Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
500/17.3T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE INSTIGAÇÃO PÚBLICA A UM CRIME
ELEMENTOS DO CRIME
Nº do Documento: RP20201007500/17.3T9VNG.P1
Data do Acordão: 10/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O preenchimento do tipo legal de crime de instigação pública a um crime (artigo 297º, nº 1, do Código Penal) exige, nomeadamente, que o incitamento permita ao(s) incitado(s) saber perfeitamente que a sua concretização resultará num "crime certo e determinado".
(sumário do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 500/17.3T9VNG.P1
Data do acórdão: 7 de Outubro de 2020
Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca do Porto | Juízo de Instrução Criminal do Porto
Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente a assistente B…;
I – RELATÓRIO

1.Em 5 de Fevereiro de 2020 foi proferido nos presentes autos um despacho judicial na primeira instância, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, com o fundamento de o requerimento de abertura de instrução em apreço não reunir os requisitos legais exigidos pelos artigos 283.°, n.° 3, al. b), e 287.°, n.° 2, do Código de Processo Penal: no caso dos autos, a assistente pretende que alguns arguidos sejam pronunciados pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física continuado e de um crime de instigação e apologia pública à prática do crime p.p. pelos arts° 26°, 297° e 298° todos do Código Penal, pelo que lhe cabia a narração dos factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos desses tipos legais de crime. Revertendo para o teor da acusação alternativa da assistente e para a factualidade nela indicada, a mesma atendendo ao contexto em que é exposta não preenche os elementos subjetivos dos tipos legais de crime que imputa aos arguidos.
2. Inconformada com tal decisão, a assistente interpôs recurso da mesma, terminando a motivação de recurso com a formulação das conclusões seguidamente reproduzidas:
" Só por manifesto lapso se entende a decisão de que se recorre.
Ao contrário do decidido, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente obedece às exigências legais, designadamente ao disposto no art. 283º, nº 3 als b) e c) do C.P.P..
Contendo todos os factos que integram os elementos objetivo e subjetivo dos tipos legais dos crimes imputados aos arguidos.
Referindo expressamente o ponto 90º do requerimento de abertura de "Os aqui requeridos agiram voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que os factos supra mencionados constituem crime.".
Sendo que ao longo do requerimento é por diversas vezes feita referência ao elemento subjetivo dos crimes que imputa aos arguidos, designadamente, à consciência da ilicitude e à vontade de realização do tipo objetivo de ilícito.
Factos abundantemente alegados ao longo de todo o requerimento de abertura de instrução, mencionando expressamente que os arguidos agiram de forma voluntária, livre e com a consciência da ilicitude da prática dos crimes, constam, designadamente, dos pontos 43a, 44a, 45a, 49a, 53a, 54a, 55a, 63a, 65a, 67a, 68a, 69a, 73a, 74a, 81a, 83a e 84a.
Violando a decisão em apreço o disposto no art. 287º, nº 3 do C.P.P., por errada interpretação do mesmo.
Inexistindo razões e fundamentos legais que justifiquem a rejeição, por inadmissibilidade legal, pelo Tribunal recorrido, do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, o qual cumpre o disposto no art. 283º, nº 3 als b) e c) do C.P.P., o que acarreta como consequência a nulidade da decisão, nulidade essa que expressamente se suscita."

3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, nos termos legais.
4. Notificado do teor da motivação, o Ministério Público apresentou resposta, concluindo pela improcedência do recurso nos seguintes termos:
"(…) O requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, quando o Ministério Público profere o despacho de arquivamento, tem de configurar substancialmente uma acusação, com a narração dos factos (objectivos e subjectivos) que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis, nos termos do artigo 287°, n ° 2, do CPP, que remete expressamente para o n º3, do artº. 283°, do mesmo diploma legal;
- Analisando o requerimento de abertura de instrução de fls. 373 e seguintes, verifica-se que no mesmo não se descrevem todos os factos concretos que devem figurar numa eventual decisão instrutória de pronúncia, nomeadamente não se indica os factos integradores dos elementos subjectivos do tipo-de-ilícito que se imputa aos arguidos;
- Face à lei, é inadmissível a instrução quando seja requerida pelo assistente e este não descreve no seu requerimento os factos objectivos e subjectivos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido;
- Assim, o douto despacho judicial, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, ora recorrido, não violou o estatuído nos artºs. 286º e 287º, nº3, do CPP.
- Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução que não descreve os factos atinentes aos elementos objectivos e subjectivo da infracção imputada ao arguido, isto porque, a descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade;
- O requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e deve conter os elementos objectivos e subjectivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal;
- O despacho sob censura não violou quaisquer das disposições legais invocadas pelo recorrente.
Termos em que, deve ser a decisão recorrida ser mantida, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso."
5. O arguido C…, D…, E… e F… também responderam, extraindo-se das respetivas peças processuais a seguinte passagem, como a todas as respostas, que condensa os argumentos em que sustentam o seu entendimento de que o recurso deverá improceder:
"(…) Verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa do arguido, nos termos previstos nos artigos 283°, n.° 3, alínea b), e 287°, n.° 2 do CPP, sendo omisso em relação aos elementos subjetivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução por falta de indicação de factos suficientes para preenchimento dos imputados crimes, designadamente de factos integradores do elemento subjetivo de tais ilícitos criminais, sendo certo que, na ausência desses factos, a instrução se revela inútil por nunca poder conduzir a um despacho de pronúncia válido.
6. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso nos seguintes termos:
"(…) no caso em apreço, a abertura da instrução foi rejeitada por se considerar que não consta do RAI a descrição dos elementos do tipo subjetivo dos crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, do C. Penal, imputado ao arguido F… e “restantes membros da Direção da associação denominada G…”, e dos crimes de instigação pública a um crime (artigo 297º) e de apologia pública de um crime (artigo 298º), imputados aos arguidos D…, C… e E….
Trata-se de crimes imputados a título doloso, sabendo-se que o dolo, compreende um elemento intelectual, um elemento volitivo e um elemento emocional.
O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito (o tipo objetivo de ilícito).
O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, agindo: com dolo direito, se tiver a intenção de realizar o facto; com dolo necessário, se previr o facto como consequência necessária da conduta; com dolo eventual, se representar o facto típico consequência possível da conduta e atuar conformando-se com essa realização (artigo 14º, C. Penal).
O elemento emocional – segundo os ensinamentos de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pgs. 333 e 494 e sgs – traduz-se na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição dos interesses pessoais do agente aos valores protegidos pela norma.
Este elemento emocional é revelado através da consciência da ilicitude e integra o dolo, de tal modo que só pode afirmar-se que o agente atuou dolosamente quando, para além do mais necessário ao preenchimento do tipo, esteja assente que o mesmo atuou com conhecimento ou consciência do caráter ilícito e punível da sua conduta.
Por outro lado, está, hoje, estabilizado o entendimento jurisprudencial – face ao AUJ nº 1/2015, publicado no DR de 27/1/2015 – no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, de elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzam no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade fáctica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrado, em julgamento, por recurso ao mecanismo do artº 358º do CPP».
Como melhor se esclarece na fundamentação do citado aresto uniformizador: «(…) o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, que equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica, e que essa operação equivale a uma alteração de facto, e o mecanismo adequado é o do artigo 359º, nºs. 1 e 3 (...) a verdade é que ela não configura um crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao arguido de uma pena».
Temos, pois, por seguro que o dolo, como elemento subjetivo de um determinado tipo legal, nas suas diversas dimensões, é um dos elementos que o artigo 283º, nº 3, do C.P.Penal, impõe que, sob pena de nulidade, conste da acusação, regime aplicável ao RAI, por força do disposto no nº 2 do artigo 287º do mesmo Código.
Com efeito, acrescentar a descrição do elemento subjetivo a um RAI que a não contenha, corresponde a uma alteração substancial dos factos ali descritos, não admitida pelo artigo 309º e redundaria em transformar uma conduta atípica numa conduta típica.
O que equivale a dizer que, não contendo o RAI a descrição daquele elemento, os factos que dela constem não permitirão nunca fundamentar a aplicação de uma pena (artigo 283º, nº 3, al. b)), justificando-se por isso, o indeferimento da abertura da instrução.
2.5 – Na situação concreta, haverá que distinguir os factos que se descrevem como integradores do crime de ofensa à integridade física (artigo 143º), daqueles que se apontam como constituindo os crimes de instigação pública a um crime (artigo 297º) e de apologia pública de um crime (artigo 298º).
2.5.1 – No que respeita ao crime de ofensa à integridade física, salvo o devido respeito, divergindo do sustentado no despacho impugnado, cremos que no RAI se descreve o dolo nas suas diferentes dimensões, quando ali se diz: “Das condutas atrás descritas e como pretendiam os aqui requeridos, resulta a ofensa na saúde da assistente e de sua falecida mãe …” (ponto 81); “Os aqui requeridos agiram voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que os factos supra mencionados constituem crime” (ponto 90).
Porém, ainda no que respeita ao apontado crime de ofensa à integridade física, a mera referência, no RAI, aos “restantes membros da Direção da associação denominada G…”, em nosso entender, não satisfaz a exigência legal da identificação dos arguidos.
Como acima se referiu, a identificação e escolha dos arguidos cabe ao assistente, quando deduz a “acusação alternativa”, e nunca ao juiz de instrução. De resto, não estando os arguidos, todos os arguidos, identificados no RAI, também não se vêm ali individualizadas e concretizadas as suas condutas, integradoras do crime de ofensa à integridade física que, na perspetiva da assistente, se encontra indiciado, nem descrito o grau de participação de cada um deles e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deva ser aplicada.
Por esta razão, somos de opinião que deverá ser mantida a decisão de rejeição do requerimento de abertura da instrução, na parte respeitante ao crime de ofensa à integridade física.
2.5.2 – Quanto aos crimes de instigação pública a um crime (artigo 297º) e de apologia pública de um crime (artigo 298º), estando identificados os arguidos, não nos parece, no entanto, que os factos que lhes são imputados configurem qualquer dos referidos crimes.
Com efeito, verifica-se que as afirmações e expressões que se descrevem e se refere terem ocorrido na Assembleia Geral de finais de 2015, por um lado, circunscrevem-se tão só à atividade da “G…” e ao dito “ruido sonoro” provocado pelos instrumentos musicais que a mesma tocava em determinadas ocasiões e, por outro – constituindo, embora, comentários jocosos, de sentido pejorativo e, porventura, ofensivos da honra e consideração da assistente – trata-se, no entanto, de afirmações e expressões que não traduzem mais do que uma manifestação de solidariedade e de defesa de continuação da atividade da Fanfarra, certamente contrária à opinião e aos interesses da assistente, mas que não põe em causa a paz pública, enquanto bem jurídico protegido pelos referidos tipos de crime.
2.6 – Verifica-se, portanto, que o RAI em causa não contém a descrição de todos os elementos que seriam indispensáveis para fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, seja porque não vêm identificados os arguidos nem individualizadas e concretizadas as suas condutas, no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, seja porque não se descrevem factos que preencham os elementos típicos dos imputados crimes de instigação pública a um crime e de apologia pública de um crime.
