Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
310/14.0TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: LEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
INSOLVENTE
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP20160218310/14.0TVPRT.P1
Data do Acordão: 02/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 51, FLS.184-192)
Área Temática: .
Sumário: Numa ação declarativa deduzida por dois autores em litisconsórcio necessário (ativo), estando um deles declarado insolvente, com pendência do respetivo processo especial, e sem poderes de administração e de disposição do seu património, a ilegitimidade ativa pode ser sanada com a intervenção principal do administrador da insolvência, em litisconsórcio como o outro autor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 310/14.0TVPRT.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Inst. Central -1ª Secção Cível

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Pedro Martins
Adj. Desemb. Judite Pires

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B… e C…, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes na Rua …, …, ….-… Póvoa de Varzim, instauraram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra D…, S.A, com sede na …, .., Porto, pessoa coletiva nº ………, com o seguinte pedido, ipsis verbis:
«Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada provada e procedente e, em consequência, deve o Réu ser condenado a pagar aos Autores:
(i) a diferença entre o valor de aquisição das ações e o valor de venda, no montante aproximado de € 415.944,86, a que acrescem juros calculados à taxa comercial em vigor, contados desde 07.04.2009 até efetivo e integral pagamento e que na presente data (07.04.2014) perfazem € 168.158,53;
(ii) todos os juros remuneratórios, moratórios, comissões, imposto de selo e demais despesas e encargos que os Autores suportaram nos financiamentos concedidos para aquisição de ações D… após a queda abrupta do valor destas, a que acrescem juros calculados à taxa comercial em vigor, contados desde 07.04.2009 até efetivo e integral pagamento (que no momento se não quantificam por ser desconhecido e carecer de informação a prestar pelo Réu);
(iii) a quantia de € 70.000,00 respeitante à afetação daquela importância à constituição do capital social da E…, a que acrescem juros calculados à taxa comercial em vigor, contados desde 07.04.2009 até efetivo e integral pagamento e que na presente data (07.04.2014) perfazem € 28.299,65;
(iv) a quantia de € 226.827,76 respeitante a suprimentos que o Autor injetou na E…, a que acrescem juros calculados à taxa comercial em vigor, contados desde 07.04.2009 até efetivo e integral pagamento e que na presente data (07.04.2014) perfazem € 91.702,11;
(v) a quantia de € 341.773,26 como indemnização do dano da perda de chance, a que acrescem juros calculados à taxa comercial em vigor, contados desde 07.04.2009 até efetivo e integral pagamento e que na presente data (07.04.2014) perfazem € 138.172,37;
(vi) os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor pela quantia de € 30.000,00 e sofridos pela Autora pela quantia de € 15.000,00, a que acrescem juros calculados à taxa legal em vigor, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;
(vii) a quantia de € 100,00 por cada dia de atraso no cumprimento da decisão a proferir, a título de sanção pecuniária compulsória.»
Para o efeito, ao longo de 401 artigos, alegaram essencialmente que o A., sob persuasão, designadamente com promessas de grande valorização transmitidas pelos funcionários do R., comprou ações do D… na expetativa de obtenção de dividendos resultantes da valorização dos títulos, em diversas fases, nos anos de 2000, 2001 e 2002, quer com capitais próprios, quer com capitais financiados pelo próprio Banco, cujos pagamentos os AA. garantiram, designadamente com penhor de diversas ações e livranças em branco com autorização de preenchimento pelo R.
As ações D…, cuja valorização era artificial, ao contrário do referido pelo Banco e das legítimas expectativas criadas aos AA., sofreram uma abrupta e acentuada desvalorização que gerou prejuízos avultadíssimos aos AA., tal como a outros inúmeros clientes do R., incluindo situações de insolvência, como aconteceu neste caso.
Ante o não reforço dos penhores pretendido pelo Banco, o agravamento da situação financeira dos AA. e a impossibilidade de cumprir os contratos de concessão de crédito, o R. resolveu os contratos, com efeitos imediatos e interpelou o A. para liquidar “a totalidade da dívida, impreterivelmente no prazo de dez dias a contar da emissão da presente carta”, o que levou o A. a vender as ações para regularizar parte das suas responsabilidades. Tendo comprado as ações D… pelo valor total aproximado de € 826.374,26, vendeu-as por € 410.429,40, na sequência da queda que as mesmas sofreram, assim perdendo aproximadamente € 415.944,86.
