Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
487/17.2T8STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP20190926487/17.2T8STS-A.P1
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º182, FLS.178-182)
Área Temática: .
Sumário: I - A acção de divisão de coisa comum tem de reunir entre o lado activo e passivo da lide a totalidade dos consortes.
II - Se o único consorte não demandante faleceu e a respectiva herança permanece por partilhar a acção deve ser instaurada contra a herança do consorte.
III - Se os demandantes são em simultâneo os herdeiros da herança demandada, havendo apenas um herdeiro que não é demandante, a herança será representada apenas por este herdeiro pois a mesma pessoa/entidade não pode ocupar em simultâneo, os lados activo e passivo de uma acção judicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019: 487.17.2T8STS.A.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, e mulher C…, com residência em …, Vila Nova de Famalicão, D…, contribuinte fiscal n.º ………, com residência em …, Santo Tirso, E…, contribuinte fiscal n.º ………., com residência em …, Santo Tirso, F…, contribuinte fiscal n.º ………, e mulher G…, contribuinte fiscal n.º ………, com residência em …, Santo Tirso, H…, contribuinte fiscal n.º ……… e mulher I…, contribuinte fiscal n.º ………., com residência em …, Santo Tirso, J…, contribuinte fiscal n.º ……… e mulher K…, contribuinte fiscal n.º ………, com residência em …, Vila Nova de Famalicão, e L…, contribuinte fiscal n.º ………, com residência em …, Santo Tirso, instauraram acção especial de divisão de coisa comum contra M…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, Santo Tirso, como cabeça-de-casal e em representação da herança aberta por óbito de N….
Alegaram para o efeito que O… faleceu no dia 28 de Maio de 1990, no estado de casada com N…, no regime de comunhão geral, e em primeiras núpcias de ambos, tendo corrido inventário em que intervieram como herdeiros da inventariada o viúvo e os ora requerentes, filhos de ambos. Nesse processo, os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob os n.os 308 e 309 foram relacionados e depois adjudicados, em compropriedade, ao viúvo N…, na proporção de 35/56 avos, e aos outros herdeiros e ora requerentes, na proporção de 3/56 avos para cada um deles. Depois disso o viúvo N… casou com a requerida, no regime imperativo de separação absoluta de bens, e faleceu em 24 de Abril de 2015, sucedendo-lhe os descendentes, aqui requerentes, e a sua mulher, M…, requerida, a qual é cabeça-de-casal da respectiva herança. Acrescentam que os imóveis são indivisíveis em substância.
Terminam pedindo que se julguem habilitados os requerentes e a requerida como únicos e universais herdeiros do falecido N….
A requerida contestou, excepcionando o erro da forma do processo com o argumento de que tendo falecido N… e permanecendo a sua herança por partilhar o meio próprio para definir os direitos de cada herdeiro é o processo de inventário, sendo que este já foi instaurado pelos aqui requerentes e encontra-se pendente. Mais excepcionou a sua própria ilegitimidade argumentando que não é co-titular dos imóveis cuja divisão está pedida mas apenas herdeira do comproprietário falecido.
Os requerentes responderam às excepções, refutando-as.
Após sucessivos adiamentos de uma tentativa de conciliação que acabou em insucesso, da realização de uma avaliação dos imóveis e da designação de data para a realização de conferência de interessados, acabada por dar sem efeito, foi proferida decisão, julgando improcedente a excepção do erro na forma do processo e procedente a excepção da ilegitimidade passiva, absolvendo-se a requerida da instância.
Do assim decidido, os requerentes interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Após a realização da avaliação dos prédios requerido pelas partes, o Tribunal proferiu o despacho pelo qual marcou a conferência de interessados, para os termos e efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 929.º do C.P.C. Esse despacho foi proferido no dia 29 de Outubro de 2018, e a conferência de interessados realizou-se no dia 16 de Janeiro de 2019.
