Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
673/17.5T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
COLISÃO DE DIREITOS
MURO DE EXTREMA
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RP20190613673/17.5T8FLG.P1
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO SOB A FORMA DE PROCESSO COMUM
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 177, FLS 54-84)
Área Temática: .
Sumário: I - Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, condenação em objeto diverso do pedido e falta de especificação de fundamentos de facto e de Direito que justifiquem a decisão.
II - Na colisão de direitos relativa a restrições de vizinhança impera o casuísmo ditado, em larga medida, pela própria natureza das coisas, que exige composições claras dos possíveis conflitos, sem subordinação a esquemas teóricos preestabelecidos.
III - Nela, far-se-á uma ordenação axiológica referida à natureza, sentido e função do Direito e ao relevo que os valores personalísticos assumem enquanto fundamentos, significações ou fins da normal coexistência humana juridicamente tutelada, segundo um critério objetivo.
IV - A solução do conflito passa pelo sacrifício no mínimo necessário de qualquer dos direitos conflituantes e pelo não privilegiar qualquer um desses direitos, suportando cada um dos titulares dos direitos, em igual medida, os custos da resolução da colisão, de modo a que os direitos conflituantes, nos seus concretos modos de exercício, possam coexistir um ao lado do outro e produzam os seus efeitos próprios em condições de igualdade.
V - A redução da altura de um muro de estrema pode ser a medida adequada a permitir o necessário e adequado arejamento e insolação da casa de habitação do vizinho e, bem assim, as suas vistas a partir da mesma, mantendo-se, na medida do possível, o direito de tapagem dos réus e a reserva da sua vida familiar.
VI - O desânimo e a tristeza sentidos ao longo do tempo pelos AA. por terem sido prejudicados pelos RR. --- através da excessiva ampliação em altura de um muro na confinância dos prédios --- os seus direitos de vistas, arejamento e insolação de uma sua casa de habitação, havendo ainda risco de queda de um outro muro dos RR. sobre o prédio dos AA., têm gravidade suficiente para compensação em sede de dano não patrimonial, ainda que os AA. residam em França.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 673/17.5T8FLG.P1– 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto Este – Juízo Central Cível de Penafiel – J4

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B… e mulher, C…, residentes na Rua …, n.º …, …, Felgueiras, intentaram ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra D… e mulher, E…, residentes na Rua …, n.º .., …, Felgueiras, alegando, aqui em síntese, que são donos de um prédio urbano com edificação construída e ampliada há mais de 30 anos, que possui janelas e varandas laterais a um muro que posteriormente os RR. construíram e que lhes retira as vistas, bem como o ar e a luz solar, pondo em causa o direito dos AA. à insolação. Mais alegam que os RR. deitam diretamente para o seu prédio águas sujas, que lhes causam, tal como os outros atos, danos patrimoniais e não patrimoniais. Acresce que outro muro dos demandados, situado no seu prédio, a poente, se encontra em ruínas, com risco de queda para o prédio dos AA.
Convidados a aperfeiçoar o seu articulado, os AA. juntaram nova petição inicial com alteração do pedido que foi parcialmente admitida, ficando o mesmo com o seguinte objeto:
Serem os RR. condenados a:
A) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio urbano mencionado no artigo 1º da petição inicial;
B) Demolir em toda a sua altura e comprimento o muro divisório que construíram encostado ao muro dos AA., sem causar prejuízos a estes;
C) Reconhecer a existência de uma servidão de vistas, por usucapião sobre o prédio dos AA.;
D) Eliminar a retenção e acumulação de águas, lixo e tudo o mais, que escoam para o logradouro do prédio dos AA. e para a adega situada junto àquele;
E) Reparar o muro situado a poente e que ameaça ruína para o prédio dos Autores;
H) Pagar a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais;
I) Pagar a quantia de € 100,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de facto em que venham a ser condenados; e
J) Absterem-se da prática de todos e quaisquer atos que atentem contra os referidos direitos dos Autores.[1]

Citados, os RR. excecionaram a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, bem como a inexistência de qualquer servidão de vistas, alegando que as aberturas em causa ficam na lateral do muro e não dão diretamente para o prédio dos RR.
Impugnaram grande parte da matéria da petição inicial e alegaram que o muro foi construído como suporte de terras, a pedido dos AA. e que é um abuso pedir a sua demolição. No que se refere à existência de águas no prédio dos AA., as mesmas só ocorrem naturalmente, não conduzindo os RR. quaisquer águas para tal terreno e, em relação ao muro existente a poente, o mesmo está em perfeitas condições, não existindo qualquer risco de ruína.
Pretendem que a matéria de exceção seja julgada procedente ou, assim não sendo, seja a ação julgada improcedente.
Os AA. responderam à matéria de exceção, concluindo como na petição inicial.
Os autos, instaurados no Juízo Local Cível de Felgueiras, foram enviados para o Juízo Central Cível após fixação do valor da ação e declaração de incompetência em razão do valor por parte do tribunal primitivo.
Teve lugar a audiência prévia, onde, além do mais, se proferiu despacho saneador que julgou improcedente a exceção da ineptidão da petição inicial, foi fixado o objeto do processo e foram definidos os temas de prova.
Realizou-se posteriormente a audiência final, a que se seguiu a prolação de sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno os RR. D… e E…, a:
A) Reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano mencionado no facto 1º dado como provado e absterem-se da prática de actos que prejudiquem esse direito;
B) Demolir em altura e comprimento o muro divisório que construíram encostado ao muro dos Autores, até obter a altura máxima de 1,80 desde a cota mais baixa (ou seja, desde o terreno dos AA.);
C) Reparar o muro situado a poente e que ameaça ruína e queda para o prédio dos Autores;
D) Pagar aos AA. a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.
No mais, absolvem-se os RR. do pedido.
*
Custas a suportar pelos AA. e pelos RR. em partes iguais (art. 527º do CPC).»
*
Inconformado com a decisão sentenciada, os RR. interpuseram recurso de apelação com vista à sua revogação na parte que lhes é desfavorável:
Nas suas alegações, os apelantes formulam as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Na sentença a quo decidiu-se, entre outros, condenar os Réus, aqui Recorrentes, a «B) Demolir em altura e comprimento o muro divisório que construíram encostado ao muro dos Autores, até obter a altura máxima de 1,80 desde a cota mais baixa (ou seja, desde o terreno dos AA.); C) Reparar o muro situado a poente e que ameaça ruína e queda para o prédio dos Autores; D) Pagar aos AA. a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais»
II. Sendo justamente com este segmento condenatório, em que ficaram vencidos, que os Recorrentes não se conformam e daí a necessidade de apelar às instâncias recursivas.
III. Na douta sentença a quo temos como factualidade dada como provada os pontos 1º a 17º e foram dados como não provados os factos que constam das al. (s) a) a l) do rol dos factos não provados.
IV. A decisão recorrida, com exceção dos factos constantes dos pontos 2º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º (parte final) e 15º da matéria de facto provada, não merece reparo!
V. E o presente recurso tem justamente por objeto a discussão dos seguintes pontos: - saber se a construção do muro na confrontação a sul se apresenta ilegal ou ofende direitos dos Recorridos, devendo decidir-se pela sua demolição e, em caso, afirmativo, qual a medida da demolição; - da concreta análise da situação do muro a poente; - conhecer os danos não patrimoniais dos Recorridos;
VI. Antecipando-se desde já que tais matérias se consideram incorretamente decididas, não só pela errada interpretação do acevo fatual subjacente mas, também, pela subsunção jurídica operada pelo douto julgado a quo.
VII. Concomitantemente, face a matéria de facto alegada pelas partes e aquilo que foi a decisão do Tribunal a quo, não pode deixar de tomar-se posição relativamente aos vícios da sentença recorrida, mais concretamente, pela condenação em objeto diverso do pedido e, ainda, pela omissão de pronúncia, como veremos.
VIII. E pugnaremos no presente recurso, pela impugnação da decisão da matéria de facto dada como provada nos pontos 2º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º (parte final) e 15º e, por conseguinte, pela correta subsunção jurídica, pelo que o recurso visa a decisão sobre a matéria de facto e de direito.

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DO PONTO 2.º DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
IX. Da prova produzida em audiência e da prova plenamente assente nos autos, nomeadamente da ampla reportagem fotográfica do local oferecida aos autos, existe matéria suficiente para asseverar que, naquela confrontação a sul, os prédios confinantes são divididos por 2 muros, um erigido pelos Recorridos e outro pelos Recorrentes, nas respetivas extremidades dos seus prédios.
X. Impõe-se assim diferente decisão quanto à decisão da matéria de facto dada como provada no ponto 2.º, porquanto, na verdade, «Na parte sul, o prédio dos Autores confronta com o prédio dos Réus, através de dois muros, um da propriedade dos Autores e outro da propriedade dos Réus».

DOS PONTOS 6.º, 7.º E 8.º DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
XI. A prova produzida contradiz parcialmente os factos dados como provados, sendo ainda contraditório o juízo atinente ao ponto 7.º e 8.º quando articulado com a demais matéria de facto tida pelo Julgador a quo como provada, designadamente a realidade consignada no ponto 3.º (dos factos provados).
XII. Além disso, está omisso o concreto sustentáculo probatório que levou a dar como provado que os Recorrentes, inicialmente, construíram um muro da mesma altura do muro dos Recorridos.
XIII. Para a boa apreciação da matéria importa não esquecer que o muro dos Recorridos constituiu, apenas e tão só, um muro de sustentação de terras que tem como limite superior precisamente a cota de terreno daquele outro prédio e, bem assim, não olvidar que, de acordo com a última parte do ponto 3º da matéria de facto como provada, o primeiro andar da habitação dos Recorridos está praticamente nivelada com a cota de terreno do prédio dos Recorrentes.
XIV. Isto posto, segundo elementares regras da experiencia e do raciocínio, que razão levaria os Recorrentes a construir um muro com o mesmo tamanho do muro do prédio do Recorridos? Com que objetivo? Para tal já serviria o muro dos Recorridos…
XV. Devidamente aquilatada a matéria, por contraponto à ausência de prova em sentido contrário, estriba-se imediatamente diferente decisão quanto à matéria do ponto 7.º (dos factos provados)
XVI. Depois, conforme resultou da prova produzida, também testemunhal, desde há muitos anos a esta data que os dois muros estão instalados naquela confrontação a sul.
XVII. A verdade é que o muro dos Recorrentes sempre foi mais alto que o muro dos Recorridos, tanto mais que, este último, conforme se colhe da ampla reportagem fotográfica junta aos autos, teria como função suster as terras do prédio superior, sendo um muro "embutido" no desnível natural dos terrenos - cfr. Depoimento da testemunha F… - Minuto – 09:20; 30:10; 30:50; depoimento da testemunha G…, Minuto – 06:20; depoimento da testemunha H…, Minuto – 01:44, 02:14, 02:50, 06:22, 10:22, 00:10; depoimento da testemunha I…, Minuto – 03:30, 11:36, todos acima transcritos.
XVIII. E conforme resulta (parcialmente) dos depoimentos supra, o muro dos Recorrentes sofreu uma alteração posterior, mas sem altercação do seu substrato, isto é, na sua altura e dimensão, porquanto a substituição da chapa metálica (opaca) inicial por blocos de cimento na dimensão e extensão da chapa removida produz o mesmo efeito a nível de vistas, de incidência solar, luminosidade e arejamento.
XIX. Na sentença a quo deu-se como provada a existência da chapa metálica (cfr. ponto 16º), porém, ficou-se aquém da prova produzida, pois dela resultou a correspondência entre a altura inicial do muro (com a chapa metálica) e a configuração atual.
XX. Por outro lado, a verdade é que a chapa removida encontra-se ainda sob o jardim do prédio dos Recorrentes, e ali se encontrava à data inspeção judicial aos prédios em confronto.
XXI. Aqui chegados, importa ainda abreviar alguns celeumas surgidos relativamente ao depoimento da testemunha H…, tendo em linha de atenção que entre o prédio dos Recorridos e o prédio dos Recorrentes existe um desnivelamento natural.
XXII. ao ponto de, olhando de frente para ambos o prédios, o muro dos Recorridos, embora de edificação vertical, está plenamente integrado naquela que é a sua função de sustentação, dando-se assim ênfase ao muro dos Recorrentes, por ser efetivamente um muro de vedação, de edificação vertical,
XXIII. pelo que a testemunha ali identificou a existência de apenas um muro, querendo, obviamente, referir-se ao muro construído pelos Recorrentes, tanto mais que, por diversas vezes, fez alusão ao muro com a chapa.
XXIV. Por seu turno, a sentença recorrida, na sua motivação, conferiu elevada credibilidade ao depoimento da testemunha F…, porém, esse sim, é merecedor de reservas, pois a testemunha acabou por reconhecer o distanciamento aos Recorrentes por força das quezílias entre Recorrentes e Recorridos (cfr. depoimento da testemunha F… - Minuto – 27:00);
XXV. ainda assim, a própria testemunha é perentória em afirmar que o muro inicial dos Recorrentes era mais alto, não deixando depois de confirmar a existência da chapa metálica do muro dos Recorrentes.
XXVI. A prova dos autos coligada com a prova produzida durante a audiência de julgamento, com a respetiva correlação com os demais factos dados como provados, é suficiente para sentenciar como provado que: «O muro divisório foi construído pelos AA. com a altura de um metro e meio.», e ainda, que «O muro construído pelos RR. foi construído posteriormente, por volta do ano de 1994, com altura superior ao muro dos Recorridos, sendo que inicialmente o muro era composto por uma parte em cimento e uma chapa metálica opaca, entretanto removida, e substituída por blocos de cimento, mas sem alteração da respetiva altura inicial, que sempre foi inferior a 1,80 a contar da cota de terreno dos recorridos.» E, por inerência, dar como não provado os pontos ponto 7.º e 8.º.