A salvaguarda dos princípios da culpa, do contraditório, da acusação e da vinculação temática, exigem a articulação, no requerimento de instrução (“acusação alternativa”), dos factos integradores do crime imputado e a identificação do respetivo autor, de forma a permitir que este possa defender-se cabalmente de tais factos.
Não pode, pois, a falta desses elementos ser suprida pela intervenção do juiz de instrução, na decisão de pronúncia. Ao juiz de instrução apenas é permitido introduzir alterações não substanciais dos factos ali descritos, nos termos do disposto no artigo 303º, nº 1, do C. P. Penal, o que não é o mesmo que suprir a falta de factos, objetivos e/ou subjetivos, integradores do tipo de ilícito que esteja em causa, nem identificar, escolhendo, os respetivos autores.
Permitimo-nos, neste contexto, citar o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/2004, DR nº 150/2004, Série II de 2004-06-28, em cujos fundamentos se pode ler o seguinte: “Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos ou, pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”.
Finalmente, não cremos que haja dúvidas de que, num caso como o presente, a omissão, no requerimento de instrução, dos acima referidos elementos se insere no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” previsto no nº 3 do artigo 287º do C. P. Penal como causa de rejeição do respetivo requerimento.
2.7 – Pelo exposto – embora por razões não inteiramente coincidentes com as invocadas no despacho impugnado – emitimos parecer no sentido de que deverá ser julgado não provido o recurso, confirmando-se a decisão de rejeição do requerimento de abertura da instrução.
7. Não houve resposta ao parecer.
8. Proferiu-se despacho de exame preliminar e, não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].
Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que a recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Das questões a decidir neste recurso:
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso - que sintetiza as conclusões da recorrente, constituindo, assim, o thema decidendum:
- erro em matéria de direito da fundamentação do despacho, uma vez que o requerimento de abertura de instrução integra os requisitos legais necessários;
Para decidir as questões controvertidas, importará, primeiramente, concretizar o facto jurídico-processual relevante – o teor do requerimento de abertura de instrução sobre o qual recaiu a decisão recorrida –.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
A – O requerimento de abertura de instrução:
"B…, assistente nos autos em epígrafe, requer ABERTURA DA INSTRUÇÃO contra:
a) F…;
b) D…;
c) C…;
d) E….
Todos devidamente identificados a fls 261 dos autos; e ainda,
e) restantes membros da Direção da associação denominada de “G…”, com sede provisória na Rua …, …, …, V. N. de Gaia, legalmente constituída por escritura de 25 de novembro de 1987, lavrada a fls 32 v2, do livro n2 178, do 12 Cartório da Secretaria Notarial de V. N. de Gaia e publicada na III Série do Diário da República de 20-08-1988, com o número 192, a identificar oportunamente pelo supra indicado arguido, F…, Presidente da Direção da associação (cfr Doc 12 junto com a queixa-crime)
Nos termos e com os seguintes fundamentos:
(…)
DOS FACTOS QUE FUNDAMENTAM A APLICAÇÃO AOS ARGUIDOS DE UMA PENA
26.No âmbito do processo que sob o número 495/2013-JP, correu seus termos pelo Julgado de Paz de V. N. de Gaia, a aqui assistente e a sua falecida mãe, por um lado e a “G…”, por outro lado, a 31 de julho de 2014, alcançaram um acordo segundo o qual, a referida associação, no âmbito da sua atividade de grupo de Fanfarra, obrigava-se a não tocar ou permitir tocar por qualquer dos seus membros, qualquer instrumento de som, seja em que circunstância for, num perímetro de 150 metros da residência da assistente (por corresponder à distância entre a sede da associação e casa do seu presidente, onde deveriam ser efetuados os ensaios), bem como, a não produzir qualquer “ruído sonoro” decorrente da sua atividade que possa pôr em causa o descanso e a saúde da aqui assistente e de sua mãe, nomeadamente aquando da sua formação de saída da sede e chegada à mesma em cortejo (cfr cláusula primeira da transação).
27.Mais acordaram que a associação poderia formar a sua fanfarra e tocar na sua sede ou no exterior dela, no dia 25 de abril de cada ano e no domingo seguinte ao do seu aniversário, pelo período estritamente necessário à realização da cerimónia de comemoração, que não deverá exceder 40 minutos, bem como, a realizar um ensaio mensal (cfr cláusula segunda da transação).
28.Definiram ainda, o horário desse ensaio mensal, o qual seria, no inverno, ao sábado, entre as 16:00 e as 17:30 horas e no verão, ao domingo, entre as 10:30 e as 12:00 horas (cfr cláusula terceira da transação).
29.Finalmente, comprometeu-se a associação, aquando do ensaio mensal, a reduzir o nível do som ao seu limite mínimo (cfr cláusula quarta da transação).
30.Esse acordo foi homologado por sentença, proferida a 31-07-2014 e transitada em julgado, conforme cópia da certidão junta como Doc. 2 da queixa-crime.
31.As moradas da assistente e a sede da referida associação mantêm-se as mesmas, distando uma da outra cerca de 40 metros (cfr Doc 3º junto com a queixa-crime).
Sucede que,
32.Não obstante, até finais de 2017 a identificada associação nunca cumpriu o acordo alcançado e a sentença proferida, formando a fanfarra quase todos os domingos de manhã, em horários variáveis, entre as 9:00 e as 11:30 horas, saindo da sua sede, tocando por períodos de cerca de 40 minutos e sem ter qualquer cuidado com o volume do som.