Visam os AA. obter indemnização emergente da responsabilidade por factos ilícitos praticados pelo D…, resultante da violação das normas de proteção consagradas nos artigos 7º, 379º e 310º do CVM, cujos pressupostos consideram preenchidos, tendo sido o Banco condenado em processo de contraordenação (ainda sem trânsito em julgado) pela violação daquelas normas de proteção acima identificadas, por ter agido à margem do regular funcionamento do mercado financeiro.
O Banco, para além da violação da regra da proibição da intermediação excessiva e da deslealdade, desconsiderou o interesse do cliente para fazer prevalecer o interessa da instituição, contra o disposto no art.º 309º do CVM.
Violou princípios e deveres consagrados no CVM e no RGICSF, mormente os de proteção dos legítimos interesses dos clientes, da diligência, informação, lealdade e transparência e o da eficiência do mercado.
Acrescentam que a violação das obrigações a que o intermediário financeiro estava adstrito por força dos deveres impostos pela lei gera, simultaneamente com a responsabilidade delitual, responsabilidade obrigacional deste perante o cliente, com base na violação do contrato de intermediação financeira e de consultoria para investimentos, pela não realização da prestação a que estava obrigado.
Não obstante a responsabilidade contratual existente por força do contrato de intermediação financeira celebrado entre as partes, a verdade é que esta responsabilidade sempre existiria por força do contrato de abertura de conta celebrado entre os AA. e o R. e por força dos inúmeros contratos celebrados posteriormente, tais como a compra e venda das ações D…, contratos de abertura de crédito para financiamento de parte dessa compra, etc.
O A. veio a ser declarado insolvente a pedido do seu credor F…, pelo 2º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, no âmbito do processo nº 407/13.3TBPVZ. E o direito à meação da casa de morada de família do A., bem como o seu automóvel e um plano poupança foram apreendidos para a massa insolvente, lendo-se no relatório provisório do Administrador da Insolvência que a situação de insolvência se deveu em grande parte ao “facto do insolvente ter comprado acções no D… que, como é sabido, tem-se verificado uma redução drástica tendo acabado por as vender a 10% do valor adquirido”.
Passam depois os AA. a descrever todo um conjunto de danos patrimoniais e não patrimoniais pelos quais pretendem ser ressarcidos, estimando os primeiros em € 415.944,86 e outros discriminados no pedido, e a reparação dos últimos nas quantias de € 30.000,00 a favor do A. marido e € 15.000,00 a favor da A. mulher.
Citado, o R. ofereceu contestação, com benefício de prorrogação do prazo, em extenso articulado (258 artigos), onde impugnaram a maior parte dos factos alegados pelos AA. que sintetizou antecipadamente no artigo 8, nos seguintes termos: “Tudo na petição inicial é falso, falsíssimo – salvo que os Autores investiram no título D… assim como investiram na compra de outros e diversos títulos, tanto com fundos próprios como com fundos financiados pelo Banco”.
Entre outras exceções --- prescrição e abuso de direito ---, o contestante invocou a ilegitimidade do A. marido por não dever intervir na ação, mas o Administrador da Insolvência, por ser este quem tem legitimidade ativa numa ação como a presente em que se debatem interesses exclusivamente patrimoniais.
Em sede de impugnação, o Banco descreveu a sua versão dos factos, alegando, designadamente que a decisão de compra de todas as ações D… adquiridas pelos AA. em 2000 e 2001 e referidas na petição foi inspirada em decisão do A. marido tirada fora de qualquer conselho, sugestão ou indicação do funcionário do Banco, tenha sido o G… ou qualquer outro.
Nega também os danos alegados a petição inicial.
O Banco termina assim a contestação:
«TERMOS EM QUE, na procedência da deduzida excepção de ilegitimidade do Autor Marido deve o Banco ser absolvido da instância, com todas as legais consequências.
