Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MIGUEL BALDAIA DE MORAIS | ||
Descritores: | PROCESSO DE INVENTÁRIO NOVO REGIME DO PROCESSO DE INVENTÁRIO JUDICIAL INVENTÁRIO NOTARIAL NORMAS TRANSITÓRIAS NULIDADE PROCESSUAL | ||
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Nº do Documento: | RP20221128601/15.2T8MTS-L.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/28/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Das normas de direito transitório plasmadas nos artigos 11º a 13º e 14º, da Lei nº 117/2019, de 13.09, decorre que o novo regime do processo de inventário judicial se aplica aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, ou seja, aos processos instaurados a partir de 1 de janeiro de 2020 e, também, aos processos pendentes nessa data nos cartórios notariais e que sejam remetidos ao tribunal, nos termos do disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 12.º. II - Ordenada a remessa do inventário, são os interessados dela notificados para, em 15 dias, deduzirem as impugnações contra as decisões proferidas pelo notário e que pretendessem impugnar nos termos do n.º 2 do artigo 76.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março. III - Tal significa que a norma de direito transitório vertida no nº 2 do artigo 13º da Lei nº 117/2019, de 13 de setembro veio introduzir um regime de impugnação das decisões interlocutórias proferidas pelo notário diverso daquele que se mostra contemplado na Lei nº 23/2013, de 5 de março, posto que, ao invés do que se estabelece neste último diploma (em que essas decisões, por via de regra, apenas podem ser impugnadas aquando da prolação da decisão homologatória da partilha), se permite que essa impugnação seja feita dentro do aludido prazo quinzenal. IV - As nulidades processuais ocorridas durante a tramitação do inventário notarial carecem de ser arguidas, dentro do prazo previsto nos artigos 149º e 199º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 82º da Lei nº 23/2013, de 5 de março, perante a entidade que as praticou, sendo que apenas a decisão daquela entidade que sobre elas vier a recair pode ser objeto de impugnação judicial, seja ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 76º da Lei nº 23/2013, de 5 de março (no caso de o processo de inventário notarial não migrar para o tribunal), seja em conformidade com o preceituado no nº 2 do artigo 13º, da Lei nº 117/2019, de 13 de setembro (caso tenha ocorrido essa remessa). | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo: 601/15.2T8MTS-L.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos – Juízo de Família e Menores, Juiz 1 Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade * SUMÁRIO ……………………………….. ……………………………….. ……………………………….. * I- RELATÓRIO AA instaurou no Cartório Notarial de Matosinhos o presente inventário, na sequência de divórcio, para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, sendo requerida BB. Nomeada a requerida como cabeça-de-casal, a mesma apresentou relação de bens, vindo a ser realizada, em 1 de março de 2019, conferência de interessados, sendo que, no seu início, se deixou consignado que «feita a interpelação, verificou-se estarem presentes o Ilustre Mandatário do requerente, o Sr. Dr. CC, a procuradora substabelecida do credor Banco 1..., a Sr.ª Dr.ª DD, cujo substabelecimento juntou aos autos, no presente dia, sob o nº... e os Ilustres Mandatários da cabeça de casal, o Sr. Dr. EE e a Sr.ª Dr.ª FF, ambos os mandatários sem poderes especiais, pelo que foram advertidos que não poderiam intervir na mesma, por estarem desprovidos de mandato com poderes especiais e tendo ainda sido inquiridos se pretendiam agir como gestores de negócios da requerida, ao que responderam ambos de forma perentória “não”. Assim do rol dos ausentes fazem parte os interessados BB, AA e o Ilustre Mandatário da credora, o Sr. Dr. GG». Entretanto os interessados fizeram uso da faculdade prevista nos arts. 12º e 13º da Lei nº 117/2019, de 13.09, em consequência do que foram os autos remetidos ao Juízo de Família e Menores de Matosinhos. Notificada dessa remessa, a requerida apresentou, em 8 de novembro de 2021, requerimento suscitando a nulidade da conferência de interessados, por preterição do princípio da igualdade, alegando, em suma, ter