33.Por alturas do Carnaval, no domingo gordo, dia 15 de fevereiro de 2015, como se já não bastasse o ruído semanal provocado pela fanfarra, os membros da direção da associação tiveram a desfaçatez de colocar na sua sede, enormes colunas e promover uma festa de Karaoke, com som e pessoas aos berros durante toda a tarde...
34.Refira-se que a falecida mãe da assistente, H… era uma pessoa com mais de oitenta anos de idade e era uma doente que apresentava um quadro psicopatológico de depressão psicótica, necessitando de medicação regularmente,
35.causando-lhe, o ruído provocado pela fanfarra, uma maior instabilidade e dificuldade no dormir (cfr Docs 4º e 5º,juntos com a queixa-crime).
36.Refira-se ainda que, a referida senhora, estava há vários anos a fazer um tratamento ambulatório e necessitava de ter um ambiente tranquilo para poder recuperar a sua instabilidade emocional, sendo o barulho excessivo e um ambiente de conflitualidade, um fator de agravamento, comprometendo assim a sua recuperação (cfr Doc. 6 junto com a queixa-crime).
37.Associado ao facto de a mãe da assistente ter uma grande dificuldade motora, associada à idade e aos problemas de saúde, que lhe dificultava ausentar-se do domicílio (cfr Doc. 72 junto com a queixa-crime).
38.Para além disso, o ruído reiterado e elevado, causava à assistente e a sua mãe uma grande irritação, desgaste e cansaço.
39.impedindo as duas senhoras de, aos fins-de-semana, poderem usufruir do sossego e tranquilidade que tanto prezam, ou prezavam, no caso na mãe da assistente.
40.lsto ao longo de vários anos, de nada servindo as inúmeras queixas apresentadas por ambas para as mais variadas entidades e que comprovam a forma como são afetadas pelo ruído provocado pela associação (cfr. docs 8 a 13 juntas com a queixa-crime).
41.A assistente, vendo o estado de sua mãe e a atitude reiterada e intencional dos responsáveis pela fanfarra também se sente impotente para mudar esta situação que foi verdadeiramente dramática até finais de 2017.
42.Não tendo a menor dúvida que, apesar de a fanfarra já não ensaiar desde finais de 2017, caso os arguidos não venham a ser condenados nestes autos, o ruído recomeçará!...
43.Todos estes factos são do conhecimento dos aqui requeridos, bem sabendo o estado e a angústia da assistente e de sua falecida mãe.
44.Nada fazendo para alterar os problemas causados pelo ruído provocado.
45.Sendo simples e sem nenhum tipo de custo ou transtorno para a direção da fanfarra, o cumprimento daquilo que ficou acordado no processo que correu termos pelo Julgado de Paz de V. N. de Gaia.
46.A casa de habitação é para qualquer pessoa um local de repouso, de tranquilidade e de lazer, qualidades que não são fruídas na sua plenitude se ruídos exteriores perturbam essa situação.
47.Atendendo ao período temporal a que foram sujeitas a tal incómodo (em 2010 já a assistente e sua mãe reclamavam dos ruídos...).
48.Atendendo à idade e estado de saúde que a mãe da assistente tinha.
49.Atendendo também ao facto de ter sido alcançado um acordo, perfeitamente exequível pela associação, homologado por sentença e que não tem sido cumprido num sinal de claro desrespeito pela Justiça e pelas decisões dos Tribunais,
50.A assistente e sua mãe viram-se forçadas a instaurar a competente execução contra a associação, no passado dia 3 de fevereiro de 2016, a qual corre ainda hoje seus termos com o número 2779/16.9T8PRT, pela Porto - lnst. Central - ]. Secção de 2779/16.9T8PRT Execução -J8 (cfr Doc 14 junto com a queixa-crime).
51.Posteriormente à instauração da execução, a fanfarra continuou a reunir regularmente em frente a casa da assistente.
52.Designadamente, no dia 31 de agosto, final de outubro e no dia 18 de dezembro, todos de 2016.
53.Por diversas vezes ao longo dos anos a assistente tem solicitado a intervenção e a presença das autoridades, devido ao facto de ela e a sua falecida mãe não suportarem o ruído, conforme Docs 16 a 18, juntos com a queixa-crime.
54.Não obstante a assistente ter efetuado inúmeros telefonemas a solicitar a intervenção das autoridades, até finais de 2015, apenas foi possível localizar as três participações constantes dos mencionados Docs 16 a 18 juntos com a queixa-crime.
55.O próprio signatário informou a PSP da sentença proferida pelo Julgado de Paz de V. N. de Gala e solicitou diligências por parte das autoridades (Doc. 19 junto com a queixa-crime).
56.Por inúmeras vezes a assistente procedeu a gravações, embora com má qualidade técnica, do ruído provocado pelos ensaios da fanfarra, com o seu telemóvel (CD junto como Doc. 20 da queixa-crime).
POR OUTRO LADO,
57.Mais grave ainda, toda esta questão foi abordada pelos membros da associação, na Assembleia Geral realizada em data que corresponderá a finais de 2015, aquando da comemoração dos 29 anos da mesma.
58.Na qual estiveram presentes, entre outros, o senhor Vereador da cultura da C.M. de V. N. de Gala e o senhor Presidente da Junta de Freguesia, todos eles aqui requeridos.
59.Esta assembleia foi filmada e o vídeo da mesma, tornado público no youtube, o qual podia ser consultável em https://www.youtube.com/watch...
60.Facto esse que só em inícios de 2017 adveio ao conhecimento da assistente.
61.0 referido vídeo foi visualizado por mais de uma centena de pessoas e objeto de partilha, pelo que o número de pessoas que o visualizaram é certamente muito superior.
