Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
276/17.4IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: PERDA DE VANTAGENS DO CRIME
Nº do Documento: RP20211110276/17.4IDPRT.P1
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Na perda sucedânea em valor de vantagens do crime (regulada atualmente no artigo 111.º, n.º 3, do Código Penal), a regra será a condenação do agente do crime, mas se este atua em nome e em benefício de terceiro, a condenação será decretada contra esse beneficiário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: processo nº276/17.4IDPRT.P1

Acórdão deliberado em conferência na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
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Sumário (da responsabilidade do relator).
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I. B…, C…, D… e o MºPº vieram interpor recurso do acórdão proferido no processo comum coletivo nº276/17.4IDPRT do juízo central criminal de Penafiel – Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este que, respetivamente:
-condenou o primeiro pela prática de três crimes de fraude fiscal qualificada, previstos e punidos pelos arts. 14.º, 26.º, 103.º, n.º 1, al. a), 104.º n.ºs 1 e nº2, alínea a), da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho (RGIT) na pena de 2 (dois) anos de prisão (respeitante ao ano de 2012); 2 anos e 6 (seis) meses de prisão (ano de 2013) e na pena de 2 anos e 4 meses de prisão (ano de 2014); e em cúmulo jurídico das penas parcelares apicadas na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, que ao abrigo do disposto no art. 50º, nº1 do C. Penal e 14º do RGIT se suspende na sua execução por igual período sob condição do pagamento da quantia global de 291.080,41 (duzentos e noventa e um mil e oitenta euros e quarenta e um cêntimos), , em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelos artigos 103ºe 104º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de dois anos, sujeita à condição de o arguido, no mesmo período, proceder ao pagamento da quantia de 12.000,00€, mediante depósito autónomo, a reverter a favor da autoridade tributária;
- condenou o segundo pela prática (no ano de 2012) de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos arts. 14.º, 26.º, 103.º, n.º 1, al. a), 104.º n.ºs 1 e nº2, alínea a), da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho (RGIT) na pena de 2 (dois) anos de prisão que ao abrigo do disposto no art. 50º, nº1 do C. Penal e 14º do RGIT se suspende na sua execução por igual período, suspensão condicionada ao pagamento por este, ao Estado/Administração Fiscal, no mesmo período, da quantia de global de 31 563,60€ (trinta e um mil quinhentos e sessenta e três euros e sessenta cêntimos);
- condenou o terceiro pela prática (no ano de 2014) de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelo art. 14.º, 26.º, 103.º, n.º 1, al. a), 104.º n.ºs 1 e nº2, alínea a), da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho (RGIT) na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão e em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão condicionada à suspensão da sua execução por igual período, ao pagamento por este, ao Estado/Administração Fiscal, no mesmo lapso temporal, da quantia de 91.628,06€ (noventa e um mil seiscentos e vinte e oito euros e seis cêntimos e;
- julgou parcialmente procedente a pretensão de perda de vantagem patrimonial decorrente da prática de crime peticionada e, consequentemente, declarou a perda a favor do Estado do montante de 291.080,41€ (duzentos e noventa e um mil e oitenta euros e quarenta e um cêntimo), condenando a arguida E…, Unipessoal, Ldª ao seu pagamento, absolvendo os demais arguidos da pretensão a este propósito e contra eles deduzida.
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I.1. Acórdão recorrido (transcrição dos segmentos com interesse).
“(…) II- Fundamentação:
1. Factos Provados:
Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1. A sociedade “E…, Unipessoal, Lda.” era uma sociedade por quotas, com o NIPC ………, com sede na Avenida …, n.º .., pavilhão ., …, …, Lousada, e tinha por objecto social o fabrico, comercialização, importação, exportação e representação de calçado.
2. Para efeitos de tributação fiscal, encontrava-se colectada para o exercício de actividade principal de fabricação de calçado – CAE ……, na área do Serviço de Finanças de Lousada, enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade trimestral e, em sede de IRC, no regime geral de tributação 3.
