho e as consequentes receitas, o que não nos parece ser o caso, pois que, segundo a testemunha, a empresa já tinha problemas financeiros há algum tempo.
Ademais, a credibilidade da referida testemunha resulta mais abalada quando, depois de afirmar que o pai do recorrente e o próprio apelante tinham colocado na sociedade G…, Limitada várias centenas de milhares de euros e que os cheques emitidos pela sociedade a favor de H… entre 2015 e Agosto de 2018, únicos documentados nos autos, eram para pagamento de horas extraordinárias, quando questionada pelo Ministério Público, se “depois de 03/10/2018 foram feitos pagamentos nos mesmos termos como era até ali”, afirmou perentoriamente que “não”.
Ademais, a referida testemunha, enquanto contabilista e conhecedora da realidade de tal sociedade, não esclareceu o destino dado ao capital recebido da D… através do mútuo celebrado em Abril de 2018.
Sendo certo que, seria espectável, à luz das regras da lógica e da experiência comum, que, tendo o apelante vendido as acções em 03/10/2018 e tendo invocado que o dinheiro obtido com a sua venda se destinou a pagar horas extraordinárias na referida sociedade G…, Limitada, que efectivamente continuasse a existir a prestação de horas extra por parte dos trabalhadores, bem como o respectivo pagamento, mas, tal não terá sucedido, como afirmou a referida testemunha.
De resto, a ser como o apelante pretende fazer crer, até nem lhe seria difícil provar documentalmente o destino dado aos 359.988,00€ das acções, pois que, tendo enviado o comprovativo do seu depósito na sua conta bancária, conforme documento junto em 16/12/2019 pelo Senhor/a Administrador/a de Insolvência no processo principal com o seu relatório do artigo 155º, do CIRE, não se compreende bem o motivo do não envio dos elementos documentais bancários e outros comprovativos do destino de tal verba, envio que poderia efectuar facilmente e até se lhe impunha, como era seu dever.
Sendo, ainda, certo que impendia sobre o recorrente o ónus de provar o destino efectivo dado a tal montante.
Por isso, nenhum fundamento existe para que a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida possa ser questionada e objeto de alteração e, muito menos, nos termos pretendidos pelo recorrente.
Parece-nos, por isso, não existirem motivos que justifiquem a alteração, devendo manter-se as respostas dadas aos factos provados sob os pontos impugnados.
Em face do que vem de ser exposto, improcede a impugnação da matéria de facto apresentada.
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A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada é assim a atrás mencionada.
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4.2. Do mérito do decidido.
O apelante clama pela revogação da sentença de qualificação da insolvência como culposa de que recorre.
Sustenta tal pretensão na modificação da decisão sobre a matéria de facto que, pela via recursiva, reclama.
Mantendo-se, todavia, inalterada a decisão relativa à matéria de facto, em consequência da improcedência do recurso impugnativo da mesma afigura-se-nos que, à luz da mesma, se deve manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Insurge-se o recorrente, ainda, contra a decisão de condenação de indemnização dos credores no montante dos créditos não satisfeitos, por considerar que se impunha a fixação de um valor tendo em conta o seu grau de culpa e de ilicitude.
Afigura-se-nos, no entanto, que a referida pretensão seria aceitável se estivesse em causa um incidente de qualificação de uma insolvência de uma pessoa colectiva.
Estamos, porém, perante uma insolvência de pessoa singular e, como bem acentua a Srª Juiz a quo na sentença recorrida, há que ter em conta que, se não beneficiar o recorrente do beneficio da exoneração do passivo restante, como tudo aponta a manter-se a condenação no incidente, face ao preceituado no artigo 238º, nº 1, al e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não se justifica a fixação de quaisquer limites na indemnização, pois que, apesar da insolvência, os créditos não pagos e não extintos com a exoneração permanecem e podem ser exigidos pelos credores.
Com efeito, como muito bem se refere na sentença recorrida:
“Preceitua a al. e) do n.º 2, do art. 189.º, que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, deve o juiz condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.
Esta alínea tem maior relevância nos devedores pessoas coletivas, perante a afetação dos seus administradores, pessoas singulares.
Tratando-se de pessoas singulares e afetando-se os próprios devedores pessoas singulares, os mesmos já são responsáveis por essas mesmas dívidas, sendo que a qualificação de insolvência já constitui impedimento à exoneração do passivo restante.
Acrescenta o n.º 4 deste preceito legal que ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.
Verificados que estão os requisitos aptos à declaração da insolvência como culposa, urge igualmente dar cumprimento a este normativo.
Ora, considerando o estado atual do processo insolvência, por ora apenas tendo sido apreendido o reembolso de IRS, mas estando em curso diligências tendentes à resolução de negócios em benefício da massa insolvente, certo é que se desconhece, por ora, qual a satisfação que os créditos dos credores poderão vir a obter no âmbito do processo de insolvência de que estes autos são apenso.
Nessa medida, e porque o tribunal não dispõe dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, condena-se o afetado pela qualificação da insolvência a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, a quantificar em liquidação de sentença.
O critério a utilizar no cálculo do montante dos prejuízos sofridos corresponderá ao valor dos créditos julgados verificados (no apenso respetivo) não satisfeitos através dos pagamentos a efetuar neste processo (artigo 189º, nº3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
De notar que in casu não se justifica qualquer limitação nesta condenação, ao contrário do propugnado pelo devedor (pretendendo ver limitada esta condenação apenas à parte do preço recebida com a venda das ações), porquanto se trata de pessoa singular já responsável pelas dívidas, não existindo fundamento legal para limitar as suas dívidas. Essa limitação só faz sentido quando estamos perante insolventes pessoas coletivas e os sujeitos afetados pela qualificação da insolvência, não fora a condenação da al. e) do n.º 2 art. 189.º CIRE, não seriam responsáveis pelas dívidas da sociedade insolvente.
A limitação da responsabilidade pelas dívidas de uma pessoa singular não poderá ser efetuada no incidente de qualificação da insolvência, antes deverá passar pelo crivo da exoneração do passivo restante, devendo estar preenchidos os pressupostos previstos no art. 238.º CIRE e depois do devedor ter mostrado ser merecedor desse “fresh start” durante os cinco anos de cessão (cfr. art. 239.º, 243.º e 244.º CIRE). Não pode o devedor pessoa singular que é afetado pela qualificação da insolvência como culposa (o que exclui necessariamente a possibilidade de exoneração do passivo restante – art. 238.º, 1, al. e), CIRE), pretender, na própria sentença de qualificação da insolvência como culposa, ver limitada a sua responsabilidade pelas dívidas reconhecidos no processo de insolvência e que sempre seria responsável, ainda que a insolvência fosse julgada fortuita.”.
Tal raciocínio não nos merece qualquer censura.
Cremos, pois, que por tais motivos ser de manter a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo do apelante.
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Notifique.

Porto, 23 de Setembro de 2021
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)