62.Nessa Assembleia, ao invés de comemorar o aniversário da Associação, o tema é a “melga” da vizinha, como é tratada a assistente, pelos referidos representantes do poder local.
63.Referindo o Presidente da Junta da … “quanto mais ela o chatear, mais força o senhor deve ter para a contrariar” (minuto 2 2:00 da gravação).
64.Referindo o aqui primeiro requerido, que a assistente “faz a vida negra” à fanfarra (minuto 9:45 da gravação), referindo de seguida “o barulho é proibido, eu sei disso (...) ao fim-de-semana principalmente, e eu sei disso” (minuto 10:20 da gravação).
65.Continuando, refere “A Juíza disse a esta fulaninha que tinha que suportar a fanfarra pois não era um ruido constante” (minuto 16:10 da gravação), “se ela tiver alguém doente em casa ela avisa-me que eu não sou bruxo e eu retiro a fanfarra (...) infelizmente ela está sempre doente” (minuto 16:45 da gravação).
66.lncentivando os senhores Presidentes da Assembleia Geral e da Junta o aumento do ruído e a continuação da postura para com as queixosas, por parte do senhor F…, o Presidente da Associação, (ver minutos 33:45 e 22:10 da gravação).
67.lsto é, instigando e fazendo a apologia pública, numa reunião pública e divulgada na internet, da prática reiterada de crime.
68.Aconselhando e incentivando o senhor Vereador da Cultura, a não se preocupar com a polícia, num claro desrespeito pela Justiça, por sentenças proferidas e pelas Autoridades Policiais (minuto 41:50 da gravação).
69.Referindo-se o senhor E…, Presidente da Assembleia Geral, relativamente ao Julgado de Paz de V. N. de Gaia, como um “Tribunal menor”, postura essa, claramente desrespeitosa e lamentável, para com o Julgado de Paz e para com a Justiça (ver minuto 32:15 da gravação)!...
70.Referindo o senhor Vereador da Cultura da C.M. de V.N. de Gaia, referindo-se à 2 Queixosa como “agora temos uma melga que nos dá cabo da cabeça” (minuto 52:00 da gravação).
71.Chegando mesmo o senhor Presidente da Junta de Freguesia a sugerir que se “uma prenda que eu podia ter trazido, que é Shelltox, para matar a melga” (minuto 55, da gravação)...
72. Não obstante, o poder local (Vereador e Presidente da Junta), tendo conhecimento do problema, chegam a propor a mudança de local – o que, até esta data nunca aconteceu (ver minuto 30:15 da gravação).
73.Ouvindo-se, a este respeito, “onde a gente for vai arranjar problemas” (minuto 30:50 da gravação), isto é, todos os que participaram na referida Assembleia, inclusive os aqui requeridos, têm nocão e consciência dos danos e dos problemas causados pelo ruído provocado.
74.0 Presidente da Mesa da Assembleia E…, aqui 3º requerido, dá indicações para a fanfarra tocar o mais alto possível, de 15 em 15 dias (minuto 33:40)...
75.Aliás, é notório o tom de elevação do senhor Vereador, representante do poder local, na área da cultura, que numa cerimónia solene e tornada pública declara, para a câmara que o estava a gravar a Assembleia “eu comi, vomitei e caguei” (minuto 37:45 da gravação)...
76.Que o ruído é insuportável, é por demais notório, logo no início da gravação, no hastear das bandeiras (minuto 1:20 da gravação), onde o barulho é tal que inclusive é percetível o acionar de um alarme (minuto 2:15), devido ao elevado ruído.
77.Nesta fase inicial da gravação é igualmente percetível o telhado da casa das queixosas e a proximidade relativamente ao ruído/sede da associação...
78.Parafraseando o senhor Vereador da Cultura da C.M. de Gala, no minuto 39:25, “isto não é barulho é música”?...
79.A referida Assembleia foi pública e aberta à comunidade, tendo estado presentes os representantes do poder local.
80.Tendo sido divulgada na internet, com o conhecimento e consentimento da Direção da Associação, essa mesma assembleia.
POR TODO O EXPOSTO,
81.Das condutas atrás descritas e como pretendiam os aqui requeridos, resulta a ofensa na saúde da assistente e de sua falecida mãe, integradora do crime do artº 143 do CP, concretizando-se num quadro depressivo, provocado pelo ruído em grau superior ao legalmente permitido produzido pelos ensaios reiterados da fanfarra, causando-lhes sérios e graves prejuízos de ordem física e moral.
82.Devido ao ruído a assistente e a sua falecida mãe, até finais de 2017, data em que a fanfarra deixou de tocar, sentiram-se afetadas na sua saúde, andando tristes, abatidas, deprimidas e irritadas.
83.Os elementos da Direção da fanfarra, há já vários anos e até finais de 2017 que mantiveram a sua conduta inalterada, bem sabendo que ao fazê-lo, estão a causar danos e a ofender o corpo e a saúde da assistente e de sua mãe.
84.lnstigando e fazendo a apologia pública da pratica de um crime, exacerbando os ânimos contra a assistente, isto num meio pequeno, como é a …, tudo isto agravado pelo facto de se tratar de membros do poder local, numa reunião pública e posteriormente divulgada através da lnternet, com um filme visualizado mais de uma centena de vezes, pelo menos.
85.0 direito ao repouso integra-se no direito à integridade física e a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e, através destes, direito à saúde e qualidade de vida.
86.No caso em apreço nos presentes autos o ruído é produzido ao final de semana, período de descanso por natureza, o que ainda se torna mais grave e censurável.