Deve, em todo o caso, a acção, seja por via do triunfo da impugnação, seja por via do triunfo das deduzidas excepções de prescrição e abuso de direito, ser julgada não provada e improcedente, absolvendo-se em consequência o D… do pedido, com todas as legais consequências.» (sic)

Após algumas vicissitudes, com dispensada da audiência prévia, foi proferido despacho saneador onde se conheceu, fundamentadamente, ouvidos os AA., da exceção da ilegitimidade ativa do A., como seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo procedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, insuscetível de sanação, pelo que se acabou de referir, e, em consequência, ao abrigo dos artºs. 278º, nº 1, al. d), 576º, nº 2 e 577º, al. e), do CPC, abstenho-me de conhecer do pedido e absolvo o Réu da instância, por os Autores não serem dotados de legitimidade (neste caso plural).» (sic)
Esta decisão foi precedida do seguinte parágrafo conclusivo:
«Assim e atenta a declaração de insolvência do Autor, alegada e documentada nos autos, não tinha o mesmo, à data da propositura da ação, poderes de administração e disposição do seu património pelo que e face ao acima referido não é, contrariamente ao defendido pelos AA., dotado de legitimidade ativa.» (sic)
*
II.
Inconformados com a decisão, os AA. recorreram, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Atento o disposto nos artigos 81º, nº 1 e 46º, nº 1 do CIRE, o alegado direito de crédito que se discute nesta ação não é um bem integrante da massa insolvente e, portanto, o Autor não ficou privado dos poderes de administração e de disposição,
2. isto por duas razões: (i) porque a sua discussão judicial apenas se iniciou após ter transitado em julgado a declaração de insolvência do Autor; (ii) porque se trata de um alegado direito de crédito, que apenas existirá na ordem jurídica e será judicialmente exigível (e consequentemente apreensível para a massa), quando for objeto de decisão transitada em julgado que o declare, pois que, neste momento, não mais é do que uma mera pretensão jurídica.
3. O alegado direito de crédito do Autor integra-se no nº 2 do artigo 46º do CIRE, ficando, portanto, o Autor interditado de ceder ou alienar o direito de crédito no momento em que este for declarado.
4. Por outro lado, atento o preceituado no artigo 85º, nº 1 e 3 do CIRE, mesmo que se considere o alegado direito de crédito do Autor como um bem integrante da massa ou que a presente ação tem natureza exclusivamente patrimonial, a verdade é que esta ação não se inclui na previsão normativa, porquanto esta se restringe às ações pendentes à data da declaração de insolvência, nas quais o administrador de insolvência substitui o devedor ou requer mesmo a sua apensação ao processo de insolvência.
5. Pretendendo os Autores exercer o seu direito de acesso à justiça e aos tribunais, com vista a responsabilizar o banco Réu pelos ilícitos cometidos, geradores de responsabilidade civil contratual e extracontratual, e se o Autor não tivesse legitimidade ativa para agir, estariam condicionados à decisão do administrador de insolvência sobre tal pretensão, podendo dar-se o caso de este não concordar com a instauração da ação.
6. Nesse caso, o Autor veria cerceados os seus direitos fundamentais, constitucionalmente previstos, e a Autora também, atento o litisconsórcio necessário ativo entre os cônjuges.
7. Acresce ainda que o CIRE prevê um conjunto de ações a propor após a declaração de insolvência, que são da competência do administrador da insolvência, dentre as quais não se inclui uma ação do tipo da presente (artigo 82º, nº 3 do CIRE).
8. A ser como veiculado na decisão recorrida, a presente ação judicial constituiria um ato de especial relevo que apenas poderia ser praticado pelo administrador de insolvência com prévio consentimento da comissão de credores (artigo 161º do CIRE) e sendo o aqui Réu D…, credor com peso de 91% na insolvência do Autor (doc. 1), naturalmente que os Autores veriam coartado o direito de acionamento judicial do D…, pois que este nunca daria o seu consentimento.