2. Desse despacho não houve reclamação nem recurso, pelo que transitou em julgado, por força do disposto no n.º 1 do art.º 620.º do C.P.C. Por isso, após a prolação e trânsito em julgado do disposto nos n.ºs 1 e 3 do art.º 613.º, também do C.P.C, o Tribunal não podia (nem pode) praticar qualquer acto que destrua os efeitos desse despacho, não só porque viola a autoridade de caso julgado, como já estavam esgotados os poderes de cognição da Exma. Senhora Juiz, em matéria que pusesse em causa os efeitos dessa decisão.
3. Por isso, como os prédios em causa são indiscutivelmente indivisíveis, com o trânsito em julgado, do despacho de 29 de Outubro de 2018, o processo está na fase a que respeita o último período do n.º 2 do art.º 929.º do C.P.C. Consequentemente, o despacho recorrido deve ser revogado porque não cumpre o disposto na norma ora invocada, assim como o disposto nos art.ºs 613.º, 1 e 3 e 620.º, 1 do C.P.C.
4. A declaração da ilegitimidade da representante da herança de N…, na qual se insere um quinhão no direito de propriedade sobre esses imóveis, terá resultado de um lapso, porque a requerida N… não foi requerida (ou demandada) a título pessoal, mas enquanto representante legal dessa herança. Por isso, nesta perspectiva, o despacho recorrido viola as próprias normas em que se fundou, como o disposto no art.º 2079.º.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se o despacho que designou data para a realização de conferência de interessados formou caso julgado e este impedia o tribunal de posteriormente conhecer das excepções deduzidas na contestação da ré.
ii) Se a ré é parte legítima na acção.
III. Os factos:
Os factos que interessam para a decisão a proferir são os factos processuais que constam do relatório que antecede e que aqui se dá por reproduzido.
IV. O mérito do recurso:
A] do alegado caso julgado do despacho que designou data para a realização da conferência de interessados:
Defendem os recorrentes que o despacho judicial onde foi designada data para a realização da conferência de interessados formou caso julgado e consequentemente colocou o processo na fase da conferência de interessados prevista no artigo 929.º do Código de Processo Civil pelo que estava vedado ao tribunal decidir as questões que podiam prejudicar esse estado do processo.
Ora, salvo melhor opinião, claramente não é assim.
Os artigos 619.º e 620.º do Código de Processo Civil distinguem entre as decisões que formam caso julgado material e as que apenas formam caso julgado formal.
As primeiras são a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa (artigo 619.º) as quais, uma vez transitadas, ficam a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
As segundas são as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual (artigo 620.º), cujas decisões têm força obrigatória apenas dentro do processo.
Porém, o n.º 2 deste último preceito é expresso ao excluir das decisões que formam caso julgado formal «os despachos previstos no artigo 630.º». Entre estes despachos contam-se «os despachos de mero expediente» e «os proferidos no uso legal de um poder discricionário».
Nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, «os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador».
Temos assim que os despachos em que o juiz se limita a ordenar a prática de actos processuais previstos na normal tramitação do processo, a fazer prosseguir o processo de acordo com a sua configuração legal, são despachos de mero expediente e não formam sequer caso julgado formal.
A designação de data para a realização da conferência de interessados prevista no artigo 929.º do Código de Processo Civil e compreendida na tramitação normal da acção especial de divisão de coisa comum é um despacho de mero expediente.
Acresce que para formar caso julgado é pressuposto que haja uma decisão, um julgamento, porque o que fica abrangido pelos efeitos do caso julgado não é o despacho é o dispositivo que o mesmo contém.
Também por isso, o despacho em questão não podia formar caso julgado porque o mesmo não contém qualquer dispositivo sobre a relação material controvertida ou sequer sobre a relação processual, ele apenas agenda a realização de determinado acto processual.
Esse acto foi, aliás, dado sem efeito e não chegou a realizar-se porque entretanto, alertado para a questões que tinham sido suscitadas na contestação e não haviam ainda sido apreciadas, o juiz decidiu dar sem efeito a conferência e pronunciar-se, finalmente, sobre tais questões.