87.0 direito ao repouso é ofendido mesmo que a atividade desenvolvida pela fanfarra tenha sido autorizada administrativamente, o que nem sequer é o caso.
88.Em caso de conflito, os direitos de personalidade, nomeadamente o direito ao repouso e à tranquilidade, prevalecem sobre o direito de propriedade ou sobre o direito ao exercício de uma activIdade comercial ou equioarada e, por maioria de razão, de uma actividade que constituí um mero hobby para quem a pratica e que é causadora de ruído.” (STJ Revista nº 978/01 - 1. Secção Lemos Triunfante (Relator) Reis Figueira,Torres Paulo).
89.”l - A produção ou emissão de ruído, seus efeitos lesivos para o homem e a sociedade, e tutela dos direitos e interesses envolvidos, pode ser encarada por três ópticas: a do direito do ambiente, enquanto causa de poluição (art.s 21 e 22, da LBA), a do direito de propriedade, no domínio das relações de vizinhança (art.2 1346, do CC) e a dos direitos da personalidade, enquanto possível ofensa à personalidade física ou moral de alguém (art.2s 25, n. 1 da CRP e 70, do CC).
II - O direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono, são aspectos do direito à integridade pessoal (art.2 25, n.2 1 da CRP), que faz parte do elenco dos direitos fundamentais, do acervo de direitos, liberdades e garantias pessoais.
III - A ilicitude dum comportamento ruidoso que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar tais baluartes da integridade pessoal.
IV - A ilicitude, nesta perspectiva, dispensa a aferição do nível do ruído por padrões legais estabelecidos.” (STJ Revista n. 4140/01 - 7. Secção Quirino Soares (Relator); Neves Ribeiro; Óscar Catrola.
90.Os aqui requeridos agiram voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que os factos supra mencionados constituem crime.
91.Assim, por todo o exposto entende a assistente que o arguido F…, os restantes membros da Direcão da associação denominada de “G…” cometeram, em coautoria material, um crime de ofensa à integridade física sirnpIes sob a forma continuada, p. e p. pelo art. 143 do C.P.,
92.e os arguidos D…; C…; E…, os crimes de instigação e apologia pública à prática de crime, p. e p., pelos arts 26, 297 e 298º, do C.P..
Termos em que se requer a ABERTURA DE INSTRUCÃO para prova do alegado e decidindo-se a final pela pronúncia dos Arguidos pelos crimes supra identificados.
Requer a V. Ex as seguintes diligências:
(…)"
B – O direito.
§ 1- Do requerimento de abertura de instrução: seu enquadramento jurídico;
Sobre esta matéria, importa recordar os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.
A estrutura acusatória do processo penal, imposta a nível constitucional (artigo 32°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa), implica que o conhecimento do tribunal esteja limitado pelo objeto processual.
O objeto processual penal começa por ser inicialmente delimitado, ainda que com grande flexibilidade, pela participação, denúncia ou queixa.
Posteriormente, o objeto processual será definitivamente delimitado pela acusação ou, em caso de arquivamento, pelo requerimento de abertura de instrução.[3]
A instrução pretendida pela assistente constitui, nos termos da lei adjetiva, uma instância de controlo e não como uma instância de investigação.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deverá integrar uma verdadeira acusação em sentido material.[4]
Não sendo deduzida acusação pelo Ministério Público, quando em causa estejam crimes de natureza pública ou semipública, o assistente pode requerer a abertura de instrução "relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação" [artigo 267°, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal], visando a instrução, neste caso, a "comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa a julgamento" (art. 286º, nº 1, do CPP), o que se compreende por ser a manifestação da efetivação da competência, atribuída aos assistentes, de "deduzir acusação independente da do Ministério Público" (artigo 69°, nº 2, alínea b), do mesmo Código), essencial à efetiva proteção dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, de que são titulares (artigo 68º, nº 1, alínea a), ainda do mesmo texto legal).
Esta faculdade deve ser compreendida no contexto da estrutura acusatória do processo penal português.
Assim se compreende o estatuído no artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, onde consta que o requerimento de abertura de instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à ( ... ) não acusação do Ministério Público, bem como se for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c). (…)»
Com interesse para este recurso recorda-se que nos termos do disposto no nº 3 do artigo 263°, do Código de Processo Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» e «a indicação das disposições legais aplicáveis».
A lei não sujeita a formulação concreta dos requerimentos de abertura de instrução a outras formalidades especiais: apenas exige que os mesmos respeitem as exigências substanciais acima concretizadas – v.g. a enunciação percetível dos factos pertinentes ao preenchimento do tipo legal de crime e dos demais, a que o artigo 283° do Código de Processo Penal faz referência -.
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa, incorporando a narração dos factos[5] que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

§ 2 - Da rejeição do requerimento de abertura de instrução;
Tendo presente a "ratio legis" das normas que regulam a instrução em processo penal, bem como a estrutura axiológica do requerimento de abertura de instrução acima analisada, percebe-se, imediatamente, quais poderão constituir as causas de inadmissibilidade legal de instrução, que conduzem à rejeição de requerimentos de abertura desta fase processual.
Em relação ao "thema decidendum", Germano Marques da Silva[6] é particularmente assertivo, quando afirma que se do requerimento do assistente resultar falta de tipicidade da conduta, a instrução é legalmente inadmissível.