DO PONTO 9.º DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
XXVII. Como supra se explanou, existe prova suficiente para reconhecer a antiguidade da situação dos muros,
XXVIII. e, nesse quadro, imediatamente antevemos que, só volvidos muitos anos, os Recorridos se deram conta que o muro era, afinal, motivo para tanto alvoroço.
XXIX. Efetivamente, as reclamações dos aqui Recorridos mantiveram-se silentes, tudo até a datas mais contemporâneas, em que a convivência entre Recorridos e Recorrentes vazaram para de intolerância um nível absoluta e conflito permanente, altura em que, conforme melhor resulta do articulado inicial, os Recorridos passaram a imputar aos Recorrentes responsabilidades pelos mais variados acontecimentos.
XXX. E tal também resulta das datas dos documentos alusivos às queixas apresentadas na Câmara Municipal … e vistorias subsequentes, de fls. 25 e ss. e 29 e ss., e, ainda que medianamente, da prova testemunhal (cfr. depoimento da testemunha F… - Minuto – 09:00, 10:08, 11:18)
XXXI. Não foi produzida prova com a intensidade necessária para dar como provado o ponto 9.º dos factos provados, havendo, por contraponto, matéria suficiente para certificar que os Recorridos passaram a reclamar do muro em datas mais atuais, altura em que, entre os Recorrentes e Recorridos se gerou forte hostilidade.

DO PONTO 10º E 12º DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA:
XXXII. Refere-se na sentença sob escrutínio, que o douto julgador formou a sua convicção no que tange à temática em apreço com base na prova testemunhal, no vasto reportório fotográfico junto aos autos, e ainda na perceção direta derivada da inspeção ao local.
XXXIII. Importa, antes de mais, ter presente os depoimentos das testemunhas arroladas pelos Recorridos (cfr. depoimento da testemunha F… - Minuto – 36:20, 26:00; depoimento da testemunha J…- Minuto – 09:50, 10:30, 13:25; acima transcritos).
XXXIV. A título preliminar, ainda que fosse de fazer fé naqueles depoimentos, a testemunha F… acabou por confirmar o ensombramento por reflexo do muro apenas no passeio contíguo ao dito muro e na extensão desse passeio.
XXXV. Mas, com particular acuidade, a prova testemunhal aqui soçobra a todos os níveis, pois estamos perante realidades incontornáveis e incontestáveis, decorrentes da natureza das coisas, da ciência e da normalidade,
XXXVI. tratam-se, portanto, de factos notórios e que, por isso, nem carecem de prova (ou sequer de ser alegados pelas partes).
XXXVII. Concretizando, estando o muro em crise na confrontação a sul dos terrenos entre Recorrentes e Recorridos e virada que está a fachada do prédio dos Recorridos para nascente, conforme resulta da ampla reportagem fotográfica, considerando que a rotação da terra ao sol, que é imutável, e sempre de este para oeste, não se vislumbra como o muro dos Recorrentes possa afetar a incidência solar pela manhã sobre a fachada do prédio dos Recorridos.
XXXVIII. Por seu turno, já ao final do dia, por força da mesma rotação, pondo-se o sol a poente, ou seja, nas traseiras do prédio dos Recorridos, considerando a dimensão da parte edificada desse prédio, facilmente também se depreende que é o próprio imóvel dos Recorridos (e os prédios vizinhos) que geram ensombramento sobre a fachada da habitação e bem assim no logradouro frontal do prédio dos Recorridos.
XXXIX. São realidade irrefutáveis.
XL. Com o devido respeito, muito mal andou o Tribunal a quo ao referir que a diminuição solar é «…aliás, facto notório tal situação e verdadeiramente constatável na ida ao local e nas inúmeras fotografias juntas aos autos», pois, nem o amplo reportório fotográfico documenta qualquer ensombramento, nem durante a inspeção ao local foi possível verificar qualquer efeito de sombra por reflexo do muro (tanto mais que, no dia da dita inspeção, chovia copiosamente).
XLI. E não é preciso um poder de observação particularmente requintado para perceber que, daquela varanda, que percorre toda a fachada, os Recorridos gozam de ampla incidência solar, bem como, detêm boa panorâmica visual.
XLII. E ainda no quadro da diminuição da incidência do calor e arejamento, nada se provou relativamente à concreta forma com foi afetada a luminosidade e ar do prédio dos Recorridos por consequência do muro dos Recorrentes, e em que partes do prédio tal se pode verificar e a que horas do dia.
XLIII. Tudo matéria que é completamente omissa na decisão a quo.
XLIV. Existe manifesto erro de julgamento da matéria de facto elencada nos pontos 10º e 12º (dos factos provados) e, por conseguinte, nos termos acima dissecados, nunca poderiam ter sido provados, pelo menos com a extensão que lhes foi conferida.

DO PONTO 13º DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
XLV. Para prova do ponto 13.º dos factos provados, baseou-se a sentença a quo nas fotografias de fls. 15 e ss.; naquilo que foi a perceção do douto julgador no decorrer da inspeção judicial ao local, bem como, nas fotografias juntas com a perícia de fls. 138 e ss. e respetivo teor do relatório pericial, perícia que, diga-se, foi ordenada pela Meritíssima Senhora Juíza para a fixação do valor da causa e, por isso, efetuada com base na matéria articulada inicialmente pelos Recorridos.
XLVI. O muro a poente apresenta algumas fissuras. Não obstante, em lado algum, existe sustentáculo para inferir que o muro apresente risco de desabamento.
XLVII. O próprio perito (na perícia acima enunciada) utiliza a expressão "merece algumas preocupações" o que está longe de indiciar um risco de desabamento do muro a poente.
XLVIII. Tal matéria, escapa ao normal saber das partes e do douto julgador, pelo que só o conhecimento especializado, técnico e rigoroso de um profissional da área, poderia escorar-se tal perigo de ruina ou desabamento.
XLIX. Além disso, o prédio dos Recorrentes foi sujeito a sucessivas ações de fiscalização pelas entidades administrativas (cfr. ponto 14º da matéria de facto provada) e nenhum parecer ou ordenação existiu no sentido de uma intervenção imediata, o que espontaneamente reforça a ilação que o muro não apresenta risco iminente de queda ou desabamento.
L. A sentença a quo andou mal porquanto tomou tudo na mesma medida, todavia, uma coisa é a existência de fissuração e de (algumas) pedras deslocadas e, outra, substancialmente diferente, é o risco de desabamento da construção.
LI. Por outro lado, resulta igualmente do relatório pericial que o muro estará prejudicado por um poste de eletricidade que está sobre ele integrado.
LII. E, por isso mesmo, já os Recorrentes haviam reclamado da situação junto da entidade proprietária do poste de eletricidade, no caso, a EDP, conforme melhor consta do documento de fls. 73, circunstância à qual não foi dada qualquer relevância.
LIII. Existe uma errada interpretação fatual da realidade concreta do muro, sendo que o juízo vertido na sentença apenas seria autorizado mediante conhecimento técnico, por profissional especializado
LIV. Com efeito, se a prova dos autos é mais que suficiente para dar como provado que o muro a poente se apresenta rachado, com fissuras e pedras deslocadas, o mesmo não se pode dizer relativamente ao segmento final do ponto 13º da matéria de facto provada, que segue assim impugnado, devendo dar-se como não provado, por falta de prova que o sustente, o risco de desabamento, bem como, o nexo entre o estado do muro e a falta de manutenção pelos Recorrentes.

DO PONTO 15º DOS FACTOS PROVADOS
LV. Para prova do ponto 15º, daquilo que é dado perceber na sentença recorrida, a formação da convicção do Julgador fundou-se essencialmente em prova testemunhal.
LVI. Apesar de deferido, não se logrou obter o requerido depoimento de parte dos Recorridos, que aqui assumiria especial relevância para a prova (ou falta dela).
LVII. E no que respeita à prova testemunhal, temos essencialmente o depoimento de duas testemunhas (cfr. depoimento da testemunha F… - Minuto 04:21, 23:50, 34:48; depoimento da testemunha J… – Minuto 01:50, 04:00, 09:20; depoimento da testemunha G…, Minuto – 08:34, 08:50; todos acima transcritos).
LVIII. Mas então, de que concreta "situação" estaremos aqui a falar? É o muro a sul? As águas? Os esgotos? O lixo? O muro em ruínas?
LIX. É grande a diversidade dos motivos/situações dos Recorridos para (alegadamente) não virem "mais vezes a Portugal" e para o suposto estado de "tristeza e desânimo" em que vivem.
LX. Entre a panóplia de situações ventiladas como fundamento para os Recorridos se absterem de vir "mais vezes a Portugal" ficamos mesmo sem saber qual delas afeta decisivamente a vontade dos Recorridos e atinge a respetiva esfera emocional.
LXI. A abrangência factual intrínseca ao que o ponto 15º da matéria de facto provada, ao arrepio da prova que foi sendo produzida e que serviria para reduzir e separar os concretos factos em que se baseia o ali alegado, não deixa margem para que se possa aceitar como provado que os «Os Autores (…) não vêm mais vezes a Portugal devido a esta situação e sofrem com tristeza e desânimo». Quando muito, embora sem interesse para a causa, seria de aceitar que «Os Autores encontram-se emigrados em França, e não vêm mais vezes a Portugal porque são pessoas idosas e doentes, bem como, por força dos episódios relacionados com infiltrações de aguas, lixos e esgotos no seu prédio, situação que lhes prova tristeza e desânimo.»

DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA RELATIVAMENTE À FALTA DE LICENCIAMENTO DO PRÉDIO DOS RECORRIDOS
LXII. A decisão recorrida é omissa relativamente a uma questão discutida nos autos e que, preconizando do entendimento/hipótese de estarmos aqui perante uma situação de conflito de direitos, reveste assim de especial interesse, impondo a respetiva pronúncia.
LXIII. Resultou da prova produzida e respalda parcialmente do articulado inicial, que a moradia dos Recorrentes sofreu renovações ao longo dos anos, com a criação das aberturas de que os Recorridos vieram reclamar vistas e que modificaram assim a estrutura, traço e estética do imóvel (cfr. ainda ponto 4.º dos factos provados e também depoimento da testemunha F… - Minuto 05:24, 06:40; depoimento da testemunha G…, Minuto – 01:50, 02:40; todos acima transcritos).
LXIV. Grandes esforços processuais foram desenvolvidos para dar a conhecer aos autos informação fidedigna e idónea a certificar as datas subjacentes à matéria de facto dada como provada no ponto 4.º
LXV. Não obstante, os Recorridos sempre sonegaram a informação, apesar de requerida e deferida pelo douto julgador a quo (cfr. requerimento de fls. 121 e ata da audiência prévia), sendo que numa primeira fase alegaram dificuldades em obter os documentos por se encontrarem em França,
LXVI. e já depois do ofício remetido pela Camara Municipal … os esclarecimentos requeridos (cfr. oficio de fls…), prestaram-se a direcionar a questão para a alegada prescrição.
LXVII. Nesta dialética, descrita ao pormenor nas alegações supra, com subtileza se tentou evitar tal confissão, todavia, é evidente concluirmos que, pelo menos, o primeiro andar da habitação foi edificado sem licenciamento administrativo prévio, quando o mesmo, desde o ano de 1966, era já obrigatório (cfr. Regulamento Geral das Edificações Urbanas)
LXVIII. E tal ilação surge reforçada pelo depoimento da testemunha K… (cfr. minuto 04.23, 05:55 e 07.04, acima transcrito)
LXIX. Independentemente das questões da prevalência do domínio da lei civil sobre a matéria administrativa, como veremos adiante com maior pormenor, tal facto reveste importância para a justa composição da demanda, impondo-se decisão sobre a prova inerente à legalização (ou falta dela) do prédio dos Recorridos, mormente na parte edificada onde estão instaladas as janelas, portas e varanda da fachada da moradia.
LXX. E bem patente ficou nos autos que renovação do primeiro andar da casa dos Recorridos foi efetuada sem licenciamento, tratando-se assim de uma construção clandestina,
LXXI. sendo que a violação desses ditames administrativos e regulamentares pode, subsequentemente, originar a afetação de direitos de terceiros, especialmente, dos direitos dos prédios confinantes, como aqui é necessariamente o caso.
LXXII. No que tange ao supra exposto, denota-se uma quase absoluta ausência de pronúncia pelo Tribunal a quo, pelo que a sentença em crise enferma assim do vício de omissão de pronúncia, o que configura uma causa de nulidade da sentença, prevista legalmente na al. d) do art. 615º do C.P.C.