3. A gerência da referida sociedade está e esteve, desde a sua constituição em 01.06.2012, entregue ao arguido B…, o qual enquanto sócio-gerente da referida sociedade e na qualidade de seu legal representante, exercia de facto todas as funções de gestão e administração da sociedade.
4. Com efeito, era o arguido que dava as ordens, decidia o giro económico e de afectação das receitas às despesas, tomava as decisões, vinculava a empresa, assinava contratos, contratava pessoal e procedia ao pagamento dos salários, facturava os serviços prestados, liquidava nas facturas que emitia o IVA e cobrava-o aos seus clientes, procedia ao apuramento contabilístico do imposto exigível, declarando aquando da remessa à Administração Tributária das respectivas declarações periódicas do IVA, à elaboração e apresentação das declarações anuais de IRC e procedia ao pagamento de impostos.
5. A sociedade “F… – Unipessoal, Lda.” era uma sociedade por quotas, com o NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, em …, Felgueiras e que tinha por objecto social definido e registado o fabrico e comércio de calçado, componentes e acessórios e como gerente inscrito C….
6. A gerência da sociedade referida em 5 esteve, desde 28.08.2012, data da sua constituição, até 09.02.2018 – data do cancelamento da sua matrícula – entregue ao arguido C…, o qual enquanto seu sócio-gerente, e na qualidade de seu legal representante, era o responsável, nomeadamente, pela administração e gestão dos pagamentos dos impostos devidos ao Estado Português e pela gestão da respectiva contabilidade, determinação da elaboração de livros de facturas e da emissão destas, movimentação da respectiva conta bancária fazendo levantamentos e emitindo cheques.
7. A sociedade arguida “G…, Unipessoal, Lda.” era uma sociedade por quotas, com o NIPC ………, com sede na Rua …, s/n, 1º dto, …, …, e que tinha por objecto social constante da sua constituição e registado na competente Conservatória de Registo Comercial o comércio por grosso de têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro e comércio por grosso de materiais de construção e equipamento sanitário e como gerente inscrito D….
8. A gerência da sociedade aludida em 7 está e esteve, desde a data da sua constituição em 10.08.2012, entregue ao arguido D…, o qual enquanto seu sócio-gerente e na qualidade de seu legal representante, a representava; nomeadamente, perante a administração fiscal, enquanto responsável pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português, gestão da respectiva contabilidade, determinação da elaboração de livros de facturas e emissão destas, movimentação da conta bancária da mesma sociedade, emissão e levantamento de cheques .
9. A sociedade arguida “H…, Unipessoal, Lda.” era uma sociedade por quotas, com o NIPC ………, com sede na …, n.º .., 1.º dto, …, Lisboa e que tinha por objecto social, entre o mais, agentes de comércio por grosso de têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro;
10. Na constituição da referida sociedade e no respectivo registo comercial desde 05.07.2013, data da sua constituição, consta o arguido I…, como sócio-gerente da referida sociedade.
11. A sociedade arguida “J… – Unipessoal Lda.” era uma sociedade por quotas, com o NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …., …, Amarante e que tinha por objecto social o fabrico, corte e costura de calçado.
12. Na constituição da sociedade aludida em 11 e no respectivo registo comercial a gerência da referida sociedade desde 26.09.2013, consta como sócio-gerente o arguido K….
13. Em data não concretamente apurada, mas seguramente no ano de 2012 no âmbito da sua actividade profissional, o arguido B…, por si e em representação da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.”, em conjugação e comunhão de esforços e vontades com a sociedade “F…, Unipessoal, Ldª”, e o seu legal representante e arguido C…, por si e/ou com o seu conhecimento e vontade emitiram ou mandaram emitir facturas desta última em nome da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” referentes a transacções fictícias, forjando para o efeito o seu conteúdo.