sido impedida a sua intervenção nessa diligência, por falta de poderes especiais para o efeito dos seus mandatários, tendo, no entanto, sido admitida a intervenção dos mandatários do interessado AA, os quais também não dispunham de poderes especiais para o ato em causa. Cumprido o contraditório, o interessado AA pronunciou-se no sentido de não ser atendida a invocação do referido vício processual, posto que tal decisão se encontra abrangida pelo caso julgado, na medida em que já foi judicialmente apreciada, juntando para o efeito a respetiva sentença. Conclusos os autos, foi proferida, em 22 de fevereiro do corrente ano, a seguinte decisão: «[A]ntes do mais, consigna-se que a sentença junta a estes autos não respeita à matéria ora invocada pela cabeça-de-casal, antes respeitando (para o que ora interessa) à discussão acerca da decisão do sr. Notário sobre a existência ou não de poderes especiais dos mandatários da cabeça-de-casal para arguir nulidades e irregularidades durante a conferência de interessados, por não serem questões que se ancorem na norma que exige a existência de poderes especiais para participar naquela diligência. Com efeito, aqui discute-se da preclusão do direito da cabeça-de-casal a intervir na conferência, através dos seus mandatários, por falta de poderes especiais, por contraponto com a admissão a intervir dos mandatários do interessado, também sem poderes especiais; ali, naqueloutra ação, discutia-se da possibilidade de arguir nulidades e irregularidades sem procuração com poderes especiais. Isto posto, apreciemos então da questão aqui levantada. Como é sabido, o artigo 1110.º, do Código de Processo Civil determina, tal como o determinava o artigo 1352.º do mesmo diploma, mas na redação anterior à reforma de 2013, que os interessados se podem fazer representar na conferência de interessados «por mandatário com poderes especiais». Quis, com esta norma, o legislador exigir cautelas acrescidas nestes atos, fazendo depender a intervenção dos representantes dos interessados neste ato da concessão de poderes específicos (leia-se: concretos) para o efeito. Sucede que, no caso dos autos, os mandatários da cabeça-de-casal tinham poderes gerais e os do interessado tinham poderes gerais e especiais, mas não para representar o mandante em conferência de interessados. Contudo, foi permitida a intervenção destes e impedida a daqueles, porquanto entendeu o sr. Notário que os poderes contidos na procuração dos mandatários do interessado, sendo especiais, seriam suficientes. Ora, se tivessem intervindo os mandatários de ambas as partes, ainda que sem poderes especiais para o efeito, o ato poderia ter sido, ou vir a ser, ratificado nos termos conjugados do disposto nos artigos 44.º, 45.º e 48.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Contudo, o que aconteceu foi que duas partes em igualdade de circunstâncias – na medida em que nenhuma se encontrava presente e os respetivos mandatários presentes na conferência não dispunham de poderes especiais para o efeito – foram tratadas de forma distinta, sendo permitida a intervenção, com apresentação de propostas para adjudicação de bens (móveis e imóveis), a um e precludido esse direito a outro. Em face de tal disparidade de tratamento, que ditou e influenciou em absoluto a decisão/desfecho da causa, outra não pode ser a conclusão do Tribunal que não seja a de que a conferência de interessados padece de nulidade, não tanto por falta de poderes, mas por violação do princípio da igualdade, na modalidade da igualdade de armas, pedra angular do Estado de Direito democrático. Padece, então, a conferência de interessados de nulidade, que contamina todo o ato, devendo assim ser repetido, tal como os atos subsequentes que dele dependem, pois a apresentação de propostas – e a preterição da possibilidade de apresentação de outras pela cabeça-de-casal –, determinou a marcha subsequente dos autos. Nulidade esta que se determina ao abrigo dos artigos 4.º e 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 1.º, 13.º, 18.º, da Constituição da República Portuguesa». Não se conformando com o assim decidido, veio o interessado AA interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir em separado e com efeito suspensivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: 1. Vem o presente recurso interposto do douto Despacho de 22.02.2022, com a ref.