DO DIREITO CONCRETAMENTE APLICÁVEL, TAMBÉM POR FORÇA DA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNADA

DO MURO SITUADO A SUL, DO DIREITO DE SERVIDÃO DE VISTAS E DO DIREITO À INSOLAÇÃO - O CONFLITO DE DIREITOS

DA NULIDADE POR CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO

LXXIII. Foram os Recorrentes condenados a demolir em altura o muro divisório que construíram encostado ao muro dos Autores, decisão fundada num (genérico) direito à insolação dos Recorridos,
LXXIV. Acontece que, conjugado o pedido dos Recorridos formulado no articulado aperfeiçoado e aquilo que foi o objeto do litígio e dos temas da prova, fixado em audiência previa, lobrigamos um espetacular salto sobre a matéria invocada pelas partes, constituindo mesmo a condenação supra uma decisão surpresa.
LXXV. Em face do exposto, há necessariamente que concluir que a decisão de condenação dos Recorrentes com base numa putativa lesão do direito de insolação e arejamento dos Recorridos, extravasou o âmbito da matéria em discussão nos autos, bem como, condenou em objeto diverso do pedido, tendo o Tribunal a quo, nesta parte, condenado em objeto diferente do pedido formulado pelos Recorridos, o que consubstancia o vício previsto na al. e) do artº 615º do CPC, ferindo a sentença recorrida de nulidade.
LXXVI. Afastada que foi a questão do eventual abuso de direito pelos Recorrentes, atenta a dimensão não excessiva do muro em crise e a legitimidade e interesse sério dos Recorrentes nessa construção, a Meritíssima Senhora Juíza considerou que, no caso em análise, estamos perante um conflito de direitos, sendo que o direito dos Recorridos deverá prevalecer sobre o exercício do direito de propriedade dos Recorridos.
LXXVII. Ora, uma situação conflito de direitos emerge da circunstância de existirem dois direitos distintos entre si, desde que, no plano dos factos, fique indelevelmente demostrada essa incompatibilidade.
LXXVIII. Isto posto, dada a perturbação criada pela aludida colisão na ordem jurídica, a lei procurou dá solução a esse conflito através do disposto no art. 335º do Código Civil
LXXIX. Efetivamente, no caso sub judice, temos dois direitos abstratamente merecedores de igual tutela, por um lado, o direito dos Recorridos a receber o sol no seu prédio e o direito dos Recorrentes em levantar um muro de vedação, que constitui um exercício do direito de propriedade, respaldando no direito à privacidade.
LXXX. Embora possa existir virtualmente situação de colisão de direitos e, mesmo que, em abstrato, o direito à insolação possa prevalecer sobre o direito de propriedade e privacidade, tal aferição não pode cingir-se à dimensão meramente subjetiva, pelo que impera uma apreciação casuística, conforme os dados que o concreto conflito possa evidenciar, tudo no ensejo de perceber se, de facto, no plano da realidade dos factos, existe um conflito real.
LXXXI. Entrando-se num campo tão sensível como o conflito de dois direitos não deve anular-se qualquer um deles, mormente se, de facto, se perscrutar que um deles é meramente potencial e não chega a ser lesado ou, pelo menos, não é afetado com a intensidade suficiente que mereça fazer quedar o direito conflituante (cfr. o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09-05-2006, proferido no processo 06A636)
LXXXII. É precisamente a situação prevista no último trecho da nossa abordagem inicial que reclama melhor aplicação, desiderato prosseguido na presente instância recursiva.
LXXXIII. E tudo se traduz no seguinte: a atuação dos Recorrentes, ao construírem um muro de cerca de 1.67 m (apartir da sua cota de terreno) metros no limite sul do seu prédio, na parte que confronta com o prédio urbano dos Recorridos, configura o exercício de um direito que conflitua com o direito de insolação dos Recorrentes? Em caso afirmativo, deve ceder o primeiro perante o segundo? E em que medida deve ceder?

DA PRETENSA DIMINUIÇÃO DA INCIDÊNCIA SOLAR
LXXXIV. Postergada liminarmente a hipótese de constituição servidão de vistas, ainda assim, entendeu-se chamar à colação a hipótese de colisão de direitos, pelo que não pode olvidar-se uma conclusão que precede e a que facilmente se chegou: o muro em crise confronta lateralmente com a fachada do prédio dos Recorridos, onde estão instaladas as janelas, varandas e/ou portas dos Recorridos, as tais aberturas de que vieram aqueles, no seu articulado inicial, reclamar vistas.
LXXXV. Ancorando-se nesta materialidade a verdade é que o muro não afeta nem as vistas e, por sequencia lógica, nem o sol e o arejamento, estando esta dupla vertente assegurada, porquanto, defronte às aludidas aberturas nenhuma construção existe, detendo os Recorridos ampla panorâmica, pelo horizonte, sobre o seu logradouro, sobre caminho público e tudo o mais que ali existe.
LXXXVI. E o efeito do muro sobre a intensidade de insolação é manifestamente exígua e cinge-se ao espaço imediatamente junto ao muro, ou seja, não na extensão da fachada mas, apenas e tão só, no passeio que dá para a via pública.
LXXXVII. E, corolário do desnivelamento natural dos terrenos, a verdade é que a existência de cotas diferentes afeta imediatamente as vistas e a insolação sobre o terreno dos Recorrentes – facto que pré-existe à data das respetivas aquisições e construções realizadas em ambos os prédios.
LXXXVIII. Paralelamente, existe uma realidade incontestável e notória, pois, estando o muro em crise na confrontação a sul dos terrenos, e a fachada do prédio dos Recorridos orientada para nascente, sendo a rotação solar de este para oeste, não se vislumbra como o muro dos Recorrentes possa afetar a incidência solar pela período da manhã.
LXXXIX. Por seu turno, já ao final do dia, pondo-se o sol a poente, ou seja, nas traseiras do prédio dos Recorridos, considerando a dimensão da parte edificada desse prédio, constituída por uma habitação de dois andares e, bem assim, dos prédios vizinhos, facilmente também se depreende que é o próprio imóvel dos Recorridos (e os prédios vizinhos) que causa sombreamento na fachada da habitação e bem assim no logradouro frontal.
XC. Tudo isto devidamente assomado, faz-nos concluir, com inelutável certeza, que os lhanos efeitos sobre a insolação não justificam que o direito dos Recorrentes à tapagem do seu prédio deva ceder. Em abono da verdade tal sempre consubstanciaria uma afronta ao critério da minimização dos danos intrínseco ao instituto do conflito de direitos.
XCI. Atrevemo-nos mesmo a dizer que, in casu, não chega a existir um verdadeiro conflito de direitos, face à circunstância de os Recorridos não estarem privados do seu direito à insolação, mas apenas ligeiramente diminuídos nesse direito, que ainda assim não obsta ao gozo pelos Recorridos das utilidades e benefícios da incidência solar.
XCII. De resto, perfilhar do entendimento vertido acarretaria a destruição de milhares de muros construídos entre prédios contíguos pelo país fora, na medida em que todos eles, afetam, ainda que minimamente, a insolação do prédio vizinho, tal como no caso que ora se apresenta.
XCIII. Neste acervo, por pertinente, transcreve-se o sumário do Acórdão do STJ, de 03-11-2005, prolatado no processo n.º 05B2728 (disponível em www.dgsi.pt): «II - Se um muro construído nessas condições retira uma hora e meia a duas horas de sol ao prédio contíguo, não estamos perante um abuso de direito, mas num caso de colisão de direitos: o direito de tapagem, por um lado e o direito à salubridade por outro. III - Sendo direitos da mesma espécie, nos termos do artº 335º do C. Civil, deveriam ceder mutuamente de modo a que ambos produzissem o seu efeito útil. IV - No entanto, tendo o muro praticamente as dimensões mínimas para que possa garantir a privacidade e segurança, é de aceitar como razoável a referida redução da radiação solar.»
XCIV. E ainda o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 06-03-2014, proferido no âmbito do processo n.º 447/10.4TBVLN.G1 «O conceito de direito de personalidade não é tão extenso que implique para o proprietário vizinho o dever de se abster de levantar para nascente, sendo a rotação solar de este para oeste, não se vislumbra como o muro dos Recorrentes possa afetar a incidência solar pela período da manhã.
LXXXIX. Por seu turno, já ao final do dia, pondo-se o sol a poente, ou seja, nas traseiras do prédio dos Recorridos, considerando a dimensão da parte edificada desse prédio, constituída por uma habitação de dois andares e, bem assim, dos prédios vizinhos, facilmente também se depreende que é o próprio imóvel dos Recorridos (e os prédios vizinhos) que causa sombreamento na fachada da habitação e bem assim no logradouro frontal.
XC. Tudo isto devidamente assomado, faz-nos concluir, com inelutável certeza, que os lhanos efeitos sobre a insolação não justificam que o direito dos Recorrentes à tapagem do seu prédio deva ceder. Em abono da verdade tal sempre consubstanciaria uma afronta ao critério da minimização dos danos intrínseco ao instituto do conflito de direitos.
XCI. Atrevemo-nos mesmo a dizer que, in casu, não chega a existir um verdadeiro conflito de direitos, face à circunstância de os Recorridos não estarem privados do seu direito à insolação, mas apenas ligeiramente diminuídos nesse direito, que ainda assim não obsta ao gozo pelos Recorridos das utilidades e benefícios da incidência solar.
XCII. De resto, perfilhar do entendimento vertido acarretaria a destruição de milhares de muros construídos entre prédios contíguos pelo país fora, na medida em que todos eles, afetam, ainda que minimamente, a insolação do prédio vizinho, tal como no caso que ora se apresenta.
XCIII. Neste acervo, por pertinente, transcreve-se o sumário do Acórdão do STJ, de 03-11-2005, prolatado no processo n.º 05B2728 (disponível em www.dgsi.pt): «II - Se um muro construído nessas condições retira uma hora e meia a duas horas de sol ao prédio contíguo, não estamos perante um abuso de direito, mas num caso de colisão de direitos: o direito de tapagem, por um lado e o direito à salubridade por outro. III - Sendo direitos da mesma espécie, nos termos do artº 335º do C. Civil, deveriam ceder mutuamente de modo a que ambos produzissem o seu efeito útil. IV - No entanto, tendo o muro praticamente as dimensões mínimas para que possa garantir a privacidade e segurança, é de aceitar como razoável a referida redução da radiação solar.»
XCIV. E ainda o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 06-03-2014, proferido no âmbito do processo n.º 447/10.4TBVLN.G1 «O conceito de direito de personalidade não é tão extenso que implique para o proprietário vizinho o dever de se abster de levantar construção no seu prédio, a fim de não causar sombra no prédio vizinho ou de não prejudicar as vistas de que este disfruta».

DA CONFIGURAÇÃO DO MURO (A SUL) DOS RECORRENTES
XCV. O muro construído pelos Recorrentes, apartir da sua cota de terreno, não mede mais de 1.80, cumprindo os objetivos de vedação para os quais foi construído, nomeadamente o fito de obter privacidade e segurança, tanto mais que, conforme resulta dos factos provados, o primeiro andar da habitação dos Recorridos está praticamente nivelado com a cota de terrenos dos Recorrentes.
XCVI. E o direito dos Recorrentes em tapar o seu prédio está consagrado na lei (art. 1356.º do Código Civil).
XCVII. E o muro de vedação que os Recorrentes colocaram na estrema do seu prédio fica aquém da medida máxima que a jurisprudência vem entendendo para o normal e aceitável exercício do direito de tapagem.
XCVIII. Efetivamente, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido de forma reiterada que as dimensões mínimas para que se possa garantir a privacidade através de um muro de tapagem será entre 2 a 3 metros e, bem assim, se exercido desta forma, este direito de tapagem prevalece sobre o direito a insolação ou vistas do prédio vizinho, se o mesmo não for afetado na sua globalidade (cfr. Ac. do STJ de 03.11.2005, Proc. 05B2728; Ac. Do STJ de 28/10/2008, proferido no processo 08A3005; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 24-01-2012, proferido no processo 116/09.8TBMCD.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 546/13.0TBFAF.G1, datado de 17/12/2014)
XCIX. O muro dos Recorrentes não se apresenta desproporcional ou desequilibrado, antes, ajustado ao benefício e utilidade que os aqui Recorrentes têm em vista com tal construção.
C. Simultaneamente, o muro dos Recorrentes cumpre os pressupostos regulamentares da edificação urbana.
CI. Numa outra perspetiva, apelando a situação uma resolução no quadro do conflito de direitos, não pode deixar de assumir aqui particular acuidade para a boa decisão da causa, a questão da antiguidade dos direitos em conflito.
CII. Muito embora não tenha sido vertido para a sentença sob sindicância com a intensidade da prova efetivamente produzida, a verdade é que, há muitos anos a esta data, naquela confrontação a sul, sempre existiram dois muros, um dos Recorrentes e, outro, dos Recorridos.
CIII. E as reclamações dos aqui Recorridos no que concerne ao muro mantiveram-se silentes, tudo até datas mais contemporâneas, em que a convivência entre ambos vazaram para um nível de intolerância absoluta e conflito permanente, por questiúnculas variadas.

DA PRIVACIDADE CONFERIDA PELO MURO
CIV. A decisão em exame posterga o legítimo direito dos Recorrentes à tapagem do seu prédio, abrindo lugar à devassa total apartir do prédio vizinho, tudo com grave prejuízo dos Recorrentes.
CV. Efetivamente, sem o muro, os Recorridos, sobre a varanda e as janelas do seu prédio, conseguem ver indiscriminadamente o prédio dos Recorrentes, ficando com uma vista panorâmica sobre todos os movimentos e ações dos Recorrentes no seu prédio, porquanto, como vimos, o primeiro andar da habitação dos Recorridos fica ao nível da cota de terreno dos Recorrentes.
CVI. Por outras palavras, perspetivada a demolição do muro na medida da condenação, ou seja, em tudo o que ultrapasse 1.80 apartir da cota de terreno dos Recorridos, faz como que os Recorrentes fiquem praticamente sem muro de vedação (face ao desnivelamento natural) conferindo-se assim o direito aos Recorridos de poder devassar indiscriminadamente o prédio vizinho, o que não pode deixar de qualificar-se como uma ofensa clamorosa aos princípios norteadores subjacentes ao instituto do conflito de direitos.
CVII. É aqui insofismável a existência de uma gritante desproporcionalidade entre a desvantagem e sacrifício permanente imposto aos Recorrentes em contraponto com a vantagem dos Recorrentes, vantagem que assume uma natureza de direito à devassa, exercício que será sempre ilegítimo.
CVIII. Ainda quanto à matéria, não podemos deixar de concordar com a jurisprudência já acima enunciada que, de forma generalizada, perfetibilizam o entendimento que o direito à privacidade dos Recorrentes prevalece ainda que tal possa importar uma residual perda da incidência solar para os proprietários dos prédios confiantes.