14. De seguida, o arguido B… incluía na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.”, como se de verdadeiros custos se tratassem, as mencionadas facturas referentes a supostas prestações de serviços à actividade desenvolvida e que não correspondiam a verdadeiras transacções comerciais, incrementando os custos, diminuindo o lucro tributável e, consequentemente, o valor do imposto IRC a pagar e do montante de IVA a entregar.
15. Na execução de tal propósito, conhecido e aceite pelos arguidos B… e sociedade por si representada e C…, enquanto legal representante da sociedade “F…, Unipessoal, Lda.”, durante o ano de 2012 e 2013, C… emitiu ou mandou emitir, e entregou e/ou mandou entregar e/ou anuiu na entrega a favor do arguido B…, que a fez incluir na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” como se de verdadeiros custos se tratassem, as seguintes facturas (…)
16. Em data não concretamente apurada, mas seguramente nos anos de 2013 e 2014 no âmbito da sua actividade profissional, o arguido B…, por si e em representação da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.”, em conjugação e comunhão de esforços e vontades com a sociedade “G…, Ldª”, e o seu legal representante e arguido D…, por si e/ou com o seu conhecimento e vontade, este emitiu ou mandou emitir, entregou, ou mandou entregar, ou anuiu na entrega a favor do arguido B…, que a fez incluir na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” como se de verdadeiros custos se tratassem, as seguintes facturas (…)
17. No propósito ainda de defraudar o Estado e de obter benefícios fiscais a que não tinha direito, em conjugação e comunhão de esforços com pessoa não concretamente que se intitulou representante da arguida “J…, Unipessoal Lda.”, durante o ano de 2013 e 2014, emitiu ou mandou emitir e entregou a favor do arguido B…, que a fez incluir na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” como se de verdadeiros custos se tratassem, as seguintes facturas (…)
18. De igual modo e com o mesmo propósito de defraudar o Estado e de obter benefícios fiscais a que não tinha direito, em conjugação e comunhão de esforços com pessoa não concretamente determinada que se intitulou representante da arguida “H…, Unipessoal Lda.”, durante o ano de 2014, emitiu ou mandou emitir e entregou a favor do arguido B…, que a fez incluir na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” como se de verdadeiros custos se tratassem, as seguintes facturas (…).
19. As facturas aludidas em 15, 16, 17 e 18, não titularam quaisquer operações comerciais reais, uma vez que a sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.”, através do arguido B… nunca adquiriu nem usufruiu dos bens e serviços a que as mesmas se referem.
20. E, não obstante estar ciente que tais facturas não titulavam como não titulam quaisquer transacções efectivamente realizadas, o arguido B… fez constar tais facturas na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” registando-as e discriminando-as.
21. Desta forma, a Administração Fiscal convenceu-se de que as facturas em causa eram verdadeiras e correspondiam a transacções comerciais e/ou prestação de serviços reais e, consequentemente, aceitou os montantes titulados pelas mesmas, nos exercícios fiscais de 2012, 2013 e 2014.
22. Sucede que, a sociedade “F…, Unipessoal, Lda.”, não dispunha de instalações, equipamentos, contratos de prestação de serviços de água ou electricidade ou trabalhadores inscritos em seu nome, nenhuma entidade lhe declarou vendas e/ou serviços e não dispunha de estrutura para desenvolver uma actividade comercial, nem estava em condições de prestar os serviços que constam de tais documentos.
23. A sociedade “G…, Unipessoal Lda.”, cessou a actividade a 30 de Junho de 2014 e procedeu à emissão de facturas após tal data (designadamente, a 17, 22 e 25 de Julho de 2014); as facturas não foram emitidas de forma cronológica, a sua sede era num edifício de escritórios que não dispunha de qualquer unidade fabril para laboração, não tinha qualquer trabalhador e nenhuma entidade lhe declarou a venda de matérias primas ou a subcontratação.