ª electrónica 433652473, restringido à parte dispositiva que decretou a nulidade da Conferência de Interessados realizada no dia 01 de Março de 2019- no Cartório Notarial de Matosinhos, do Notário Dr. HH-, e a nulidade de todos os actos subsequentes, o qual opera uma errada interpretação e aplicação das normas jurídicas. 2. O Tribunal não podia conhecer dessa questão, desde já, porque as nulidades processuais produzidas durante a tramitação do inventário notarial carecem de ser arguidas perante a entidade que as praticou e que dirige as diligências do processo de Inventário, ou seja, o Notário, e apenas a decisão daquela entidade que sobre elas vier a recair pode ser objecto de recurso judicial, ou mais rigorosamente, de impugnação judicial de decisão não judicial mas sujeita ao controlo jurisdicional, o que a cabeça de casal, requerida, não fez. 3. Nem a requerida, cabeça de casal, ou seus Ilustres Mandatários, vieram arguir perante o Sr. Notário, a preclusão do direito daquela a intervir naquela Conferência, através dos seus Mandatários, por falta de poderes especiais, quando o podiam e deviam ter feito, e assim se impunha, nem mesmo tal questão foi arguida pela requerida, no recurso interposto do despacho proferido pelo Sr. Notário, em 14.03.2019, tramitado pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores de Matosinhos- Juiz 1, sob o processo n.º 5594/19.4T8MTS, e doutamente decidido por sentença de 19.12.2019, transitada em julgado. 4. Todas as decisões que sejam tomadas pelo notário (salvo, logicamente, aquelas em que se tenha ressalvado o direito às acções competentes), de que não havendo recurso ou, tendo-o havido, sejam confirmadas, consideram-se definitivamente resolvidas, isto e, transitam em julgado, dentro e fora do processo. 5. Não se pode suprimir a obrigação da parte de arguir a nulidade perante o Cartório Notarial onde a nulidade foi cometida e nem mesmo depois perante os Tribunais onde interpôs o recurso e reclamação e vir agora suscitar a sua apreciação e decisão apenas perante o Tribunal a quo, em sede da impugnação que deduziu, a que houve lugar pela simples circunstância da remessa do Inventário para aquele, e nos termos da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro. 6. Por efeito da Lei n.º 117/2019, na tramitação subsequente dos autos de inventário na fase judicial devem aproveitar por obediência ao princípio da adequação formal e da gestão processual, tudo o que foi validamente praticado pelas partes, além da respectiva instrução probatória documental e testemunhal. 7. Pelo que, a impugnação referenciada no n.º 2 do citado artigo 13.º da Lei n.º 117/2019, não pode ter, nem tem, por desiderato desencadear a reapreciação do decidido, neste caso, pelo Sr. Notário, não comportando aquela o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida, no momento e lugar adequado, à apreciação daquele e do Tribunal, por via de recurso e reclamação. 8. O legislador não é inteiramente livre, quer na escolha dos mecanismos susceptíveis de modificar uma decisão que a própria lei já considerara definitiva, quer na selecção das decisões susceptíveis de constituírem caso julgado, 9. Assim como in casu o tribunal a quo, a interpretação que faz do n.º 2 do citado artigo 13.º da Lei n.º 117/2019, consubstancia uma interpretação inconstitucional por violação da protecção constitucional do caso julgado, alicerçada no n.º 3 do artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa e nos princípios da confiança e da segurança jurídica, que decorrem da própria ideia de Estado de Direito. 10. Por outra banda, não houve qualquer violação do princípio da igualdade das partes, na indicada Conferência de Interessados realizada no dia 01.03.2019, no Cartório Notarial de Matosinhos. 11. O Sr. Notário realizou, e bem, a conferência de Interessados, porque nenhum motivo justificativo – justo impedimento- havia para o seu adiamento, a que acresce que impendia sobre o mesmo o dever legal de a realizar no prazo determinado no citado art.º 49.º RJPI, e que já havia sido largamente ultrapassado. 