Corroborando este entendimento, o acórdão da Relação do Porto, de 1 de Março de 2006, relatado no processo nº 0413472, refere que «A “inadmissibilidade legal” da instrução, tal como a economia dos conceitos a consente, há-de necessariamente e apenas resultar da própria lei, designadamente do disposto no n.º 1, als. a) e b), do art. 287.º do CPP e não já de deficiências previstas no seu n.º 2, mas sim, por manifesta falta de condições de procedibilidade ou de perseguibilidade criminal (pense-se, por ex., na verificação da prescrição ou de qualquer outra causa de extinção do procedimento criminal, por os factos manifestamente não constituírem infracção criminal e no seu limite, por carência absoluta dos factos integradores de qualquer tipo legal de crime e sua indiciação (…)» [7].

§ 3 - Do caso concreto;
A assistente requereu a abertura de instrução, pretendendo, em suma, a pronúncia de determinados arguidos pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física (art. 143º) continuado, de um crime de instigação pública a um crime (artigo 297º) e de um crime de instigação e apologia pública à prática do crime (artigo 298°, todos do Código Penal).
Recordando os tipos legais de crime em causa, mediante a reprodução das normas correspondentes:
Artigo 143.º
Ofensa à integridade física simples
1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

De acordo com a descrição dos factos produzida pela assistente, ora recorrente, a ofensa do corpo e da saúde (física e mental) da assistente foi produzida pelo som emitido pelos instrumentistas da fanfarra da associação “G…” que, ao tocarem música nas imediações da residência da assistente – em violação de um acordo cível em Julgado de Paz, homologado por sentença e transitada em julgado, que era vinculativa para a associação geraram danos da saúde física e psíquica da assistente, esta última agravada pela circunstância de também ter afetado a saúde da mãe da assistente.
A assistente pretende responsabilizar criminalmente os membros da direção dessa associação, por terem incumprido tal acordo e feito com que a fanfarra atuasse regularmente, ofendendo a saúde da assistente.
Porém, de acordo com a descrição dos factos realizada pela assistente, nenhum membro da direção da associação:
a) teve qualquer comportamento concreto, descrito no requerimento de abertura de instrução, circunstanciado no lugar e no tempo, determinando a produção de ruído pela fanfarra, com o intuito de ofender e de gerar danos da saúde da assistente, desconhecendo-se, sequer, quem geriu a agenda dos ensaios e das atuações da fanfarra no hiato temporal em causa, de modo a produzir o ruído ofensivo da saúde da assistente;
b) tem a qualidade de músico instrumentista (v.g. causador do ruído);
Assim sendo, a assistente não descreveu qualquer conduta concreta dos requeridos F…, D…, C… e E… (nem dos demais cidadãos que integraram a direção da associação e que a assistente não identificou) susceptível de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física, não se mostrando preenchido o elemento objetivo desse tipo legal de crime.
Compreende-se a indignação da assistente perante os factos por si relatados, os quais evidenciam indiscutível relevância cível.
No entanto, a descrição dos factos produzida pela assistente no requerimento de abertura de instrução não permite esse desiderato em processo penal, tendo por objeto um crime de ofensa à integridade física – pelas razões expostas, os princípios da legalidade e da tipicidade em direito penal e a estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa) -.
Artigo 297.º
Instigação pública a um crime
1 – Quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação
de escrito ou outro meio de reprodução técnica, provocar ou incitar à prática de um crime determinado é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe couber por força de outra disposição legal.
A respeito deste tipo legal de crime, assistente imputa no seu requerimento de abertura de instrução a diversos intervenientes numa assembleia-geral da associação de “G…” o incitamento à continuação das atuações da fanfarra, inclusivamente com maior energia, apesar de bem saberem que o ruído gerado iria prejudicar a saúde da assistente.
Considera assim a assistente que estarão preenchidos os elementos objetivos do crime de instigação pública a um crime (o de ofensa à integridade física simples).
Porém, não basta qualquer provocação ou incitamento à prática de um qualquer facto ilícito – é preciso que o mesmo seja crime -, não relevando a ilicitude jurídico-civil ou jurídico-administrativa. Apenas interessa para o preenchimento do tipo legal de crime a ilicitude jurídico-penal, por apenas interessarem as condutas violadoras de um bem jurídico protegido por norma penal.
Na descrição da situação em apreço, percebe-se do teor das conversas tidas na assembleia-geral da associação que os seus intervenientes estavam apenas a discutir a atividade da fanfarra no contexto das manifestações de oposição à mesma pela ora assistente.
Como referido a este respeito no parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, "(…) verifica-se que as afirmações e expressões que se descrevem e se refere terem ocorrido na Assembleia Geral de finais de 2015, por um lado, circunscrevem-se tão só à atividade da “G…” e ao dito “ruido sonoro” provocado pelos instrumentos musicais que a mesma tocava em determinadas ocasiões e, por outro – constituindo, embora, comentários jocosos, de sentido pejorativo e, porventura, ofensivos da honra e consideração da assistente – trata-se, no entanto, de afirmações e expressões que não traduzem mais do que uma manifestação de solidariedade e de defesa de continuação da atividade da G…, certamente contrária à opinião e aos interesses da assistente, mas que não põe em causa a paz pública, enquanto bem jurídico protegido pelos referidos tipos de crime. (…)".
Não resulta da descrição dos factos no requerimento de abertura de instrução, realizada pela assistente, qualquer conduta dos requeridos a incentivar outras pessoas a causarem uma lesão na saúde da requerente e os factos descritos não estão datados, nem se mostra identificado o local da sua ocorrência.
Para se perceber melhor a irrelevância penal das condutas descritas dos requeridos, indica-se um exemplo paralelo: imagine-se um político local que incentive o Governo a autorizar a construção de um novo aeroporto perto de uma localidade. Daqui não resultaria a prática de crime de instigação pública a milhares de crimes (crimes de ofensa à integridade física simples pelo ruído e a poluição do ar forçosamente emergentes da atividade operacional da nova instalação aeroportuária, que irá afetar milhares de residentes nas imediações).