24. Quanto à sociedade arguida “H…, Unipessoal, Lda.”, a sua sede é numa casa desabitada, não tinha qualquer contrato de prestação de serviços, sendo que não dispunha de qualquer outra instalação ou equipamentos que lhe permitisse vender os bens mencionados nas supra aludidas facturas.
25. Também a sociedade arguida “J…, Lda.” não dispunha de qualquer estrutura para desenvolver qualquer actividade, não dispondo de instalações, equipamentos, contratos de prestação de serviços de água ou electricidade ou trabalhadores inscritos em seu nome, nenhuma entidade lhe declarou vendas e/ou serviços e não dispunha de estrutura para desenvolver uma actividade comercial nem estava em condições de prestar os serviços que constam das facturas supra mencionadas.
26. Todavia, com base nas referidas facturas, o arguido B…, por si e em representação da sociedade “E…, Unipessoal, Lda.”, procedeu a deduções fiscais indevidas em sede de IRC dos anos de 2012, 2013 e 2014, materializada através da adulteração dos registos contabilísticos e declarações fiscais da actividade desenvolvida por si, obtendo com este procedimento vantagens patrimoniais com a consequente diminuição das receitas tributárias sendo que da emissão e inclusão das facturas supra referidas na contabilidade da sociedade arguida “E…, Unipessoal Lda.” e da sua inclusão nas declarações fiscais para efeitos de IRC, relativas ao ano fiscal de 2012, 2013 e 2014, apresentadas junto da autoridade tributária em 30.05.2013, 22.04.2014 e 11.05.2015, respectivamente declarando falsamente como custos o valor líquido daquelas facturas, a mencionada sociedade arguida deixou de pagar ao Estado a título de IRC as seguintes quantias (…)
27. Acresce, ainda, que a utilização por parte da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.”, por intermédio do arguido B…, das aludidas facturas teve como consequência a dedução indevida de IVA, o que implicou igualmente a obtenção de uma vantagem patrimonial relativamente a este imposto posto que ao fazer constar o imposto suportado nas facturas sabendo que elas não correspondiam a serviços efectivamente prestados, aquando da apresentação das declarações periódicas de IVA, em 06.02.2013, 14.02.2014, 01.05.2014 e 30.07.2014, respectivamente. referentes ao 4.º trimestre de 2012, 4.º trimestre de 2013, 1.º e 2.º trimestres de 2014, obteve as seguintes vantagens patrimoniais (…).
28. Ao actuar da forma acima descrita, agiu o arguido B…, em representação e no interesse da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.”, bem sabendo que as referidas facturas não correspondiam a negócios comerciais efectivos uma vez que os serviços delas constantes nunca foram prestados, antes tendo sido forjadas em conjugação de intentos e esforços com os restantes arguidos nos enunciados moldes e circunstâncias.
29. Não obstante ter perfeito conhecimento de que tais facturas não titulavam reais transacções comerciais e que eram documentos fiscalmente relevantes, o arguido B…, em representação e no interesse da sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” incluíu as mesmas nas declarações de rendimentos da sociedade relativa aos anos de 2012, 2013 e 2014, que enviou aos serviços da administração fiscal, bem como nas declarações periódicas de IVA referentes ao 4.º trimestre de 2012, 4.º trimestre de 2013 e 1.º e 2.º trimestres de 2014.
30. Ao proceder do modo descrito, o arguido B… agiu com o propósito de que a sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” obtivesse uma vantagem patrimonial, no montante global de € 291.080,41, a que sabia não ter direito, diminuindo-lhe as receitas tributárias em valor equivalente, bem sabendo que os montantes acima referidos pertenciam ao Estado e que a este deviam ser entregues.
31. Os arguidos C…, por si e em representação das sociedades F… e o arguido D… por si e em representação da sociedade “G…”, e nas concretas condutas a cada um respeitantes agiram, em comunhão de esforços, com o propósito conseguido de fazer constar das facturas mencionadas supra, prestações de serviços inexistentes, bem como de as entregar ao arguido B… e à sociedade arguida “E…, Unipessoal, Lda.” para que estes obtivessem, como obtiveram, uma parte da vantagem patrimonial ilegítima descrita, através da diminuição das receitas tributárias do Estado, nos seguintes termos e montantes:
- o arguido C… no ano de 2012 e a título de IRC 16.439,37€ e em sede de IVA 15.124,23€ - tudo no valor global de 31.563,60€;
e no ano de 2013 respeitante a IRC a quantia de 7.440€ e em sede de IVA 6.844,80 – tudo no valor global de 14.284,80€;
- os arguidos G…, Unipessoal, Ldª e D… no ano de 2013 – a titulo de IRC 3001,75€ e em sede de IVA – 6844,80€, tudo no valor global de 9.846,55€; e no ano de 2014, IRC no valor de 44.089,03€ e em sede de IVA o valor 47.539,03€, no montante total de 91.628,06€
32. Os arguidos agiram em nome, com conhecimento e no interesse das sociedades arguidas, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. (…).
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Da perda da vantagem patrimonial.
O Ministério Público ao abrigo do disposto no art. 110º do C. Penal pugna pela perda de vantagem patrimonial obtida pelos arguidos E…, Unipessoal, Ldª e B…, no valor global de 291.080,41€, ainda que a final peticione a condenação solidária de todos deste montante.
Importa então dilucidar se deve ou não ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pelos arguidos na acusação deduzida, e isto independentemente da inexistência de pedido de indemnização civil e de a Autoridade Tributária ter ou não usado de outros meios para cobrança do imposto em dívida, tais como execuções fiscais e reclamação do crédito no processo de insolvência da arguida sociedade. Esta questão tem dividido a Jurisprudência, com acórdãos no sentido do supra citado de 23/11/2016 e 7/12/2016 (respectivamente relatados pelos Srs. Desembargadores João Pedro Nunes Maldonado e Maria Dolores Silva e Sousa, ambos in www.dgsi.pt), e com outros em maior número e em sentido contrário, tais como o de 22/03/2017, 12/07/2017, 17/01/2018 e 12/09/2018, relatados pelos Srs. Desembargadores Francisco Mota Ribeiro, Jorge Langweg, Maria Deolinda Dionisio e Maria Dolores Silva e Sousa, que reviu a sua anterior posição (todos ibidem).
Ponderados os factos provados dúvidas não restam de que os custos deduzidos em sede de IRC e a quantia recebida a título de Iva e não entregues à AT no quadro da comissão de um crime de fraude fiscal, constitui vantagem que pode ser declarada perdida a favor do Estado. E sufragando nós, não só pode, como tem que ser declarada perdida a favor do Estado, pois, sendo essa perda ou confisco geral (cfr. João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, nos seus Estudos publicados na Revista Julgar On Line de Janeiro de 2015 e Janeiro de 2017, em anotação a acórdão do TRG e ao do TRP supra referido de 23/11/2016) imposta pelo art.º 110º n.º 1 alínea b) do CP, na redacção actualmente em vigor, depois das alterações decorrentes das L. 32/2010, de 2/09 e 30/2017, de 30/05, a mesma tem que ser declarada, designadamente, e como se diz naquele segundo texto, porque, “…o legislador português, como (insistimos) resulta claramente do art.º 130º do Código Penal, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do jus imperium estadual…”. – cfr. tb acórdão da Relação de Guimarães de 19 de Janeiro de 2019, que se segue de perto.
