Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
657/21.9T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA
PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACUSARE
DEVER DO CONTRIBUINTE DE COLABORAÇÃO EM INSPEÇÕES TRIBUTÁRIAS
CONDIÇÃO DE SUSPENSÃO DE PENA DE PRISÃO
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Nº do Documento: RP20240221657/21.9T9AVR.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE E MAIORIA COM DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / AUDIÊNCIA
Decisão: PROVIDO UM RECURSO E PROVIMENTO PARCIAL DE OUTRO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio da obrigação de autoincriminação (nemo tenetur se ipsum acusare) não reveste carácter absoluto; pode ser limitado nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, por lei geral e abstrata, em função de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados, de acordo com critérios de proporcionalidade, com salvaguarda do conteúdo essencial desse princípio e segundo as regras da concordância prática.
II - Essa limitação poderá decorrer do dever que impende sobre o contribuinte de colaboração em ações de inspeção tributária, nos termos do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei Geral Tributária, considerando que tal dever é essencial à concretização do dever constitucional de pagar impostos e que este é essencial à concretização das tarefas fundamentais do Estado definidas no artigo 9.º da Constituição.
III - É admissível a valoração em processo criminal de documentos entregues pelo contribuinte no âmbito de uma inspeção tributária, pois estão em causa meios de prova pré-existentes, que não dependem da vontade do arguido e que não interferem na sua esfera pessoal e psíquica, ao contrário do que se verificaria numa eventual obrigação de prestação de declarações contrário ao direito ao silêncio.
IV – O Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributárias devida, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão da execução da pena, a mesma não seja suspensa; o que esse acórdão impõe é que se proceda (sob pena de omissão de pronúncia) a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica; não há que estabelecer uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, podendo este ser menor do que aquele se o exigir a razoabilidade dessa condição em face da situação económica do condenado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 657/21.9T9VFR.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I –
AA veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que o condenou, pela prática, em coautoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, c), e 104.º, nºs 1 e 2, a), do Regime Geral de Infrações Tributárias, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sob condição do pagamento à Administração Tributária, nesse prazo, da quantia de nove mil euros, comprovando anualmente no processo o pagamento da quantia de três mil euros.
(…)
BB veio também interpor recurso da douta sentença do Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que também o condenou, pela prática, em coautoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, c), e 104.º, nºs 1 e 2, a), do Regime Geral de Infrações Tributárias, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sob condição do pagamento à Administração Tributária, nesse prazo, da quantia de nove mil euros, comprovando anualmente no processo o pagamento da quantia de três mil euros.
(…)
II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões das motivações dos recursos, as seguintes:

Quanto ao recurso interposto pelo arguido AA:
-saber se no processo se verifica nulidade insanável, por omissão da constituição deste recorrente como arguido e respetivo interrogatório em inquérito;
- saber se se verifica nulidade, por violação do princípio constitucional da proibição de obrigação de autoincriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), quanto à prova obtida no âmbito da inspeção tributária;
-saber se se verifica nulidade por utilização de métodos indiretos no apuramento da situação tributária que está na base da condenação pela prática de crime de fraude fiscal;
- saber se deveria ter sido suspenso o presente processo por existência/pendência de impugnação judicial em que se discutem situações tributárias de que depende a qualificação jurídico-penal aqui em apreço;
- saber se a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere à incapacidade económica, empresarial, produtiva e estrutural da “A...” para a celebração dos negócios titulados nas faturas em apreço;
- saber a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere à inexistência de transações reais (e dedução do I.V.A.), ao empolamento de compras e aos pagamentos efetuados pela “A..., Ldª” à “B..., Ldª”;
- saber se a pena em que este arguido e recorrente foi condenado deverá, face aos critérios legais, ser atenuada especialmente e reduzida:
- saber se a suspensão da execução da pena em que este arguido e recorrente foi condenado, não deverá ser condicionada ao pagamento de nove mil euros à Administração Tributária, por tal pagamento ser iuexigível face à sua situação económica.

Quanto ao recurso interposto pelo arguido BB:
-saber se no processo se verifica nulidade insanável, por omissão da constituição deste recorrente como arguido e respetivo interrogatório em inquérito;
- saber se se verifica nulidade, por violação do princípio constitucional da proibição de obrigação de autoincriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), quanto à prova obtida no âmbito da inspeção tributária;
-saber se se verifica nulidade por utilização de métodos indiretos no apuramento da situação tributária que está na base da condenação pela prática de crime de fraude fiscal;
- saber se deveria ter sido suspenso o presente processo por existência/pendência de impugnação judicial em que se discutem situações tributárias de que depende a qualificação jurídico-penal aqui em apreço;
- saber se a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, por falta de exame crítico da prova, no que se refere ao facto de este arguido exercer a gerência de facto da “B..., Ldª”;
- saber se a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere ao facto de este arguido exercer a gerência de facto da “B..., Ldª”;
- saber se a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere à incapacidade económica, empresarial, produtiva e estrutural da “A...; Ldª” para a celebração dos negócios titulados nas faturas em apreço;
- saber a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere à inexistência de transações reais (e dedução do I.V.A.), ao empolamento de compras e aos pagamentos efetuados pela “A..., Ldª” à “B..., Ldª”;
- saber se a pena em que este arguido e recorrente foi condenado deverá, face aos critérios legais, ser atenuada especialmente e reduzida:
- saber se a suspensão da execução da pena em que este arguido e recorrente foi condenado, não deverá ser condicionada ao pagamento de nove mil euros à Administração Tributária, por tal pagamento ser iuexigível face à sua situação económica.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos provados

Com relevância para a boa decisão da causa, o tribunal deu como provados os seguintes factos:

1. A sociedade A... Unipessoal, Lda (doravante mencionada apenas por A...) foi constituída em 21.08.2009, tendo como objecto social a fabricação de rolhas de cortiça e a sua sede situava-se na Rua ..., ..., em Santa Maria da Feira.
2. Desde a data da sua constituição era sua única sócia e gerente CC, vinculando-se a sociedade com a assinatura da sua gerente.
3. Em 01.08.2015, CC renunciou à gerência, tendo a mesma passado a ser assumida por DD. gerência de direito e de facto da sociedade A... sempre esteve afecta, desde a sua constituição, quer a CC, quer a DD incumbindo a ambas a realização de todos os actos de direcção da respectiva actividade comercial, representando a empresa perante os fornecedores e clientes, com quem efectuavam contactos, dispondo de todos os documentos bancários e contabilísticos, controlando as contas bancárias, emitindo e recebendo facturas e recibos e aos mesmos incumbindo o cumprimento das obrigações contabilísticas e fiscais, como liquidação e pagamento de impostos.
5. Para além destas, também EE, pai de ambas, apesar de estatutariamente não constar como gerente daquela sociedade, de facto e na realidade também o mesmo geria a sociedade A....
6. Também a este incumbia, desde a data de constituição da sociedade A... a realização de todos os actos de direcção da respectiva actividade comercial, representando a empresa perante os fornecedores e clientes, com quem efectuava contactos, dispondo de todos os documentos bancários e contabilísticos, controlando as contas bancárias, emitindo e recebendo facturas e recibos e ao mesmo incumbindo o cumprimento das obrigações contabilísticas e fiscais, como liquidação e pagamento de impostos.
7. A sociedade A..., em termos fiscais, era contribuinte n.º ... e encontrava-se colectada no serviço de Finanças Feira 2 para o exercício da actividade de “fabricação de rolhas de cortiça”, com o CAE 016294, estando enquadrada, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no ano de 2011 no regime trimestral e nos anos de 2012 e 2013, no regime mensal e em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas no regime geral de tributação.
8. A sociedade B..., Lda (doravante mencionada apenas por B...) foi constituída em 12.05.2011, tendo como objecto social o comércio de rolhas de cortiça e seus derivados e indústria de preparação de cortiça e a sua sede situava-se na Rua ..., em ..., Santa Maria da Feira.
9. Desde a data da sua constituição eram sócios da referida sociedade os arguidos AA e BB e gerente da mesma o arguido AA, vinculando-se a sociedade com a assinatura do seu gerente.
10. A gerência de direito e de facto da sociedade B... sempre esteve afecta, desde a sua constituição, quer ao arguido AA, quer ao arguido BB incumbindo a ambos a realização de todos os actos de direcção da respectiva actividade comercial, representando a empresa perante os fornecedores e clientes, com quem efectuavam contactos, dispondo de todos os documentos bancários e contabilísticos, controlando as contas bancárias, emitindo e recebendo facturas e recibos e aos mesmos incumbindo o cumprimento das obrigações contabilísticas e fiscais, como liquidação e pagamento de impostos.
11. A sociedade B..., em termos fiscais, era contribuinte n.º ... e colectada no serviço de Finanças Feira 2 para o exercício da actividade de “comércio por grosso de outros bens intermédios”, com o CAE 046762, estando enquadrada, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) nos anos de 2011 e 2012 no regime de periodicidade trimestral e no ano de 2013, no regime mensal e em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas no regime geral de tributação.
12. Nos anos de 2011, 2012 e 2013, CC, DD e EE decidiram que iriam inscrever na contabilidade da sociedade A... diversas facturas que não correspondiam a qualquer transacção real, como se se tratasse do comprovativo de recebimento do dinheiro relativo a essas transacções, o que na realidade não sucedia, para, desse modo, beneficiar da dedução do IVA respectivo, como se o tivessem pago, o que, por não ter sido celebrado qualquer negócio, efectivamente não sucedeu.
13. Para tanto, nesse período temporal, CC, DD e EE acordaram com os arguidos AA e BB que estes, através da sociedade B... de que eram legais representantes, iriam emitir facturas como se se tratasse do comprovativo de recebimento do dinheiro relativo a transacções ou prestações de serviços, o que na realidade não sucedia, para que CC, DD e EE as introduzissem na contabilidade da sociedade A... e, desse modo, beneficiassem da dedução do IVA respectivo, como se o tivessem pago.
14. Em cumprimento deste plano, nos anos de 2011, 2012 e 2013, os arguidos AA e BB, através da sociedade B... emitiram as seguintes facturas não correspondentes a qualquer transacção real nas datas e montantes que a seguir melhor se discriminam:

Faturas emitidas e contabilizadas no exercício de 2012



Faturas emitidas e contabilizadas no exercício de 2013





15. A sociedade A... inseriu na sua contabilidade as facturas acima identificadas, bem como nas suas declarações de IVA, atendendo às datas nelas inscritas, como se se tratasse de dinheiro que tivesse efectivamente pago a título de IVA em troca das transacções nelas descritas.
16. Apesar das várias facturas emitidas e inseridas nas declarações de IVA, apenas nas declarações periódicas de IVA do 4.º trimestre de 2011, de Dezembro de 2012 e de Fevereiro e Abril de 2013, o seu valor excede €15.000,00.
17. Porém, os valores de IVA declarados e acima diferenciados não foram pagos pela sociedade A..., Lda por não terem ocorrido os negócios subjacentes à emissão daquelas facturas, isto é, nem a B..., Lda entregou aqueles bens, nem a sociedade A... pagou os montantes nelas referidos, ou seja, trata-se de facturas falsas, como os arguidos sabiam.
18. De facto, a B..., Lda não conseguiria realizar o transporte das mercadorias alegadamente vendidas por manifesto excesso de carga face à capacidade da viatura alegadamente utilizada.
19. Aquelas compras alegadamente efectuadas pela A..., superam, de forma significativa, as suas necessidades, ou seja, as quantidades justificadas pela produção vendas e stock.
20. De facto, em 2011 as compras de cortiça excederam as quantidades necessárias, em 39.550,43 Kg de cortiça, em 2012 verificou-se um empolamento das compras de 59.485,47 Kg, e em 2013 um empolamento das compras de cortiça de 33.928,04kg.
21. Acresce que os valores constantes daquelas facturas não foram pagos pela A..., Lda.
22. De facto, para o seu pagamento a A... procedeu à emissão dos cheques a seguir discriminados, emitidos da conta nº ... por esta sociedade titulada no Banco 1..., os quais foram registados na contabilidade como pagamento à B..., Lda:



23. Todavia, os cheques nº ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., apesar de terem sido registados na contabilidade da A... como tendo servido para pagamento à B..., Lda, as respectivas quantias regressaram a CC, porquanto foi esta que procedeu ao levantamento das mesmas ou ao seu depósito em conta não identificada.
24. Relativamente aos demais cheques, verificou-se que após o depósito na conta bancária nº ... titulada pela B..., Lda, sucederam-se levantamentos, efectuados pelo arguido AA, quase imediatos e de quantias aproximadas, daqueles montantes e que se destinaram a restituir os mesmos aos legais representantes da A....
25. Da conta nº ..., no Banco 2..., titulada pela A... e registado na contabilidade como pagamento à B..., Lda foi emitido o seguinte cheque:



26. Verifica-se que o montante deste cheque, apesar o mesmo de ter sido contabilizado pela A... como pagamento à B..., Lda regressou à posse do gerente daquela sociedade, CC, porquanto foi esta quem procedeu ao levantamento do mesmo.
27. Da conta nº ..., sedeada no Banco 3..., titulada pela A... foram emitidos os seguintes cheques, contabilizados como pagamento à B..., Lda:





28. Quanto ao cheque nº ..., no valor de 10.500,00 € foi apresentado a pagamento pela própria gerente da A..., CC.
29. Quanto aos cheques nº ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e nº ...17, verifica-se que os mesmos foram depositados na conta bancária nº ..., titulada pela B..., mas constata-se, de igual modo, que, após o depósito destes cheques se seguiram levantamentos em numerário da conta, efectuados pelo arguido AA, em valor idêntico ao depositado.
30. Quanto aos restantes cheques, num total de 225.200,00€, constata-se que os mesmos foram apresentados a levantamento ao balcão pelo gerente da B..., com excepção do cheque nº ..., no valor de 9.692,20€, que foi depositado na conta bancária nº ..., titulada pelo arguido AA no Banco 3....
31. Quanto ao cheque nº ..., no montante de 22.312,00€, não foi possível apurar o seu destino.
32. Efectivamente, quanto aos depósitos efectuados em contas bancárias particulares tituladas pelas gerentes da A..., CC e DD posteriormente, parte desses montantes, regressaram à esfera patrimonial da A... onde foram contabilizados como suprimentos.3
33. Mesmo quanto aos cheques emitidos pela sociedade A..., registados como pagamentos à B..., mas cujas quantias eram levantadas ao balcão pelo gerente da B..., seguiram-se depósitos em numerário em contas particulares de CC ou da A....
34. Em suma, por força dos actos acima descritos, os arguidos AA e BB permitiram que a sociedade A... tenha obtido, nos períodos tributários que a seguir se indica, as seguintes vantagens patrimoniais relativas a imposto indevidamente deduzido e que nunca foi pago:

Período tributárioVantagem Patrimonial Indevida
4º trimestre de 2011 [11.12T]€19.078,50
Período tributárioVantagem Patrimonial Indevida
Dezembro de 2012€16.744,00
Período tributárioVantagem Patrimonial Indevida
Fevereiro de 2013€18.708,20
Abril de 2013€29.911,50
Total de 2013€48.619,70

35. Os arguidos sabiam que, em sede de IVA, o apuramento do montante de imposto devido em cada período é efectuado pela dedução ao imposto liquidado do imposto suportado no pagamento das aquisições, isto é, que o operador económico pode deduzir em cada período o IVA que consta mencionado nas facturas de aquisição de bens e serviços, sendo o imposto a entregar ao Estado o que resulta da diferença entre o IVA liquidado nas facturas de venda e o IVA mencionado nas facturas de aquisição de bens e serviços.
36. Assim, sabiam os representantes da sociedade A... que se apresentassem na contabilidade da sociedade que geriam, aquelas facturas documentando o pagamento de valores que na realidade não tinham suportado, como efectivamente fizeram, assim agindo faziam com que, tratando-se de montantes superiores ao IVA que a sociedade tinha recebido em transacções que efectuou, pela diferença anularia o valor que tinha recebido a título de IVA e que devia entregar ao Estado ou mesmo excedendo-o e assim não teria de entregar esse valor, ainda recebendo em caso de excesso, sabendo que assim agindo induzia em erro a Administração Fiscal e, por essa forma, à custa do Estado e da comunidade contribuinte, recebia vantagens patrimoniais e benefícios fiscais indevidos, pela dedução indevida do referido imposto, ocasionando dessa forma uma diminuição das receitas tributárias do Estado em igual medida.
37. Os representantes da sociedade A... agiram de forma livre, voluntária e consciente, no seguimento de plano que traçaram em conjunto com os arguidos AA e BB, emitentes das facturas através da sociedade B..., introduzindo-as na contabilidade da empresa que geriam e nas declarações periódicas de IVA, não obstante saber que as mencionadas facturas não correspondiam a transacções ou a prestações de serviços efectivas, titulando tão-só negócios simulados, com o objectivo de obter, como obtiveram, benefícios fiscais e patrimoniais indevidos, por a sociedade A... ter deixado de entregar nos cofres do Estado o montante de IVA que deveria pagar, após utilizando as importâncias monetárias assim obtidas em seu proveito, não obstante saberem que não lhes pertenciam, o que representaram e quiseram.
38. Os representantes da sociedade A... actuaram de modo concertado e em conjugação de esforços, meios e intenções com os arguidos AA e BB, estes enquanto representante da sociedade B..., que conscientemente emitiram e facultaram as facturas, assim permitindo àqueles obter aquelas vantagens ilícitas.
39. Os arguidos AA e BB agiram de foram livre, voluntária e consciente, sabendo que tinham emitido e entregue facturas para serem usadas em declarações periódicas de IVA sem que dissessem respeito a transacções reais, a fim de ser deduzido o IVA nelas mencionado, nos moldes acima referidos, com o objectivo de permitir que fossem recebidos benefícios fiscais que não eram devidos, causando prejuízo em igual medida à Fazenda Nacional, como veio efectivamente a suceder, cientes que para o utilizador dessas facturas adviria vantagem patrimonial de valor superior a €15.000,00 por cada declaração fiscal de IVA que fosse apresentada, o que os arguidos representaram e quiseram.
40. Mais sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 41. O arguido AA é industrial, exercendo actividade como intermediário de negócios no ramo da cortiça; aufere rendimentos mensais médios no valor de 1.200,00€; vive sozinho, em casa arredada, suportando renda mensal no valor de 500,00€; tem um filho maior; como habilitações literárias tem o 9.º ano de escolaridade.
42. O arguido BB é empresário do ramo da cortiça, auferindo rendimentos mensais médios no valor de 1.000,00€; vive com dois filhos, maiores, com os quais partilha despesas; suportam despesas de habitação no valor de 500,00€ mensais; como habilitações literárias tem o 9.º ano de escolaridade.
43. O arguido AA não tem antecedentes criminais. 44. O arguido BB não tem antecedentes criminais.

Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, inexistem factos não provados.

Motivação

O tribunal valorou a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com os elementos probatórios já constantes dos autos, tudo ao abrigo do princípio da livre valoração da prova previsto no art. 127.º do C.P.P.
Desde logo, quanto à constituição das sociedades em causa nos autos, bem como a respectiva atribuição da gerência de direito, tal resultou da análise das certidões comerciais actualizadas juntas aos autos por referência a cada uma das sociedades – A..., Lda. e B..., Lda. – não tendo sido impugnado o seu teor.
Quanto aos demais factos em causa nos autos, cumpre referir que os arguidos AA e BB se recusaram validamente a prestar declarações ao abrigo do seu direito ao silêncio, sendo que este último consentiu mesmo no seu julgamento na ausência ao abrigo do disposto no art. 334.º n.º2 do C.P.P., tendo comparecido unicamente às duas últimas sessões de julgamento.
Assim, para prova dos factos em julgamento, foram relevantes os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, designadamente: FF, Inspector Tributário; GG, Inspector Tributário e coordenador do procedimento inspectivo; HH, Inspector Tributário; II, Inspectora Tributária; JJ, Inspectora Tributária; KK, Inspectora Tributária; LL, inspector Tributário; MM, inspectora Tributária; NN, inspector tributário; OO, contabilista certificada da sociedade B..., Lda.; PP, contabilista da sociedade B..., Lda.; QQ, funcionário da A..., Lda.; RR, funcionária da A..., Lda., SS, proprietário das instalações que eram sede da B..., Lda.; e TT, contabilista certificada da sociedade A..., Lda.
Foi ainda valorada toda a prova documental constante dos autos, nomeadamente: participação inicial de fls. 6 a 49; facturas, guias de transporte e recibos de fls. 50 a 157; certidão permanente de fls. 629 a 633, 1675 a 1677; relatório de inspecção tributária constante de fls.480 a 619; documentos anexos ao relatório de inspecção tributária de fls. 1 e seguintes do apenso II, apenso III, apenso IV e V; parecer de fls. 1644 a 1670; documentos de fls. 167 a 180, 200 a 395, 1685 a 1695; documentos juntos em audiência de julgamento; relatórios das inspecções tributárias relativos aos operadores económicos UU, VV, WW, XX, YY, PP e ZZ, juntos aos autos por oficio datado de 6/06/2023; documentos juntos pela defesa por requerimento datado de 7/07/2023.
Cumpre, desde logo, referir que, não existindo nos autos prova directa de que as facturas em causa nos autos não titulam operações efectivamente realizadas, é sabido que a demonstração da verdade dos factos juridicamente relevantes não se faz exclusivamente através da prova directa dos mesmos. A nossa convicção pode e deve ser igualmente formada com base em prova indiciária. Ou seja, de factos “considerados em si mesmos irrelevantes, mas dos quais se pode, por raciocínio lógico, inferir a existência dos primeiros” (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág.298).
Assim, na apreciação e valoração da prova, a lei admite o recurso pelo juiz a regras da experiência ou presunções judiciárias, em ordem a extrair de factos conhecidos um outro ou outros sobre os quais se não fez prova directa.
Com efeito, “o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta por si conduzir à sua convicção” (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2007, P.º 07P2279, em www.dgsi.pt), sendo que, como é comummente aceite, os dados indiciários com aptidão para sustentar a convicção da verificação do facto probando devem ser graves, precisos e concordantes.
São graves os indícios que são resistentes às objecções e que, portanto, têm uma elevada capacidade de persuasão; são precisos quando não são susceptíveis de diversas interpretações, desde que a circunstância indiciante esteja amplamente provada; são concordantes quando convergem todos para a mesma direcção (La prova penale, 4.ª ed., Pádua, 2000, apud Eduardo Araújo da Silva, Crime Organizado-procedimento probatório, editora Atlas, São Paulo, 2003, pág. 157).
Assim, a prova indirecta, circunstancial ou indiciária, sujeita à livre apreciação do julgador, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, para que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis, exigindo-se, ainda, alguns requisitos: “pluralidade de factos-base ou indícios; precisão de que tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; racionalidade da inferência; expressão, na motivação do tribunal, de como se chegou à inferência” – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/05/2012, P.º 347/10.8PATNV.C1 (www.dgsi.pt) .
No caso em apreço, consideramos que são inúmeras as circunstâncias que concorrem para a conclusão de que as facturas emitidas pela sociedade B..., Lda., e contabilizadas pela sociedade A..., Lda., não correspondem a transacções ou a prestações de serviços efectivas, titulando tão-só negócios simulados, com o objectivo de obterem, como obtiveram, benefícios fiscais e patrimoniais indevidos.
Vejamos:

A prova dos factos em julgamento assentou, globalmente, nos elementos probatórios que foram produzidos quanto a cada uma das sociedades em causa no processo: a sociedade B..., Lda. enquanto emitente das facturas em crise e a sociedade A..., Lda. enquanto utilizadora das mesmas.
No que concerne à factualidade respeitante à sociedade A..., o tribunal valorou o seguinte acervo probatório: o depoimento das testemunhas FF, inspector tributário, QQ, trabalhador da empresa durante período superior a 20 anos; RR, trabalhadora da empresa durante 33 anos; e TT, contabilista certificada da sociedade A...; tudo conjugado com o relatório da acção inspectiva à sociedade B... e que visou a actividade daquela sociedade.
Desde logo, o tribunal valorou depoimento do inspector tributário FF, o qual foi objectivo, claro, lógico e imparcial. O mesmo afirmou que visitou as instalações desta sociedade no decurso da acção inspectiva que realizou à B..., tendo presente a sua dimensão, activos e estrutura empresarial.
Por outro lado, foi valorado o depoimento da testemunha QQ, o qual referiu trabalhar na sociedade A... durante período superior a 20 anos, até ao seu recente encerramento. Esta testemunha referiu que ali exercia funções de broquista, sendo que por vezes também efectuava transportes de mercadorias numa viatura Toyota pertencente àquela sociedade. Porém, disse desconhecer por completo a sociedade B..., apesar de reconhecer os arguidos AA e BB porquanto os mesmos se deslocavam às instalações da empresa e tinham negócios com o seu patrão EE.
Já a testemunha RR referiu que foi trabalhadora da A... durante 33 anos, até ao seu recente enceramento, identificando o referido EE e a sua mulher DD como sendo os seus patrões, mas dizendo não conhecer a sociedade B... ou os aqui arguidos.
Por fim, a testemunha TT, contabilista certificada da sociedade A..., referiu que sempre tratou dos assuntos contabilísticos da empresa com as respectivas gerentes formais, CC e DD. No que concerne às facturas em causa nos autos, afirmou que não conhecia a sociedade B..., mas que, nos anos de 2011 a 2013, a A... não dispunha de infra-estruturas ou liquidez que se afigurassem compatíveis com o volume de negócios apresentado.
Assim, desde logo, quanto ao efectivo exercício da gerência e representação da sociedade A..., resultou da prova produzida que, efectivamente, a mesma foi sendo desempenhada por CC, DD e EE. Por um lado, a documentação carreada para os autos evidencia a prática de actos típicos da gerência por parte de CC e DD, nomeadamente no que concerne à emissão e levantamento de cheques. Mas, também a testemunha TT, contabilista certificada da sociedade A..., relatou, de forma que nos pareceu segura e objectiva, que eram estas gerentes de direito que tratavam de todos os assuntos relacionados com a contabilidade da sociedade. No entanto, resultou ainda do depoimento das testemunhas QQ e RR que também EE, pai daquelas, era visto como patrão, dando ordens aos funcionários, organizando o serviço, participando nas reuniões com clientes e fornecedores e mantendo a gestão da sociedade. Nessa medida, resultou provada a existência de actos de gestão por parte daqueles CC, DD e EE, do que resulta que foram estes quem actuou em representação da A....
Por outro lado, analisado o acervo documental junto aos autos, conjugado com a prova testemunhal produzida em julgamento, resulta evidenciado dos autos que as facturas das alegadas transacções suportadas pela A... não podem corresponder a verdadeiras transacções comerciais porquanto:
- tratava-se de uma pequena empresa de pequena estrutura que, nos anos de 2011 a 2013 não dispunha de infra-estruturas ou liquidez que suportassem o volume de negócios apresentado (o que foi reconhecido em julgamento pela sua contabilista certificada, TT), não evidenciando capacidade económica para investir valores tão avultados em stock de cortiça;
- não dispunha de instalações com capacidade de armazenamento das quantidades de cortiça tituladas pelas facturas emitidas pela B..., nem se apurou que a mercadoria pudesse estar armazenada noutro local, visto inexistirem documentos que suportem tais transportes, nomeadamente despesas de deslocação, guias de transporte ou facturas de tal serviço prestado por terceiros;
- era somente proprietária de uma viatura ligeira de mercadorias de matrícula ..-..-HH, marca Toyota, modelo ..., com urna capacidade de peso máximo rebocável limitada a 1800 Kg e, por isso, manifestamente insuficiente para o transporte das quantidades descritas nas facturas emitidas pela B..., seja em termos de peso bruto, seja em volume de carga (cfr.. anexos 37 a 39 do relatório de inspecção tributária), pelo que não dispunha de viaturas com capacidade para efectuar o transporte dessas mesmas mercadorias nem contabilizou despesas com serviços prestados a esse titulo, o que é bem elucidativo da impossibilidade física de tais fornecimentos terem ocorrido;
- apresentava ratios desfasados da média do sector, visto ocorrer um evidente empolamento das compras, calculado através de critérios de densidade da cortiça, aproveitamento no processo de fabrico ou em quantidades de cortiça: efectuado o "corte" de inventários na sociedade A..., controlando as compras e vendas de cortiça, rolhas e apara, bem como a produção e quantidades consumidas de cortiça para nesse processo, verifica-se que registou compras de cortiça que, nos anos de 2011, 2012 e 2013 excederam em 34.66%, 45,43% e 38,54%, respectivamente (ou seja. mais 64.805, 102.205,90 e 74.575,15 toneladas, respectivamente) a quantidade de cortiça de que necessitava para satisfazer a produção de rolhas e as vendas de cortiça para os seus clientes (anexos 24 e 53);
- por outro lado, considerando as compras totais de cortiça nos referidos anos de 2011, 2012 e 2013, os stocks finais e a facturação aos seus clientes, verifica-se que não foi dado qualquer destino contabilístico a quantidades extremamente próximas daquelas que são tituladas por facturas da B..., porquanto não foi comercializada como cortiça, rolhas ou apara e no final do ano não se encontrava em stock;
- no que respeita a pagamentos dessas mesmas compras, a contabilidade da A... evidenciava o registo de pagamentos à B..., no valor global de 608.812,60€ (quando as compras ascendiam a 761.271,10€), a que acresce um cheque no valor de 22.312,00€, emitido à ordem daquela, que nunca foi descontado, contrariando toda a lógica empresarial subjacente a uma regular relação comercial (anexos 26 a 30);
- tais pagamentos estavam titulados por pagamentos por cheques, sendo que resulta dos autos que os cheques nº ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., apesar de terem sido registados na contabilidade da A... como tendo servido para pagamento à B..., Lda, as respectivas quantias regressaram a CC, que procedeu ao levantamento das mesmas ou ao seu depósito em conta não identificada;
- quanto aos cheques que chegaram a ser depositados na bancária n.º ... titulada pela B..., Lda,, verifica-se que logo lhe sucederam levantamentos, efectuados pelo arguido AA, quase imediatos e de quantias aproximadas, daqueles montantes, o que indicia de forma clara a existência de um circuito monetário fechado e artificial.
Em suma, não podemos deixar de concluir que a A..., embora tivesse uma actividade efectiva no ramo da cortiça, mas muito aquém do volume de negócios que pretendia simular, não dispunha de uma estrutura económica e produtiva que lhe permitisse suportar as compras à sociedade B... que são tituladas pelas facturas em causa nestes autos.
Por outro lado, esta sociedade também evidencia falta de capacidade produtiva para fornecer as quantidades tituladas pelas facturas emitidas e contabilizadas pela A..., como passaremos a analisar.
No que concerne à factualidade respeitante à sociedade B..., Lda. (doravante mencionada apenas por B...), o tribunal valorou todos os documentos juntos ao processo, nomeadamente a certidão permanente da sociedade; as facturas descritas no ponto 14) dos factos provados, em anexo 31, constituindo prova directa dos seus elementos, designadamente, número, data, sociedade emitente, valor, taxa de IVA aplicável, e correspondente valor; e ainda o relatório da acção inspectiva ao período em causa nos autos, subscrito pelo inspector tributário FF.
Quanto à prova testemunhal, foi ouvido o inspector tributário FF, o qual efectuou acção inspectiva a esta sociedade, quanto aos exercícios de 2011 a 2013, tendo apurado que a mesma era efectivamente gerida pelos dois arguidos. Segundo esta testemunha, então verificou que as compras registadas na contabilidade desta sociedade estavam suportadas em aquisições a operadores fictícios, mormente sem qualquer actividade no sector da cortiça.
Assim, concretamente em relação às facturas das alegadas transacções ocorridas entre a A... e a B..., a prova carreada para os autos impõe a conclusão de que as mesmas não podem corresponder a verdadeiras transacções comerciais porquanto:
- as suas instalações conhecidas eram a sede da sociedade, um armazém em regime de comodato, de dimensão incompatível com o armazenamento das mercadorias tituladas nas facturas e relativamente ao qual chegou mesmo a ocorrer corte de energia eléctrica por falta de pagamento, conforme referiu o inspector GG;
- a sociedade não dispunha de quaisquer activos, sendo que o inspector tributário FF visitou as instalações que figuravam como sede da empresa, as quais estavam encerradas e sem vestígios da presença de qualquer pessoa no local; aliás, tais instalações figuram na fotografia que consta de fls. 488-v.º dos autos, sendo notória a sua diminuta dimensão, insusceptível de armazenar as quantidades de cortiça que a sociedade alegadamente comercializou, nomeadamente o stock teórico de 112.820 Kg de cortiça que teria no ano de 2012 (cfr. somatório das quantidades alegadamente adquiridas nesse ano);
- analisando a escrita da sociedade, verifica-se que em 02/01/2012, foi registada a factura n.º ..., emitida pela sociedade C..., Lda, relativa a aquisição de equipamento, nomeadamente 3 brocas, 1 balança, 1 rabaneadeira, uma pulsadeira, uma máquina de escolher, 1 máquina de passar, 1 máquina de contar e ainda uma rabaneadeira, tudo por 8.280,00 €; porém, logo em 27/01/2012, a B... facturou todo esse equipamento à sociedade D..., Unipessoal, Lda, NIF ..., por 12.730,00 € (cfr. facturas no anexo 5 e 6 do relatório de inspecção tributária), o que permite concluir que, à excepção daqueles 25 dias, nunca dispôs de equipamento para a produção de rolhas;
- face ao valor registado na rubrica de subcontratos, também não recorreu à aquisição de prestação de serviços dessa natureza, por forma a justificar as rolhas que alegadamente vendeu, mas para as quais não tem registo de compra;
- da análise da contabilidade da sociedade resulta a mesma procedeu ao envio da declaração de rendimentos modelo 22 dos exercícios de 2011 e 2012 e declaração anual de informação contabilística e fiscal, do exercício de 2011; mas não procedeu à entrega da declaração Modelo 22 de IRC relativa ao ano de 2013, nem a IES de 2012 e 2013; em termos de depósito de contas, apenas foram depositadas as contas referentes ao ano de 2011 (primeiro ano de actividade), demonstrando a existência de irregularidades formais a nível contabilístico;
- a sociedade não dispunha de viaturas que lhe permitissem fazer o transporte das mercadorias tituladas pelas facturas (apenas foi proprietária de um veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca OPEL ..., matrícula ..-..-VA, com uma capacidade de carga limitada a 2.000 Kg, e apenas entre 21-05-2012 e 30-09-2013) e os gastos contabilizados com despesas de transporte são irrisórios face ao valor daquela facturação (cerca de 835,00€ no período de três anos em causa nos autos);
- os gastos com pessoal eram absolutamente reduzidos, reflectindo a ausência de trabalhadores ao serviço da B..., para além do seu próprio gerente formal;
- 99,46% das compras registadas em 2011, 2012 e 2013 encontram-se suportadas por facturas falsas, tratando-se de compras “fictícias” (porque a operadores sem real actividade no ramo) de cortiça, visto os fornecedores serem pessoas com capacidade económica precária, sem instalações compatíveis, activos ou rendimentos e sem indícios do exercício de actividade no ramo da cortiça (como resulta de forma clara do depoimento das testemunhas MM e NN, inspectores tributários que conduziram as respectivas acções inspectivas, e dos relatórios de inspecção tributária aos operadores económicos UU, VV, WW, XX, YY, PP e ZZ, juntos pela AT por oficio datado de 6/06/2023);
- os pagamentos a esses mesmos supostos fornecedores estavam titulados exclusivamente por levantamentos em numerário, dos quais não há qualquer evidência ou suporte documental;
- um dos principais fornecedores da B... no referido período (em 2013, as compras tiveram unicamente por base facturas desta sociedade, com aquisições registadas muito próximos dos dois milhões de euros) é a sociedade E..., a qual foi objecto de acção inspectiva por parte das testemunhas HH, II, JJ, KK e LL. Referiram estas testemunhas, de forma objectiva e consentânea entre si, que apuraram que, esta sociedade só exerceu actividade até ao ano de 2011, não tendo registada na sua contabilidade qualquer relação comercial com a sociedade B...; ademais, referiram que foram, na altura, confrontadas com facturas emitidas em nome da E... mas que nada se assemelhava com o aspecto gráfico daquelas que eram efectivamente emitidas por aquela. Por outro lado, analisadas as referidas facturas, verifica-se que das mesmas consta, relativamente ao transporte, a menção a uma viatura matrícula HP-..-.. e outras a matrícula HP-..-... Porém, resulta de fls. 1691 e 1694 dos autos que estas viaturas são veículos ligeiros de passageiros, sem nenhuma relação com a actividade de uma ou outra empresa. Daqui resulta que as facturas que constam da contabilidade da B..., como tendo sido emitidas pela E... no apontado período, não correspondem nem podem corresponder a qualquer aquisição real, evidenciando a existência de stocks puramente fictícios;
- nessa medida, temos que a sociedade B... procedeu à contabilização e dedução de imposto, relativamente a um conjunto de facturas emitidas por operadores com os quais não foi concretizado qualquer negócio (cfr. anexo 9 do relatório de inspecção tributária), servindo apenas princípios que visavam iludir as autoridades tributárias, com vista a simular a existência de transacções comerciais que efectivamente não ocorreram;
- no período de 30/09/2011 a 31/12/2013, a B... registou um total de entradas provenientes de clientes no valor de 571.612,64 €, mas seguiu-se a emissão de cheques de caixa, levantamentos em numerário e levantamentos multibanco num montante muito próximo, mais concretamente, 580.313,88 € (cfr. anexo 22 do Relatório de inspecção tributária), num circuito financeiro de descapitalização totalmente irregular face às necessidades inerentes ao exercício de uma actividade;
- por outro lado, da análise aos créditos nas contas bancárias da B... verifica-se que, apesar de ter facturado entre 2011 e 2013 um total de 4.527.191,16 €, apenas foram efectuados depósitos de 1.723.211,05€, depósitos esses a que se seguiam levantamentos em numerário ao balcão, como forma de criar mera aparência de legalidade das operações, titulando pagamentos das facturas falsas cuja entrada na conta bancária era meramente simulada;
- após os levantamentos ao balcão por parte do gerente da B... de cheques emitidos por sociedades para as quais esta havia emitido facturação, seguiram-se depósitos em datas muito próximas e de quantias aproximadas às que constavam nesses cheques, em contas particulares dos gerentes das sociedades emitentes dos mesmos, e posteriores transferências para as sociedades contabilizadas a título de suprimentos, demonstrando a existência de um acordo de vontades entre todos os referidos intervenientes com vista à simulação daquelas operações;
- entre os anos de 2011 e 2013, a B... apenas lançou contabilisticamente o valor aproximado de 10.000,00€ a titulo de fornecimentos e serviços externos, o que se mostra manifestamente incompatível com o volume de facturação, no valor de 4.527.191,16 €;
- para pagamento dos valores facturados pela B..., a A... procedia à emissão de cheques, transferências ou ao aceite de letras, sendo que, no entanto, no caso das letras, as mesmas foram, em quase todas as situações, substituídas por cheques em data anterior ao seu vencimento;
- por outro lado, a serem reais as transacções vertidas na contabilidade em 2012, a B... estaria a vender rolhas e cortiça abaixo do preço do que comprava, com rentabilidade reduzida e fora dos ratios normais do sector, o que contraria totalmente a lógica de mercado.
A tudo isto acresce que, ouvida a testemunha PP, contabilista da sociedade B..., o mesmo afirmou desconhecer a sociedade A..., não se recordando que a mesma fosse cliente ou fornecedora da B.... Ora, caso fossem reais as transacções em causa os autos, que no período em causa ascenderam a 761.271,10€, não vemos como poderia o contabilista olvidar um tal cliente.
Por outro lado, ainda que tenha sido referido pela testemunha FF que lhe foi transmitido que o arguido AA também exerceu actividade relacionada com a cortiça numas outras instalações, sitas na Rua ..., certo é que o mesmo então apurou que tais instalações haviam sido arrendadas por uma outra sociedade entretanto constituída, sem que lograsse apurar qualquer relação com a B....
No que concerne à gerência efectiva da sociedade B..., nomeadamente quem representava esta sociedade e detinha poder decisório, designadamente quanto à emissão de facturas que não correspondiam à realidade, ficou o tribunal efectivamente convencido de que a mesma pertencia a ambos os arguidos.
Resulta da certidão do registo comercial da sociedade B... que a mesma foi constituída em 12/05/2011, sendo sócios, desde a data da sua constituição, os arguidos AA e BB e gerente da mesma o arguido AA, vinculando-se a sociedade com a assinatura do seu gerente.
Ora, a nomeação formal para a gerência permite-nos, por via do registo, presumir a administração de facto, nos termos do disposto no art. 11.º do Código do Registo Comercial.
Porém, num direito penal em que a responsabilidade criminal se funda na culpa enquanto juízo ético-jurídico de imputação pessoal da conduta ao agente, nenhum comportamento jurídico-penalmente relevante poderá gerar responsabilidade criminal sem a verificação efectiva (não meramente presuntiva) dos factos que permitam a sua imputação subjectiva.
Por isso, como tem vindo a entender-se de forma pacífica na jurisprudência, a imputação de factos a representantes legais de pessoas colectivas não se basta com a existência de nomeação formal para cargo dessa natureza, postulando-se que lhe corresponda um exercício fáctico das inerentes incumbências.
Até porque é conhecida a recorrente desconformidade entre a realidade jurídica e fáctica, com situações em que representantes de direito nada decidem na vida da sociedade, funcionando como meros “testas de ferro” do verdadeiro administrador, e representantes de facto que nunca aparecem formalmente como tal, mas que na realidade dominam todas decisões relativas à sociedade, os chamados “shadow directors” - a propósito, Pedro do Nascimento, na tese de mestrado sob o título “A Responsabilidade dos Gerentes e Administradores de Facto no C.I.R.E.”, págs. 8 a 11, Universidade Católica Portuguesa, 2012, publicada online.
Temos assim que se exige um exercício real e efectivo da administração, com determinado grau de intensidade, qualitativo e quantitativo, aqui se excluindo a simples actividade de supervisão ou de controlo e autonomia decisória, isto é, poder de impor decisões ou influenciar a gestão de forma vinculativa.
Certo é que foram diversos os elementos probatórios carreados para os autos que permitiram ao tribunal formar convicção segura de que a gerência de facto da sociedade era exercida pelos dois arguidos.
Quanto ao arguido AA, o tribunal considerou que:

- pelo inspector tributário FF foi dito que, no decurso da acção inspectiva que conduziu à sociedade B..., nunca foi rejeitada pelo arguido AA ou por qualquer outro interveniente a efectiva gerência da sociedade;
- os movimentos financeiros da sociedade eram realizados exclusivamente pelo arguido AA, conforme resulta dos respectivos documentos anexos ao relatório de inspecção tributária;
- pela contabilista certificada da sociedade B..., OO (ainda que em termos meramente formais, como resultou do seu depoimento), foi dito que apenas conheceu o arguido AA, o qual lhe foi apresentado pelo seu marido PP como sendo o “dono” da B...;
- também a testemunha PP, que reconheceu ser o contabilista “de facto” da empresa, identificou o arguido AA como sendo o gerente da B..., mais afirmando que era este quem lhe entregava todos os elementos necessários para a contabilidade.
Quanto ao arguido BB, teve-se em consideração que:
- o arguido figura como sócio da sociedade B... desde a sua constituição em 12/05/2011 até 28/09/2012, data em que a sua quota de 2.500,00€ foi dividida em duas quotas, uma de 2.000,00€, adquirida por AA e outra de 500,00€ adquirida pela própria sociedade B..., o que coincide temporalmente com a constituição, em 8/10/2012, de uma nova sociedade, pelo mesmo arguido BB, com o mesmo objecto social – cfr. documentos juntos pela defesa em 7/07/2023;
- segundo resulta da certidão do registo comercial da sociedade B..., a mesma sempre teve sede na Rua ..., em ..., Santa Maria da Feira, morada que figura naquela mesma certidão como sendo a residência do arguido BB, o que demonstra que aquele tinha um efectivo vínculo com o local da sede da empresa e onde alegadamente exercia actividade;
- ademais, resulta do contrato de comodato datado de 26/10/2010, junto como anexo 3 do relatório de inspecção tributária, que a utilização daquelas mesmas instalações (um armazém sito na Rua ..., em ...) foi cedida pelo proprietário SS ao arguido BB, “para uso exclusivo do comodatário”, por período de tempo indeterminado;
- pelas testemunhas FF e GG, inspectores tributários, foi dito que, quando abordaram o arguido BB, aquele afirmou que era mero funcionário da empresa B..., trabalhando no fabrico de rolhas, quando inexiste qualquer evidência – nos termos sobreditos – daquela sociedade dispor de equipamentos que lhe permitissem qualquer tipo de actividade de fabrico.
- pela testemunha AAA, legal representante da sociedade F..., S.A. foi dito que, no período em causa nos autos (2011 a 2013), adquiriu mercadorias à sociedade B..., durante cerca de 5 ou 6 meses, esclarecendo que era o arguido BB quem lhe entregava sempre as rolhas para amostra (o que sucedeu em todas as ocasiões em que foram emitidas facturas), acordando com este os respectivos prazos de entrega. Com efeito, esclareceu que, apesar daquele lhe ter referido que se tratava de um negócio do seu irmão, a única pessoa com quem negociou em nome daquela sociedade foi este arguido BB, o qual é, ainda hoje, seu fornecedor, através da sociedade G... – Unipessoal, Lda.;
- também a testemunha QQ, funcionário da sociedade A..., Lda. disse conhecer os dois arguidos, referindo que ambos se deslocavam às instalações daquela empresa e faziam negócios com o seu patrão EE, ainda que o arguido AA com frequência superior ao arguido BB.
Em suma, todos os elementos supra referidos permitem concluir que também o arguido BB praticava actos de gestão relativamente à sociedade B..., representando-a em negócios jurídicos relacionados com a sua suposta actividade e mesmo perante clientes.
Não olvidamos que, ouvida a testemunha SS, o mesmo referiu que acordou com o arguido AA a cedência daquele armazém, a titulo gratuito, com vista a ali serem armazenadas rolhas / cortiça, tendo sido celebrado o dito contrato de comodato com o arguido BB somente porquanto o irmão AA não dispunha dos seus documentos de identificação no momento.
Porém, tal explicação para figurar aquele arguido BB no referido contrato é, desde logo, manifestamente inverosímil. Desde logo, as circunstâncias relatadas pela testemunha para a celebração do contrato mostram-se pouco razoáveis, não sendo minimamente crível que o proprietário daquele armazém o cedesse a terceiros que lhe eram desconhecidos, a título totalmente gratuito, por período de tempo indeterminado, ainda mais figurando no contrato, não a pessoa com quem havia acordado os termos da cedência, mas um seu irmão. A isto acresce que, de acordo com aquele depoimento, tais condições foram acordadas em data diferente daquela em que o contrato foi assinado – tanto mais que, tendo sido redigido o texto pelo seu contabilista, não se afigura razoável que tivesse ocorrido no mesmo dia – pelo que inexiste qualquer explicação razoável para que o arguido AA deixasse de fornecer ou enviar os seus dados identificativos pessoais a fim de poder ele figurar no documento.
Assim, não podemos deixar de concluir que, efectivamente, foi o arguido BB quem acordou com o proprietário o uso, enquanto comodatário, das instalações que são a sede da B..., Lda. e que declarou como sua residência aquando da constituição dessa mesma sociedade.
E, se é certo que tal contrato foi celebrado em data anterior à da constituição dessa mesma sociedade, tal não obsta à referida conclusão. Note-se que a testemunha SS referiu que o acordo subjacente à celebração daquele comodato pressupunha a utilização do armazém em causa para armazenamento de rolhas ou cortiça. Ora, não resulta dos autos que os arguidos tivessem, à data e até à constituição da B..., qualquer outro negócio relacionado com o comércio de rolhas e cortiça. Com efeito, analisado o documento junto pelo arguido BB, por requerimento datado de 7/07/2023, do qual resulta que o mesmo constituiu a sociedade “G... – Unipessoal, Lda.”, cujo objecto é a fabricação de rolhas de cortiça e comércio de produtos ligados ao engarrafamento de vinhos e outras bebidas alcoólicas, constata-se que aquela sociedade só foi constituída em 8/10/2012, tendo como sede a Rua ..., em ....
Por outro lado, importa referir que a circunstância de a testemunha PP ter afirmado que apenas o arguido AA lhe entregava a documentação necessária para a contabilidade, conhecendo o arguido BB apenas por ser irmão daquele, também não foi suficiente para abalar a convicção do tribunal.
Importa referir que resultou demonstrado que, pese embora PP não seja contabilista certificado, era este que, na verdade, efectuava os registos contabilísticos da sociedade B..., visto que a contabilista certificada OO, sua mulher, se limitava a disponibilizar a sua senha de contabilista para efeitos legais.
Ora, para além das circunstâncias absolutamente irregulares em que aquele reconheceu que fazia a contabilidade da empresa, o seu depoimento mostrou-se pouco seguro e evasivo, não sendo merecedor de credibilidade.
Antes resultou evidente que os contactos atinentes à manutenção dos registos contabilísticos eram escassos e manifestamente insuficientes, tanto mais que, como referimos supra, a B... nem sequer procedeu à entrega da declaração Modelo 22 de IRC relativa ao ano de 2013, nem a IES de 2012 e 2013; e em termos de depósito de contas, apenas foram depositadas as contas referentes ao ano de 2011.
Temos assim que, ao longo dos anos em que exerceram tal gerência da sociedade B..., ambos os arguidos detinham o domínio dos factos e o controlo efectivo da sociedade, estando a par da sua situação económica e financeira. Nessa medida, não podiam aqueles olvidar que as facturas emitidas em nome da A... não titulavam qualquer transacção real e que, por essa via, permitam àquela a obtenção de uma vantagem indevida correspondente à indevida dedução do IVA de facturas que nunca foram efectivamente pagas.
Por fim, cumpre referir que nenhum reflexo tem na convicção do tribunal a circunstância de, em termos fiscais, e para além das correcções técnicas em sede de IVA, ter a Administração Tributária tributado a sociedade B..., em sede de IRC, pelo volume de negócios declarado e com base na rentabilidade fiscal mediana do sector (2,31% em 2011, 1,56% em 2012 e 1,64% em 2013). Isto porque, como explicaram os inspectores FF e GG, as transacções em causa nestes autos e declaradas como lucro tributável da sociedade B... foram consideradas como fictícias, mas foi considerado que o valor dessas mesmas vendas seria equivalente à rentabilidade / ganho obtido com essa a operação, quando visto o escopo lucrativo de qualquer operador económico que se dispõe a emitir facturação falsa com vista a ser contabilizada por terceiro a montante, com a indevida dedução do IVA.
Em face da prova assim produzida, o tribunal ficou com a convicção inabalável de que as transacções tituladas pelas facturas referidas na factualidade provada não correspondem, de facto, a transacções reais ou, pelo menos, não corresponderam as transacções nelas mencionadas. Tanto mais que esta conclusão racionalmente extraída desses elementos não foi infirmada por nenhum elemento probatório validamente produzido.
Os múltiplos indícios acima referidos são, destarte, graves, precisos e concordantes, inexistindo qualquer elemento probatório que tenha abalado a forte convicção que dos mesmos resulta, numa análise à luz das regras de experiência comum e de normalidade do ser.
Ademais, só mediante a existência de um acordo prévio gizado entre os legais representantes destas sociedades é que tais facturas poderiam ter sido emitidas sem qualquer substrato real, visando naturalmente a obtenção de vantagens indevidas por parte da sociedade A..., a qual logrou integrar essas mesmas facturas na sua contabilidade, sem que configurassem um efectivo custo suportado e ainda beneficiando da indevida dedução do montante do IVA liquidado. Por conseguinte, não temos dúvidas que tal actuação ocorreu mediante a delineação e execução do plano dado como provado.
Relativamente aos valores dos benefícios indevidamente obtidos pela sociedade A..., a prova dos mesmos resultou da análise dos relatórios e pareceres juntos ao processos e respectivos anexos, conjugada com o depoimento dos inspectores tributários inquiridos em julgamento. Com efeito, para apuramento daqueles valores foi considerado o valor do IVA respeitante a todas as facturas descritas na acusação e que foi indevidamente deduzido pela sociedade A... nas respectivas declarações periódicas.
Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta dos arguidos foi considerado assente a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas apreciadas à luz das regras da experiência a que alude o artigo 127.º do Código Processo Penal, já que a consciência e vontade dos arguidos é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
Para prova das condições sociais, pessoais e profissionais dos arguidos, o tribunal considerou as declarações prestadas pelos próprios, que reputou como sérias e credíveis.
Por fim, no que concerne aos seus antecedentes criminais, o tribunal valorou o teor dos certificados de registo criminal junto aos autos. Porém, quanto às duas condenações que ali constam relativamente ao arguido BB, o tribunal não as considerou em face do que dispõem os art. 11.º n.º1 alínea e) e n.º3 da Lei da Identificação Criminal (Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio).
Com efeito, analisado o certificado de registo criminal, dali consta que o arguido sofreu as seguintes condenações transitadas em julgado:
a. PCS 100/98.5IDAVR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 25/03/2003 pela prática em 31/08/1996 de um crime de fraude fiscal na pena de 9 meses de prisão suspensa por 3 anos, com a condição de pagar à AT a quantia de 11.542,07€, declarada extinta em 15/09/2010;
b. PCS 68/02.5IDAVR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 28/07/2009 pela prática em 9/2000 de um crime de fraude fiscal na pena de 22 meses de prisão suspensa por 5 anos, com a condição de pagar à AT a quantia de 144.047,24€, declarada extinta em 18/12/2005.
Ora, considerando os prazos de cancelamento previstos no art. 11.º n.º1 e 3 da Lei da Identificação Criminal, importa ter presente que os mesmos já se mostram integralmente decorridos relativamente a estas duas condenações.
Ao impor como condição de cancelamento do certificado de registo criminal que “entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;” e não que seja ocorrido a prática de novo crime, tal significa que a data relevante para aferir do decurso daqueles prazos de cancelamento é a do trânsito em julgado da decisão condenatória (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/06/2022, P.º 107/12.1TXPRT-AV.P1, em www.dgsi.pt).
Em face do exposto, cumpre notar que, relativamente às referidas condenações, em pena de prisão suspensa na sua execução já declaradas extintas, decorreu o prazo de 5 anos desde o termo do período da suspensão (cfr. art. 11.º n.º3) e o trânsito em julgado da condenação seguinte.
Porque a Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, faz depender o cancelamento da circunstância de não ter ocorrido entretanto nova condenação, nos casos de sucessão de condenações no decurso do prazo de cancelamento, o cancelamento só ocorre quando tiver ocorrido o prazo de reabilitação mais longo estabelecido, contado do termo da respectiva pena, sem nova condenação, Cfr. Maria do Céu Malhado, In Noções de Registo Criminal, §532, págs. 317, apud acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/09/2021, P.º 96/21.1GAMCN.P1 (www.dgsi.pt).
Em suma, impõe-se concluir pelo necessário cancelamento dos referidos registos.

Conforme resume o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2022, P.º 490/17.2GAPTL-A.S1 (www.dgsi.pt), “Vem sendo entendido na doutrina (Claus Roxin, Derecho Processal Penal, Editores del Puerto, 2000, p. 192; Almeida Costa, O Registo Criminal História. Direito comparado. Análise político-criminal do instituto, 1985, p. 377 e ss) e alguma jurisprudência (acs. TRE de 14.07.2015, e 10.05.2016, ac. TRL 28.01.2016, acs. TRP, de 29.02.2012 e de 14.04.2021, todos acessíveis em www.dgsi.pt), partindo do disposto no art. 11º da Lei 37/2015, de 5 de maio, que rege a organização e o funcionamento da identificação criminal e determina que o decurso de determinados prazos sobre a data da extinção das penas sem que o arguido volte a delinquir impõe o cancelamento dos registos criminais e, por isso, se este não tiver sido efectivado, em conformidade com a lei, não podem ser considerados contra o arguido, por constituírem meio de prova proibida”.
Em suma, configurando, assim, aqueles boletins respeitantes às condenações sofridas nos referidos processos n.º100/98.5IDAVR e 68/02.5IDAVR, um meio de prova que não poderá ser atendido pelo tribunal, foi dado como provado que o arguido BB não tem antecedentes criminais.
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vêm os arguidos e recorrentes AA e BB alegar que no processo se verifica nulidade insanável, por omissão da constituição de cada um deles como arguidos e respetivos interrogatórios em inquérito. Invocam o disposto nas alíneas c) (ausência do arguido a atos em que a lei exige a respetiva comparência) e d) (falta de inquérito) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, artigo onde são elencadas as nulidades insanáveis. Alegam que essa omissão se traduz numa violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição (onde se consagra o direito fundamental de acesso à justiça), assim como do artigo 32.º. n.º 1, dessa Lei fundamental (onde se consagra o direito fundamental das garantias de defesa em processo penal). Invocam também o disposto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Alegam que essa nulidade insanável se repercute em todas as diligências processuais subsequentes.
Vejamos.
A argumentação dos arguidos e recorrentes cai pela base se considerarmos o seguinte.
O arguidos e recorrentes foram constituídos arguidos e interrogados em inquérito no processo (com o número 743/20.2T9VFR) de que o presente processo veio a ser separado ao abrigo do disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Aí exerceram em plenitude os seus direitos de defesa. Nada impede, antes se justifica plenamente à luz dos princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, que os atos realizados num processo original sejam aproveitados num processo que dele foi separado, sendo que tal não afeta minimamente as garantias de defesa do arguido (ver, neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 19 de outubro de 2010, proc. n.º 121/08.1TELSB-A.L1-5, relatado por Carlos Espírito Santo).
A tal não obsta que tenham vindo a ser posteriormente acusados por alguns factos não abrangidos por esses interrogatórios, pois não deixaram de ter tido oportunidade de sobre eles se pronunciarem depois da acusação.
Deve, assim, ser negado provimento aos recursos quanto a este aspeto.

IV 2. –
Vêm os arguidos e recorrentes AA e BB alegar que se verifica nulidade, por violação do princípio constitucional da proibição de obrigação de autoincriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), quanto à prova obtida no âmbito da inspeção tributária (no que se refere ao relatório dessa inspeção e aos depoimentos de testemunhas a ela relativos). Alegam que esse princípio é uma marca irrenunciável de um processo penal de estrutura acusatória que visa garantir que o arguido não seja reduzido a objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual. Alegam que tal princípio prevalece sobre o dever do contribuinte cooperar no âmbito do procedimento administrativo de fiscalização e controlo tributários. Alegam que estamos perante prova proibida, nos termos do artigo 126., n.º 1, do Código de Processo Penal porque os arguidos, na qualidade de contribuintes, foram coagidos a entregar as informações em causa sob pena de serem sancionados por violação desse dever de cooperação, sem que ninguém os tenha informado do seu direito à não incriminação. Invocam o sentido do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 298/2019. Invocam também o disposto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (casos Funke v. France, Saunders v. United Kingdom e J.B. v. Switzerland).
Vejamos.
Esta questão foi já várias vezes analisada pela jurisprudência deste e de outros Tribunais.
A orientação que se vem firmando através dessa jurisprudência é a seguinte.
O princípio (que tem acolhimento constitucional implícito) da proibição da obrigação de autoincriminação não reveste carácter absoluto. Pode ser limitado nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, por lei geral e abstrata, em função de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados, de acordo com critérios de proporcionalidade, com salvaguarda do conteúdo essencial desse princípio e segundo as regras da concordância prática.
Essa limitação poderá decorrer do dever que impende sobre o contribuinte de colaboração em ações de inspeção tributária, nos termos do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei Geral Tributária, considerando que tal dever é essencial à concretização do dever constitucional de pagar impostos e que este é essencial à concretização das tarefas fundamentais do Estado definidas no artigo 9.º da Constituição.
Assim, será admissível a valoração em processo criminal de documentos entregues pelo contribuinte no âmbito de uma inspeção tributária. Essa valoração não deixa de representar uma limitação do princípio da proibição da autoincriminação, mas essa limitação não atinge o conteúdo essencial desse princípio. É verdade que a entrega desses documentos representa um comportamento ativo, e não uma simples tolerância passiva (caso em que a limitação desse princípio poderia ser mais facilmente admitida). Mas estão em causa meios de prova pré-existentes, que não dependem da vontade do arguido e que não interferem na sua esfera pessoal e psíquica, ao contrário do que se verificaria numa eventual obrigação de prestação de declarações contrário ao direito ao silêncio (caso em que já estaríamos perante uma violação do conteúdo essencial desse princípio).
Esse dever de colaboração de modo algum poderá enquadrar-se nalguma forma de obtenção de prova mediante ameaça, coação ou violação da integridade física ou psíquica do arguido nos termos do artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, onde são descritos os métodos proibidos de prova.
Podem ver-se, neste sentido, os acórdãos desta Relação de 1 de julho de 2020, proc. n.º 530/16.2IDPRT.P1, relatado por José Carreto, e de 7 de dezembro de 2022, proc. n.º 387/18.6IDPRT.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas; da Relação de Lisboa de 13 de julho de 2021, proc. n.º 190/06.9IDLSB.L1-5, relatado por Cid Geraldo, e de 14 de março de 2018, proc. n.º 483/15.4IDLSB.L1-3, relatado por João Lee Ferreira; e da Relação de Guimarães de 12 de março de 2012, proc. n.º 82/05.9IDBRG.G, relatado por Ana Teixeira e Silva (todos acessíveis in www.dgsi.pt).
Neste sentido pronunciou-se também o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 340/2013, relatado por João Cura Mariano (acessível in www.tribunalconstitucional.pt).
Já o acórdão desse Tribunal n.º 298/2019, relatado por Pedro Machete (também acessível in www.tribunalconstitucional.pt), invocado pelos arguidos e recorrentes, parece seguir orientação diferente.
No entanto, como bem se salienta no acima referido acórdão desta Relação de 7 de dezembro de 2022, na situação analisada nesse acórdão não está em causa documentação obtida numa normal inspeção tributária ao abrigo do dever geral de colaboração decorrente do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei Geral Tributária, mas documentação obtida já no âmbito de um inquérito, a que são aplicáveis plenamente as regras do processo penal.
Quanto à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e aos acórdãos deste Tribunal invocados pelos arguidos e recorrentes, e tal como se afirma nesse acórdão do Tribunal Constitucional n.º 298/2019, neles se analisam situações em que, no momento da atuação das autoridades administrativas, sobre os visados já recaiam suspeitas de práticas de crimes (o que justificaria, já nessa altura a constituição dos mesmos como arguidos, com a atribuição dos direitos correspondentes). Essas situações serão, pois, comparáveis à que é analisada nesse acórdão do Tribunal Constitucional (não à dos presentes autos). E no que se refere ao acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem proferido no caso Saunders v. United Kingdom, este diz respeito a uma obrigação de declaração (caso muito diferente do que uma obrigação de entrega de documentos) e nele se afirma que o princípio de proibição da autoincriminação não tem aplicação no que se refere a elementos pré-existentes como amostras de sangue e tecidos corporais para testes de A.D.N. (situação equiparável à que está aqui em apreço).
É de salientar que a Diretiva (EU) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho de 9 de março de 2016 (acessível in www.eur-lex.europa.eu), relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, ao mesmo tempo que afirma, no considerando n.º 26, que «a fim de determinar se o direito de guardar silêncio e o direito de não se autoincriminar foi violado, deverá ser tida em conta a interpretação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem do direito a um processo equitativo no âmbito da CEDH», afirma também, no considerando n.º 29, que «o exercício do direito de não se autoincriminar não deverá impedir as autoridades competentes de recolher elementos de prova que possam ser licitamente obtidos junto do suspeito ou do arguido através do exercício de poderes legais coercivos e que existem independentemente da vontade do suspeito ou do arguido, por exemplo, os elementos recolhidos por força de um mandado, os elementos em relação aos quais está prevista uma obrigação legal de conservação e de apresentação a pedido, as amostras de hálito, sangue e urina, bem como de tecido humano para efeitos de testes de ADN» e, consequentemente, estatui, no seu artigo 7.º, n.º 3: «O exercício do direito de não se autoincriminar não impede a recolha pelas autoridades competentes de elementos de prova que possam ser legitimamente obtidos através do exercício legal de poderes coercivos e cuja existência é independente da vontade do suspeito ou do arguido».
Não se verifica, pois, esta nulidade (ou proibição de prova) invocada pelos arguidos e recorrentes.
Assim, deverá ser negado provimento aos recursos quanto a este aspeto.

IV 3. –
Vêm os arguidos e recorrentes AA e BB alegar que se e verifica nulidade por utilização, de forma exclusiva, de métodos indiciários indiretos no apuramento da situação tributária que está na base da sua condenação pela prática de crime de fraude fiscal. Invocam jurisprudência no sentido da não responsabilização penal (por força do príncipio da presunção de inocência do arguido) baseada na utilização de métodos indiciários na determinação da matéria coletável.
Vejamos.
Não assiste razão aos recorrentes quanto a este aspeto.
A prova dos factos que estão na base da sua condenação pela prática do crime de fraude fiscal não assenta em algum cálculo baseado em métodos indiciários. O cálculo dos benefícios ilegítimos que obtiveram baseia-se apenas no montante do IVA correspondente às deduções relativas a faturas falsas. Não está em causa qualquer avaliação indireta ou indiciárias de rendimentos sujeitos a I.R.C. ou I.R.C.
É certo que a prova dos factos descritos nos pontos 19 e 20 do elenco dos factos provados, relativos ao empolamento das compras de cortiça face ás necessidades e quantidades justificadas pela produção, vendas e stock assenta em cálculos indiciários. Mas trata-se de um facto instrumental que, juntamente com outros, permite concluir pela falsidade das faturas em causa. Não é esse o facto que consubstancia a prática do crime de fraude fiscal por que os arguidos foram condenados. Não é, neste aspeto, exigível o rigor exigido para a prova desses factos. E não se verifica, pois, qualquer violação do princípio da presunção da inocência do arguido.
Não se verifica, pois, esta nulidade (ou proibição de prova) invocada pelos arguidos e recorrentes.
Deverá, assim, ser negado provimento aos recursos quanto a este aspeto.

IV 4. –
Vêm os arguidos e recorrentes AA e BB alegar que deveria ter sido suspenso o presente processo, nos termos do artigo 47.º do Regime Geral das Infrações Tributárias por existência/pendência de impugnação judicial em que se discutem situações tributárias de que depende a qualificação jurídico-penal aqui em apreço. A suspensão que se verificou quanto à impugnante “A..., Unipessoal, Ldª” deveria estender-se a eles, pois, estando em causa a mesma situação tributária, a decisão que venha a ser tomada no âmbito da jurisdição fiscal há de repercutir-se na que nestes autos está em apreço. E será assim porque dessa decisão poderá resultar que a vantagem por eles indevidamente obtida será inferior a 1.500 euros, o que afastará a punição da sua conduta, nos termos do artigo 103.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias. Porque não se procedeu a essa suspensão, a sentença recorrida será nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal, pois decidiu sobre uma questão de que não lhe competia conhecer, uma questão a decidir no âmbito da jurisdição fiscal.
Vejamos.
Esta questão foi já anteriormente suscitada e decidida nestes autos. Através do despacho proferido a 14 de julho de 2022 foi indeferida a pretensão dos arguidos ora recorrentes. Desse despacho não foi interposto recurso e ele transitou, pois, em julgado. Tem, assim, força de caso julgado formal, nos termos do artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal), pelo que a questão nele decidida não deverá ser reanalisada.
Sempre se dirá, de qualquer modo e porque os arguidos e recorrentes alegam que o indeferimento da sua pretensão acarreta a nulidade da sentença recorrida, o seguinte.
Não assiste razão aos recorrentes pelas razões já indicadas no referido despacho.
A impugnação judicial da liquidação de imposto que levou à suspensão do processo penal quanto à arguida “A..., Ldª” não acarreta a suspensão do processo penal relativo aos arguidos ora recorrentes. Essa impugnação tem carácter individual e a decisão que venha a ser tomada no âmbito da jurisdição fiscal tem força de caso julgado apenas em relação à impugnante, nos termos do artigo 48.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Podem ver-se, neste sentido, os acórdãos desta Relação de 20 de maio de 2009, proc. n.º 0818024, relatado por Francisco Marcolino; de 3 de julho de 2013, proc. nº 47/08.9IDPRT-A.P1, relatado por José Carreto; de 9 de outubro de 2019, proc. n.º 342/16.3IDAVR-AX.P1, relatado por William Themudo Gilman; de 20 de novembro de 2019, proc. n.º 342/16.3IDAVR-AX. P1, relatado por Carla Sofia Rodrigues; e de 8 de janeiro de 2020, proc. n.º 342/16.3IDAVR-AX.P1, relatado por José Piedade (todos acessíveis in www.dgsi.pt).
Não havendo lugar à referida suspensão, a tribunal da jurisdição penal não deixa de ter competência para decidir qualquer questão de que dependa a qualificação dos crimes em apreço, à luz do princípio da suficiência do processo penal consignado no artigo 7.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Não se verifica, pois, na sentença recorrida, a alegada nulidade a que se reporta o artigo 379.º, n.º 1, c), in fine, do Código de Processo Penal.
Sempre se dirá, ainda, que a questão central a decidir neste processo, que é da falsidade das faturas em apreço, nunca dependeria de alguma decisão no âmbito da jurisdição fiscal. Dessa decisão só poderia eventualmente depender a montante do benefício indevidamente obtido (e – é certo – desse montante poderia depender a eventual não punição da fraude fiscal, nos termos do artigo 103.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias).
Deverá, assim, ser negado provimento aos recursos quanto a este aspeto.

IV 5. –
Vem o arguido BB alegar que a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, por falta de exame crítico da prova, no que se refere ao facto de ele exercer a gerência de facto da “B..., Ldª”.
No entanto, como bem se vê da fundamentação da sentença recorrida, na parte acima transcrita e da motivação do recurso deste arguido, não está em causa alguma omissão ou insuficiência de fundamentação, está em causa a discordância deste arguido e recorrente em relação a essa fundamentação. Sobre essa discordância, pronunciar-nos-emos de seguida.
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido BB quanto a este aspeto.

IV 6. –
Vem o arguido BB alegar que a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere ao facto de ele exercer a gerência de facto da sociedade “B..., Ldª ”.
Há que considerar, a este respeito, o seguinte:
Para concluir que este arguido e recorrente exercia a gerência de facto da sociedade “B..., Ldª”, a douta sentença recorrida baseia-se nos seguintes factos e argumentos:
Este arguido figurou como sócio dessa sociedade desde a sua constituição até à data em que dividiu a sua quota em duas e as cedeu, ao mesmo tempo que constituiu uma nova sociedade com o mesmo objeto.
Na certidão de registo comercial dessa sociedade é indicada como residência deste arguido a sede dessa sociedade.
Foi celebrado um contrato de comodato das instalações dessa sociedade em que figura como comodatário este arguido, dele constando que essas instalações são para uso exclusivo do comodatário. Serão inverosímeis as afirmações do proprietário dessas instalações no sentido de que o contrato só não foi assinado pelo outro arguido, AA, porque este não tinha na data respetiva a documentação necessária.
As testemunhas FF e GG, inspetores tributários, declararam que quando abordaram este arguido, ele afirmou que era mero funcionário dessa sociedade, trabalhando no fabrico de rolhas, quando inexiste qualquer evidência de que esta dispusesse de equipamentos que lhe permitissem esse fabrico.
A testemunha AAA, legal representante da sociedade “F..., S.A.”, declarou que no período a que se reportam os factos em apreço adquiriu mercadoria a essa sociedade e que era este arguido quem lhe entregava as rolhas para amostra e que era com ele que acordava os prazos de entrega. Apesar de este lhe dizer que o negócio era do irmão foi com ele que negociou, sendo que ele ainda hoje é seu fornecedor através da sociedade “G... – Unipessoal, Ldª”.
A testemunha QQ, empregado da sociedade “A..., Ldª”, disse conhecer ambos os arguidos e que os dois se deslocavam às instalações desta (ainda que o arguido AA o fizesse com maior frequência) e faziam negócios com o seu patrão.
O facto de a testemunha PP ter afirmado que só o arguido AA lhe entregava a documentação necessária para a contabilidade não assumirá relevância, pois esses contactos eram escassos e insuficientes, a contabilidade era efetuada de forma irregular (ele não é contabilista certificado e era a esposa, contabilista certificada, quem disponibilizava a senha respetiva), e o depoimento em causa mostrou-se pouco seguro e evasivo.
A estes factos e a esta argumentação, responde este arguido e recorrente nos termos seguintes (baseando-se em declarações prestadas em audiência que transcreve):
A circunstância de ele figurar como sócio da sociedade em causa (sendo que como gerente de direito sempre figurou o outro arguido, AA, seu irmão) não releva como indício de que ele dela fosse gerente de facto.
O facto de na certidão de registo comercial ser indicada como sua residência a sede da sociedade também não é relevante, sendo esse procedimento habitual apenas como forma de endereçar para essa sede correspondência relativa à sociedade.
Também não é relevante que este arguido e recorrente tenha cedido a sua quota na referida sociedade e constituído outra com o mesmo objeto. Tal não significa que na primeira fosse gerente, como passou a ser na segunda.
A testemunha FF, inspetor tributário, declarou que quando abordou o arguido FF, este sempre se assumiu como gerente de direito e de facto da sociedade e que foi este que lhe descreveu toda a atividade da empresa. Nesse sentido também se pronunciou a testemunha GG, também inspetor tributário.
A respeito das suas declarações relativas ao seu trabalho no fabrico de rolhas, alude a vários instrumentos da sociedade que permitiriam tal fabrico.
São relevantes os depoimentos dos contabilistas BB e OO. O primeiro declarou que foi sempre o arguido AA quem lhe entregou a documentação relativa à contabilidade e quem lhe pagou.
As declarações da testemunha SS no sentido de que só não foi esse arguido AA a assinar o referido contrato de comodato porque este não tinha consigo a necessária documentação podem suscitar estranheza, mas não hã motivo para duvidar da isenção dessa testemunha. Esta testemunha declarou também que o armazém objeto desse contrato seria utilizado por esse arguido.
A testemunha AAA, legal representante da sociedade “F..., S.A.” declarou que nos contactos que teve com este arguido e relativos à sociedade “B..., Ldª”, este sempre afirmou que quem mandava nesses negócios era o seu irmão, o arguido AA.
A testemunha QQ, empregado da sociedade “A..., Ldª” declarou que contactava os dois arguidos, mas com maior frequência o arguido AA. Declarou também que os contactava separadamente, o que poderá significar que só este arguido, AA, tratava dos negócios da “B..., Ldª” e que ele, BB, tratava dos negócios da sociedade que, entretanto, constituiu.
Vejamos.
Afigura-se-nos que os factos e argumentos invocados por este arguido e recorrente não permitem afirmar com certeza que ele não exercia a gerência de facto da sociedade “B..., Ldª”, mas suscitam uma dúvida razoável a esse respeito. Os factos e argumentos em que se baseia a sentença recorrida não permitem, por seu turno, alcançar um grau de certeza a esse respeito. Não está em absoluto excluído que as intervenções deste arguido e recorrente fossem próprias de um sócio e trabalhador a quem, porém. não cabe a gerência, no sentido do domínio de facto e direção efetiva, da sociedade.
Não se vislumbra motivo para duvidar da veracidade dos depoimentos que apontam no sentido de que essa gerência de facto cabia apenas ao arguido AA (mesmo considerando que na apreciação da credibilidade desses depoimentos influem fatores dependentes da imediação, de que nesta sede estamos privados). E também não se vislumbra que motivo levaria a que à gerência de facto pelos dois arguidos corresponde uma gerência de direito apenas por um deles.
Os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, consagrados no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, impõem que a condenação se baseie num juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não de mera suspeita ou de maior ou menor probabilidade.
É esse juízo de certeza que não podemos formular quanto à gerência de facto da sociedade “B..., Ldª” por parte deste arguido e recorrente. Poderá até ele conhecer os factos relativos à gerência do arguido AA que levarão à condenação deste pela prática do crime de fraude fiscal por que este vinha acusado. Mas não se provando que exercia a gerência de facto (no sentido do domínio e controlo efetivos dessa gerência) dessa sociedade, não poderá ser ele condenado pela prática, em coautoria, desse crime.
Assim, deverão ser retiradas dos pontos 10, 13, 14, 34, 37 e 38 do elenco de factos provados constante da sentença recorrida as referências ao arguido BB, referências que deverão passar a integrar o elenco de factos não provados.
Consequentemente, deverá este arguido ser absolvido do crime de fraude fiscal qualificada, p, e p, pelos artigos 103.º, n.º 1, c), e 104.º, nºs 1 e 2, a), do Regime Geral de Infrações Tributárias, por que vinha acusado.
Deverá, pois, ser concedido provimento ao recurso interposto pelo arguido BB.

IV 7. –
Vem o arguido AA alegar que a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere à incapacidade económica, empresarial, produtiva e estrutural da “A..., Ldª” para a celebração dos negócios titulados nas faturas em apreço.
Para concluir no sentido dessa incapacidade, afirma-se na douta sentença recorrida o seguinte (sobretudo com base no relatório de inspeção tributária junto aos autos):
Tratava-se de uma pequena empresa de pequena estrutura que, nos anos de 2011 a 2013, não dispunha de infra-estruturas ou liquidez que suportassem o volume de negócios apresentado (o que foi reconhecido em julgamento pela sua contabilista certificada, TT), não evidenciando capacidade económica para investir valores tão avultados em stock de cortiça.
Essa empresa não dispunha de instalações com capacidade de armazenamento das quantidades de cortiça tituladas pelas faturas emitidas pela “B..., Ldª”, nem se apurou que a mercadoria pudesse estar armazenada noutro local, por inexistirem documentos que suportem tais transportes, nomeadamente despesas de deslocação, guias de transporte ou faturas de tal serviço prestado por terceiros.
Essa empresa era proprietária de uma só viatura ligeira de mercadorias, com urna capacidade de peso máximo rebocável limitada a 1800 Kg e, por isso, manifestamente insuficiente para o transporte das quantidades descritas nas faturas emitidas pela “B... Ldª”, seja em termos de peso bruto, seja em volume de carga; nem ela contabilizou despesas com serviços prestados a esse título.
Apresentava ratios desfasados da média do setor, pois se verificava um evidente empolamento das compras, calculado através de critérios de densidade da cortiça, aproveitamento no processo de fabrico ou em quantidades de cortiça: efetuado o "corte" de inventários da sociedade, controlando as compras e vendas de cortiça, rolhas e apara, bem como a produção e quantidades consumidas de cortiça para nesse processo, verifica-se que registou compras de cortiça que, nos anos de 2011, 2012 e 2013 excederam em 34.66%, 45,43% e 38,54%, respetivamente (ou seja. mais 64.805, 102.205,90 e 74.575,15 toneladas, respetivamente) a quantidade de cortiça de que necessitava para satisfazer a produção de rolhas e as vendas de cortiça para os seus clientes.
Por outro lado, considerando as compras totais de cortiça nos referidos anos de 2011, 2012 e 2013, os stocks finais e a faturação aos seus clientes, verifica-se que não foi dado qualquer destino contabilístico a quantidades extremamente próximas daquelas que são tituladas por faturas da “B..., Ldª”, porquanto não foi comercializada como cortiça, rolhas ou apara e no final do ano não se encontrava em stock.
No que respeita a pagamentos dessas compras, a contabilidade desta empresa evidenciava o registo de pagamentos à “B.... Ldª, no valor global de 608.812,60€ (quando as compras ascendiam a 761.271,10€), a que acresce um cheque no valor de 22.312,00€, emitido à ordem daquela, que nunca foi descontado, contrariando toda a lógica empresarial subjacente a uma regular relação comercial.
Tais pagamentos estavam titulados por pagamentos por cheques, sendo que resulta dos autos que os cheques nº ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., apesar de terem sido registados na contabilidade desta empresa como tendo servido para pagamento à “B...,Ldª”, as respetivas quantias regressaram a CC, que procedeu ao levantamento das mesmas ou ao seu depósito em conta não identificada.
Quanto aos cheques que chegaram a ser depositados na conta bancária n.º ..., titulada pela “B..., Ldª”, verifica-se que logo lhe sucederam levantamentos, efetuados pelo arguido AA, quase imediatos e de quantias aproximadas, daqueles montantes, o que indicia de forma clara a existência de um circuito monetário fechado e artificial.
A estes factos e a esta argumentação, responde este arguido e recorrente nos termos seguintes (baseando-se em declarações prestadas em audiência que transcreve).
A testemunha TT normalmente recebia da “A..., Ldª” faturas de montante muito elevado, correspondentes a produtos por ela fabricados ou comercializados. Declarou que esses montantes não lhe causam estranheza, pois a empresa na altura produzia bem. Declarou que a empresa tinha um armazém de grandes dimensões, uma caldeira própria (o que é sinal de fornecimentos de montante elevado). Declarou que n altura era comum que o transporte das mercadorias não fosse acompanhado da guia respetiva, mas apenas de faturas ou guias de remessa.
A testemunha RR, que trabalhava nesta empresa há trinta e três anos, declarou que era grande a produção desta empresa (não estranha os valores contabilizados) e de grande qualidade a cortiça por ela comercializada. A empresa dispunha de instalações muito boas e múltiplas máquinas e equipamentos.
A testemunha QQ, que trabalhava nesta empresa há vinte anos, declarou também a empresa produzia em grandes quantidades. Declarou que era comum efetuar transportes sem a guia respetiva, mas apenas com faturas ou guias de remessa e que muitas vezes uma só fatura servia para várias deslocações, pois as distâncias eram curtas (pelo que não deveria ser dado como provado o que consta o ponto 18 do elenco de factos provados: que não era possível efetuar o transporte das mercadorias referidas, por excesso de carga face à capacidade das viatura alegadamente utilizada).
Os cálculos em que se baseia o relatório de inspeção tributária para concluir que se verificou empolamento de compras partem de valores médios, meramente orientativos e não rigorosos. Deveriam, antes, basear-se no facto de a cortiça comercializada se revestir de excecional qualidade (como foi salientado pela testemunha RR), de uma densidade próxima dos máximos, o que conduziria a outra conclusão quanto a esse suposto empolamento.
Vejamos.
Não se nos afigura que as invocadas declarações destas testemunhas quanto à quantidade e qualidade dos produtos comercializados pela “ A..., Ldª”, obviamente vagas, genéricas e falhas de rigor, possam desfazer as mais sólidas e rigorosas conclusões do relatório da inspeção tributárias em que se baseia a sentença recorrida quanto aos factos ora em apreço.
Também não merecem reparo os critérios em que se baseou tal relatório para concluir pela existência de empolamento de compras. Não merece reparo que se tenha partido de valores médios, sendo certo que também se considera alguma possível margem de erro, e não dos valores máximos, como pretende o recorrente alegando uma excecional qualidade da cortiça em questão sem que se tenha demonstrado de forma minimamente rigorosa essa suposta excecional qualidade.
O que na sentença recorrida se refere quanto aos pagamentos da “A..., Ldª” à “B..., Ldª” e ao destino dos cheques mencionados e a evidência de um circuito monetário fechado e artificial também é revelador da incapacidade da “A..., Ldª” para a celebração dos negócios titulados pelas faturas em apreço.
A sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo quanto a este aspeto.
Estamos perante uma decisão baseada num juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não de mera suspeita, ou de maior ou menor probabilidade. Não se verifica, pois, alguma violação do princípio in dubio pro reo.
Deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA quanto a este aspeto.


IV 8. –
Vem o arguido AA alegar que a prova produzida impõe, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, no que se refere à inexistência de transações reais (e dedução do I.V.A.), ao empolamento de compras e aos pagamentos efetuados pela “A..., Ldª” à “B..., Ldª”.
Para concluir neste sentido, afirma-se na douta sentença recorrida o seguinte (sobretudo com base no relatório de inspeção tributária junto aos autos):
Em relação às faturas das alegadas transações ocorridas entre a “A..., Ldª” e a “B..., Ldª”, a prova carreada para os autos impõe a conclusão de que as mesmas não podem corresponder a verdadeiras transações comerciais porquanto:
As instalações conhecidas da “B...”, Ldª” eram a sua sede, um armazém em regime de comodato, de dimensão incompatível com o armazenamento das mercadorias tituladas nas faturas. e relativamente ao qual chegou a ocorrer corte de energia elétrica por falta de pagamento.
A sociedade não dispunha de quaisquer ativos, sendo que o inspetor tributário FF visitou esse armazém, o qual estava encerrado e sem vestígios da presença de qualquer pessoa no local.
Analisando a escrita da sociedade, verifica-se que em 2 de janeiro de 2012, foi registada a fatura n.º ..., emitida pela sociedade “C..., Ldª”, relativa a aquisição de equipamento, nomeadamente três brocas, uma balança, uma rabaneadeira, uma pulsadeira, uma máquina de escolher, uma máquina de passar, uma máquina de contar e ainda uma rabaneadeira, tudo por 8.280,00 €; porém, logo em vinte e sete de janeiro desse ano, a “B..., Ldª” faturou todo esse equipamento à sociedade “D..., Unipessoal, Ldª”, por 12.730,00 €, o que permite concluir que, à exceção desses vinte e cinco dias, nunca dispôs de equipamento para a produção de rolhas.
Face ao valor registado na rubrica de subcontratos, também não recorreu à aquisição de prestação de serviços dessa natureza, por forma a justificar as rolhas que alegadamente vendeu, mas para as quais não tem registo de compra.
Da análise da contabilidade da sociedade, resulta que a mesma procedeu ao envio da declaração de rendimentos modelo 22 dos exercícios de 2011 e 2012 e declaração anual de informação contabilística e fiscal, do exercício de 2011; mas não procedeu à entrega da declaração Modelo 22 de IRC relativa ao ano de 2013, nem a IES de 2012 e 2013; em termos de depósito de contas, apenas foram depositadas as contas referentes ao ano de 2011 (primeiro ano de atividade), demonstrando a existência de irregularidades formais a nível contabilístico.
A sociedade não dispunha de viaturas que lhe permitissem fazer o transporte das mercadorias a que se reportam as faturas (apenas foi proprietária de um veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com uma capacidade de carga limitada a 2.000 Kg, e apenas entre 21 de maio de 2012 e 30 de setembro de 2013) e os gastos contabilizados com despesas de transporte são irrisórios face ao valor daquela faturação (cerca de 835,00€ no período de três anos em causa nos autos).
Os gastos com pessoal eram absolutamente reduzidos, refletindo a ausência de trabalhadores ao serviço da “B..., Ldª”, para além do seu próprio gerente formal.
99,46% das compras registadas em 2011, 2012 e 2013 encontram-se suportadas por faturas falsas, tratando-se de compras “fictícias” (porque a operadores sem real atividade no ramo) de cortiça, visto os fornecedores serem pessoas com capacidade económica precária, sem instalações compatíveis, ativos ou rendimentos e sem indícios do exercício de atividade no ramo da cortiça (como resulta de forma clara do depoimento das testemunhas MM e NN, inspetores tributários que conduziram as respetivas ações inspetivas, e dos relatórios de inspeção tributária aos operadores económicos UU, VV, WW, XX, YY, PP e ZZ.
Os pagamentos a esses mesmos supostos fornecedores estavam titulados exclusivamente por levantamentos em numerário, dos quais não há qualquer evidência ou suporte documental.
Um dos principais fornecedores da “B..., Ldª” no referido período (em 2013, as compras tiveram unicamente por base faturas desta sociedade, com aquisições registadas muito próximos dos dois milhões de euros) é a sociedade “E...”, a qual foi objeto de ação inspetiva por parte das testemunhas HH, II, JJ, KK e LL. Referiram estas testemunhas, de forma objetiva e consentânea entre si, que apuraram que, esta sociedade só exerceu atividade até ao ano de 2011, não tendo registada na sua contabilidade qualquer relação comercial com a sociedade “B..., Ldª”; ademais, referiram que foram, na altura, confrontadas com faturas emitidas em nome da “E...”, mas que nada se assemelhava com o aspeto gráfico daquelas que eram efetivamente emitidas por ela. Por outro lado, analisadas as referidas faturas, verifica-se que das mesmas consta, relativamente ao transporte, a menção a uma viatura matrícula HP-..-.. e outras a matrícula HP-..-... Porém, resulta de fls. 1691 e 1694 dos autos que estas viaturas são veículos ligeiros de passageiros, sem nenhuma relação com a atividade de uma ou outra empresa. Daqui resulta que as faturas que constam da contabilidade da “B..., Ldª”, como tendo sido emitidas pela “E...” no apontado período, não correspondem, nem podem corresponder, a qualquer aquisição real, evidenciando a existência de stocks puramente fictícios.
No período de 30 de setembro de 2011 a 31 de dezembro de 2013, a “B..., Ldª” registou um total de entradas provenientes de clientes no valor de 571.612,64 €, mas seguiu-se a emissão de cheques de caixa, levantamentos em numerário e levantamentos “Multibanco” num montante muito próximo, mais concretamente, 580.313,88 €, num circuito financeiro de descapitalização totalmente irregular face às necessidades inerentes ao exercício de uma atividade.
Por outro lado, da análise aos créditos nas contas bancárias da “B..., Ldª” verifica-se que, apesar de ter faturado entre 2011 e 2013 um total de 4.527.191,16 €, apenas foram efetuados depósitos de 1.723.211,05€, depósitos esses a que se seguiam levantamentos em numerário ao balcão, como forma de criar mera aparência de legalidade das operações, titulando pagamentos das faturas falsas cuja entrada na conta bancária era meramente simulada;
Depois dos levantamentos ao balcão por parte do gerente da “B..., Ldª” de cheques emitidos por sociedades para as quais esta havia emitido faturação, seguiram-se depósitos em datas muito próximas e de quantias aproximadas às que constavam nesses cheques, em contas particulares dos gerentes das sociedades emitentes dos mesmos, e posteriores transferências para as sociedades contabilizadas a título de suprimentos, demonstrando a existência de um acordo de vontades entre todos os referidos intervenientes com vista à simulação daquelas operações.
Entre os anos de 2011 e 2013, a “B..., Ldª” apenas lançou contabilisticamente o valor aproximado de 10.000,00€ a título de fornecimentos e serviços externos, o que se mostra manifestamente incompatível com o volume de faturação, no valor de 4.527.191,16 €.
Para pagamento dos valores faturados pela “B..., Ldª” a “A..., Ldª” procedia à emissão de cheques, transferências ou ao aceite de letras, sendo que, no entanto, no caso das letras, as mesmas foram, em quase todas as situações, substituídas por cheques em data anterior ao seu vencimento; por outro lado, a serem reais as transações vertidas na contabilidade em 2012, a “B..., Ldª” estaria a vender rolhas e cortiça abaixo do preço do que comprava, com rentabilidade reduzida e fora dos ratios normais do sector, o que contraria totalmente a lógica de mercado.
A tudo isto acresce que, ouvida a testemunha PP, contabilista da sociedade “B..., Ldª” o mesmo afirmou desconhecer a sociedade “A..., Ldª”, não se recordando que a mesma fosse cliente ou fornecedora da “B..., Ldª”. Ora, caso fossem reais as transações em causa, que no período em causa ascenderam a 761.271,10€, não é crível que esse contabilista desconhecesse esse cliente.
A estes factos e a esta argumentação, responde este arguido e recorrente nos termos seguintes (baseando-se em declarações prestadas em audiência que transcreve):
A ausência de registos contabilísticos de transações efetuadas entre a “A..., Ldª” e a “B..., Ldª” não prova a inexistência dessas transações e deveria ter sido esclarecida pelos contabilistas respetivos.
A contabilidade da “B..., Ldª” era atípica (efetuada de facto por quem não era contabilista certificado e com a assinatura de outra pessoa, que o era). Esse contabilista, a testemunha PP, confessou ter-se descuidado nessa sua tarefa no período em questão, em que padeceu de alcoolismo. Por isso, é plausível a ocorrência de despesas não contabilizadas, mas reais.
O destino do cheque não descontado a que se alude na sentença recorrida também deveria ter sido esclarecido, sendo que ele poderia ter sido extraviado ou furtado.
O levantamento do cheque a que também aí se alude como tendo sido levantado por CC não significa que ele tenha regressado à sua esfera jurídica.
O levantamento pelo gerente da “B..., Ldª” de montantes aproximados de cheques logo depois do seu depósito tem explicação no facto de essa empresa negociar com frequência em numerário, para obter melhores preços e condições.
Para além das instalações onde tinha a sua sede, a “B..., Ldª” dispunha de outras instalações, de maiores dimensões, que os inspetores tributários não chegaram a conhecer.
A atividade dessa empresa, de simples compra e venda de mercadoria, era compatível com a ausência e trabalhadores, ativos e equipamentos.
Não é relevante que as testemunhas trabalhadores da “A..., Ldª”, QQ e RR tenham declarado que não conheciam a “B..., Ldª”. O primeiro declarou que conhecia o arguido BBB, que negociava com o seu patrão (sendo compreensível que ignorasse o nome da empresa em nome da qual aquele negociava). A segunda declarou que trabalhava virada para uma parede, o que a impedia de saber quem entrava nas instalações dessa empresa.
A “B..., Ldª” não tinha habitualmente necessidade de transportar as mercadorias que transacionava. Esse transporte era assegurado diretamente dos fornecedores para os clientes. Ocasionalmente, recorria a serviços externos de transportes.
Como já alegou a respeito da suposta incapacidade estrutural da “A... Ldª”, os cálculos em que se baseia o relatório de inspeção tributária para concluir que se verificou empolamento de compras partem de valores médios, meramente orientativos e não rigorosos.
No que se refere a outros fornecedores da “B..., Ldª” e à suposta falsidade de outras faturas a eles relativas, trata-se de questão objeto de outro processo (que correu termos no 2ª Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, com o n.º 374/13.3IDAVR), que não poderá ser aqui considerada, pois só nesse processo poderão ser exercidos os direitos de defesa dos aí acusados e porque tal implicaria a violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
Vejamos.
No que se refere a esta última questão suscitada pelo arguido e recorrente, há que considerar o seguinte.
Ao aludir a factos objeto de outro processo onde aos ora arguidos também foi imputada a prática de fraude fiscal por falsificação de faturas relativas a outros fornecedores, não está a ser violado o princípio ne bis in idem, pois os arguidos não são aqui julgados e condenados por esses crimes. Do que se trata é de considerar a prática desses outros crimes como indício (entre outros) da prática do crime aqui em apreço. Mas para tal não pode ser invocada (como faz a sentença recorrida) apenas a circunstância de a prática desses outros crimes ter resultado de outra inspeção tributária. Tal representaria, na verdade e como alega o arguido e recorrente, uma violação dos direitos de defesa dos arguidos que só poderão ser exercidos noutro processos. Poderia eventualmente ser tida em conta uma sentença já transitada em julgado (porque, nesse caso, já terão sido salvaguardados todos os direitos de defesa em causa nesse outro processo). Mas não é isso que se verifica na sentença recorrida. Está junta aos autos uma sentença de condenação dos ora arguidos pela prática de um crime de fraude fiscal por falsificação de faturas relativas a outros fornecedores da “B..., Ldª”, mas não há notícia do trânsito em julgado dessa sentença. E, de qualquer modo, não é essa sentença que é invocada, para o efeito que agora nos ocupa, na sentença recorrida, mas apenas a existência de uma outra inspeção tributária.
Assim, deveremos abstrair destes factos, que são objeto de outro processo, ao analisar os indícios da prática do crime ora em apreço.
Mas mesmo abstraindo desses factos, os outros que são invocados na sentença recorrida e que acima se reproduzem são suficientes para concluir pela falsidade das faturas em causa.
Na verdade, as alegações do arguido e recorrente a este respeito não são convincentes a ponto de abalar tal conclusão.
Alguns dos factos invocados não se revelam credíveis (designadamente, que a falta de contabilização de despesas em causa fosse devida ao desmazelo do contabilista e aos seus problemas de alcoolismo, que a generalidade dos pagamentos fosse efetuada em numerário, ou que a atividade de compra e venda exercida pela “B..., Ldª” com a dimensão declarada não exigisse trabalhadores e não exigisse transporte de mercadorias por que este era efetuado diretamente do fornecedor para o cliente). Outros poderiam ser considerados (como a circunstância de a empresa dispor de outros armazém, para além daquele onde tem a sua sede), mas não permitem, por si só, abalar a convicção que resulta do conjunto de outros indícios invocados na sentença recorrida (e mesmo que não se considerem os factos que são objeto de outro processo). E há indícios invocados nessa sentença a que o arguido não chega a dar resposta (como o facto de o contabilista da “B..., Ldª”, a testemunha PP, ter declarado desconhecer a “A...”, Ldª”, o que seria incompreensível se ela tivesse realizado os fornecimentos em causa).
A sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo quanto a este aspeto.
Estamos perante uma decisão baseada num juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não de mera suspeita, ou de maior ou menor probabilidade. Não se verifica, pois, alguma violação do princípio in dubio pro reo.
Deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA quanto a este aspeto.

IV 9. –
Vem o arguido e recorrente BBB alegar que a pena que que foi condenado deverá, face aos critérios legais, ser atenuada especialmente e reduzida. Invoca as circunstâncias de não ter antecedentes criminais e de terem decorrido mais de dez anos desde a prática dos factos em apreço (sendo que nenhuma responsabilidade tem quanto a esta demora).
Vejamos.
Antes de mais, importa salientar que não é a verificação de uma qualquer circunstância atenuante que poderá conduzir à atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal. Esta tem natureza excecional. Supõe não uma qualquer diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (uma qualquer circunstância atenuante), mas uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (ver artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal). Não é isso que se verifica no caso em apreço. As únicas circunstâncias invocadas por este arguido e recorrente para justificar a atenuação especial da pena são a ausência e antecedentes criminais e o tempo decorrido desde a prática dos factos.
A respeito de esta última circunstância, há que considerar que, na verdade, pode entender-se que esse tempo atenua as exigências de prevenção especial (se, entretanto, não há notícia da prática mais recente de outros crimes) e também de prevenção geral (pois a consciência jurídica comunitária será menos sensível a crimes ocorridos há mais tempo). No entanto, a pena não deixa de ser necessária, nem tal necessidade é acentuadamente menor. Mantêm-se exigências de prevenção geral e especial, ainda que atenuadas. Se o atraso do funcionamento da justiça se viesse a traduzir em impunidade, ou levasse a que desta nos aproximássemos, seria ainda mais grave a descredibilização do sistema.
Quanto à medida da pena em que este arguido e recorrente foi condenado, há que considerar o seguinte.
O crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, c), e 104.º, nºs 1 e 2, a), do Regime Geral de Infrações Tributárias, por que o arguido e recorrente foi condenado, é punível com pena de prisão de um a cinco anos
Este arguido e recorrente foi condenado na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sob condição do pagamento à Administração Tributária, nesse prazo, da quantia de nove mil euros, comprovando anualmente no processo o pagamento da quantia de três mil euros.
Abstraindo, por ora, da questão relativa a esta condição de pagamento, que adiante será analisada, não se nos afigura, de modo algum, desajustada esta pena (situada próximo do mínimo legal), à luz do disposto nos artigos 40.º, nºs 1 e 2, 50.º, n.º 1, 70.º e 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Para além das circunstâncias atenuantes invocadas por este arguido e recorrente, que não deixaram de ser consideradas, também não podem deixar de ser tidos em conta o caráter reiterado e prolongado no tempo da conduta em causa e o valor muito significativo dos benefícios indevidamente obtidos.

IV 10. –
Vem o arguido e recorrente BBB alegar que a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado não deverá ser condicionada ao pagamento de nove mil euros à Administração Tributária, por tal pagamento ser iuexigível face à sua situação económica. Invoca o facto de auferir o rendimento mensal ilíquido de mil e duzentos euros e pagar quinhentos euros de renda de casa, sendo impossível o “regresso de melhor fortuna” a que se reporta o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 327/08. Alega que essa condição de suspensão da execução da pena viola o disposto nos artigos 13.º, 18.º, n.º 2, e 25.º, n.º 1, da Constituição. Alega que a suspensão da execução dessa pena, atendendo à sua situação económica, não deverá ser sujeita a qualquer condição de pagamento.
Vejamos.
Há que considerar o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias: «A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».
Mas há que considerar, também, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, segundo o qual no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105.º, n.º1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º n.º1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º1, desse Regime, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado tendo em conta a sua concreta situação económica presente e futura. Esta doutrina é aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada ora em apreço, crime igualmente abrangido pelo referido artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Considera a douta sentença recorrida (invocando nesse sentido, o acórdão desta Relação de 20 de abril de 2016, proc. n.º 21/14.6DAVR.P1, relatado por Francisco Marcolino, o acórdão da Relação de Lisboa de 18 de fevereiro de 2016, 18/02/2016, proc. n.º 949/14.3IDLSB.L1-9, relatado por Calheiros da Gama, e o acórdão da Relação de Guimarães de 25 de fevereiro de 2019, proc. n.º 64/15.2T9VNC.G1, relatado por Cândida Martinho , todos acessíveis in www.dgsi.pt) que tal Acórdão de Fixação de Jurisprudência não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributárias devida, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão da execução da pena, a mesma não seja suspensa. O que tal acórdão de fixação de jurisprudência impõe é que se proceda (sob pena de omissão de pronúncia) a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica. Não há que estabelecer uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, podendo este ser menor do que aquele se o exigir a razoabilidade dessa condição em face da situação económica do condenado.
Esta orientação jurisprudencial (e parece-nos correto que o faça) afasta uma outra, seguida no invocado acórdão do Tribunal Constitucional n,º 327/08, segundo a qual a imposição de uma obrigação de pagamento como condição de suspensão da execução da pena de prisão, ao abrigo do disposto no referido artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, que à partida parecerá impossível ou inexigível, não viola os princípios da proporcionalidade e da culpa, pois o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; sempre pode haver regresso de melhor fortuna; e a revogação da suspensão não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição (como decorre do artigo 55.º do Código Penal).
Portanto, a orientação seguida pela douta sentença recorrida foi a de que a razoabilidade da condição de pagamento em causa deve verificar-se à partida e não deve ser considerada alguma eventualidade de “regresso de melhor fortuna”, nem a sempre possível avaliação de uma eventual ausência de culpa de um incumprimento futuro.
Partindo destes pressupostos, a sentença recorrida, considerando o montante do benefício indevidamente obtido (84.442,20€) e a situação económica deste arguido e recorrente, considerou razoável condicionar a suspensão da execução da pena em que ele foi condenado ao pagamento à Administração Tributária da quantia de nove mil euros no prazo de três anos, sendo que deverá ser comprovado nos autos anualmente o pagamento de três mil euros.
É a razoabilidade desta condição que este arguido e recorrente contesta, invocando a sua situação económica.
Antes de mais, há que salientar que não pode ser acolhida a pretensão deste arguido e recorrente no sentido que a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, atendendo à sua situação económica, não deva ser sujeita a qualquer condição de pagamento.
Tal contrariaria abertamente o disposto no citado artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias. Interpretar a exigência deste artigo de acordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não significa deixar de exigir que a condição de pagamento em causa deixe de representar algum sacrifício para o condenado (e seria isso que resultaria, claramente, desta pretensão deste arguido e recorrente).
Já a pretensão de alterar as condições do pagamento em causa poderá ser acolhida, à luz desses princípios e tendo em conta a invocada situação económica deste arguido e recorrente (aufere o rendimento mensal ilíquido de mil e duzentos euros e pagar quinhentos euros de renda de casa).
Afigura-se-nos, assim, que será razoável e proporcional, reduzir a quantia a pagar por este arguido e recorrente, como condição de suspensão da execução da pena de prisão em que ele foi condenado, para seis mil euros, devendo ele fazer prova nos autos do pagamento anual de dois mil euros.
Assim, deverá ser concedido provimento a este recurso quanto a este aspeto.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido BB, retirando dos pontos 10, 13, 14, 34, 37 e 38 do elenco de factos provados constante da douta sentença recorrida as referências a ele, referências que deverão passar a integrar o elenco de factos não provado, e, consequentemente, em absolvê-lo da prática do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, c), e 104.º, nºs 1 e 2, a), do Regime Geral de Infrações Tributárias, por que vinha acusado.
Acordam também em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido BBB, reduzindo a quantia a pagar à Administração Tributária por este arguido e recorrente, como condição de suspensão da execução da pena de prisão em que ele foi condenado, para seis mil euros (6.000 €), devendo ele fazer prova nos autos do pagamento anual de dois mil euros (2.000 €), e mantendo, no restante, no que a este arguido e recorrente diz respeito, a douta sentença recorrida.

Notifique

Porto, 21 de fevereiro de 2024
processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Pedro M. Menezes [com a seguinte declaração: Acompanho a decisão]
Nuno Pires Salpico
José Carreto (Presidente da secção), [com a seguinte declaração:
Julgaria improcedente o recurso do arguido BBB, e em consequência manteria como condição da suspensão da pena de prisão em que foi condenado o pagamento do montante fixado pela 1ª instância.]