DOS CONCRETOS EFEITOS DA DIMINUIÇÃO DA INCIDÊNCIA SOLAR
CIX. Em abono da verdade, nunca se conseguiu quantificar quais as horas ou períodos e as concretas partes do prédio urbano dos Recorridos que estão prejudicas de sol e por inerência do calor.
CX. E mais do que isso, fala-se na decisão em crise dos perigos da falta de incidência, porém, em lado algum, existe prova ou qualquer dado donde se possa inferir uma efetiva lesão provocada pelo muro.
CXI. Daqui também que as elucubrações plasmadas na decisão recorrida são vazias de sentido, pois, não só não existe essa diminuição solar, como, por sequência logica, não existe margem para dar como provado que os Recorridos sofreram, de facto, quaisquer consequências de uma alegada obturação.
CXII. E tal ilação surge reforçada, pois, que os Recorridos, apenas esporadicamente utilizam aquele prédio, na medida em que tem residência habitual e permanente em França, onde estão emigrados há mais de 50 anos. Não está em causa um interesse permanente dos Recorrentes.

DA FALTA DE LICENCIAMENTO DO PRÉDIO URBANO DOS RECORRIDOS
CXIII. Naturalmente que não tendo aqui a matéria administrativa prevalência sobre o domínio da lei civil, estribando-se a condenação dos Recorridos num putativo conflito de direitos, há que aflorar a questão da falta de licenciamento do prédio dos Recorridos.
CXIV. Do ziguezaguear dos Recorridos, é evidente a conclusão que, pelo menos, o primeiro andar da habitação foi edificado sem licenciamento prévio, o que reveste particular interesse, pois as aberturas de que os Recorridos vieram reclamar vistas estão instaladas naquele primeiro andar.
CXV. Acolitada nesta factualidade, não pode o Julgador ficar indiferente às concretas circunstâncias que ladeiam o exercício dos direitos em conflito, nomeadamente quando um dos direitos se funda numa construção clandestina, erigida à revelia da lei e do controle administrativo. Especialmente se tal construção alheia puser em causa os direitos dos prédio vizinho, ao não respeitar as distancias legais previstas no Regulamento Geral das Edificações Urbanas, como, se nos parece ser o caso.
CXVI. Afigura-se assim, clara e gravemente injusto exigir aos Recorrentes que se privem de uma das facetas do seu legítimo direito em relação a um direito de terceiro conflituante, direito esse que tem por génese um comportamento ilícito, no caso, uma construção clandestina.

SINTETIZANDO
CXVII. Consegue-se subentender da decisão a quo um espirito e um fito salomónico para a demanda em discussão, acontece, que na respetiva aferição dos interesses em confronto, salvo o devido respeito, não foi devidamente enquadrada a concreta realidade dos factos.
CXVIII. A verdade é que a medida da condenação (de demolição do muro) acabou por prejudicar imensuravelmente os Recorrentes, porquanto, apenas podendo levantar um muro de 1.80 apartir da cota de terreno dos Recorridos, ficam praticamente sem muro de vedação, face ao desnivelamento natural dos terenos confinantes, ficando assim à merce da devassa constante pelos Recorridos, tanto mais que o primeiro andar da moradia dos Recorridos situa-se praticamente nivelada com a cota de terreno dos Recorrentes.
CXIX. Em abono da verdade, a decisão a quo não reduziu equitativamente os direitos conflituantes, acabando por dizimar na plenitude o direito dos Recorrentes e, por seu turno, acabou por conduzir à atribuição aos Recorridos do poder de devassar de forma total e permanente o prédio dos Recorrentes, algo que, naturalmente, não pode a ordem jurídica tolerar, pois, no fundo, estar-se-ia a suprimir o exercício de um direito legítimo e, simultaneamente, a permitir o exercício do poder de devassa propriedade alheia.
CXX. Peca assim por excesso, desadequação e desproporcionalidade a destruição do muro nos termos plasmados na sentença em crise, violando-se o princípio da proporcionalidade e razoabilidade que deve orientar a resolução de uma situação de conflito de direitos.
CXXI. Sempre diremos que mesmo que não seja alterada a matéria de facto aqui impugnada, o que se alega por mera questão de patrocínio, a da sentença recorrida, mesmo por alusão aos factos em que assentou, fez uma errada aplicação do direito aos factos, o que constitui erro de julgamento.
CXXII. Lapidarmente concluímos com o sumário dos seguintes arestos:
CXXIII. «I- Existe colisão de direitos sempre que o exercício de um direito impossibilita, no todo ou em parte, o exercício de outro. Para que se verifique uma situação desta natureza é necessária a presença cumulativa de três pressupostos: a existência de uma pluralidade de direitos, a sua pertença a diferentes titulares e a impossibilidade de exercício simultâneo e integral desses direitos. (…) III- Na resolução do conflito entre o direito (de personalidade) à reserva da intimidade da vida privada e o direito (de personalidade) a um ambiente sadio (no qual se integra o direito à insolação), revela-se legítima, à luz do critério normativo da conciliação, a vedação levada a cabo com a altura suficiente para evitar a devassa e violação da intimidade privada, não podendo, contudo, a mesma ter uma altura tal que impeça praticamente a passagem dos raios solares. IV-Nesse contexto, não se pode considerar excessiva uma vedação com a altura de cerca de 1,80 m construída na estrema do prédio dos réus, com o desiderato de garantir a privacidade aos réus e à sua família no interior do seu prédio, ainda que a construção dessa vedação tenha implicado, em alguma medida, a diminuição da insolação do prédio da autora e das vistas panorâmicas de que o seu imóvel anteriormente beneficiava.» (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 03-03-2016, proferido no processo 593/11.7TBMNCG1)
CXXIV. «VI - Apesar de o direito público impor diversas limitações à altura das vedações, o Código Civil confere liberdade aos proprietários para taparem os seus prédios; no entanto, se esse direito for exercido de forma abusiva ou violadora de direitos dos proprietários de prédios confinantes, podem interesses privados derivados de relações de vizinhança determinar restrições àquela liberdade. VII - Se a ré construiu, na linha de demarcação do seu prédio com o dos autores um muro que, junto à casa destes, tem a altura de 2,5 metros e priva de sol a zona do alçado lateral esquerdo e a do rés-do-chão da parede sul dessa casa, não poderá essa altura considerar-se excessiva, uma vez que se destina a garantir a privacidade e a segurança, fins insusceptíveis de ser atingidos com um muro mais baixo; em tais circunstâncias, é de afastar o abuso do direito de tapagem imputado à ré. VIII - No entanto, subsiste a possibilidade de o direito de tapagem exercido pela ré ter de ceder, se colidir com direitos dos donos do prédio vizinho, conforme resulta do art. 335.º do CC, considerando que está em causa o direito destes à insolação, eventualmente em colisão com aquele direito, pois o muro priva de sol parte do prédio e da casa dos autores. IX - Tendo o muro as dimensões mínimas para poder desempenhar utilmente a função a que se destina – garantir a privacidade e a segurança – terá o direito dos autores à insolação que ceder.» (Ac. do STJ, datado de 29-10-2013, proferido no processo n.º 364/03.4TBVRM.G1.S1).

B) DO MURO SITUADO A POENTE
CXXV. Resulta da sentença a quo que: «No que concerne ao pedido sob a alínea E) (…) tal muro dos RR., ameaça ruína, pondo em causa a segurança do prédio dos AA., tem de ser reparado pelos RR., a bem, também, da sua própria segurança, afectando irremediavelmente o direito dos AA. ao uso e fruição plena da sua propriedade, afectado, in casu, pelo perigo constante de desabamento do muro situado a Poente. Procede, pois, o pedido em causa.»
CXXVI. Como vimos, sucessivas inspeções ao muro a poente foram realizadas pelas entidades administrativas, rectius os serviços competentes da Câmara Municipal …, e ainda, pela EDP, entidade proprietária do poste de alta tensão integrado no sobredito muro,
CXXVII. e, em resposta, nenhuma das entidades vislumbraram o risco de desabamento do aludido muro a poente.
CXXVIII. Após o arbitramento solicitado pela douta julgadora (art.º 309.º do CPC), o Sr. Engenheiro nomeado, L…, conclui no seu relatório pericial, que a «estabilidade» do muro a poente «merece algumas preocupações» e refere «fraturas», «deslocamentos», «rotação», mas nunca expressa o seu aval a um muro em ruínas ou perigo de desabamento.
CXXIX. Apenas e só a sentença que ora se recorre é que sustenta que o muro está em ruínas e em perigo de desabamento, distanciando-se do juízo técnico do Sr. Engenheiro Civil que, entre a minudente prova que resultou dos autos, era a única que, de facto, poderia contribuir para oferecer uma base fidedigna a certificar tal perigo.
CXXX. E não tendo sido realizada qualquer investigação pormenorizada sobre a matéria, fica prejudicada a conclusão que o muro apresente iminente risco de desabamento.
CXXXI. Destarte, à míngua de outros elementos, e sem prejuízo de o muro estar fissurado e apresentar pedras deslocadas, não vemos pois em que a douta julgadora a quo alicerça a sua tese, ao ponto, de avalizar o perigo eminente de desabamento do muro.
CXXXII. E não estando especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, também, nesta parte, a sentença padece de nulidade, por violação do disposto na al. b) do art. 615º do CPC.

C) DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CXXXIII. Em bom rigor, atenta a prova produzida em audiência, muitas dúvidas ficaram se o pretenso desgosto, tristeza e desânimo dos Recorridos ficou a dever-se ao muro a sul ou, radicaria no muro a poente ou, outrossim, teria nexo na demais matéria carreada no articulado inicial (e não provada), nos quais se destaca a responsabilidade dos Recorrentes pelos infiltrações de águas, esgotos e lixos, que deliberadamente conduziam para o prédio vizinho, episódios que, pasme-se, subitamente cessaram após os Recorridos intervencionarem o logradouro do seu próprio prédio,
CXXXIV. atitude que tomaram depois de tantos anos a reclamar dos Recorrentes uma responsabilidade que afinal lhes seria exclusivamente imputável.
CXXXV. Importa pois compulsar a extensa diáspora alegada pelos Recorridos para sustentar os danos não patrimoniais (cfr. art. 65º a 71º da PI aperfeiçoada)
CXXXVI. E facilmente chegamos à conclusão que estamos perante uma enorme falácia, pois, entre a diversidade de situações, não se concretizou quais delas efetivamente provocaram desgostos, tristeza e desânimos,
CXXXVII. Neste terreno movediço, o montante arbitrado na decisão recorrida a título de danos não patrimoniais constituiu uma ilação do Tribunal a quo, sem cabal sustentáculo na prova produzida e nos elementos constantes dos autos.
CXXXVIII. Não é dada a conhecer na sentença recorrida a concreta natureza do desânimo e da tristeza infligida, mormente como se manifestou na esfera pessoal e emocional dos Recorridos.
CXXXIX. Além disso, os danos não patrimoniais aventados são contraditórios com o distanciamento crescente dos Recorridos relativamente ao seu prédio em Portugal, uma vez que aqueles residem de forma permanente e habitual em França, apenas frequentando aquela casa esporadicamente.
CXL. Por outro lado, mesmo admitindo uma diminuição da incidência solar, pela sua diminuta dimensão, sempre seria de entender que os danos morais não revestem gravidade suficiente que justifique a indemnização (artº 496º n.º 1 do Código Civil).
CXLI. Por seu turno, não foi produzida prova com intensidade necessária e de molde a justificar a tristeza e desânimo dos Recorridos com base no muro alegadamente em ruinas, porquanto a existência de fissuração não pode extremar deduções, ao ponto de apontar um risco iminente de desabamento do muro a poente.
CXLII. A sentença em crise, nos termos em que decidiu, acabou por violar ou não dar o devido tratamento aos normativos previstos, entre outos, nos artigos 335º, 80º, 1356º, 1360º n.º 1 e 2, 342º e 496º, todos do Código Civil; o n.º 1 do art. 26º da CRP e, ainda o art. 615 n.º 1, b), d) e e) do CPC.» (sic)
Pretendem os recorrentes a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue a ação totalmente improcedente por não provada.
*
Não foram oferecidas contra-alegações.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
A matéria a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- está delimitada pelas conclusões da apelação dos RR. recorrentes, acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).

Para conhecer e decidir estão as seguintes questões:
1. Nulidade da sentença;
2. Erro de julgamento na decisão em matéria de facto;
3. Na aplicação dom Direito:
a) O conflito de direitos;
b) O muro situado a poente;
c) Os danos não patrimoniais: o direito e a quantificação.
*
III.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância[2]:
1- Os Autores têm inscrito a seu favor o prédio urbano sito na Rua …, Nº .., ….-… …, Felgueiras, composto por uma casa de rés-do-chão e andar, com logradouro, descrita na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob o n.º 606 da freguesia de … e inscrito no Serviço de Finanças de Felgueiras sob a matriz urbana com o artigo n.º 129, da referida freguesia.
2- Na parte sul, o prédio dos Autores confronta com o prédio dos Réus, através de um muro, propriedade dos Autores.
3- Entre o prédio dos AA. e o dos RR. existe um desnivelamento natural, encontrando-se o dos AA. num plano inferior em relação ao prédio dos RR., nomeadamente o rés-do-chão, sendo o 1º andar situado quase ao mesmo nível do prédio dos RR..
4- Os AA. compraram a casa já construída há mais de 30 anos, tendo procedido posteriormente a uma renovação do primeiro andar.
5- Os RR. compraram o seu prédio posteriormente a esta data.
6- O muro divisório foi construído pelos AA. com a altura de um metro e meio.
7- O muro construído pelos RR. para a sustentação das terras, foi construído posteriormente com a mesma altura do muro dos AA..
8- Só posteriormente é que os RR. altearam este muro, tendo-o construído numa altura superior ao muro construído pelos AA., em cerca de um metro e quinze.
9- Os AA. reclamaram imediatamente pelos RR. terem construído o muro encostado ao seu muro.
10- Tendo este muro dos RR. uma altura de um metro e quinze em relação à altura do muro dos AA., impede o mesmo, destes usufruírem de vistas, luz e ar, através das duas janelas e porta, situadas no prédio destes de forma lateral ao muro.
11- A fachada principal da casa dos AA. que confina com o seu muro divisório e com o muro dos RR., possui duas janelas e uma porta, todas em vidro, na varanda do primeiro andar da casa dos AA., sendo que este andar situa-se quase ao mesmo nível do prédio daqueles.
12- O referido muro afectou a luminosidade e o calor que a casa dos AA. recebia do sol.
13- Nas traseiras do prédio dos Autores, e que confronta a poente com o terreno do prédio dos Réus, a parede em pedra pertencente a estes está em ruínas e rachada, com fissuras, pedras deslocadas e em perigo de desabamento, sem manutenção por parte dos RR..
14- Todas estas situações já foram objecto de queixa pelos Autores à Câmara Municipal …, tendo sido feitas vistorias para verificação das condições de salubridade e segurança ao prédio dos Autores.
15- Os Autores encontram-se emigrados em França, e não vêm mais vezes a Portugal devido a esta situação e sofrem com tristeza e desânimo.
16- A construção do muro a Sul pelos RR. serviu como sustentação de terras e, inicialmente, além da parte cimentada, tinha uma chapa metálica opaca.
17- Os RR. possuem no seu prédio sistema de recolha de águas e fossas sépticas.
*
A instância recorrida deu como não provada a seguinte matéria, nomeadamente:[3]
A) A janela mais próxima do muro divisório tem um metro de largura e um metro de altura, distando do muro construído pelos RR., trinta centímetros (30cm) e a porta com vidro situada na referida varanda tem uma largura de um metro, e altura de dois metros (2m).
B) Existe, ainda, nessa varanda, outra janela com a mesma altura de dois metros (2m) e largura de três metros (3m), situando-se estas últimas ao nível do chão da varanda.
C) Os Réus escoam águas do seu terreno, nomeadamente águas sujas, esgotos, de fossas, na confrontação a sul, a qual infiltra-se no logradouro do prédio dos Autores, assim como lixo, nomeadamente, pontas de cigarro, folhas, e lixo diverso, que se acumulam nesse logradouro, sendo certo que este logradouro fica num plano muito inferior em relação ao prédio dos Réus, já que se situa no rés-do-chão do seu prédio.
D) Essas águas, além dos maus cheiros, provocam ainda humidade no chão do logradouro, infiltrando-se, ainda, no prédio urbano dos Autores, que é a sua casa de habitação.
E) Estas águas não correm naturalmente, já que são águas provenientes de fossas, através de tubos, podendo os Réus evitar tal escoamento, com obras que evitem causar danos ao prédio dos autores.
F) Estas águas são provenientes de águas de rega, de lavar a casota do cão e de lavar roupas num lavatório.
G) Todas estas águas atravessam os muros dos AA. e RR. e entram no prédio dos AA., passando por “tubos” que se encontram enterrados na extensão do muro.
H) Os RR. haviam construído uma fossa que escoava para o terreno de uma irmã, mas depois de cortarem relações com a mesma, parte dessas águas são provenientes da fossa, devido ao mau cheiro.
I) Também devido a essas águas, a adega, que se situa junto e no mesmo plano do supra referido logradouro, se encontra danificada pela humidade, quer nas paredes, quer no chão.
J) A humidade e águas constantes no logradouro do rés do chão da casa dos AA. já provocou fissuras no cimento com o qual foi construído o mesmo.
K) Estas infiltrações pelo muro danificaram o chão que constitui a entrada para o prédio urbano dos Autores, onde foram construídos os muros divisórios, levantando os azulejos do corredor situado no 1º andar e quase ao nível do prédio dos RR., que dá acesso ao seu prédio.
L) O muro de suporte de terras dos RR. foi construído a pedido dos AA.
*
IV.
1. Nulidade da sentença
Os recorrentes apresentam três causas de nulidade da sentença pela seguinte ordem:
a) Omissão de pronúncia;
b) Condenação em objeto diverso do pedido; e
c) Falta de especificação de fundamentos de facto e de Direito que justifiquem a decisão.

a) Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar(…)”.
Esta norma está em correlação com o art.º 608º, nº 2, também do Código de Processo Civil. O juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita (ex officio).
A nulidade invocada há de resultar da violação do referido dever.
Não confundamos questões com factos, argumentos, considerações ou mesmo observação pura da causa de pedir. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência em correlação com a respetiva causa de pedir[4]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[5] O facto material é um elemento para a solução da questão; não é a própria questão, tal como o não são os argumentos utilizados pelas partes.
Os argumentos não constituem, pois, a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal e, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam com vista a obter a sua procedência, o facto de não lhes fazer referência --- eventualmente porque não considerou tais factos e argumentos relevantes no tratamento da questão --- não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Com ou sem os factos e os argumentos que a recorrente tem por relevantes para a decisão da causa, o tribunal não omitiu o tratamento e a solução das questões suscitadas na ação, atenta a causa de pedir e o pedido.
Com toda a evidência, o tribunal conheceu da pretensão dos AA., apreciou o seu pedido, julgando a ação parcialmente procedente.
A eventual falta de licenciamento prévio de construção do prédio dos recorridos (ou apenas do seu 1º andar, como admitem os RR.) pode até ser um facto relevante para a decisão, mas não é uma questão a decidir.
Diga-se, aliás, que a sentença nem sequer omitiu aquela argumentação dos RR., já que dela se extrai o seguinte trecho relevante da sua fundamentação jurídica: “Independentemente das questões administrativas que possam existir, estas não põem em causa os direitos civis e constitucionais das partes, designadamente o direito à insolação mesmo da própria área de terreno que envolve a habitação (caso uma parte da casa viesse a ser destruída, o que é pouco provável)”.
Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

b) Segundo o art.º 615º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando “O juiz condene (…) em objeto diverso do pedido”.
Em matéria de pedido o juiz não pode, por regra, sobrepor-se à vontade das partes[6]. Na decisão que profere, o juiz não pode conhecer senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado.
Citando Alberto dos Reis, “suprimir estes princípios equivaleria a reformar, mais do que o processo, o próprio direito privado; dar ao juiz o poder de iniciar ex officio um pleito que os interessados querem evitar, ou de conhecer de factos que as partes não alegaram[7], significaria cercear, no campo do direito processual, aquela autonomia individual que, no campo do direito substancial, a lei vigente reconhece e garante”[8]. É matéria na disponibilidade das partes.
No essencial, há que reter que, por um lado, através do pedido, as partes delimitam o thema decidendum da ação, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se à situação real conviria ou não providência diversa; por outro lado, a sentença não deve ultrapassar o limite do pedido, não podendo o juiz, como se disse, condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Sendo manifesto que não se trata de uma condenação em quantidade superior à que se pediu, também se nos afigura que não há condenação em objeto diverso do pedido, já que não há qualquer modificação qualitativa quanto aos direitos (e sua natureza) que os AA. pretendem ver reconhecidos.
A referência há de ocorrer sempre em relação ao objeto do pedido para que possa funcionar aquela regra de proibição condenatória ultra vel petitum. Alberto dos Reis dá exemplos[9]: “Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega duma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).

São os seguintes os pedidos, de condenação, formulados na ação:
A) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio urbano mencionado no artigo 1º da petição inicial;
B) Demolir em toda a sua altura e comprimento o muro divisório que construíram encostado ao muro dos AA., sem causar prejuízos a estes;
C) Reconhecer a existência de uma servidão de vistas, por usucapião sobre o prédio dos AA.;
D) Eliminar a retenção e acumulação de águas, lixo e tudo o mais, que escoam para o logradouro do prédio dos AA. e para a adega situada junto àquele;
E) Reparar o muro situado a poente e que ameaça ruína para o prédio dos AA.;
H) Pagar a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais;
I) Pagar a quantia de €100,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de facto em que venham a ser condenados; e
J) Absterem-se da prática de todos e quaisquer atos que atentem contra os referidos direitos dos AA.

Na sentença decidiu-se:
«Julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno os RR. D… e E…, a:
A) Reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano mencionado no facto 1º dado como provado e absterem-se da prática de actos que prejudiquem esse direito;
B) Demolir em altura e comprimento o muro divisório que construíram encostado ao muro dos Autores, até obter a altura máxima de 1,80 desde a cota mais baixa (ou seja, desde o terreno dos AA.);
C) Reparar o muro situado a poente e que ameaça ruína e queda para o prédio dos Autores;
D) Pagar aos AA. a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.
No mais, absolvem-se os RR. do pedido.

Ora, com toda a evidência, as condenações referidas em A) e B) do dispositivo da sentença enquadram-se perfeitamente nos pedidos A) e B) da ação, ficando até aquém dos mesmos.
A condenação a que se refere a al. C) corresponde a pedido idêntico (identificado em E)) e a condenação indicada em D) do dispositivo fica claramente aquém do pedido identificado em H).
De resto, tudo o que mais argumentam os recorrentes insere-se na liberdade do tribunal que a lei do processo lhe concede quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil) e nada tem que ver com o objeto do pedido.
Improcede também a invocada nulidade por condenação em objeto diverso do pedido.

c) Segundo o art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;”.
O art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil determina que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Esta norma decorre do comando que o art.º 205º da Constituição da República prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida, gere a sua nulidade. Tal falta, trate-se de um mero despacho ou de uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira.
A norma penaliza a falta absoluta de fundamentação da decisão de uma das suas questões a tratar e decidir, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada. Este é o entendimento praticamente uniforme na doutrina e na jurisprudência. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão.[10]
Como escreve o Professor Alberto dos Reis[11], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões de facto e de direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
Bem ou mal --- não interessa para resolver esta questão ---, a decisão recorrida está fundamentada, como resulta à evidência do texto da sentença, quer pela fixação da matéria de facto considerada como provada, quer pela subsunção jurídica subsequente, onde a Exma. Juiz desenvolve argumentação relativa à interpretação e aplicação da lei aos factos ao longo de várias páginas, com base na qual conclui pelo dispositivo da sentença. Fê-lo designadamente quanto à fixação dos danos não patrimoniais; primeiro ao fixar os factos relevantes para o efeito, entre os quais os que constam dos pontos 14 e 15 da decisão, depois, do ponto de vista da aplicação do Direito, ao tecer os considerando que deixou registados sob o capítulo III da sentença, intitulado “Dos danos não patrimoniais”, desenvolvendo explicações ao longo de mais de duas páginas, incluindo com citação jurisprudencial, até concluir por um valor indemnizatório.
Não ocorre a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a invocada nulidade.
*
2. Erro de julgamento na decisão em matéria de facto
Os recorrentes impugnam a decisão proferida em matéria de facto relativamente aos pontos 2, 7, 8, 9, 10, 12, 13 (parte final) e 15 dos factos dados como provados. Assim:
2- Na parte sul, o prédio dos Autores confronta com o prédio dos Réus, através de um muro, propriedade dos Autores.
Alteração proposta: Na parte sul, o prédio dos Autores confronta com o prédio dos Réus, através de dois muros, um da propriedade dos Autores e outro da propriedade dos Réus.

7- O muro construído pelos RR. para a sustentação das terras, foi construído posteriormente com a mesma altura do muro dos AA.
8- Só posteriormente é que os RR. altearam este muro, tendo-o construído numa altura superior ao muro construído pelos AA., em cerca de um metro e quinze.
Alteração proposta: Não provados.
Em sua substituição, que se dê como provado:
- O muro divisório foi construído pelos AA. com a altura de um metro e meio.
- O muro construído pelos RR. foi construído posteriormente, por volta do ano de 1994, com altura superior ao muro dos Recorridos, sendo que inicialmente o muro era composto por uma parte em cimento e uma chapa metálica opaca, entretanto removida, e substituída por blocos de cimento, mas sem alteração da respetiva altura inicial, que sempre foi inferior a 1,80 a contar da cota de terreno dos recorridos.

9- Os AA. reclamaram imediatamente pelos RR. terem construído o muro encostado ao seu muro.
Alteração proposta: Não provado.

10- Tendo este muro dos RR. uma altura de um metro e quinze em relação à altura do muro dos AA., impede o mesmo, destes usufruírem de vistas, luz e ar, através das duas janelas e porta, situadas no prédio destes de forma lateral ao muro.
12- O referido muro afetou a luminosidade e o calor que a casa dos AA. recebia do sol.
Alteração proposta: Não provados.

13- Nas traseiras do prédio dos Autores, e que confronta a poente com o terreno do prédio dos Réus, a parede em pedra pertencente a estes está em ruínas e rachada, com fissuras, pedras deslocadas e em perigo de desabamento, sem manutenção por parte dos RR.
Alteração proposta: Nas traseiras do prédio dos Autores, e que confronta a poente com o terreno do prédio dos Réus, a parede em pedra pertencente a estes está em ruínas e rachada, com fissuras, pedras deslocadas e sem manutenção por parte dos RR.

15- Os Autores encontram-se emigrados em França, e não vêm mais vezes a Portugal devido a esta situação e sofrem com tristeza e desânimo.
Alteração proposta: Os Autores encontram-se emigrados em França, e não vêm mais vezes a Portugal porque são pessoas idosas e doentes, bem como, por força dos episódios relacionados com infiltrações de águas, lixos e esgotos no seu prédio, situação que lhes prova tristeza e desânimo.

Os recorrentes fizeram indicação de vários documentos juntos aos autos, assim como do relatório de arbitramento e de determinados depoimentos testemunhais, com referência a passagens da gravação tidas por mais relevantes, tendo em vista as referidas alterações da decisão em matéria de facto.
Deste modo, agiram os recorrentes em cumprimento do ónus de impugnação especificado no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil.
Considerando a natureza dos factos e as dificuldades inerente à sua prova, o teor da motivação da sentença (onde se justificam os factos através de outros depoimentos e diferente análise dos mesmos e de documentos), a necessidade de percecionar toda a realidade relatada para melhor aquilatar da credibilidade de cada um dos depoentes e decidir com o menor risco possível para a realização da justiça material e concreta, vai ser ouvida toda a prova produzida e gravada em audiência (art.º 640º, nº 2, al. b), 1ª parte, do Código de Processo Civil).
Como refere A. Abrantes Geraldes[12], com toda a pertinência, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”, exercendo-se um controlo efetivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, se necessário, a decisão em matéria de facto.
Ensina Vaz Serra[13] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e convincente da sua formação.
Vejamos então.
Havemos de atender ao auto de inspeção judical ao local efetuada na fase da audiência final, ao relatório de arbitramento e aos documentos juntos ao processo, designadamente aos de origem administrativa e às fotografias, estas por nos permitirem uma perceção mais realista da situação atual dos prédios de AA. e RR., especialmente da sua confinância entre si, e dos muros que os dividem. Com estes documentos se conjugam as prestações testemunhais produzidas em audiência, desde já se salientando que todos os seus autores --- com exceção de K… --- com mais de 50, 60 e 70 anos de idade, revelaram ter contacto direto com os prédios, conhecendo-os por os frequentarem, terem frequentado ou simplesmente transitarem ou terem transitado no caminho público que os serve ao longo de vários anos, conforme os casos. A testemunha K… é proprietário de um gabinete de projeto de arquitetura e engenharia e tratou do licenciamento dos edifícios e do muro que os RR. têm no seu terreno.
Não foram notadas discrepâncias assinaláveis entre depoimentos testemunhais, nomeadamente entre os depoimentos das testemunhas oferecidas pelos AA. --- F…, irmão da A. e cunhado do A., com chave da casa deles, frequentador do prédio há dezenas de anos e seu vigilante desde há cerca de 6 anos; I…, arrendatária de um anexo à casa dos AA. e a eles pertencente durante cerca de 7 anos, até há cerca de 3 anos, e J…, atual arrendatário do anexo à casa dos AA. desde há quase 2 anos, onde fez obras para eliminar a escorrência de águas sujas do respetivo logradouro --- e as prestações das testemunhas indicadas pelos RR. --- G…, que nasceu e viveu na casa que é atualmente dos AA. até aos 20 anos de idade, H… que viveu perto dos prédios, entre 1986 e 1994, M…, que trabalhos nas fossas dos RR. há cerca de 3 ou 4 anos, e K….
Algumas testemunhas mereceram maior credibilidade por melhor terem explicado os factos, terem um contacto mais longo e mais ativo com os prédios ou algum deles e por os seus depoimentos melhor se coadunarem com os elementos documentais juntos ao processo, especialmente com as fotografias, e com o relatório de arbitramento. As testemunhas que menor contacto tiveram comos prédios são também aquelas que pior conhecimento revelaram deles, de que são exemplo H…, que evidenciou desconhecimento e, sobretudo, hesitação e insegurança no depoimento quanto a grande parte das perguntas que lhe foram efetuadas, e M… que se referiu quase exclusivamente aos trabalhos que executou no prédio dos RR., pouco ou nada mostrando saber relativamente aos muros e ao prédio dos AA.
Respondendo mais diretamente, ponto por ponto, à matéria impugnada…
Ponto 2
O facto provado está correto, mas a modificação pretendida é mais rigorosa. Na verdade o muro que delimita o prédio dos AA. a sul confina com o muro que delimita o prédio dos RR. a norte, ou seja, junto da estrema que separa o prédio dos AA. do prédio dos RR. existem dois muros encostados, ambos divisórios, um no prédio dos AA. e outro no prédio dos RR. deitando um diretamente para o outro. É o que resulta da observação das fotografias juntas ao processo, do relatório de arbitramento e dos depoimentos da generalidade das testemunhas. Este facto não deixou qualquer dúvida.
O ponto dois passa a ter a seguinte redação:
2. O prédio dos AA. confronta, a sul, com o prédio dos RR., através de dois muros paralelos, um integrado no terreno dos AA. e outro integrado no terreno dos RR.

Pontos 7 e 8
A primeira parte da alteração que os recorrente propõem consta já do ponto 6 (o muro divisório foi construído pelos AA. com a altura de um metro e meio).
Quanto ao mais, merece-nos maior confiança o depoimento de F… ao referir que primeiro foram os AA. que compraram o seu prédio, há cerca de 45 anos, e fizeram o seu muro na estrema sul logo de seguida, com cerca de 1,50 m de altura. Só posteriormente os RR. compraram o terreno do lado (a sul), fazendo depois um muro no seu prédio, encostado ao muro dos AA., desde logo mais alto em duas fiadas de blocos, alteando-o mais tarde, em mais 3 ou 4 fiadas. O muro dos RR. sempre foi mais alto do que os dos AA. É certo que é familiar próximo dos AA., mas o seu depoimento foi escorreito e seguro, e é também o melhor se harmoniza com as fotografias documentadas.
Não será de excluir que o muro dos RR. estivesse primeiro, encimado por uma folha de chapa que foi depois retirada e substituída por blocos, mas não convence a testemunha G… quando refere que aquele acrescento do muro em blocos não foi além da altura que a chapa ocupava anteriormente. Disso não convence também a testemunha H… que, de forma muito insegura, se referiu a essa situação, incluindo as datas das modificações. As fotografias juntas com a petição inicial e com o auto de inspeção judicial, pela formação e configuração que revelam do muro, ajudam a confiar na prestação probatória de F…. A I… deu conta de que, quando foi viver para o local, por volta de 2011, o muro dos RR. já tinha a altura que tem hoje. O seu depoimento afigurou-se isento e desinteressado.
Também não é seguro afirmar que o muro construído pelos RR., ao menos na sua parte superior, construída em blocos de cimento, visasse a sustentação de terras do seu prédio.
Tudo ponderado, os pontos 7 e 8 devem ser modificados, mas não com a dimensão que os RR. lhe pretendem dar.
O ponto 7 passa a ter o seguinte teor:
7. O muro construído pelos RR. na definição da estrema norte do seu prédio foi construído posteriormente com altura superior ao muro dos AA., sendo inicialmente composto por uma parte em cimento e outra em chapa metálica.
O ponto 8 passa a ter o seguinte teor:
8. Posteriormente, os RR. altearam esse muro com novas fiadas de blocos de cimento, ficando ele com uma altura superior ao muro construído pelos AA. em cerca de um metro e quinze centímetros.

Ponto 9
Resultou da prova produzida que os AA. toleraram a construção do muro pelos RR., mas não se conformaram com o acrescento do muro e foi então que surgiu o conflito entre as partes. O que está provado é que os AA. reclamaram imediatamente quando os RR. acrescentaram o muro para cima.
O ponto 9 passa a ter o seguinte teor:
9. Os AA. reclamaram imediatamente quando os RR. elevaram, da última vez, a altura do muro que haviam construído.

Pontos 10 e 12
Quanto a estes pontos são sintomáticas as fotografias juntas com a petição inicial e as que integram o auto de inspeção judicial ao local, onde são bem visíveis os dois muros confluentes na zona de estrema dos dois prédios, a forma como o muro do prédio dos RR. está construído, o seu alteamento e a sua altura aparente, várias fiadas de blocos acima do muro dos AA.
Extrai-se do relatório da perícia realizada: “(…) É um facto que a presença desta parede interfere com a exposição solar da casa dos Autores (alçado Poente) e do logradouro, já que a casa se encontra implantada com alguma proximidade a esse muro. (…)”.
As fotos ilustram esta afirmação pericial.
Os depoimentos testemunhais fazem alusão segura às lamentações expressas sucessivamente pelos AA. por verem prejudicada a receção de luz, sol e calor no seu prédio, por causa da altura do muro, assim como a vistas.
Os referidos factos estão, no essencial, provados; porém com algumas limitações e esclarecimentos que passamos a deixar expressos, conforme o novo teor que se segue:
10. Tendo este muro dos RR. um metro e quinze centímetros acima da altura do muro dos AA., impede as vistas para sul a partir de duas janelas e porta situadas no prédio destes de forma lateral (perpendicular) ao muro, e prejudica a entrada de luz e ar através dessas mesmas aberturas.
12- O referido muro diminuiu a luminosidade e o calor que a casa dos AA. recebe do sol.

Ponto 13
Extrai-se do relatório pericial: “A estabilidade aparente do muro de gravidade existente merece algumas preocupações. Como se poderá observar a partir da (Figs. 10 e 11). O imbricamento entre as várias pedras é irregular, apresenta um elevando volume de vazios, várias zonas do betão superior fraturadas e há sinais evidentes de terem ocorrido deslocamentos em direção ao prédio da Autora, com uma visível rotação do muro de blocos de betão aí existente (Fig. 10). A presença de um poste de média/alta tensão junto ao muro, poderá naturalmente potenciar o agravamento dos deslocamentos verificados no paramento do muro. Esta patologia verifica-se ao longo de aproximadamente 13-15 metros”.
O Sr. perito apresentou o que considera ser o procedimento correto para a reabilitação deste muro, que passa pelo desmonte integral do muro existente e a sua reconstrução, com prévia eliminação dos impulsos causados pelas terras existentes no tardoz do muro.
Ficou patente no relatório pericial a necessidade deste muro ser intervencionado, corrigido, estabilizado, assim como a forma adequada à sua reabilitação. Se esta necessidade não existisse, não a teria o Sr. perito manifestado. Ao escrever-se no relatório “estabilidade aparente” do muro, está subentendido que ela não é real. Não é real, designadamente, porque já ocorreram, com evidência, deslocamentos do muro em direção ao prédio dos AA., com visível rotação da parte em que está construído em blocos.
Dada a descrição pericial, não surpreende a afirmação da testemunha F… (a testemunha que demonstrou conhecer melhor esta situação do muro antigo) de que este muro está degradado “há um tempito” e cada vez pior, principalmente nos últimos dois anos; que tem fendas e pode cair no terreno dos AA. Também J… foi perentório ao afirmar que o muro antigo está em mau estado e que pode cair se vier uma chuvada forte, designadamente contra a casa dos AA., havendo um afunilamento entre estas duas construções.
Com base nestas descrições, que se coadunam bem com o que se observa a partir das fotografias juntas aos autos, é de todo aceitável a ilação, segundo critérios de lógica jurídica e a partir das regras da experiência comum --- feita, aliás, pela Sr.ª Juiz que observou o muro --- de que há um perigo de desabamento desse muro antigo sobre o prédio dos AA. se não for efetuada uma intervenção reabilitante. É de um perigo concreto que se trata. É para o perigo concreto que aponta o juízo pericial e testemunhal.
Mantém-se o ponto 13 dos factos provados.

Ponto 15
Extrai-se do conjunto dos depoimentos prestados em audiência que os AA., residentes em França, onde são emigrantes, estão na idade da reforma e têm alguns problemas de saúde que dificultam a sua vinda a Portugal. Mas resulta dos mesmos depoimentos, com foro de seriedade, que outras razões se têm vindo a verificar que, igualmente, desmotivam a sua vinda de França à casa de …, sendo elas as más relações de vizinhança com os RR., devidas, além do mais, ao facto destes terem alteado o muro de blocos de cimento e o prejuízo que isso causa às suas vistas, circulação de ar, entrada de luz e calor no seu logradouro e na sua casa de habitação, assim como o mau estado do muro antigo dos RR., situado a ponte, sofrendo de tristeza e desânimo por tudo isso.
O facto de estar resolvido o problema da retenção e acumulação de águas, lixo e tudo o mais que surgia no logradouro do prédio dos AA. e escorria para a adega situada junto àquele, a que se refere a petição inicial aperfeiçoada e o respetivo pedido D), cuja inutilidade foi declarada na ata de audiência, não afasta a situação de prejuízo descrita no facto provado 15, ou seja, a tristeza e o desânimo e a perda de vontade de vir de França à casa de Regilde por causa da situação do alteamento de um dos muros dos RR. e do mau estado do muro antigo, assim, do prejuízo que essa situação acarreta nos termos referido nos pontos 10 a 13.
O ponto 15 passa a ter o seguinte texto:
15. Os AA. encontram-se emigrados em França, e não vêm mais vezes a Portugal devido a alguns problemas de saúde e também a esta situação que os faz sofrer com tristeza e desânimo.

Termos em que, ao abrigo do art.º 662º, nº 1, do Código de Processo Civil, se altera a decisão proferida em matéria de facto, reproduzindo-a agora em conformidade:
1- Os AA. têm inscrito a seu favor o prédio urbano sito na Rua …, nº .., ….-… …, Felgueiras, composto por uma casa de rés-do-chão e andar, com logradouro, descrita na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob o n.º 606 da freguesia de … e inscrito no Serviço de Finanças de Felgueiras sob a matriz urbana com o artigo n.º 129, da referida freguesia.
2. O prédio dos AA. confronta, a sul, com o prédio dos RR., através de dois muros paralelos, um integrado no terreno dos AA. e outro integrado no terreno dos RR.
3- Entre o prédio dos AA. e o dos RR. existe um desnivelamento natural, encontrando-se o dos AA. num plano inferior em relação ao prédio dos RR., nomeadamente o rés-do-chão, sendo o 1º andar situado quase ao mesmo nível do prédio dos RR..
4- Os AA. compraram a casa já construída há mais de 30 anos, tendo procedido posteriormente a uma renovação do primeiro andar.
5- Os RR. compraram o seu prédio posteriormente a esta data.
6- O muro divisório foi construído pelos AA. com a altura de um metro e meio.
7. O muro construído pelos RR. na definição da estrema norte do seu prédio foi construído posteriormente com altura superior ao muro dos AA., sendo inicialmente composto por uma parte em cimento e outra em chapa metálica.
8. Posteriormente, os RR. altearam esse muro com novas fiadas de blocos de cimento, ficando ele com uma altura superior ao muro construído pelos AA. em cerca de um metro e quinze centímetros.
9. Os AA. reclamaram imediatamente quando os RR. elevaram da última vez a altura do muro que haviam construído.
10. Tendo este muro dos RR. um metro e quinze centímetros acima da altura do muro dos AA., impede as vistas para sul a partir de duas janelas e porta situadas no prédio destes de forma lateral ao muro, e prejudica a entrada de luz e ar através dessas mesmas aberturas.
11- A fachada principal da casa dos AA. que confina com o seu muro divisório e com o muro dos RR., possui duas janelas e uma porta, todas em vidro, na varanda do primeiro andar da casa dos AA., sendo que este andar situa-se quase ao mesmo nível do prédio daqueles.
12- O referido muro diminuiu a luminosidade e o calor que a casa dos AA. recebe do sol.
13- Nas traseiras do prédio dos AA., e que confronta a poente com o terreno do prédio dos RR., a parede em pedra pertencente a estes está em ruínas e rachada, com fissuras, pedras deslocadas e em perigo de desabamento, sem manutenção por parte dos RR.
14- Todas estas situações já foram objeto de queixa pelos AA. à Câmara Municipal …, tendo sido feitas vistorias para verificação das condições de salubridade e segurança ao prédio dos AA.
15. Os AA. encontram-se emigrados em França e não vem mais vezes a Portugal devido a alguns problemas de saúde e também a esta situação que os faz sofrer com tristeza e desânimo.
16- A construção do muro a Sul pelos RR. serviu como sustentação de terras e, inicialmente, além da parte cimentada, tinha uma chapa metálica opaca.
17- Os RR. possuem no seu prédio sistema de recolha de águas e fossas sépticas.
*
3. Na aplicação do Direito:
a) O muro construído pelos RR. e o conflito de direitos
Os recorrentes não questionam o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio urbano identificado no ponto 1 dos factos provados, prédio esse descrito na Conservatória do Registo Predial e ali inscrito em nome dos mesmos, valendo a presunção de titularidade do direito (de propriedade) que o art.º 7º do Código do Registo Predial estabelece.
Não questionam também as partes --- antes o afirmam --- que os RR. são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano que confina, a norte, com o prédio dos AA.
Junto àquela estrema, no seu prédio, os RR. erigiram também um muro, havendo, assim, dois muros paralelos confinantes a demarcar a mesma estrema, pertencendo um dos AA., edificado no seu prédio, e o outro aos RR.
O tribunal a quo, qualificando os factos em função do pedido como uma colisão de direitos --- por um lado, o direito dos RR. à tapagem do seu prédio, por outro lado, o direito dos AA. à insolação do prédio confinante, visto este como um direito ao ambiente e à saúde, na vertente do direito ao sol e ao ar, integrado nos direitos de personalidade --- concluiu que os AA. têm o direito à diminuição da altura do muro dos RR. à altura máxima de 1,80 m a contar da cota inferior, ou seja, da cota do terreno (da entrada) dos AA., julgando parcialmente procedente o peticionado nesta parte pelos demandantes.
Situando a sua defesa também na colisão de direitos, os RR. argumentam que o direito dos AA. e o direito dos RR. são merecedores de igual tutela e que o muro que construíram não afeta as vistas, nem a luz solar nem o arejamento do prédio dos AA. ou, se afetação existe, ela é tão exígua que o direito de tapagem do seu prédio e à privacidade e segurança dos RR. tem de prevalecer sobre o direito dos AA., devendo o pedido de demolição ser julgado totalmente improcedente. A decisão recorrida estabelece uma gritante “desproporcionalidade entre a desvantagem e sacrifício permanente imposto aos Recorrentes em contraponto com a vantagem dos Recorrentes[14], vantagem que assume uma natureza de direito à devassa, exercício que será sempre ilegítimo” (…) e “em lado algum existe prova ou qualquer dado donde se possa inferir uma efetiva lesão provocada pelo muro”. Para além disso, “os recorridos apenas esporadicamente utilizam aquele prédio, na medida em que tem residência habitual e permanente em França, onde estão emigrados há mais de 50 anos. Não está em causa um interesse permanente dos Recorrentes[15]”.
Vejamos.
Discute-se o exercício do direito de propriedade dos RR., nomeadamente com a construção e permanência de um muro na zona de divisão do seu prédio (neste construído).
O direito de propriedade privada tem consagração constitucional (art.º 62º da Constituição da República), é o direito real maior, aquele que faculta ao seu titular os poderes mais amplos de gozo que se podem exercer sobre as coisas.
Nos termos do subsequente art.º 1344º, nº 1, «a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.»
Contudo, não se trata de um direito com um exercício ilimitado.
A par do reconhecimento e previsão do referido direito entre os demais direitos reais, tipificados em sistema de numerus clausus, a lei ordinária admite restrições ou limitações no seu exercício. É o que resulta do art.º 1305º do Código Civil: «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas».
Há restrições de interesse público emergentes da função social, económica e ammbiental do direito (art.ºs 61º, nº 1, 65º, 66º, 81º, al.s c) a e), 89º e 96º, nº 1, da Constituição da República) e de interesse privado relativas às relações de vizinhança.
Menezes Cordeiro[16], sob a designação de “conteúdo negativo dos direitos reais”, refere que se trata de “restrições em relação ao titular do direito delimitado, que correspondem a posições activas — maxime afectações autónomas, isto é, direitos subjectivos — em relação aos terceiros beneficiários das excepções à proibição geral”.
Quanto ao seu papel, as restrições podem ser independentes, quando beneficiem um sujeito isolado, ou de conflito, quando favoreçam o titular de outro direito real que conflitue com o direito real restringido, sendo exemplos deste tipo os conflitos de vizinhança ou de sobreposição, consoante se trate de direitos sobre coisas vizinhas ou de direitos concorrentes sobre a mesma coisa.
O mesmo Professor faz notar que o casuísmo de que enferma esta matéria das restrições de vizinhança “é provocado, em parte, pela própria natureza das coisas, que exige composições claras dos possíveis conflitos de vizinhança, sem subordinação a esquemas teóricos preestabelecidos”[17].
O Código Civil prevê, entre as restrições ao direito de propriedade, a emissão de fumo, produção de ruídos e factos semelhantes (art.º 1346º), instalações prejudiciais (art.º 1347º), escavações (art.º 1348º), passagem forçada momentânea (art.º 1349º), ruína de construção (art.º 1350º), escoamento natural das águas (art.º 1351º) e obras defensivas das águas (art.º 1352º). Trata-se da proteção de interesses privados decorrentes das relações de vizinhança. Além destas restrições, outras existem previstas na lei, como é o caso da legislação urbanística (de que é exemplo o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-lei nº 555/99, de 16 de dezembro[18]) e ambiental, justificadas pela necessidade de proteger também interesses alheios, desta feita, de natureza pública, como são, designadamente, a segurança, a estética e a salubridade, a proteção dos ecossistemas, etc.
É no âmbito de um conflito de vizinhança que nos movemos neste caso concreto.
Ao proprietário do prédio assiste o direito de tapagem: a todo o tempo lhe assiste o direito de murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo (art.º 1356º do Código Civil). Foi o que os RR. fizeram. Através da tapagem com a construção de muros de vedação previne-se a devassa do prédio vizinho, por indiscrição, intromissão no espaço deste, seja por arremesso de objetos, seja pela redução das vistas.
A Constituição da República consagra o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, enquanto direito fundamental (art.º 26º, nº 1), mas também o direito social à saúde e a um ambiente de vida humano sadio e equilibrado que abranja, nomeadamente, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitetónico (art.º 66º, nº 1 e nº 2, al. e)).
A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral (art.º 70º, nº 1, do Código Civil). Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (nº 2 do mesmo preceito legal).
Nos termos do art.º 335º, nº 1, do Código Civil, havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
De acordo com o nº 2 do mesmo artigo, se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
Na colisão de direitos estão em causa os limites externos de cada direito e a necessidade de respeitar os direitos dos outros[19].
Há colisão de direitos quando dois ou mais direitos subjetivos assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si.[20]
Esta figura integra-se nos limites extrínsecos, significando que os atos de exercício dos direitos têm de obedecer à condição de não estarem em colisão com o direito a que devam ceder. Pressupõe a concorrência de direitos de outras pessoas em termos de se tornar total ou parcialmente impossível o exercício cumulativo de todos eles.[21]
Importa neste caso, como em qualquer outro, proceder a uma criteriosa identificação e ponderação quer dos bens jurídicos tutelados pelas normas jurídicas estruturantes dos direitos colidentes, quer dos conteúdos dos poderes jurídicos resultantes destes direitos, quer ainda dos factos reais constitutivos ou modificativos de cada um dos direitos subjetivados em colisão, das modalidades de atividade material concretamente exercitadas ou exercitandas pelas partes e dos interesses efetivamente prosseguidos por elas. Em um dos pratos da balança, após verificarmos a existência real de ambos os direitos subjetivados em colisão e a inexistência de regulação legal específica para tal conflito, colocaremos todos os factos reais juridicamente relevantes e todos os valores jurídicos respeitantes, uns e outros, ao direito de personalidade concretamente conflituante.[22]
Os valores jurídicos englobam, nomeadamente, as qualidades dos bens de personalidade que os tornam juscivilisticamente tutelados, os interesses ou fins jurídicos abstratamente visados por aquelas proposições normativas e a adequação social e individual dos modos de exercício do direito de personalidade abstratamente permitidos.[23] Tais valores são hierarquizáveis ideológico-culturalmente de um modo muito diferente. Aqui, porém, temos de proceder a uma ordenação axiológica referida à natureza, sentido e função do Direito e ao relevo que tais valores personalísticos assumem enquanto fundamentos, significações ou objetivos da normal coexistência humana juridicamente tutelada.
No caso de conflito de direitos, a sua resolução normativa não se rege pelas escalas axiológicas subjetivas de cada um dos intervenientes, mas pela importância objetiva dos valores personalísticos para a realização dos fins jurídicos da comunidade. É o que decorre do sistema jurídico, na sua unidade. Na hierarquização legal dos valores pessoais e patrimoniais volta a imperar a importância objetiva de tais valores para a realização dos fins jurídicos da comunidade, particularmente, no que toca ao mais imediato e fundamental do comum da existência humana. Daí que nem sempre os valores pessoais precedam os valores patrimoniais. Tal precedência verifica-se, sem dúvida, quanto ao valor da personalidade humana total integrando todos os valores singulares da personalidade, quanto ao valor da dignidade humana essencial e quanto aos valores vitais.[24]
A solução do conflito passa pelo sacrifício no mínimo necessário de qualquer dos direitos conflituantes e pelo não privilegiar qualquer um desses direitos, suportando cada um dos titulares dos direitos, em igual medida, os custos da resolução da colisão, de modo a que os direitos conflituantes, nos seus concretos modos de exercício, possam coexistir um ao lado do outro e produzam os seus efeitos próprios em condições de igualdade. Estas reportam-se tanto aos efeitos produzidos como aos sacrifícios exigidos.
Tem vindo a defender-se que, à semelhança do abuso de direito, a colisão de direitos tem por principal missão impedir que a simples aplicação estrita dos comandos legais conduza a injustiças clamorosas ou a clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.
Escreve-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.10.2008[25]: «Ocorrendo um conflito de direitos um deles terá de prevalecer e esse será o que se considere superior, sendo que, se iguais, a prevalência deve ser aferida casuisticamente.
Tratando-se de direitos de espécie diferente irá prevalecer aquele que tutela interesse superior, tendo sido dada primazia aos direitos de personalidade e, de entre esses, aos mais antigos. (cf. o n.º 2 do artigo 335.º do Código Civil, “o que deva considerar-se superior” e v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 2000 – CJ/S.T.J VIII-42-45 – de 27 de Maio de 2004 – CJ/S.T.J XII, 2.º - 71-74 – de 14 de Outubro de 2003 – 03 A 2249 (…).» E ponderando ali outra jurisprudência, transcreve: «Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos».

O direito de tapagem do prédio que assiste aos AA. é, no imediato, um direito patrimonial, integrado no direito de propriedade, sendo que, através do seu exercício, pode estar-se também a proteger a reserva da intimidade da vida privada e familiar, um direito de personalidade que, em alguma medida, tem tutela penal. Esta, porém, é restrita a situações mais graves, a justificar elevada proteção, como é a entrada (e permanência) abusiva na habitação de outrem ou em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação (art.ºs 190º e 191º do Código Penal).
Os direitos dos AA. a vistas, ao arejamento e à luz e aquecimento solar do prédio que integra habitação e na própria habitação são também direitos de personalidade e inserem-se no direito, mais vasto, à saúde e ao bem-estar e no direito a um ambiente urbano equilibrado e natural, de consagração constitucional (art.ºs 64º a 66º da Constituição da República). O seu exercício não depende de qualquer entrada e permanência na casa ou no logradouro dos RR. Apenas as vistas dos AA. para sul, na ausência de muros, pode acarretar desconforto para os RR. no uso e exercício de atividades no logradouro do seu prédio. O arejamento da casa dos AA, a passagem, para ela, da luz e do calor solar não trazem qualquer prejuízo para os RR. que não ficam impedidos, nem especialmente afetados na continuação das suas ações no seu prédio, pelo menos todas aquelas que normalmente se praticam nos pátios e quintais da casas: horticultura, jardinagem, bricolage, desporto e tantas outras inerentes à vida social e doméstica.
Vivemos em sociedade, em contacto, em interação. Os meios urbanos são espaços de comunicação por excelência, não sendo razoável pretender-se neles um isolamento tão elevado que ultrapasse a medida da necessidade de proteção da vida privada, segundo os padrões culturais dominantes; estaríamos então a construir uma “cidade de muros”, uma cidade que se negaria a si própria. A troco do maior isolamento possível de cada um, teríamos o prejuízo da saúde e bem-estar de todos, numa espiral absolutamente iníqua e perniciosa, por isso, indesejável.
Impõem-se aqui tratar de uma relação de vizinhança, mas não são descabidas as restrições inerentes à função social do direito de propriedade.
Se perspetivarmos que o muro que os RR. construíram se destina a vedar o seu prédio, a sul, onde parte com os AA., assim, com função divisória (pois que está construído junto à linha de estrema), a sua utilidade é quase nula, porque a divisão já estava ali definida através de um muro (divisório) preexistente, propriedade dos AA.
Se entendermos que o muro dos RR. cumpre um função de suporte de terras, justificada pelo facto do terreno dos RR. se situar a um nível superior ao prédio dos AA. --- apesar de já existir o muro destes últimos --- é de todo evidente, segundo as regras da experiência, que essa função é alheia às fiadas de bloco que correspondem à sua ampliação superior. Não se suportam terras com blocos de cimentos, mas com betão, muros de betão! As fotografias juntas ao processo revelam bem que a parte superior do muro não tem qualquer utilidade para os RR. que não seja evitar a devassa do seu prédio pelo olhar dos vizinhos, desde logo a partir das duas janelas e porta situadas no seu prédio, ainda que em posição perpendicular ao muro.
Não foi feito um estudo científico minucioso sobre a incidência dos raios solares na casa de habitação dos AA., necessariamente variável conforme as épocas do ano. Mas nem por isso deixou de se provar, mesmo com apoio num juízo técnico, emergente da prova pericial produzida, que o muro dos RR., a sul, prejudica a entrada de luz e ar através daquelas aberturas (janelas e porta), diminuindo a luminosidade e o calor que a casa dos AA. recebe do sol. Por ser notório, dispensa maior explicação que, dada a variação anual da posição relativa entre o sol e a terra, fora dos meses de verão e sobretudo no inverno, ocorrem as maiores vantagens da insolação do prédio dos AA. para a saúde e bem-estar dos seus habitantes.
Pouco importa que os AA. tenham atualmente a sua residência principal em França. As construções, tanto do muro dos RR. como da casa daqueles, servem para o presente e para o futuro. Não são construções provisórias nem precárias; são construções estáveis e permanentes. Ademais, está provado que os AA. não vêm mais vezes a Portugal e à sua habitação neste país também devido a esta situação, que lhes causa tristeza e desânimo.
Releva ainda o facto de a construção da casa de habitação AA. ser mais antiga do que a construção do referido muro do RR. que, aliás, foi objeto de ampliação recente não justificada por qualquer necessidade de contenção de terras ou outra.
Estando em causa uma colisão de direitos privados, mais concretamente um conflito de vizinhança, não importa especialmente o direito público administrativo, mas as normas de direito privado que resultam do Código Civil, com a já referida proteção constitucional. Não foi estabelecido qualquer nexo causal entre o resultado da (eventual) violação, pelos AA., do direito urbanístico na construção ou reabilitação do seu edifício e o prejuízo que para eles resulta no arejamento e insolação da casa. São, aliás, parcos os factos provados. O que se provou está no estrito âmbito da relação de vizinhança e concretiza-se na influência negativa que o muro construído pelos RR. exerce sobre a casa de habitação dos AA., prejudicando o seu arejamento e insolação, e o direito à saúde e bem-estar dos seus habitantes, direitos fundamentais ligados à personalidade humana.
Sem dúvida, estes direitos, pela sua natureza, prevalecem sobre o direito patrimonial de tapagem que assiste aos RR., e também sobre o direito que estes invocam à privacidade no seu prédio. Devem estes ser comprimidos na medida do necessário à realização razoável e equilibrada dos superiores direito dos AA., compatibilizando-os entre si e evitando sacrifícios desnecessários para qualquer das partes, harmonizando os interesses das partes.
Nesta senda, decidiu bem o tribunal recorrido ao ordenar o abaixamento do muro dos RR. para a altura de 1,80 m a contar da cota mais baixa. Por um lado, permite a tapagem do prédio dos RR. e proteção da sua privacidade --- o muro continua a ter mais 0,30 m de altura do que o muro dos AA., estando o prédio dos RR. numa cota superior --- e, por outro lado, viabiliza o melhor exercício/benefício, pelos demandantes, de direitos fundamentais e de personalidade, especialmente entre março e setembro, quando há menos horas diárias de sol e a influência da insolação é mais importante.
Improcede nesta parte a apelação.
*
b) O muro situado a poente
Os recorrentes não questionam o dever de reparação do muro situado a poente fora do quadro da modificação da decisão em matéria de facto. Não tendo sido obtida a eliminação do facto provado sob o ponto 13 da sentença na parte que dá como assente a existência de perigo de desabamento da parede de pedra, não existe qualquer questão para apreciar em sede de aplicação do Direito relativamente a esta decisão.
*
c) Os danos não patrimoniais: o direito e a quantificação
Alegam os apelantes, no essencial que:
- Entre a diversidade de situações, não se concretizou quais delas efetivamente provocaram desgostos, tristeza e desânimo aos AA.;
- Não é dada a conhece na sentença recorrida a concreta natureza do desânimo e da tristeza infligida, mormente como se manifestou na esfera pessoal e emocional dos recorridos;
- Por terem os AA. residência permanente e habitual em França, distantes de Portugal, os danos não patrimoniais são contraditórios;
- Os danos morais, pela sua diminuta dimensão, não revestem gravidade suficiente que justifique a indemnização.
Vejamos.
Ultrapassada que está a tese, já defendida por alguns, de que os danos morais, de grandezas heterogéneas e dimensão psicológica e espiritual[26], são por natureza irreparáveis, o próprio legislador consignou o dever da sua reparação sempre que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art.º 496º, nº 1, do Código Civil). Hoje, o dano moral é um dano próprio sensu.
Tem-se então perspetivado que a prestação pecuniária a cargo do lesante, além de constituir para este uma sanção adequada, em benefício da vítima, pode contribuir para atenuar, minorar e de algum modo compensar os danos por ela sofridos. Não há a intenção de pagar ou indemnizar o dano, muito menos o intuito de facultar o comércio com valores de ordem moral, mas apenas intuito de atenuar um mal consumado, sabendo-se que a composição pecuniária pode servir para satisfação das mais variadas necessidades, desde as mais grosseiras e elementares às de mais elevada espiritualidade, tudo dependendo, nesse aspeto, da utilização que dela se faça.[27] Com a compensação, o lesado mais facilmente procura alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral.
Como também se tem dito, trata-se de prejuízos de natureza infungível, em que, por isso, não é possível uma reintegração por equivalente, como acontece com a indemnização, mas tão-só um almejo de compensação que proporcione ao beneficiário certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro. A indemnização tem aqui um papel mais compensatório, mais do que reconstitutivo.
Para Antunes Varela[28], “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.
O dano deve ser de tal modo grave que justifique a tutela do Direito, pela concessão da satisfação de ordem pecuniária.
O montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal (nº 3 do referido art.º 496º), através de adequado e equilibrado critério de justiça material e concreta. Devem ser ponderadas as circunstâncias concretas de cada caso, considerando especialmente, em situações de mera culpa, a possibilidade da indemnização ser inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que a culpabilidade do agente e a situação económica deste e do lesado o justifiquem (art.ºs 494º e 496º, nº 3, do Código Civil), o que confere ainda mais a natureza de compensação, de satisfação, do que de indemnização à quantia a atribuir.
Tem entendido a jurisprudência dos tribunais superiores, de há anos a esta parte, que, para responder de modo atualizado ao comando do art.º 496º, a indemnização por danos não patrimoniais tem que constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem que ser significativa[29]; mas também tem que ser justificada e equilibrada, não podendo constituir um enriquecimento abusivo e imoral.
Assim, a apreciação da gravidade do dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana, e a fixação da indemnização deve orientar-se em harmonia com os padrões de cálculo adotados pela jurisprudência mais recente, de modo a salvaguardar as exigências da igualdade no tratamento do caso análogo, uniformizando critérios[30].
Numa síntese feliz, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.6.2007[31] refere-se que “a justa indemnização por danos não patrimoniais deve ser achada tendo o julgador presente todas as regras da boa prudência, do bom senso prático da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, não obliterando, para além dos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações do valor da moeda, bem como que a reparação tem uma natureza mista, dado que por um lado visa reparar e, por outro, punir a conduta”.
Está provado que os AA. se encontram emigrados em França e que não vêm mais vezes a Portugal devido a alguns problemas de saúde e também a esta situação que os faz sofrer com tristeza e desânimo.
A indemnização não pode ir além da compensação do dano moral que seja consequência adequada da situação imputável aos RR., na estrita medida em que se provou (art.ºs 483º e sg.s, em especial o 496º, do Código Civil e art.ºs 562º e seg. do mesmo código). Deste modo, é hialino que os RR. não podem responder por possível desgosto que os AA. sentem por causa das dificuldades que os seus problemas de saúde causam à sua vinda a Portugal. Todavia, podem e devem responder pelo dano não patrimonial que consiste na tristeza e desânimo que sentem por causa da redução de insolação e circulação de ar no seu prédio ao longo do tempo resultante da ampliação do muro dos RR., a sul, e em razão do risco de desabamento da parede de pedra dos RR. situada a poente, a que acresce o facto de, também por causa disso (a par dos problemas de saúde) terem passado a vir menos vezes a Portugal.
Tristeza e desânimo, assim como perda de vontade de viajar para Portugal são factos psicológicos suscetíveis de prova, e não são inócuos nem surpreendentes quando, na sua origem, está uma realidade como a que ficou demonstrada. As regras da experiência e os nossos padrões culturais evidenciam com clareza o elevado grau de sofrimento psicológico que o homem médio, não especialmente sensível, sofre quando observa uma construção que prejudica significativamente a incidência solar e o arejamento na sua habitação preexistente, para mais pelo acrescento em altura de um muro em blocos de cimento sem motivo aparente que não seja resguardar ainda mais o prédio dos RR. das vistas dos AA. Maior é o sofrimento se a isto acrescer a perda de vistas e o risco da queda de uma parede de pedra dos RR. sobre o seu prédio, obrigando-os a diligenciar junto das autoridades administrativas e dos tribunais ao longo dos tempos, para que seja colocado fim à situação prejudicial.
O facto de os RR. residirem habitualmente em França e terem residência permanente nesse país, não afasta o sofrimento por que passam ao saberem o estado em que se encontra a sua casa de habitação em Portugal, sendo presumir até que o seu sofrimento aumenta por causa da distância a que se encontram e das maiores dificuldades por que passam necessariamente na tentativa de resolução dos problemas.
Ao contrário do que parecem querer inculcar os recorrentes, não está em causa a reparação do prejuízo resultante para os AA. de viverem permanentemente ou habitualmente numa casa de habitação mais húmida ou mais insalubre, a sua perda efetiva, concreta, de saúde, de bem-estar e qualidade de vida que daí tenha resultado, mas o desgosto, a tristeza e o desânimo que sentem em razão do estado em que os seus vizinhos colocaram e fazem permanecer o seu prédio, desmotivando-os da vinda ao seu país de origem.
Os danos não patrimoniais atingem gravidade suficiente para que assista aos AA. o direito à indemnização, a calcular segundo um critério de equidade, ou seja, de justiça material e concreta (art.º 496º, nºs 1 e 3, in limine, do Código Civil).
Essa indemnização foi corretamente fixada pela 1ª instância em € 1.000,00.

A sentença não merce qualquer reparo, antes a sua confirmação.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
……………………………
……………………………
……………………………
*
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão sentenciada.
*
Custas do recurso pelos recorrentes, por nele terem decaído (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
Porto, 13 de junho de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
__________________
[1] Não foram admitidos os pedidos sob a alínea F) e G), ou seja, que os RR. fossem condenados: F) a proceder às reparações que se mostrem necessárias efetuar no imóvel dos AA., para o repor em bom estado de uso, por causa direta dos danos provocados pelas infiltrações e humidade a que este está sujeito; ou, G) em alternativa ao requerido em F), a indemnizar os AA. na quantia que estes venham a despender para o efeito e cuja liquidação do valor relegam para liquidação de sentença.
No que respeita ao pedido sob a alínea D), foi o mesmo extinto por inutilidade superveniente da lide, conforme consta da ata de audiência de julgamento.
[2] Por transcrição.
[3] Por transcrição.
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[5] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[6] O assento nº 4/95, DR de 17.5.1995 prevê, no entanto que, quando a pretensão se basear em contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada, deve o tribunal condenar na restituição do recebido, por aplicação do art.º 289º do Código Civil, se do processo constarem os factos suficientes.
[7] É sabido que hoje o juiz pode considerar factos não alegados pelas partes, mas nos apertados limites do art.º 264º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.
[8] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 51.
[9] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 68.
[10] Cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396. Cf. ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[11] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[12] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[13] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[14] Quis escrever-se “recorridos”.
[15] Terão os recorrentes querido dizer “recorridos”.
[16] Direitos Reais (I Volume), Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1979, pág. 585.
[17] Idem, pág. 591.
[18] E sucessivas alterações.
[19] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina 2009, pág.s 280 e seg.s.
[20] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil V, Almedina 2011, pág. 385.
[21] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.1999, proc. 99B258, e de 9.5.2006, proc. 06A636, in www.dgsi.pt.
[22] Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 2011, pág. 534.
[23] Idem, pág. 536
[24] Idem, pág.s 539 e 540.
[25] Proc. 08A3005, in www.dgsi.pt.
[26] Sem natureza económica (cf. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º Volume, AAFDL 1980, pág. 285.
[27] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 5ª edição, pág.s 563 e 564.
[28] Ob. cit., pág. 568.
[29] Cf., entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 11.10.94, BMJ 440/449, de 17.1.2008, proc. 07B4538 e de 29.1.2008, proc. 07A4492, in www.dgsi.pt e da Relação de Lisboa de 13.2.97, Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 123,
[30] Não é não incompatível com o exame das circunstâncias de cada caso.
[31] Proc. 07B1543, in www.dgsi.pt.