A perda de vantagens do crime como medida sancionatória análoga a uma medida de segurança, como é considerada quase unanimemente pela Doutrina e Jurisprudência (ao contrário do Prof. Damião e Cunha, em Apontamentos policopiados para a disciplina de Direito Penal II, da Universidade Católica, que a classifica como pena acessória dependente da aplicação da pena principal) é determinada pela “…prevenção da criminalidade em globo, ligada à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável - de que “o crime” não compensa. Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral)…” (Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime). “O crime não pode compensar e a sentença é o momento simbólico e ideal para o declarar…”, fim que apenas é atingido pela declaração de perda de vantagem do crime que “deverá, pelo menos, ter esse valor insofismável, fazendo ver a toda a comunidade quais as consequências da prática de crimes.” (Revista Julgar de 2017 citada). E isto independentemente da existência ou inexistência de pedido de indemnização civil, ou de execuções já movidas pela Autoridade Tributária para receber o imposto em dívida, “Apesar da eventual inutilidade prática, o mero valor pedagógico da decisão não é despiciendo, não podendo ser esquecido.”, impondo a declaração da perda de vantagem do crime, sempre que esta exista, porque “A obrigação do confisco é geral…” e “O confisco dos proventos do crime tem uma finalidade preventiva pelo que a omissão da sua declaração (a sua execução posterior já será outra coisa) frustra este propósito politico-criminal e emite um sinal errado para a comunidade.” (ibidem). De qualquer forma, mesmo que não seja o Estado o lesado, como o é no caso dos crimes fiscais, sempre os direitos dos lesados são assegurados, independentemente do confisco, como o impõe o n.º 6 do art.º 110º do CP, na redacção que lhe foi introduzida pela L. 30/2017, de 30/05, que transpõe para o direito português a Directiva 2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 3/04/2014, sobre o congelamento e a perda de instrumentos e produtos do crime na EU, e que, salvo melhor opinião, impõe a posição que assumimos sobre a questão aqui em causa. Ao que acresce que, nos crimes fiscais, em que o lesado é o Estado, conforme é referido naquele Estudo da Revista Julgar de 2017, e pelas diversas razões que ali bem se explicam “a execução fiscal ou mesmo a dedução de pedido de indemnização civil não constituem sempre formas suficientes para assegurar as finalidades subjacentes ao confisco…”, confisco que como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional ali citado “…tem ainda subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente…”.Necessidade à qual nenhum Estado de Direito pode ficar alheio e deve prosseguir por todas as formas legalmente possíveis “…também como instrumento de profilaxia do enriquecimento ilícito.” (in “A admissibilidade de (co)existência do confisco e outros mecanismos de recuperação de vantagens no âmbito dos crimes tributários”, de Filipa Nunes da Cunha, RMP 151, que defende também a compatibilidade entre confisco, embora só na parte que o excede e se o houver com o pedido de indemnização civil, e com execução fiscal, citando como pertinente, com o que concordamos inteiramente, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2013, que considera como admissível o pedido de indemnização cível pela Segurança Social, no âmbito do processo crime, cumulativamente com o decurso de execução fiscal).
Assim, pelas razões supra expostas, e porque independentemente de o Estado vir a receber quaisquer quantias por via das execuções instauradas ou da reclamação de créditos na insolvência, o montante correspondente à vantagem patrimonial obtida pelos arguidos com a prática do crime em causa nos autos só pode ser recebido pelo Estado uma vez, tenha este quantos títulos executivos tiver, e nos termos dos n.º 1 alínea b) e 3 do art.º 110º do CP, tem o presente a pretensão do Ministério Público que proceder, mas apenas relativamente à sociedade “E…, Unipessoal, Ldª. Na verdade e face à factualidade provada apenas esta adquiriu a vantagem resultante do não pagamento dos impostos (…)”.
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II.4. Recurso do MºPº (conclusões que se transcrevem parcialmente).
2 – De acordo com a alínea i) do dispositivo do Douto Acórdão foi julgada parcialmente procedente, por parcialmente provada a pretensão de perda de vantagem patrimonial decorrente da prática de crime peticionada e, consequentemente, declarada a perda a favor do Estado do montante de 291.080,41€ (duzentos e noventa e um mil e oitenta euros e quarenta e um cêntimo) e condenada a arguida “E…, Unipessoal, Ldª” ao seu pagamento, absolvendo os demais arguidos da pretensão a este propósito e contra eles deduzida, e, naquilo que no caso concreto importa,
absolvendo o arguido B….
3 – Consideraram os M.ºs Juízes “a quo” na sua fundamentação que tem a pretensão do MºPº que proceder mas apenas relativamente à sociedade “E…, Unipessoal, Ldª. Na verdade e face à factualidade provada apenas esta adquiriu a vantagem resultante do não pagamento dos impostos.”.
5 – Atenta a data da prática dos factos aplica-se, ao caso concreto, o art.º 111 do C. Penal, na versão anterior à data da entrada em vigor da Lei n.º 30/2017 de 30/05.
6 - Da análise do preceituado no art.º 111, n.º 2, 3 e 4 do C.P. – na redacção introduzida pela Lei 32/2010 de 2/9, por se mostrar mais favorável aos arguidos por contraposição com a actual redação do art.º 110 introduzida pela Lei 30/2017 de 30/05 resulta que a lei estruturou a vantagem de um modo amplo, contemplando recompensas dadas ou prometidas, coisas, direitos ou vantagens adquiridas através do facto ilícito típico representantes de uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
7 - O instituto do art.º 111 do Código Penal visa evitar que o crime possa compensar. Por isso, o agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial demonstrada na acusação, e causada em consequência de um facto antijurídico.
8 - Está em causa colocar os arguidos na posição patrimonial que ocupavam antes da apropriação daquele valor, frisando os efeitos preventivos gerais e especiais do confisco das vantagens do crime.
9 – Perante o argumentado pelos M. s Juízes “a quo” será que a condenação na perda da vantagem só pode ser declarada relativamente ao agente que, directamente, tenha adquirido a vantagem em causa?
10 - Consideramos que não, não podendo ser essa a interpretação a dar ao preceituado no art.º 111 do C. Penal, mais concretamente nos seus ns.º 2 e 4.
13 – (…) o arguido B… agiu na prática da factualidade delituosa em representação e no interesse da sociedade que geria, a qual expressa as suas manifestações de vontade por intermédio daquele ou daqueles que a gerem, no caso concreto, o arguido B….
14 - E este agiu, ainda que em benefício directo de outrem, no interesse da sociedade que geria no seu dia-a-dia e que representa em termos empíricos a materialização do seu labor diário.
15 - A interpretação efectuada por parte do M.ºs Juízes “a quo” seria admissível caso a lei apenas previsse a perda relativamente ao agente que beneficia da vantagem.
17 - É a própria lei que o prevê ao estatuir no n.º 2 do art.º 111 que são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
18 - E no seu n.º 4 ao estatuir que se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidas nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
19 - E nesse pagamento ao Estado tanto é responsável a sociedade “E…, Unipessoal, Lda”, como o determinaram os M.ºs Juízes “ a quo”, como o deve ser o arguido B…, razão pela qual, nesse sentido, o deveriam ter condenado, e, ao não fazê-lo, interpretaram incorrectamente o art.º 111, ns.º 2 e 4 do C. Penal.
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II.5. Parecer do Ministério Público na Relação.
Pugna pela procedência do seu recurso e improcedência dos recursos dos arguidos.
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III.4. Recurso do MºPº.
A discordância manifestada pelo MºP é simples e pertinente: o agente do crime representante de uma sociedade comercial (titular da designada existência psicobiológica que lhe confere determinação e capacidade volitiva) poderá ser condenado na perda de vantagem correspondente ao benefício ilícito obtido pela sociedade comercial que representa?
A questão ora suscitada nunca foi objeto de tratamento doutrinal específico mas conheceu, nesta relação (porque não se encontra disponível qualquer orientação jurisprudencial publicada) uma posição categórica, traduzida em três acórdãos consecutivos proferidos nos recursos nºs 235/16.4IDPRT.P1, de 09/10/2019, 286/16.0IDAVR.P1 de 27/01/2021 e 8890/16.9T9PRT.P1, de 22/09/2021, consultáveis no sistema Citius na área pública de livro de registo de acórdãos relatados pelo Desembargador William Themudo Gilman.
A perda de vantagens vem regulamentada atualmente no artigo 110º do Código Penal (com a revisão operada pela Lei nº 30/2017, de 30/05, que, na essência, não altera o regime anterior previsto no artigo 111º do Código Penal) o qual, além do mais, determina a perda a favor do Estado das vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
A perda de vantagens (coisas, direitos ou vantagens) que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, tem como fundamento a prevenção da criminalidade.
A jurisprudência superior citada entende que se o agente do crime não tiver obtido para si qualquer benefício a perda não deve ser decretada contra ele mas apenas contra quem beneficiou da vantagem. Quem deve perder a vantagem é a empresa e não o mero agente do crime que não beneficiou da mesma.
Nenhum sujeito processual discute a aplicação da lei no tempo da redacção dos artigos 110º e 111º do Código Penal anterior à revisão operada pela Lei nº30/2017, de 30 de Maio no sentido de beneficiar o recorrente (em rigor nada, na alteração legislativa, transportou consigo qualquer limitação ou constrição legal dos direitos do arguido ou, até, de terceiros).
O nosso entendimento é comum ao acórdão recorrido e à jurisprudência superior citada.
A declaração de perda de produtos e vantagens em espécie (coisas imóveis, coisas móveis infungíveis ou qualquer produto ou vantagem apreendida - exemplo das quantias pecuniárias) não constitui qualquer decisão condenatória destinada a onerar a esfera patrimonial de um concreto devedor. Traduz, apenas, o confisco puro desses produtos ou vantagens.
Já nos casos em que não é possível apropriar o produto ou vantagem em espécie (como no caso concreto, em que ocorreu uma supressão de despesas da sociedade comercial arguida por força da diminuição das receitas tributárias) a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor (cfr. artigo 110º, nº4, do Código Penal) caso em que a perda encerra em si uma condenação dirigida a um concreto devedor no pagamento de quantia certa (perda do sucedâneo em valor).
A regra será a condenação do agente do crime. Porém, se o agente actuou em nome ou em benefício de terceiro a perda será decretada em desfavor do terceiro beneficiado (neste sentido M.M.Garcia e J.M.C.Rio, Código Penal comentado, 2º edição, Almedina, pág.468, e P.Pinto Albuquerque, comentário do Código Penal, 3ª edição, UCE, págs.461 e 462). Tal solução mostra-se adequada ao fundamento do instituto em causa: “(…) razões de “prevenção da criminalidade em geral”(…) como de prevenção geral, enquanto fator de confirmação da validade e da vigência da norma jurídica violada. O efeito pedagógico, resultante da anulação direta (…) ou indireta (…) dos proventos do crime é essencial para a prevenção da criminalidade económica. Não está em causa a imposição de um mal, mas a supressão dos benefícios do crime, cuja manutenção na esfera do visado poderia induzi-lo à prática de novos ilícitos e criar na comunidade perniciosas sensações de impunidade (…). O património do condenado deve ser restituído à situação anterior ao seu cometimento, àquilo que ele teria se não o tivesse praticado (…)” – cit. João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM, 2012, págs.93 e 94.
Improcede, assim, o recurso apresentado pelo MºPº.
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IV. Pelo exposto, nega-se provimento aos quatro recursos e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrida.
Custas pelos recorrentes arguidos, fixando a taxa de justiça individual em 4 UC, não sendo devidas custas pelo recurso do MºPº (artigos 513º, nº1, do CPP e 8º, nº9, do RCP e tabela anexa III).
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Porto, 10 de novembro de 2021
João Pedro Nunes Maldonado
Francisco Mota ribeiro