Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6329/21.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: DOAÇÃO
BENS MÓVEIS
TRADIÇÃO DA COISA
DISPENSA DA COLAÇÃO
Nº do Documento: RP202301246329/21.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na doação de bens móveis, a lei não se contenta com o acordo das partes, exigindo a tradição da coisa ou um escrito – exigência que se funda na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto.
II - A tradição significa a transferência dos poderes de facto sobre a coisa (cuja propriedade é transferida pelo negócio – pelo animus donandi e pela aceitação) feita pelo doador para o donatário.
III - A tradição constituiu uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, que se concretiza pela sua entrega feita pelo possuidor ao adquirente da posse e desdobra-se, por isso, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro e no seu empossamento por parte do segundo.
IV - A doação manual é aquela que é acompanhada da tradição da coisa - o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse revela a vontade de aceitar a liberalidade.
V - Tradição (entrega) da coisa que pode ser material ou simbólica (tal qual a aquisição da posse): a disposição material de uma coisa – a sua posse – tanto pode resultar dum acto que confere de imediato essa disposição, como de um que apenas a torna possível, relevando, em qualquer das hipóteses, que o acto de entrega torne efectivo o apossamento da coisa.
VI - Demonstrada a prática de actos destinados a colocar a coisa (valores monetários) na disponibilidade do donatário, isto é, a transferir para este a posse de tais valores (os poderes de facto sobre eles) ou a empossá-lo neles, fazendo concomitantemente cessar a relação material que a doadora tinha com os mesmos (no fundo, a prática de actos de transferência da posse da doadora para o donatário), tem de concluir-se a existência de tradição (de doação manual).
VII - Admitindo que a presunção legal de dispensa de colação estabelecida no art. 2113º, nº 3 do CC é iuris tantum, sempre competirá ao interessado a prova do facto contrário (isto é, a inexistência de dispensa de colação – a prova de que o doador quis efectuar a doação por conta da legítima do donatário e não por conta da quota disponível).
VIII - Apurado que a doação não está sujeita a colação e deve, por isso, ser imputada na quota disponível (arts. 2113º, nº 3 e 2114º, nº 1, do CC), a sua eventual inoficiosidade só se verificará se se concluir pela existência de ofensa à legítima do autor, herdeiro legitimário, o que só poderá ser apurado no âmbito do inventário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 6329/21.7T8VNG.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
João Diogo Rodrigues

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO

Apelante: AA (autor).
Apelado: BB (réu).
Juízo central cível de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 3) - T. J. da Comarca do Porto.
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Intentou o autor a presente acção declarativa comum pedindo a condenação do réu, seu irmão, a pagar-lhe a quantia de 105.464,24€, bem como juros vincendos calculados sobre o capital de 76.547,98€, sustentado a pretensão invocando, em súmula, que a mãe de ambos (de quem são únicos herdeiros) dou ao demandado a quantia de 131.883,93€ que terá de ser restituída à herança para efeitos de igualação da partilha (art. 2104º do CC) – valor que, actualizado à data da abertura da sucessão, nos termos do art. 2109º do CC, ascende a 153.095,95€ –, tendo o autor o direito a metade de tal montante (76.547,98€) bem como juros desde a data da abertura da sucessão (26/03/2012) e até integral pagamento, ascendo os vencidos ao montante de 28.916,26€, pois que no âmbito de inventário foram partilhados já os demais bens (e igualados os herdeiros quanto a tal acervo hereditário).
Contestou o réu, defendendo a improcedência do pedido formulado pelo autor, argumentando que a quantia em questão (a que se referem os certificados de aforro objecto da presente acção, resgatados pelo réu) não foi relacionada (nem objecto de partilha) no inventário a que se procedeu por óbito da sua mãe porque não houve acordo entre os interessados (autor e réu) sobre se se tratava de uma doação ou de um crédito da herança sobre o réu (o autor defendia aí esta última hipótese) e por isso que nos meios comuns cabe tão só decidir tal questão (se se trata de doação ou de crédito da herança sobre o réu), pelo que ponderando a posição do autor (alegada na petição) de que se trata de doação, a causa é desnecessária, tendo a conferência da colação de ser efectuada e apurada no inventário.
Tramitada a causa e realizado julgamento foi proferida sentença que [considerando tratar-se de doação manual (por isso dispensada de colação), tinha a mesma de ser imputada na quota disponível (art. 2114º), ficando sujeita ao regime de inoficiosidade (art.s 2168º a 2178º do CC), tudo implicando operações de partilha a resolver em sede de inventário, não podendo assim proceder a pretensão do autor de haver do seu irmão metade do valor doados – metade do valor dos certificados de aforro resgatados e identificados na petição], julgou a acção improcedente e absolveu o réu do pedido.
Inconformado, recorre o autor, pugnando pela revogação da sentença e sua substituição por decisão que condene o réu no pedido, terminando as alegações pela formulação das seguintes conclusões:
A) A doação em causa nos presentes autos – materializada na entrega e ulterior resgate de certificados de aforro – não pode ser qualificada como doação manual, como fez (erradamente) o Tribunal recorrido. De resto,
B) A prova trazida a juízo pelo A. sempre imporia a conclusão de que, com as doações em apreço, a doadora, mãe de Autor e Réu, não pretendeu beneficiar o Réu em relação ao Autor.
Assim,
C) Impõe-se, desde logo, a modificação da matéria de facto provada, uma vez que o A. alegou e provou (cf. artigos 2º a 4º da Petição Inicial), factos são do maior relevo para determinar a sujeição ou não a colação dos montantes em causa nos presentes autos.
D) É que, para tal não é indiferente a vontade real da doadora, a qual se revela de forma evidente no facto de ter demandado judicialmente o ora R. pela movimentação dos certificados aqui em causa.
E) Tal facto desmente categoricamente que a doadora tenha pretendido com tal doação beneficiar o réu em face do autor.
F) Pelo que deve ser acrescentado à matéria provada o seguinte facto:
‘CC intentou uma ação judicial contra o seu filho e ora Réu BB, que correu termos no J4 do Juízo Central Cível do Porto, sob o n.º 1303/06.6TVPRT, nela peticionando a Autora que aquele seu filho lhe restituísse a quantia de €246,105,54, referente ao resgate de certificados de aforro, entre os quais os que se discutem nos presentes autos, alegando que o mesmo se havia ilegitimamente apropriado de tal quantia.’
Isto posto,
G) A sentença recorrida considerou a doação em questão uma doação manual e declarou-a, por isso, dispensada de colação; todavia, a doação materializada na entrega e ulterior resgate de certificados de aforro jamais poderia ser subsumida ao conceito de doação manual, uma vez que esta pressupõe a perfeição do negócio com a entrega da coisa – sendo, por isto, juridicamente enquadrada como um negócio real quoad constitutionem.
H) Ora, os certificados de aforro, como valores “escriturais, nominativos, reembolsáveis, representativos da dívida da república portuguesa”, são títulos cuja entrega não é senão um ato instrumental ao apossamento, não esgotando a perfeição do negócio – basta pensar na possibilidade de o titular modificar o “movimentador” desses certificados antes do seu resgate para verificar a não perfeição do negócio aquando da entrega dos títulos.
Acresce que,
I) A titularidade dos certificados de aforro não se transmite com a mera entrega dos títulos, uma vez que “os certificados de aforro só são transmissíveis por morte do titular”, como resulta do art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 122/2002, de 4 de maio (e antes resultava do DL n.º 178-B/86, de 30 de junho).
J) Pelo que, jamais se poderia considerar a entrega dos certificados ao R. como uma doação manual (negócio real quoad effectum) na medida em que a sua transmissão não é legalmente possível.
K) E não se diga que o facto de o R. ser movimentador da conta e ter podido apossar-se das quantias configura uma tradição, uma vez que o ponto 7.6 da instrução n.º 1/2020, do IGCP, expressamente determina que “o movimentador designado não é proprietário do certificado de aforro”.
L) De resto, enquadrar-se a doação em questão como uma doação verbal implica concluir-se pela nulidade dessa mesma doação, “precisamente porque não implicou nenhuma tradição pois não houve nenhuma alteração na titularidade das contas e certificados de aforro”, pelo que “deve, com efeito, considerar-se nula por não respeitar a exigência referida na parte final do mencionado artigo 947.º, n.º 2, do Código Civil”. – Ac STJ, de 12.06.2012 (Salazar Casanova).
M) Não pode, pois, considerar-se que estamos perante uma doação manual, com todas as legais consequências, incluindo em matéria de colação, razão pela qual se impõe revogar a decisão recorrida. Mais,
N) Mesmo que estivéssemos perante uma doação manual, a sua não sujeição à colação é uma presunção ilidível - como tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência -, pelo que face da prova carreada para os autos, é inequívoco que a doadora não pretendeu beneficiar o Réu em detrimento do Autor com os montantes em questão, uma vez que foi a própria que o revelou ao demandar judicialmente o Réu alegando que este se tinha apropriado ilegitimamente de tais quantias.
O) Pelo que, também por esta razão, se impõe concluir pela necessidade de sujeitar as verbas em questão a colação, com todas as suas consequências. Acresce que,
P) A sentença recorrida, tendo reconduzido a situação sub judice a uma eventual redução por inoficiosidade, negou a possibilidade de condenação do R. e remeteu a questão para inventário.
Q) Ora, tratando-se de doação sujeita a colação, como se demonstrou que é, e sabendo-se que no inventário A. e R. ficaram igualados (facto que o R. não contestou), resta apenas a questão das quantias em causa neste processo, devendo nele proceder-se a igualação entre os dois herdeiros.
R) Os elementos constantes dos autos permitem aferir a medida do enriquecimento ilegítimo do A. em face do R. por força da sua apropriação destas quantias e não conferência das mesmas, onde se inclui os juros pelo tempo volvido em que o R. esteve indevidamente na posse destes montantes.
S) Tendo o Tribunal todos os elementos necessários à decisão da causa, inexiste qualquer fundamento para que a condenação do R. na restituição das quantias que ilegitimamente o beneficiaram em detrimento do Autor não aconteça também nesta sede.
T) Ao não ter julgado procedente o pedido do Autor o Tribunal a quo violou, além do mais, o disposto nos artigos 947.º, n.º 2, 2104.º e 2113º, n.º 3, do Código Civil, artigo 2.º, n.º 3, do Regime Jurídico dos Certificados de Aforro (Decreto-Lei nº 122/2002, de 4 de maio).
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Objecto do recurso
Considerando a decisão recorrida (o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identificam-se as seguintes questões decidendas:
- a censura dirigida à decisão sobre a matéria de facto – pretende o autor seja aditado facto que invocou, por documentalmente demonstrado,
- a tradição da coisa doada (doação manual) – afirmada na decisão recorrida e rejeitada pelo autor,
- a ilisão da presunção de dispensa da colação, que o autor sustenta caso a seja considerada a existência de doação manual,
- a possibilidade de, tratando-se de doação sujeita a colação, ser a questão resolvida nos presentes autos (por terem as partes ficado igualadas no inventário quanto ao demais acervo hereditário).
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se, com interesse para a decisão da causa:
Factos provados
1. Autor e réu. são filhos de CC e de DD, já falecidos.
2. O réu procedeu ao resgate dos valores respeitantes aos seguintes certificados de aforro, titulados por sua mãe e que ele estava autorizado a movimentar:
a) em 06/04/2005 do certificado n.º ..., no valor de 8.446,42€,
b) em 10/08/2005 dos certificados n.ºs ....., ..., ..., ....., ....., ..... e ....., no valor global de 63.553,96€, e
c) em 10/08/2005 dos certificados n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., no valor global de 59.883,55€.
3. CC faleceu em .../.../2012, no estado de viúva de DD, sendo autor e réu os seus únicos herdeiros, tendo deixado testamento, outorgado em 21/06/2006, onde instituiu um legado por conta da quota disponível a favor de autor e réu, instituiu um legado por conta da legítima a favor do réu e outro legado por conta da legítima a favor do autor.
4. No inventário que correu termos por óbito da mãe de autor e réu, o ora autor, na qualidade de cabeça-de-casal, relacionou as quantias referidas no ponto 2 na relação de bens que apresentou, como crédito da herança sobre o réu.
5. Tendo o réu defendido não existir tal crédito na reclamação que apresentou, por entender que aqueles valores lhe foram dados pela sua mãe, autor e réu acordaram em discutir essa questão nos meios comuns.
6. As quantias referidas no ponto 2 foram dadas ao réu pela sua mãe, que lhe entregou os certificados respectivos, tendo sido nessa sequência que aquele procedeu ao resgate dos certificados de aforro em causa.
7. No Inventário nº 5929/17.4T8VNG-A, para partilha dos bens da herança aberta por óbito de CC, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local de Vila Nova de Gaia (Juiz 5), foi efectuado entre autor e réu o acordo que consta da acta de conferência de interessados de 16/01/2019, cuja cópia foi junta com o requerimento de 08/11/2021, e cujo teor aqui se dá por reproduzido, o qual foi homologado por sentença daquela mesma data.
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Fundamentação jurídica
A. Da censura dirigida à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
Impugna o autor a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto pretendendo se considere provada matéria que alegou na sua petição inicial (artigos 2º a 4º de tal peça processual), demonstrada por documento dotado de força probatória plena (certidão extraída de processo judicial).
A alteração pretendida pelo apelante encontra sustento no artigo 662º do CPC. A actual formulação do art. 662º do CPC deixou de prever especificamente a modificabilidade da decisão matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, mas tal possibilidade inscreve-se no nº 1 do preceito – a modificação justifica-se e impõe-se nas situações em que o tribunal recorrido desconsidere matéria relevante à apreciação do mérito da causa, desrespeitando a força plena de certo meio de prova (nomeadamente de documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto – art. 371º, nº 1 do CC), devendo em tais casos a Relação (até oficiosamente), limitando-se a aplicar as regras vinculativas extraídas do direito probatório material, integrar na decisão os factos desconsiderados, pois que os seus poderes, tal como o tribunal de 1ª instância (art. 607º, nº 4 e 663º, nº 2 do CPC), permitem-lhe (impõem-lhe) que tome em consideração os factos plenamente provados (por acordo, por confissão ou por documento), tendo (tal qual a 1ª instância) poderes que determinam a ‘assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório’[1].
Na situação dos autos alegou o apelante (vejam-se os artigos 2º a 6º da petição) que a sua mãe intentou contra o aqui réu acção judicial que correu termos no Juízo cível central do Porto (lugar de provimento de Juiz 4), sob o nº 1303/06.6TVPRT, na qual pedia a sua condenação a restituir-lhe a quantia de 246.105,54€ de que o mesmo se apropriara ilegitimamente (por ter procedido ao resgate de inúmeros certificados de aforro que a si, ali autora, pertenciam – tudo conforme o constante da certidão que juntou), acção que, na sequência do falecimento da respectiva autora, viria a ser julgada extinta por decisão.
Tal matéria mostra-se demonstrada pela certidão judicial extraída do referido processo judicial (processo nº 1303/06.6TVPRT do Juízo central do Porto - lugar de provimento de Juiz 4), acompanhada das peças processuais (petição e contestação) e despachos/decisões (mormente a decisão de extinção da instância, por deserção) aí apresentadas e proferidos, respectivamente – conclui-se da análise das peças processuais certificadas que a pretensão da ali autora tinha por objecto, além doutros, os certificados de aforro que na presente acção estão em causa (como resulta do confronto alíneas g), o) e p) do artigo 3º da petição apresentada naquela acção e documentos que a acompanhavam e dos artigos 10º e 11º da petição dos presentes autos – certificados referidos no facto provado número 2).
A certidão constitui judicial constitui documento autêntico (art. 369º do CC) que,, com força probatória plena (art. 371º do CC), demonstra a propositura da acção, com os mencionados sujeitos, pedido e causa de pedir (e bem a decisão de extinção aí proferida – ainda que este aspecto não releve para a presente decisão).
Deve, assim, aditar-se à decisão de facto, um outro número (o 8) com a seguinte redacção (que corresponde, substancialmente, à redacção proposta pelo apelante):
8- CC intentou uma ação judicial contra o seu filho e ora réu BB, que correu termos no J4 do Juízo central cível do Porto, sob o n.º 1303/06.6TVPRT, nela peticionando que aquele seu filho lhe restituísse a quantia de 246.105,54 € referente ao resgate de certificados de aforro, entre os quais os identificados no anterior facto 2, alegando que o mesmo se havia ilegitimamente apropriado de tal quantia.
B. Do mérito – a qualificação da doação como doação manual.
Assente (como resulta da matéria provada – factos provados com os números 2º e 6º– e decorre da configuração da lide traçada pelo autor na sua petição) que a mãe de autor e réu dou a este as quantias resgatadas de certificados de aforro de sua (mão de autor e réu, entretanto falecida) titularidade, a questão nuclear suscitada pela presente apelação consiste em apurar se tal doação (porque não provado que tenha sido observada, nas declarações integradoras do negócio, a forma escrita) foi acompanhada de tradição da coisa.
A doação de coisas móveis, como resulta do nº 2 do art. 947º do CC, não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada – não o sendo (não havendo tradição), só pode ser feia por escrito.
No caso de doação de móveis, ‘a lei não se contenta, portanto, com o acordo das partes, exigindo a tradição da coisa ou um escrito. Essa exigência funda-se na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto’[2].
A tradição da coisa obsta à imponderação, pois logo objetiva (assim o fazendo consciencializar) o resultado da liberalidade.
A tradição significa a transferência dos poderes de facto sobre a coisa (cuja propriedade é transferida pelo negócio – pelo animus donandi e pela aceitação) feita pelo doador para o donatário – o tradens (transmitente, no caso doador) entrega a coisa (dinheiro ou qualquer outra coisa móvel) ao accipiens (no caso donatário), com propósito e vontade de transferir para este o direito de propriedade sobre mesma (animus donandi), assim fazendo com que este passe exercer sobre ela poderes de facto.
Constitui, pois, ‘uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, que se concretiza pela sua entrega feita pelo possuidor ao adquirente da posse e desdobra-se, por isso, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro e no seu empossamento por parte do segundo’ (cf. o art. 1263º, b) do C)[3].
Assim que a doação manual (aquela que é acompanhada da tradição da coisa) é aquela em que o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse revela a vontade de aceitar a liberalidade (art.s 940º, nº 1, 945º, nº 1 e 947º, nº 2 do CC)[4].
Doações feitas discretamente, através da pura entrega da coisa doada[5], sendo certo que esta entrega pode ser material ou simbólica – tal qual a aquisição da posse pode ocorrer pela tradição material ou simbólica da coisa efectuada pelo anterior possuidor (art. 1263º, b) do CC), também a tradição dos bens ou valores objecto da doação pode ser material ou simbólica: pode ocorrer a tradição ficta, que consiste na entrega de documentos ou na prática de actos que possam pôr a coisa na disponibilidade do donatário[6].
Dupla possibilidade (material ou simbólica) de se efectivar a tradição ‘que bem se compreende, uma vez que a disposição material de uma coisa – a sua posse – tanto pode resultar dum acto que confere de imediato essa disposição, como de um que apenas a torna possível’, relevando, em qualquer das hipóteses, que o acto de entrega torne efectivo o apossamento da coisa[7].
Na situação trazida em apelação pode concluir-se da matéria provada (factos 2º e 6º) que foram praticados actos destinados a colocar a coisa (os valores monetários) na disponibilidade do donatário (réu apelado), isto é, que foram praticados actos tendentes a transferir para ele a posse de tais valores (os poderes de facto sobre eles) ou a empossá-lo neles, fazendo concomitantemente cessar a relação material que a doadora tinha com os mesmos – no fundo, que foram praticados actos de transferência da posse da doadora para o donatário.
Como resulta provado, a mãe doou ao aqui réu as quantias monetárias (estas são o objecto mediato ou quid da doação, não já os certificados de aforro enquanto tal) resgatadas de certificados de aforro de que era titular (e que o réu estava autorizado a movimentar), tendo-lhe para o efeito entregado os certificados respectivos.
Releva no caso que a declaração de doação foi acompanhada de acto material de entrega (entrega dos certificados) que tornou possível o efectivo apossamento do bem doado – a entrega dos certificados de aforro ao réu para que, resgatando-os, ficasse na posse das quantias monetárias objecto da doação.
Conclui-se, assim, que a doação foi acompanhada de tradição, tratando-se, por isso, de doação manual, que nos termos do nº 3 do art. 2113º do CC se presume dispensada de colação (ou seja, imputada na quota disponível do doador – art. 2114º, n 1 do CC).
C. Da ilisão da presunção de dispensa da colação.
É discutida a questão da natureza da presunção legal de dispensa de colação estabelecida no nº 3 do art. 2113º do CC – se iuris et de iure ou inilidível, se iuris tantum e assim susceptível de prova em contrário.
A primeira posição, que sustenta que tal presunção não admite prova em contrário (que tem natureza inilidível), apresenta um argumento literal (argumenta com o termo ‘sempre’ no preceito, conjugado com a parte final do nº 2 do art. 350º do CC) e, bem assim, esgrime com as razões especiais em que assenta a presunção (o legislador ‘foi sensível ao facto de o doador, ao fazer verbalmente doação de coisa móvel consubstanciada em imediata tradição manual, pretender normalmente evitar a publicidade ou a inveja de outros descendentes, o que colide com o pressuposto de uma certa vontade presumida do doador favorável à colação’) e com a ‘insegurança e a controvertibilidade de eventuais provas no sentido de afastar a dispensa legal de colação, face à específica natureza de tais doações’[8].
A preferência pelo segundo entendimento é justificada quer com a pouca valia do argumento literal (da expressão sempre), pois o ‘que conta são as realidades e interesses de cada caso’[9] (o que significa, assim a aplicação da regra geral de que as presunções são ilidíveis por prova em contrário – 1ª parte do nº 2 do art. 350º do CC), quer argumentando-se que o preceito (o nº 3 do art. 2113 do CC), considerando a solução que a doutrina dominante tomava no âmbito do Código Civil de 1967 (entendia-se então que as doações manuais estavam sujeitas a colação podendo, contudo, ser feita a prova da dispensa), assume ‘natureza de norma interpretativa’, havendo que ‘apurar, em cada caso concreto, se há factos de onde se possa deduzir se foi ou não intenção do doador dispensar a colação, intenção essa que pode ser expressa ou tácita.’[10]
Mesmo admitindo este segundo entendimento, sempre competirá ao interessado (no caso dos autos, ao autor) a prova do facto contrário, isto é, a inexistência de dispensa de colação (a prova de que a doadora quis efectuar a doação por conta da legítima do donatário e não por conta da quota disponível)[11].
Na verdade, a presunção legal iuris tantum, porque possui, como regra, força probatório plena, só pode ser ilidida pela prova do contrário, nos termos do art. 350º, nº 2 do CC (ao contrário da presunção judicial, ilidível por simples contraprova)[12].
Prova do contrário que o autor não logrou fazer.
O facto de resultar provado que a autora da doação (mãe de autor e réu) cuidou de os igualar no testamento (instituindo legados por conta da quota disponível a favor de ambos, bem assim instituindo, a favor de ambos, legados por conta da legítima) não significa, muito menos inequívoca e definitivamente, que tenha querido que a doação em causa nos presentes autos fosse imputada na legítima do donatário (que a não tenha querido imputar na quota disponível).
Também o facto de a autora ter intentado conta o réu a acção acima referida (ponto 8 da matéria de facto, aditado no âmbito da impugnação da decisão de facto) não demonstra que a doação foi feita por conta da legítima do donatário.
Se numa primeira abordagem se poderia concluir de tal facto que a mãe de autor e réu, pondo em causa a existência da doação, punha também em questão que tivesse querido de qualquer modo beneficiar o réu com uma liberalidade a imputar na quota disponível (e não na legítima do donatário), não pode deixar de ponderar-se que na presente acção se provou a existência da referida doação, com tradição da coisa, o que contraria o que naquela acção era pretendido – sendo de ter por assente na presente acção que a doação existiu e que foi acompanhada da tradição da coisa, a simples propositura daquela anterior acção não permite concluir, com segurança, que a donatária tivesse feito a liberalidade declarando-a imputável na legítima do donatário.
Conclui-se, do exposto, estar a doação dispensada de colação.
D. Da possibilidade de resolver nos presentes autos a questão que a conferência a fazer em atenção à doação implica.
Apurado que a doação está dispensada de colação (e é por isso imputável na quota disponível da donatária), fica prejudicada a enunciada questão suscitada pelo apelante – defendida ele que estando a doação em causa sujeita a colação, e porque no inventário a que procederam para partilha da herança aberta por óbito da mãe, ele e o réu, únicos herdeiros da donatária, ficaram igualados na partilha do restante acervo hereditário, restaria tão só a questão das quantias doadas, podendo e devendo neste processo proceder-se à igualação entre os dois herdeiros.
Porque a doação não está sujeita a colação e deve, por isso, ser imputada na quota disponível (arts. 2113º, nº 3 e 2114º, nº 1, do CC), a sua eventual inoficiosidade só se verificará se se concluir pela existência de ofensa à legítima do autor, herdeiro legitimário (a legítima é a porção de bens de que o autor da sucessão não pode dispor por legalmente destinada aos herdeiros legitimários – art. 2156º do CC –, que no caso dos filhos é de dois terços da herança – at. 2159º, nº 2 do CC), o que só poderá ser apurado (como bem se argumenta na decisão recorrida) no âmbito do inventário, pois que só aí se pode efectuar o cálculo da legítima (atendendo ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e as dívidas da herança – at. 2162º, nº 1 do CC).
Assim, como se aduz na decisão apelada, ainda que com a presente acção fique ‘resolvida a questão da qualificação da natureza jurídica do recebimento dos valores em causa pelo réu’, não há como concluir que o autor tenha direito a exigir metade dos valores doados ao réu (metade dos valores resultantes do resgate dos certificados de aforro indetificados no facto 2), tendo a conferência da doação na quota disponível e eventual ofensa da legítima do autor de ser apurada no inventário.
Ponto decisivo, pois, é o de que a pretensão deduzida pelo autor apelante na presente acção (haver do réu a quantia peticionada, correspondente a metade das quantias doadas, actualizada à data da abertura da sucessão, acrescida de juros de mora vencidos desde aquela data e vincendos até integral pagamento) não pode proceder – ele não tem direito a haver tal peticionado valor.
E. Síntese conclusiva.
Atento o exposto, improcede o recurso, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a sentença apelada.

Custas pelo apelante.
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Porto, 24/01/2023
João Ramos Lopes
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pp. 288/289.
[2] Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 110, p. 212.
[3] Acórdão do STJ de 3/03/2005 (Bettencourt de Faria), no sítio www.dgsi.pt.
[4] Acórdão da Relação do Porto de 22/04/2008 (Vieira e Cunha), no sítio www.dgsi.pt.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, p. 189.
[6] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, p. 524, apud acórdão da Relação do Porto de 19/09/2011 (Mendes Coelho) e acórdão da Relação de Lisboa de 28/05/2015 (Octávia Viegas), ambos no sítio www.dgsi.pt.
[7] Citado acórdão do STJ de 3/03/2005 (Bettencourt de Faria).
[8] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume II, 2ª Edição (reimpressão), 1990, pp. 271 e 272.
Defendendo também a natureza inilidível da presunção, Batista Lopes, Das Doações, Almedina, 1970, p. 2007.
[9] Jorge Leite, (Algumas Notas Sobre) A Colação, 1977, p. 54.
[10] Abílio Neto, Direito das Sucessões e Processo de Inventário Anotado, 2017, Ediforum, p. 267
[11] Assim, parecendo seguir a posição que admite a ilisão da presunção através da prova em contrário, os citados acórdãos da Relação do Porto de 22/04/2008 (Vieira e Cunha) e da Relação de Lisboa de 28/05/2015 (Octávia Viegas).
[12] Rita Lynce de Faria, Comentário ao Código Civil - Parte Geral, coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, p. 825.