Para que o crime ocorra também é necessário que o incitamento permita ao(s) incitado(s) saber perfeitamente que a sua concretização resultará num "crime certo e determinado" – o que não será o caso dos músicos instrumentistas da fanfarra, que se limitam a tocar nos ensaios e nas atuações, produzindo música, não imaginando que – além do possível incómodo produzido na vizinhança mais sensível ao ruído ou menos sensível à beleza da arte musical – a sua atividade irá prejudicar a saúde de outrem, no caso, da ora assistente.
Desconhece-se, sequer – por tal ter sido omitido na descrição dos factos – se algum dos instrumentistas membro da fanfarra esteve sequer presente na aludida assembleia, de modo a poder ser de algum modo "incentivado" pelas declarações reproduzidas pela assistente (recorda-se que a assistente imputa aos membros instrumentistas da fanfarra – e não aos membros da assembleia-geral da associação - a produção do ruído que lesa a sua integridade física).
Pelo exposto, a descrição dos factos não permite a abertura de uma instrução em processo penal, tendo por objeto um crime de instigação pública a um crime, tendo em conta, igualmente, os princípios da legalidade e da tipicidade em direito penal e a estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa).
Artigo 298.º
Apologia pública de um crime
1 - Quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, recompensar ou louvar outra pessoa por ter praticado um crime, de forma adequada a criar perigo da prática de outro crime da mesma espécie, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Quanto ao último ilícito imputado pela assistente aos requeridos, em passagem alguma da sua descrição dos factos consta que algum dos requeridos tenha, na assembleia-geral da associação, recompensado ou louvado outra pessoa por ter praticado um crime e, por conseguinte, também não agiram nesse contexto de forma deliberada e consciente, bem sabendo que o estariam a fazer forma de modo adequado a criar perigo da prática de outro crime da mesma espécie.
*
Verificada, pois, a ausência de factos suscetíveis de integrar a prática dos crimes identificados no requerimento de abertura de instrução, vem-se entendendo, pacificamente, que se está perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução.
Na verdade, perante a ausência de concretização de um objeto do processo, a atividade judiciária instrutória que a assistente pretende desencadear resumir-se-ia à prática de atos inúteis e, como tal, proibidos por lei, na medida em que a pronúncia nunca poderia ter lugar. Não podendo o Juiz substituir-se ao assistente na descrição de factos essenciais à imputação objetiva e/ou subjetiva dos crimes em questão – factos efetivamente integrantes de crime que não constam do requerimento de abertura de instrução -, sempre estará impedido de deduzir pronúncia, por falta de enunciado desses factos – como corolário, aliás, da estrutura acusatória do processo penal português -, pronúncia essa que constitui, "in casu", "conditio sine qua non" do processo seguir para a fase do julgamento.
Neste sentido, entre muitos, o acórdão deste Tribunal, de 11 de Julho de 2018, relatado no processo nº 9558/16.1T9PRT.P1, dos ora signatários:
«Um requerimento de abertura de instrução formulado por assistente, que não contenha a descrição de factos que integrem a prática de crime, deverá ser rejeitado - nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 287º, nº 2, que remete para o artigo 283º, nº 3, alínea b), do mesmo texto legal - não havendo lugar a despacho de aperfeiçoamento, por não ser legal.»
Assim se compreende o despacho, por razões acrescidas, ao considerar que o requerimento de abertura de instrução em apreço não reúne os requisitos legais exigidos pelos artigos 283.°, n.° 3, al. b), e 287.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, não podendo assim ser admitido."
Pelo exposto, o recurso improcede "in totum".

§ 4 – Das custas;
Sendo o recurso julgado não provido nos termos acima assinalados, impõe-se a condenação da assistente recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 515º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.
Fixa-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, tendo em conta o objeto do recurso.
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam por unanimidade os juízes do Tribunal da Relação do Porto, ora subscritores, em julgar não provido o recurso da assistente B….
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça individual em 4 (quatro) unidades de conta.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 7 de Outubro de 2020.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
___________________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] Neste sentido, entre outros, Frederico Isasca, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra, 1992, págs. 174 e seguintes.
[4] Vide, entre muitos outros, o acórdão de 24 de Outubro de 2018, proferido pelos ora signatários da presente decisão no processo nº 5222/17.2T9PRT.P1, bem como os acórdãos da Relação do Porto, de 5 de Maio de 1993, in Colectânea de Jurisprudência (CJ), 1993, tomo III, pág. 243, da Relação de Coimbra, de 24 de Novembro de 1993, CJ, 1993, tomo V, pág. 61, da Relação de Évora, de 14 de Abril de 1995, CJ, tomo I, pág. 280, da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1997, CJ, 1997, t. III, página 143 e de 11 de Janeiro de 2012, este relatado pela Desembargadora Dra. Maria da Graça M. P. dos Santos Silva no processo 59/07.0GHLRS, da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, não publicado.
[5] Constitui um ónus do assistente – e não do juiz de instrução criminal - a enunciação dos factos que devem ser levados à pronúncia, como decorre do artigo 283°, nº 3, al. c), por remissão do artigo 287°, ambos, ainda, do Código de Processo Penal.
[6] Ibidem, págs. 134 e 135.
[7] Sobre esta matéria, recorda-se, ainda o sustentado pelo Tribunal Constitucional, no acórdão proferido no processo nº 358/2004, onde se refere que: «o objecto da instrução (tem) de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e (…) tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória».