Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14/14.3TBLSD-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INVENTÁRIO JUDICIAL
COMPETÊNCIA DOS JUÍZES DE MENORES E FAMÍLIA
TRAMITAÇÃO POR APENSO
Nº do Documento: RP2021052514/14.3TBLSD-C.P1
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A Lei nº 117/2019, de 13.9 aprovou um novo regime do inventário notarial e reintroduziu no Cód. de Proc. Civil, nos seus arts. 1082º a 1135º, o inventário judicial.
II - Incumbe aos juízos de família e menores a tramitação dos processos de inventário que sejam instaurados na sequência de divórcios judicialmente decretados.
III - Apesar de não existir no atual Cód. de Proc. Civil norma semelhante ao antigo art. 1404º, nº 3 do anterior Cód. de Proc. Civil, o processo de inventário que constitua dependência de antecedente processo judicial de divórcio deve ser tramitado por apenso a este, justificando-se essa apensação ao abrigo do art. 206º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 14/14.3 TBLSD-C.P1
Comarca de Porto Este – Juízo de Família e Menores de Lousada – Juiz 4
Apelação
Recorrente: B…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Carlos Querido

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
B… veio apresentar o seguinte requerimento com vista à instauração de inventário para partilha de bens:
“1º Por douta sentença proferida nos autos de processo supra identificado, já transitado em julgado, foi decretado o divórcio entre requerente e requerido.
2º O casal fora constituído sob o regime da comunhão de adquiridos e na sua constância adquiriram bens móveis e dinheiro que se manteve até à sua dissolução.
3º Sucede porém que a requerente e requerido não chegaram a acordo no que concerne à partilha dos bens que constituíram o dissolvido casal.
4º Volvidos sete anos após o divórcio, pretende o requerente, por este meio, proceder à partilha de tais bens.
5º As funções de cabeça de casal incumbem ao requerente, o mais velho, nos termos da disposição legal aplicável,
6º Pelo que junta o respectivo compromisso de honra do fiel exercício das funções de cabeça de casal nos termos do disposto no Art.1097º, Nº 3, alínea e), CPC (Doc.1).
7º Junta, ainda para o efeito a relação de bens comuns do casal (Doc.2).
Do apoio judiciário:
8º O Requerente solicitou junto dos serviços da segurança social protecção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem ainda como nomeação e pagamento da compensação de patrono, o qual foi deferido, conforme Doc. 3 e 4 que se junta e que se dá por integralmente reproduzido.
Nestes termos, Requer-se a V. Excª que as funções de cabeça de casal sejam incumbidas ao aqui requerido.
Mais se requer a V. Excª que, autuado por apenso ao processo à margem identificado, seguindo-se os demais termos até final.”
Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho judicial:
“Os presentes autos de inventário na sequência de divórcio entre cônjuges foram intentados por apenso àqueles.
Conhecendo:
Dispunha o art 1404º, do CPC (revogado) que decretado o divórcio, qualquer dos cônjuges podia requerer inventário para partilha dos bens, correndo o inventário por apenso ao processo de divórcio.
Sucede que na Lei de 13.9.2019, aplicável aos autos, tal norma deixou de existir, o que nos permite concluir que a sua eliminação foi intencional sendo a vontade do legislador que sua tramitação seja agora autónoma.
O art 267º, do Código de Processo Civil, dispõe que se forem propostas separadamente acções que, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção, pudessem ser reunidas num único processo, será ordenada a junção delas, a requerimento de qualquer das partes com interesse atendível na junção, ainda que pendam em tribunais diferentes, a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação.
No nº 2 do mesmo normativo acrescenta-se que os processos são apensados ao que tiver sido instaurado em primeiro lugar, salvo se os pedidos forem dependentes uns dos outros, caso em que a apensação é feita na ordem da dependência, ou se alguma das causas pender em instância central, a ela se apensando as que corram em instância local.
Mas nem por recurso a este preceito da parte geral, se alcança que o inventário deva correr por apenso aos autos de divórcio.
Pois para além de não preencher nenhuma das previsões legais, acresce o facto dos autos de divórcio estarem findos - fim alcançado com o decretamento do divórcio.
Na falta de preceito que imponha/justifique a apensação das ações, o princípio é da sua tramitação autónoma.
Pelo exposto determino que após desapensação, se dê a competente baixa e remeta os autos à distribuição.
Dn
Notifique.”
Inconformado com este despacho interpôs recurso o requerente que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- O Recorrente não se conforma com o douto despacho com a Refª 85107719 de 07 de abril de 2021, no qual [se] determinou que o requerimento de inventário tem tramitação autónoma e não poderá correr por apenso aos autos de divórcio.
2- A fundamentação do douto tribunal ad quo no despacho supra baseou-se numa interpretação restritiva da redacção do Art. 267º, CPC, articulado com a Lei Nº 117/2019, de 13 de Setembro.
3- A Lei Nº 117/2019, 13.9, que introduziu o artigo 1083º do CPC, veio atribuir competência exclusiva aos tribunais no caso de inventário que dependa de outro processo judicial, o qual se vislumbra no caso em apreço.
4- O Art. 1133º, CPC deverá ser conjugado com o Art. 122º, Nº 2 LOSJ e nessa medida, dúvidas não restam de que o inventário deverá ser intentado por apenso ao processo de divórcio, caso o mesma tenha corrido em tribunal.
5- Assim é do entendimento da jurisprudência, que cabendo aos juízes de família e menores decretarem ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, cabe-lhes ainda tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos artigos 122º n.º 2 da LOSJ e 206º, nº 2 do CPC.
6- O Art. 1133º, CPC, deverá ser interpretado à luz do disposto no CCivil (Art 9º e10º) e nessa medida sempre se dirá que o requerimento de inventário será autuado por apenso!
7- Violou, assim, o despacho recorrido os Arts. 9º e 10º, CCivil, bem ainda como o vertido no Art. 267º, Nº 1 e 2, CPC.
8- Termos em que o despacho recorrido deve ser revogado, permitindo-se e ordenando-se a apensação deste inventário à acção de divórcio que correu e o decretou entre os cônjuges, o aqui recorrente e a recorrida.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se os presentes autos de inventário deverão correr autonomamente ou por apenso à ação de divórcio.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.
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Passemos à apreciação jurídica.
1. No despacho recorrido entendeu-se que não subsistindo na nossa ordem jurídica norma similar ao art. 1404º do anterior Cód. de Proc. Civil, onde no seu nº 3 se previa que o inventário intentado na sequência de processo de divórcio corria por apenso a este, determinou-se que o inventário entretanto requerido pelo ora recorrente corresse autonomamente e assim se ordenou a sua desapensação do respetivo processo de divórcio.
Deste entendimento discordou o requerente que em sede recursiva veio sustentar que, não obstante inexistir atualmente disposição semelhante àquele art. 1404º, nº 3, deverão os presentes autos de inventário ser tramitados por apenso ao processo de divórcio.
Vejamos então.
2. A Lei nº 117/2019, de 13.9, que entrou em vigor em 1.1.2020, procedeu à revogação do regime jurídico do processo de inventário decorrente da Lei nº 23/2013, de 5.3, tendo aprovado um novo regime do inventário notarial e reintroduzido no Cód. de Proc. Civil, nos arts. 1082º a 1135º, o inventário judicial.
Sucede que o art. 1083º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, na sua alínea b), veio conferir competência exclusiva aos tribunais para o processo de inventário sempre que este constitua dependência de outro processo judicial.
Por seu turno, o art. 1133º, nº 1 também do Cód. de Proc. Civil estatui que «decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns
Estes dois preceitos legais, que plenamente se adequam ao presente caso, uma vez que o inventário aqui requerido surge na sequência de divórcio decretado judicialmente, têm que ser conjugados com o art. 122º, nº 2 da LOSJ [Lei Orgânica do Sistema Judiciário][1], onde se estabelece o seguinte: «Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos
Neste quadro legal não suscita dúvidas a competência dos juízos de família e menores para os processos de inventário que sejam decorrência de divórcio decretado em sede judicial, nem esta competência está em equação no presente recurso.
3. A questão que aqui se coloca, tal como acima já foi definida, consiste apenas em apurar se o processo de inventário deverá correr por apenso ao divórcio ou se, conforme se entendeu na decisão recorrida, deverá ser remetido à distribuição, correndo autonomamente.
A decisão da 1ª Instância apoiou-se na posição de Tomé D’Almeida Ramião (in Cadernos do CEJ, “Inventário: o Novo Regime”, Maio de 2020, págs. 39/40), o qual, salientando que o art. 1133º do Cód. de Proc. Civil não refere se o inventário corre autonomamente ou por apenso ao divórcio, ao contrário do que antes previa o correspondente art. 1404º, nº 3 do anterior Cód. de Proc. Civil, concluiu que: “(…) Perante a ausência de norma expressa em sentido adverso, o processo de inventário instaurado no âmbito do artigo 1133.º do C. P. Civil continua a ser tramitado como processo autónomo e independente, cuja competência está deferida aos Tribunais de Família e Menores, nos termos do referido n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ.(…).”
4. Porém, em consonância com o caminho que tem vindo a ser seguido pela nossa jurisprudência, consideramos que a posição que vai no sentido da tramitação autónoma do processo de inventário não é a mais adequada.
Com efeito, se deixou de subsistir a norma que estabelecia expressamente que o inventário corria por apenso ao processo de divórcio [o art. 1404º, nº 3 do anterior Cód. de Proc. Civil], daí não resulta que tenha deixado de subsistir a conexão existente entre estes dois processos judiciais justificativa da apensação e que assenta na circunstância de que a partilha de bens surge em consequência do divórcio.
Dispõe o art. 206º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil que «as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.»
Ora, a relação de dependência e conexão que, a nosso ver, existe entre os dois processos, faz da apensação a melhor solução para a tramitação dos presentes autos de inventário.
Essa dependência flui desde logo do art. 1083º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, que dispõe que o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial e também do art. 122º, nº 2 da LOSJ, que estende a competência dos juízos de família e menores aos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.
Por isso, impõe-se concluir que aos juízos de família e menores cabe tramitar os processos de inventário que decorram e dependam de divórcios que neles tenham sido decretados, sendo que essa dependência justifica a sua apensação nos termos do art. 206º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
Neste sentido se pronunciou Pedro Pinheiro Torres (in Cadernos do CEJ, “Inventário: o novo regime”, Maio de 2020, pág. 31) que escreveu o seguinte: “(…) Será, porventura relevante fazer referência aos tribunais competentes para a instauração do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio, uma vez que a solução quanto ao tribunal competente dependerá do órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente ao divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2 do artigo 206.º do CPC; (…).”
Idêntica posição tomaram António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2020, Vol. II, pág. 527) ao escrever: “(…) Agora, que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou de separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão), nos termos do art. 206º, nº 2.(…).”.
Referem ainda (in ob. cit., págs. 527 e 629/630), que a mesma relação de dependência justifica a instauração por apenso na prestação de contas pelo cabeça de casal (art. 947º), na atribuição da casa de morada de família por dependência da ação de divórcio pendente ou finda (art. 990º, nº 4), na autorização para a prática de atos por dependência de processo de inventário ou de maiores acompanhados (art. 1014º, nº 4), na nomeação judicial de titulares de órgãos sociais para efeito de representação da pessoa coletiva em causa pendente (art. 1054º, nº 2) ou ainda nos casos previstos nos arts. 881º, nº 3, 915º, 924º e 959º).
Em abono desta mesma posição refira-se também o Ac. Rel. Lisboa de 14.7.2020 (proc. nº 699/16.6T8CSC-D.L1-7, relatora Maria da Conceição Saavedra, disponível in www.dgsi.pt) onde se afirma que a regra da apensação é igualmente “…a mais conforme com o princípio da economia processual, já que do processo de divórcio poderão constar elementos relevantes para a decisão da partilha (cfr. art. 1789º do C.C….)”
5. Assim sendo, ao invés do que foi entendido na decisão recorrida, do confronto entre o atual art. 1133º do Cód. de Proc. Civil e o correspondente art. 1404º do anterior Cód. de Proc. Civil não se retira a conclusão de que, em casos como o presente, o inventário será tramitado de forma autónoma e independente, antes se impondo que este corra por apenso ao processo onde foi judicialmente decretado o divórcio dos interessados, nos termos dos arts. 206º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil e 122º, nº 2 da LOSJ. [Em sentido idêntico, que se vai perfilando como jurisprudencialmente uniforme, cfr. Ac. Rel. Coimbra de 23.2.2021, proc. 435/20.2T8PBL-A.C1, relator Pires Robalo; Ac. Rel. Porto de 23.2.2021, proc. 311/20.9T8VCD-B.P1, relatora Alexandra Pelayo; Ac. Rel. Guimarães de 11.2.2021, proc. 334/18.8T8FAF-B.G1, relatora Maria Luísa Ramos, todos disponíveis in www.dgsi.pt.]
O recurso interposto pelo requerente é, pois, de julgar procedente.
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Sumário (da responsabilidade do relator: art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo requerente B… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que se substitui por outra que determina a tramitação do presente inventário por apenso ao processo onde foi judicialmente decretado o divórcio dos interessados.
Sem custas.

Porto, 25.5.2021
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Carlos Querido
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[1] Lei nº 62/2013, de 26.8.