12. O recorrente conferiu ao seu mandatário diversos poderes que constam da procuração limitando-se este, no dia da conferência a entregar ao Sr. Notário, as propostas subscritas e assinadas pelo recorrente, as quais estava em subscritos fechados, pelo que, o mandatário limitou-se a, como um qualquer carteiro/mensageiro, fazer chegar ao Cartório, as propostas feitas e subscritas pelo próprio interessado. 13. Também a interessada, se assim o quisesse ter feito, poderia ter feito chegar ao Sr. Notário, as suas propostas, exactamente nos mesmos termos em que chegaram as do recorrente, ou até, por correio ou mensageiro. 14. Donde se deverá concluir que, para este tipo de intervenção não será necessária qualquer procuração com poderes especiais, o que já não seria assim se o próprio Mandatário subscrevesse ele as propostas e/ou, caso fosse legalmente aceite, as formulasse oralmente em Acta. 15. A decisão recorrida, na parte dispositiva em apreço, decidiu mal, ao considerar que a Conferência de Interessados- e os actos subsequentes- padece de nulidade, o que não ocorre, nem por falta de poderes de representação, nem por violação do princípio de igualdade, na dita “modalidade da igualdade de armas”, desde logo porque, não conseguiu inferir que as propostas, apesar de serem entregues pelo Mandatário do recorrente, estavam na verdade pelo próprio recorrente. Pelo que, logo não há qualquer violação da igualdade de armas porque ninguém impediu a interessada de as apresentar, exactamente nos mesmos moldes. 16. O que, de facto, aconteceu é que, porventura ninguém pensou fazê-lo do mesmo modo ou, mais provável ainda, a interessada não pretendeu apresentar qualquer proposta. 17. Assim, o douto despacho recorrido opera uma errada interpretação e aplicação das normas contidas nos artigos 13.º, 14.º, 49.º, 50.º, 76.º, n.º 2 da RJPI (Lei n.º 23/2013, de 05 de Março); 12.º e 13.º, da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro; 44.º, 45.º, 620.º, 628.º, 817.º, 820.º, 1082.º a 1135.º, do Código de Processo Civil, 1.º, 13.º, 18.º e 282.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, o que justifica que a revogação daquele douto despacho, mantendo-se a Conferência de Interessados realizada no dia 01.03.2019, no Cartório Notarial de Matosinhos, do Notário, Dr. HH, e os actos subsequentes nela praticados. * A requerida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.*** II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas: - da preclusão do direito de a cabeça-de-casal arguir nulidade cometida na conferência de interessados em virtude de não ter tempestivamente suscitado esse vício perante o notário; - da inconstitucionalidade da interpretação do nº 2 do art. 13º da Lei nº 119/2019, de 13.09 feita pelo juiz a quo, por violação da proteção constitucional do caso julgado; - da (in)existência de violação do princípio da igualdade como fundamento de nulidade da conferência de interessados e atos subsequentes. * III- FUNDAMENTOS DE FACTO A materialidade a atender para efeito de decisão do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório, havendo ainda que atender aos seguintes factos (que se mostram documentados nos autos): 1. Em 1 de março de 2019 a cabeça-de-casal apresentou requerimento, dirigido ao Sr. Notário, arguindo diversas irregularidades alegadamente ocorridas na conferência de interessados, sendo que dentre essas irregularidades não invocou preterição do princípio da igualdade, por ter sido impedida a sua intervenção nessa diligência, por falta de poderes especiais para o efeito dos seus mandatários, tendo, no entanto, sido admitida a intervenção dos mandatários do interessado AA, os quais também não dispunham de poderes especiais para o ato em causa. 2. O Sr. Notário, em despacho proferido em 13 de março de 2019, pronunciou-se sobre as irregularidades suscitadas no requerimento a que se alude em 1º decidindo pela sua não verificação. 3. A cabeça-de-casal interpôs recurso do despacho referido em 2º para o Juízo de Família e Menores de Matosinhos que, por decisão de 19 de dezembro de 2019, julgou o recurso improcedente, confirmando o despacho do Sr. Notário no segmento que indeferiu as irregularidades alegadamente ocorridas na conferência de interessados. *** IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO Resulta dos autos que o presente inventário foi instaurado no Cartório Notarial de Matosinhos em plena vigência da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que introduziu o regime jurídico do processo de inventário notarial. No desenvolvimento desse processo veio a ser realizada, em 1 de março de 2019, conferência de interessados, sendo que na ata que ficou a documentar essa diligência se deixou consignado que «feita a interpelação, verificou-se estarem presentes o Ilustre Mandatário do requerente, o Sr. Dr. CC, a procuradora substabelecida do credor Banco 1..., a Sr.ª Dr.ª DD, cujo substabelecimento juntou aos autos, no presente dia, sob o nº... e os Ilustres Mandatários da cabeça de casal, o Sr. Dr. EE e a Sr.ª Dr.ª FF, ambos os mandatários sem poderes especiais, pelo que foram advertidos que não poderiam intervir na mesma, por estarem desprovidos de mandato com poderes especiais e tendo ainda sido inquiridos se pretendiam agir como gestores de negócios da requerida, ao que responderam ambos de forma perentória “não”. Assim do rol dos ausentes fazem parte os interessados BB, AA e o Ilustre Mandatário da credora, o Sr. Dr. GG». A cabeça-de-casal, em 1 de março de 2019, arguiu diversas irregularidades ocorridas nessa conferência de interessados, não tendo, contudo, arguido nulidade por alegada preterição do princípio da igualdade das partes. Sobre o requerimento de arguição de irregularidades recaiu o despacho proferido pelo Sr. Notário em 14 de março de 2019, que julgou improcedente a pretensão aí aduzida. Desse despacho “recorreu”[1] a cabeça-de-casal para o tribunal de 1ª instância, recurso que foi julgado improcedente por decisão prolatada em 19 de dezembro de 2019. Entretanto entrou em vigor a Lei nº 117/2019, de 13.09, sendo que, por aplicação do disposto nos seus arts. 12º e 13º, foi requerida a remessa do processo de inventário para o tribunal judicial, o que foi deferido. Já no tribunal de 1ª instância, a cabeça-de-casal apresentou, em 8 de novembro de 2021, requerimento suscitando diversas nulidades alegadamente cometidas na conferência de interessados realizada em 1 de março de 2019, designadamente nulidade por violação do princípio da igualdade, concretamente “por ter sido impedida a sua intervenção nessa diligência, por falta de poderes especiais para o efeito dos seus mandatários, tendo, no entanto, sido admitida a intervenção dos mandatários do interessado AA, os quais também não dispunham de poderes especiais para o ato em causa”. O juiz a quo tomou então posição sobre esse requerimento proferindo o despacho que constitui objeto do presente recurso, julgando procedente a invocada nulidade, em consequência do que anulou a dita conferência de interessados e todos os atos subsequentemente praticados. O apelante rebela-se contra esse segmento decisório sustentando, para além do mais, que se mostrava já precludido o direito de a cabeça-de-casal arguir o mencionado vício em virtude de não o ter tempestivamente suscitado perante o notário. Que dizer? Na decisão do presente recurso, importa, desde já, observar as normas transitórias previstas na citada Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro. Sob a epígrafe “aplicação no tempo” dispõe o seu art. 11º que: «1- O disposto na presente lei aplica-se apenas aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 12.º a 13.º 2- O regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março, continua a aplicar-se aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da presente lei, estejam pendentes nos cartórios notariais e aí prossigam a respetiva tramitação. 3- Para efeitos do disposto no número anterior, os artigos 3.º, 26.º-A, 27.º, 35 e 48.º do regime jurídico do processo de inventário, anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março, passam a ter a redação prevista nos artigos 8.º e 9.º da presente lei». Por seu turno, sob a epígrafe “Remessa dos inventários notariais”, preceitua o art. 12.º que: «1- O notário remete oficiosamente ao tribunal competente os inventários em que sejam interessados diretos menores, maiores acompanhados ou ausentes. 2- Nos restantes inventários, qualquer dos interessados diretos na partilha pode requerer a remessa ao tribunal competente, sempre que: a) Se encontrem suspensos ao abrigo do disposto 16.º do regime jurídico do processo de inventário há mais de um ano; b) Estejam parados, sem realização de diligências úteis, há mais de seis meses. 3- A remessa do processo para o tribunal competente também pode ser requerida, em qualquer circunstância, por interessado ou interessados diretos que representem, isolada ou conjuntamente, mais de metade da herança. 4- A remessa pode ser requerida não só para o tribunal territorialmente competente, nos termos do artigo 72.º -A do Código de Processo Civil, na redação introduzida pela presente lei, mas também para qualquer tribunal que, atendendo à conveniência dos interessados, estes venham a escolher». Por último, sob a epígrafe “Procedimento da remessa”, estabelece o art. 13.º que: «1- O notário, ouvidos os demais interessados, defere o requerimento apresentado por interessado com legitimidade e determina a remessa do processo ao tribunal, no estado em que se encontrar, sempre que se verifiquem os pressupostos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo anterior. 2- No prazo de 15 dias, contados do despacho a que se refere o número anterior, podem os interessados deduzir as impugnações contra decisões proferidas pelo notário, que pretendessem impugnar nos termos do n.º 2 do artigo 76.º do regime jurídico do processo de inventário. 3- É aplicável à tramitação subsequente do processo remetido a juízo nos termos dos números anteriores o regime estabelecido para o inventário judicial no Código de Processo Civil. 4- O juiz, ouvidas as partes e apreciadas as impugnações deduzidas ao abrigo do n.º 2, determina, com base nos poderes de gestão processual e de adequação formal, a tramitação subsequente do processo que se mostre idónea para conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial com o ulterior processamento do inventário judicial». Decorre, assim, das transcritas normas de direito transitório que o novo regime do processo de inventário judicial se aplica aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, ou seja, aos processos instaurados a partir de 1 de janeiro de 2020 (art. 15.º da Lei nº 117/2019) e, também, aos processos pendentes nessa data nos cartórios notariais e que sejam remetidos ao tribunal, nos termos do disposto nos n.ºs 1 a 3 do art. 12.º daquele diploma legal. Ordenada, pelo notário, a remessa do inventário, em observância do disposto no n.º 1 do referido art. 13.º, são os interessados notificados desse despacho para, em 15 dias, deduzirem as impugnações contra as decisões proferidas pelo notário e que pretendessem impugnar nos termos do n.º 2 do art. 76.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março. Tal significa, pois, que os interessados dispõem do prazo de 15 dias, após a referida notificação, para impugnarem as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do processo de inventário notarial e que só podiam ser impugnadas no recurso que viesse a ser interposto da decisão de partilha. Na referida Lei nº 23/2013 (que, apesar de revogada[2], continua a aplicar-se aos inventários notariais que não migrem para os tribunais judiciais – cfr. art. 11º, nº 2 da Lei nº 117/2019), em matéria de impugnação de decisões proferidas no âmbito do processo de inventário regem, fundamentalmente, os seus arts. 3º, 16º, 57º e 76º, nos termos dos quais das decisões proferidas pelo notário cabe impugnação para o juiz de 1ª instância, enquanto que das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso nos termos gerais. No que especialmente diz respeito à impugnação das decisões dos notários, define-se um duplo regime consoante estejam em causa: i) as decisões a que aludem os arts. 16º, nº 4 (decisão que indefere o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns) e 57º, nº 4 (despacho determinativo da forma à partilha)[3]; ii) outras decisões. Relativamente ao primeiro conjunto de decisões a lei estabelece um regime de impugnação autónoma e imediata; já no concernente às demais decisões, as mesmas quando objeto de impugnação devem ser apreciadas pelo juiz de 1ª instância aquando[4] da prolação da decisão homologatória da partilha (art. 66º, nº 1 da Lei nº 23/2013). Ora, é precisamente neste ponto que a norma de direito transitório plasmada no nº 2 do art. 13º da Lei nº 117/2019 veio introduzir um regime de impugnação das decisões interlocutórias proferidas pelo notário diverso daquele que se mostra contemplado na Lei nº 23/2013, posto que, ao invés do que se estabelece neste último diploma (em que, como se referiu, essas decisões, por via de regra, apenas podem ser impugnadas aquando da prolação da decisão homologatória da partilha), se permite que essa impugnação seja feita no prazo de 15 dias a contar da notificação do despacho a determinar a remessa do inventário (notarial) para o tribunal. E compreende-se que assim seja, porquanto, em resultado da migração do processo para o tribunal, a decisão de partilha já não vai ser proferida pelo notário, o que implicou[5] a necessidade de garantir que os interessados possam impugnar, num curto prazo (a que subjazem as razões de economia e celeridade processual que enformam o “novo” modelo de processo de inventário), aquelas decisões interlocutórias. Portanto, o que o referido regime transitório permite é que sejam imediatamente impugnadas as decisões interlocutórias que hajam sido proferidas pelo notário quando o processo de inventário ainda corria termos pelo cartório notarial. Não é essa, no entanto, a hipótese que ocorre nos autos, posto que não está em causa qualquer decisão proferida pelo notário quando o processo de inventário ainda corria termos no cartório notarial, mas antes a ocorrência de uma alegada nulidade processual cometida na conferência de interessados. Ora, em conformidade com o regime geral[6] das nulidades processuais secundárias (categoria em que se integrará a ajuizada nulidade), as mesmas têm de ser arguidas perante o tribunal onde ocorreu a nulidade ou a que a causa estava afeta no momento em que a nulidade foi cometida, só podendo ser objeto de recurso a ulterior decisão que este tribunal venha a proferir na sequência da reclamação da nulidade. Trata-se da regra que justifica o aforismo corrente de que “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”[7]. Por força desse regime, entendendo que foi cometida qualquer nulidade processual, o interessado na sua arguição deve suscitá-la perante o tribunal a fim de este decidir a reclamação apresentada. Perante a decisão e caso não concorde com ela, o interessado poderá então, nos termos gerais (art. 644º do Cód. Processo Civil) apresentar recurso da decisão que decidiu a reclamação. O que não pode é suprimir a obrigação de arguir a nulidade perante o tribunal onde a nulidade foi cometida e suscitar a sua apreciação e decisão apenas perante o tribunal de recurso. Adaptando esse regime geral ao processo de inventário notarial temos que as nulidades processuais produzidas durante a sua tramitação carecem de ser arguidas perante a entidade que as praticou e apenas a decisão daquela entidade que sobre elas vier a recair pode ser objeto de impugnação judicial, seja ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 76º da Lei nº 23/2013 (no caso de o processo de inventário notarial não migrar para o tribunal), seja em consonância com o que se postula no nº 2 do art. 13º, da Lei nº 117/2019 (caso tenha ocorrido essa remessa). Certo é que, in casu, a cabeça-de-casal não arguiu perante o notário a nulidade processual de (alegada) violação do princípio da igualdade cometida na conferência de interessados realizada em 1 de março de 2019, suscitando, pela primeira vez, esse vício perante o juiz do tribunal para onde o processo de inventário foi remetido. No entanto, pelas razões supra alinhadas, não o poderia fazer por uma dupla ordem de razões: desde logo, porque não arguiu esse vício dentro do prazo que dispunha para o efeito (cfr. arts. 149º e 199º do Cód. Processo Civil ex vi do art. 82º da Lei nº 23/2013); depois porque não suscitou sequer a alegada nulidade perante a entidade competente para dela primeiramente conhecer. Consequentemente, no momento processual em que arguiu o alegado vício formal já se mostrava precludida a possibilidade de o fazer, sendo que, neste conspecto, a doutrina[8] [9] vem assinalando que são, essencialmente, duas as funções primordiais da preclusão, concretamente uma função ordenatória e uma função de estabilização. Assim, pela primeira, a preclusão garante que os atos só podem ser praticados no prazo fixado pela lei ou pelo juiz; já pela segunda, uma vez inobservado o ónus de praticar o ato, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do ato, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico. Acresce que, à luz do disposto no nº 2 do art. 13º da Lei nº 117/2019 (normativo que o juiz a quo convocou para justificar a sua decisão), estaria igualmente vedado, por inverificação da respetiva fattispecie normativa (que, para o conhecimento da impugnação, pressupõe a existência de uma “decisão proferida pelo notário”) ao tribunal para onde o processo migrou apreciar pela primeira vez e em primeira instância um vício que não pode em circunstância alguma deixar de ser qualificado como uma nulidade processual, cujo conhecimento primário impende, repise-se, sobre a entidade que, alegadamente, a cometeu. Assim, pelas razões aduzidas, importa, pois, conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho apelado, que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos se não houver outros motivos que tal impeçam. * Em resultado do sentido decisório acima assumido, mostra-se prejudicada a apreciação das demais questões enunciadas (cfr. art. 608º, nº 2 ex vi do 663º, nº 2, do Cód. Processo Civil).*** V- DISPOSITIVO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos se não houver outros motivos que tal impeçam. Custas pela interessada BB. Porto, 28/11/2022 Miguel Baldaia de Morais Jorge Seabra Fátima Andrade ___________________ [1] Refira-se, a este propósito, que a impugnação das decisões do notário não constitui propriamente um recurso, na medida em que este é um mecanismo processual especificamente previsto no Código de Processo Civil para a impugnação das decisões judiciais perante instâncias judiciais de grau hierarquicamente superior. Trata-se, mais rigorosamente, de uma impugnação judicial de decisões não judiciais mas sujeitas ao controlo jurisdicional. [2] De facto, o art. 10º da Lei nº 117/2019 revogou o regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei nº 23/2013, de 5 de março. No entanto, essa revogação não obsta à sobrevigência desse regime, porquanto, por determinação expressa do nº 2 do art. 11º daquela primeira lei, o mesmo continua a ser aplicado aos processos que hajam sido iniciados anteriormente a 1 de janeiro de 2020 nos cartórios notariais e que aí mantenham a sua tramitação por não se verificar nenhuma das circunstâncias determinantes da migração do processo para o tribunal. [3] Para além destas decisões, têm sido assinaladas outras que serão suscetíveis de serem impugnadas perante o juiz de comarca, segundo o entendimento de que o elenco dos atos judicialmente impugnáveis, extraível da Lei nº 23/2013, não só não é taxativo, como será passível de ser complementado através de consideração de outros preceitos legais - cfr., sobre a questão, CARLA CÂMARA et alii, Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado, 2ª edição, Almedina, págs. 37 e seguinte. [4] Isso mesmo é sublinhado por LOPES CARDOSO, in Partilhas Litigiosas, vol. III, Almedina, 2018, pág. 81, onde escreve que “não estando previsto que a impugnação das decisões interlocutórias que não são autónomas suspendam o andamento do processo de inventário, também não se justifica que subam imediatamente ao juiz do processo, pelo que, preparada a impugnação com a respetiva alegação, aquela irá aguardar o momento em que o processo seja remetido a Tribunal para a prolação da decisão homologatória da partilha”. [5] Neste sentido se pronunciam TEIXEIRA DE SOUSA et al., in O Novo Regime do Processo de Inventário e outras alterações na legislação processual civil, 2020, Almedina, pág. 170. [6] Vertido nos arts. 195º a 203º do Cód. Processo Civil. [7] Sobre a questão, e por todos, ALBERTO DOS REIS, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, pág. 507. [8] Cfr., por todos, CASTRO MENDES/TEIXEIRA DE SOUSA, in Manual de Processo Civil, vol. I, 2022, AAFDL Editora, págs. 648 e seguintes e MARIANA FRANÇA GOUVEIA, in A causa de pedir na ação declarativa, Almedina, 2004, págs. 399 e seguintes. [9] Ainda a propósito da preclusão, mormente na sua correlatividade com o ónus de concentração, TEIXEIRA DE SOUSA, no Blog do IPPC – Paper 199 – de 3.5.2016 (acessível em https://blogippc.blogspot.pt/), sublinha que “quando referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado (…). A correlatividade entre o ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado”. |