Sem prescindir,
9. Ao abrigo do disposto nos artigos 590º, nº 2 e 6º, nº 2 do CPCivil, tratando-se da falta de um pressuposto processual sanável, o Tribunal recorrido deveria, ao abrigo do dever de providenciar pela sanação da falta dos pressupostos processuais, ter convidado a Autora a requerer a intervenção principal provocada (artigo 316º, nº 1 do CPCivil) do administrador da insolvência em substituição do Autor, para assegurar o litisconsórcio necessário ativo, podendo fazê-lo após os momentos fixados no artigo 318º, nº 1 do CPCivil e até haver decisão (artigo 261º, nº 1 do CPCivil).
10. Além da falta de convite para sanar a ilegitimidade, o Tribunal proferiu decisão de ilegitimidade plural, que pôs termo ao processo, em vez de proferir decisão que declarasse o Autor parte ilegítima, e que permitisse à Autora chamar o administrador de insolvência a juízo, para assegurar o litisconsórcio necessário ativo, até ao trânsito em julgado dessa mesma decisão (artigo 261º, nº 1 do CPCivil).
11. Assim, por um lado, o Tribunal recorrido não deu cumprimento ao dever de providenciar pelo suprimento da exceção dilatória da ilegitimidade, convidando a Autora a fazer intervir o administrador de insolvência; e por outro lado, proferiu decisão, que pôs termo ao processo, e julgou ambas as partes ilegítimas, em vez de o fazer apenas em relação ao Autor, permitindo assim, o chamamento pela Autora do administrador de insolvência para assegurar o litisconsórcio necessário ativo.
12. Agindo desta forma, o Tribunal criou no espírito dos Autores a incerteza quanto a saber se o administrador de insolvência pode ser considerado uma pessoa em falta em juízo, nos termos do disposto no artigo 261º do CPCivil, designadamente para efeitos de se lançar mão do disposto no nº 2 deste preceito; ou se nada resta a não ser a instauração de uma nova ação, por o administrador de insolvência não poder ser considerado para efeitos deste preceito, como pessoa em falta em juízo.
13. Com esta decisão, o Tribunal violou as normas jurídicas plasmadas nos artigos 85º, nº 1 e 3 e 82º, nº 3 do CIRE, bem como interpretou e aplicou incorretamente as normas dos artigos 81º, nº 1 e 46º, 1 e 2 do CIRE.
14. Assim como violou as normas jurídicas dos artigos 590º, nº 2, a), 6º, nº 2, 316º, nº 1, 318º, nº 1 e 261º, nº 1, todos do CPCivil, que deveriam ter sido aplicadas ao caso dos autos.» (sic)
Terminaram a pedir a revogação da decisão, com a sua substituição por outra que considere os AA. parte legítima ou, se assim não se entender, se ordene o cumprimento do art.º 6º do Código de Processo Civil mediante notificação da Autora para praticar o ato de chamamento do administrador de insolvência, mediante o incidente de intervenção principal provocada.
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O R. ofereceu contra-alegações louvando-se no que considerou ser o acerto da decisão recorrida, concluindo pela improcedência das conclusões da apelação e confirmação do julgado.
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III.
Exceção feita para as questões que sejam do conhecimento oficioso, a matéria a decidir está delimitada pelas conclusões da apelação dos recorrentes, acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º do CIRE).
Assim, importa apreciar e decidir:
1- Se os AA. têm legitimidade (ativa) para a instauração de uma ação declarativa de condenação para pagamento de quantias pecuniárias a título de indemnização, na pendência e fora do âmbito do processo especial de insolvência onde como tal foi declarado o A. marido, com trânsito em julgado da respetiva sentença.
2- Na negativa, determinar a providência adequada à sanação do vício.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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IV.
1- Da legitimidade ativa
Afastando-se do antigo regime falimentar em que se visava, sobretudo, a recuperação económica do falido, o CIRE[1] assume, como seu principal desiderato, um regime normativo de garantia patrimonial dos credores, pela forma mais eficiente possível.[2]
Em termos jurídico-processuais este desígnio altera a natureza do processo do CIRE, o qual --- versus o que, pelo menos em parte, sucedia no CPEREF --- passou a ser perspetivado, essencialmente, e pelo menos quando a insolvência é impetrada por um credor --- que já não tanto quanto é impetrada pelo devedor e pelo menos até à sentença de declaração da insolvência --- como um processo de partes em que sobressai, naturalmente, o princípio do contraditório – cf. vg., os art.ºs 9°, nº 2, como regra geral, 20°, nº l, no que respeita a alegação dos factos-índice pelo requerente e o art.º 30°, nºs 3 e 4, no que tange à prova da solvência pelo requerido[3].
Sobre a questão da legitimidade em geral, é conhecida a longa querela travada entre as divergentes posições dos Ilustres Professores Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, que a reforma processual civil de 1995 resolveu pelo acolhimento da essência da posição defendida pelo segundo daqueles Mestres, numa solução que a jurisprudência vinha já acolhendo, ao menos, maioritariamente. Passou então o art.º 26º, nº 3, do Código de Processo Civil a estipular que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”. É a tese da legitimidade adjetivo-formal, cuja falta acarreta a absolvição da instância e que se afere pela posição/titularidade da parte --- o autor titular do direito e o réu adstrito a uma obrigação --- em relação ao objeto do processo, à matéria que nesse processo se trata.
Diferente desta legitimidade (processual) é a legitimidade substantiva. Prende-se com o mérito do requerimento e com o fundo da causa.
Com efeito, não deve confundir-se a legitimidade para pedir ou requerer com a procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (art.º 30º, nºs l e 3, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º do CIRE).
Em tese geral, como se refere no acórdão desta Relação de 26.1.2010[4], sendo o objeto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respetiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objeto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência.
A título exemplificativo, o CIRE, no seu art.º 20º, nº 1, além do próprio devedor, atribui legitimidade a outras pessoas para apresentarem o pedido de declaração de insolvência, entre elas os credores, ainda que condicionais e qualquer que seja a natureza dos seus créditos.
Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (art.º 3º, nº l), ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.
Na insolvência podem, pois, ser atuados quaisquer créditos, ainda que o tribunal da insolvência não seja materialmente competente para a sua apreciação. Há uma extensão da competência material do tribunal da insolvência. Esta extensão justifica a admissibilidade do pedido da insolvência por créditos diversos, o que, aliás, ocorre em todos os processos concursais, i.e., em todos os processos em que haja lugar ao concurso de credores, seja na execução singular pendente, seja na insolvência em curso (art.º 786º e seg.s do Código de Processo Civil e art.º 128º e seg.s do CIRE).
A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência (depois de pagas as suas próprias dívidas) e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (art.º 46º, nº 1).
Mas a universalidade da execução que carateriza o processo de insolvência, é tanto por nele intervirem todos os credores do insolvente, como por nele ser atingido, em princípio, todo o património deste devedor (art.ºs 1º, 47º, nºs l a 3, 128º, nºs l e 3 e 149º, nºs l e 2).
A sentença que venha declarar a insolvência do devedor é o único título executivo suscetível de servir de base à execução universal e coletiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução[5].
Assim, determina o art.º 149º, nº 1, que, “proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido:
a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social;
b) Objecto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.° e seguintes do Código Civil.”.
O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues (art.º 150º, nº 1).
Daí que, por força da declaração de insolvência, o Administrador da Insolvência assuma a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência (art.º 81º, nº 4), pois que, sem prejuízo do Título X do código, “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”.
Não é por a lei reservar ao administrador a legitimidade para propor certas ações nos termos do art.º 82º, nº 2, al.s a), b) e c), que esse órgão deixa de ter a mesma legitimidade para instaurar ações diferentes, contanto que respeitem a efeitos patrimoniais que interessem à insolvência. Obviamente, interessa àquela a entrada de qualquer valor na massa insolvente a que o devedor tenha direito, assim como a respetiva frutificação (juros, por exemplo – art.º 55º, nº 1, al. a)) em razão do seu exercício patrimonial. Se o Administrador da Insolvência entende que o devedor tem direito a receber uma indemnização em razão dos seus negócios (um crédito), não pode deixar de diligenciar, se necessário por via da ação, pela sua obtenção, integrando o respetivo valor na massa insolvente e afetando-a, assim, aos referidos fins do respetivo processo.
O CIRE exceciona a retirada ao devedor dos poderes de administração e disposição do seu património, em caso de insolvência. Tal ocorre quando o juiz conclui pela insuficiência da massa insolvente e nenhum credor requerer o complemento da sentença, nos termos do art. 39º, nº 7, al. a), também no caso de ser aprovado um plano de pagamentos na insolvência de não empresários e de pequenas empresas (art.ºs 251º e seg.s, face ao que dispõe o art.º 249º, nº 1), e ainda quando seja aprovada a administração da empresa pelo próprio devedor, caso em que naturalmente ele conserva a faculdade de a administrar (arts. 223º e setg.s)[6].
Mas, as normas excecionais não são suscetíveis de interpretação analógica (art.º 11º do Código Civil). Do ponto de vista processual, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo (art.º 85º, nº 1). O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as ações referidas, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária (nº 3 do mesmo preceito legal).
O devedor foi declarado insolvente por sentença de 6.3.2013 e a presente ação declarativa deu entrada em Juízo no dia 7.4.2014.
Mal se compreende que o Administrador possa substituir o devedor em ações por este instauradas antes da declaração de insolvência e não possa ocupar a sua posição quando, indevidamente, o devedor instaura ação já depois da declaração da sua insolvência, tendo ela carater patrimonial e interesse para os fins da insolvência. Nestas condições, a sua intervenção é admitida ao abrigo do citado nº 4 do art.º 81º. É que a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo que não estejam isentos de penhora (art.º 46º, nº 1, in fine). E, como observámos, o devedor fica impedido de a administrar e de dela dispor, foras das ditas situações excecionais, que aqui não ocorrem. Os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência. Portanto, a este assiste o dever de trazer para a massa insolvente os direitos patrimoniais que assistam ao insolvente, no interesse dos credores.
A indemnização respeita a um direito de crédito pré-existente à declaração de insolvência, por responsabilidade contratual e extracontratual e não está isenta de penhora (cf. art.º 817º do Código Civil e art.ºs 735º e seg.s do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º do CIRE).
Todos os bens, incluindo os direitos de crédito do devedor têm de ser aprendidos, sendo a massa insolvente exclusivamente representada pelo Administrador da Insolvência.
Não estando encerrado o processo de insolvência, não é possível falar de recuperação dos direitos de disposição patrimonial do devedor, de administração e livre gestão dos seus negócios (art.º 233º, nº 1, al. a)).
Deveria, assim, apresentar-se do lado ativo da ação o Administrador da Insolvência; não o devedor, sem prejuízo do ver de colaboração que sobre este impende nos termos do art.º 83º, nº 1, al. c).
Feita esta contextualização, compreende-se melhor a questão do litisconsórcio necessário nas ações conexas com o processo especial de insolvência.
O art.º 33º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “litisconsórcio necessário” reza assim:
1- Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
O litisconsórcio necessário, que tem carácter excecional, verifica-se se a lei ou o contrato o exigirem, ou quando for imposto pela própria natureza da relação jurídica controvertida (litisconsórcio natural), ou seja, desde que, de outro modo, a decisão não produzisse qualquer efeito útil ou, pelo menos, o seu efeito útil normal. Este efeito é produzido quando a decisão define uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de modo a poder subsistir inalterada não obstante ser ineficaz em confronto dos outros cointeressados e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos[7]. Só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos só contra algumas pessoas, de modo a que a relação jurídica subsista, ainda que ineficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio.
Sendo os AA. cônjuges um do outro, não estamos face a uma ação de que possa advir a perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos. Não impõe a lei, neste caso, o litisconsórcio necessário em função da relação matrimonial (art.º 1682º-A, do Código Civil e art.º 34º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, como vimos, declarada a insolvência, o seu administrador substitui o insolvente no exercício do seu direito de crédito --- privado que fica este dos poderes de administração e de disposição --- no interesse dos credores da massa.
As partes parecem estar de acordo com a decisão recorrida quando ali se afirma que, pela natureza da relação jurídica em causa, há uma situação de litisconsórcio necessário ativo, que só assim será possível evitar decisões inconciliáveis e que “a não intervenção de todos abalaria a estabilidade que se procura e deseja, deixando aberta a porta à possibilidade de decisões diferentes”.
Mas a verdade é que a solução a que chegou a decisão recorrida, de absolver o R. da instância em função da declarada ilegitimidade ativa da A., por o R. marido não poder intervir na ação face à declaração da sua insolvência, por preterição de litisconsórcio necessário, sem possibilidade de sanação da falta daquele pressuposto processual, dá origem a um resultado iníquo, mesmo antijurídico. Deixa, não apenas desprotegido o interesse do A. ou da massa insolvente do A., como também o interesse da A. mulher que fica sem a possibilidade de exercer o seu direito a título singular ou individual. Aquele porque não pode exercer a ação para si próprio nem para a massa insolvente; aquela porque não pode estar na ação desacompanhada do A. marido.
Se o Administrador da Insolvência intervier na ação a título principal, nomeadamente com a colaboração do insolvente, pode estar acautelado qualquer eventual interesse pessoal e residual atendível deste último e que, em tese, pode passar até pela recuperação a seu favor de alguma parte do valor do crédito que venha a ser cobrado na ação, satisfeitos que sejam eventualmente, em absoluto, os direitos de todos os credores da massa insolvente.
Assim, admitindo a existência de litisconsórcio necessário ativo, a ilegitimidade pode ser sanada com o chamamento do Administrador da Insolvência à ação, no lugar do insolvente para que a ação prossiga e possa produzir os desejáveis efeitos em relação à A. e à massa insolvente, em litisconsórcio necessário, assim esgotando todo o seu efeito útil.
Esta solução, de unicidade de ação, pela via do litisconsórcio necessário, ante a sua complexidade, permite ainda evitar um eventual bloqueio à intervenção voluntária do Administrador da Insolvência na ação, deste modo, o eventual prejuízo da massa insolvente por influência do R. D… que, ao que parece, é também o maior credor no processo de insolvência, com um peso na ordem de 91% na totalidade dos créditos.
O juiz deve adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio, nomeadamente em prazo razoável (art.º 6º, nº 1, do Código de Processo Civil). E, no que respeita à falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, o juiz deve também providenciar oficiosamente pelo suprimento da sua falta, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (nº 2 do mesmo art.º 6º - dever de gestão processual).
Se é certo que o A. marido, insolvente declarado, não tem legitimidade ativa para intervir no processo e tal situação deu lugar à absolvição do R. da instância no tribunal recorrido, não é menos verdade que, ante uma situação de litisconsórcio ativo --- de que faz parte a A. mulher ---, deve estar, no lugar daquele, o Administrador da Insolvência e a ela deve ser reconduzido como interveniente principal, se a A. assim o pretender, nos termos dos art.ºs 278º, nº 3, 316º, nº 1, 318º, nº 1, al. a) e 261º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Deste modo, deve proceder a pretensão recursória subsidiária, com a necessária revogação da decisão recorrida e concessão à A. da possibilidade de sanação da ilegitimidade ativa.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
Numa ação declarativa deduzida por dois autores em litisconsórcio necessário (ativo), estando um deles declarado insolvente, com pendência do respetivo processo especial, e sem poderes de administração e de disposição do seu património, a ilegitimidade ativa pode ser sanada com a intervenção principal do administrador da insolvência, em litisconsórcio como o outro autor.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o tribunal a quo, no uso dos seus poderes de gestão processual, convide a A. a praticar os atos necessários ao suprimento da ilegitimidade ativa, em conformidade com o que ficou exposto.
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Custas pelo R. recorrido.
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Porto, 18 de fevereiro de 2016
Filipe Caroço
Pedro Martins
Judite Pires
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem pertencem.
[2] Ainda que o Processo Especial de Revitalização, introduzido do pela Lei nº 16/2012, de 20 de abril, tenha aberto uma janela de oportunidade com vista à recuperação de empresas em situação economia difícil ou de insolvência meramente iminente (art.ºs 17º-A a 17º-I, do CIRE).
[3] Neste sentido, acórdão desta Relação de 17.7.2009, in www.dgsi.pt.
[4] In www.dgsi.pt.
[5] Cf. citado acórdão desta Relação do Porto de 26.1.2010.
[6] L. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2009, pág. 339; L. Menezes Leitão, CIRE anotado, Almedina 2013, pág. 118.
[7] Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, 2º vol., pág. 724 e seg.s.