Em conclusão: não foi proferido nos autos qualquer despacho que tenha formado caso julgado impeditivo de o tribunal conhecer por fim das excepções arguidas na contestação e sobre as quais não se tinha ainda, expressa ou implicitamente, de forma específica ou tabelar, pronunciado, conforme era sua obrigação fazer. Improcede por isso esta questão suscitada no recurso.
B] da legitimidade da ré:
Na decisão recorrida entendeu-se que a ré não é parte legítima porque «não é comproprietária dos prédios cuja divisão se pede (mas) apenas herdeira de um dos comproprietários, entretanto falecido, não sendo sequer a única».
Os recorrentes objectam que no artigo 14 do requerimento inicial foi alegado que a ré «intervém nesta acção [está em falta mas subentende-se: na qualidade de] representante legal da herança do falecido N…, na qual é cabeça-de-casal» e que por isso cabendo-lhe administração da herança onde se integra um dos quinhões no direito de propriedade sobre as coisas cuja divisão se requer, compete-lhe representar a herança, neste processo.
Efectivamente, lendo a petição inicial no seu todo e não apenas o respectivo cabeçalho (onde essa especificação devia ter sido feita pelos autores), é mister concluir que a ré foi demandada não a título pessoal ou em nome próprio, mas na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de N… e em representação desta.
Por outras palavras, quem tem efectivamente a qualidade de ré na acção não é M…, mas sim a herança aberta por óbito de N…, representada pela cabeça de casal M…. Por conseguinte, a afirmação de que a ré não tem legitimidade passiva para a acção porque não é comproprietária está, salvo o devido respeito, errada. Da herança aberta por óbito de N… faz parte a quinhão de 35/56 avos na propriedade dos imóveis comuns cuja divisão é reclamada pelos autores, pelo que a herança tem legitimidade inequívoca por ser titular da relação material controvertida (comproprietária).
Por conseguinte, a questão que se podia colocar não era a da legitimidade da ré (herança), mas sim a da representação da ré, isto é, não era se na acção devia estar a herança, mas antes se a herança podia ser representada na acção apenas pela respectiva cabeça-de-casal ou devia antes ser representada por todos os herdeiros.
A questão era pois se o direito de intervir na divisão de uma coisa comum na qual a herança é titular de um quinhão pode ser exercido apenas pelo cabeça-de-casal (por estar compreendido no âmbito dos respectivos poderes representativos da herança) ou tem de ser exercido em conjunto por todos os herdeiros (por exceder o âmbito dos poderes representativos do cabeça de casal). No primeiro caso a herança estaria bem representada na acção; no segundo, tal não sucederia e haveria que proceder à regularização da representação da herança, fazendo intervir na acção os restantes herdeiros (artigo 27.º do Código de Processo Civil).
Sucede, todavia, que no caso concreto existe um pormenor que prejudica essa discussão.
Nos termos do artigo 925.º do Código de Processo Civil «todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas».
Este preceito define de forma clara a legitimidade das partes na acção de divisão de coisa comum.
A acção deve ser instaurada pelo consorte (ou consortes) que não pretenda mais manter-se na indivisão. Ele pode instaurar a acção sozinho pois basta a sua vontade – unilateral e mesmo que oposta à vontade dos restantes consortes – de pôr termo à indivisão para impor aos demais consortes a obrigação de procederem à divisão (trata-se, portanto, de um direito potestativo).
Por sua vez, do lado passivo da lide têm de estar todos os restantes consortes não demandantes, o que é afinal de contas uma evidência já que se na acção faltasse um consorte a respectiva sentença nunca poderia produzir efeito útil.
Em suma, no conjunto, entre o lado activo e o lado passivo da lide têm de estar na acção todos os consortes. O que significa também que os que estiverem do lado activo (porque desejam a divisão e decidiram tomar a iniciativa de a pedir) não têm de estar no lado passivo. Logo, se a acção for instaurada por todos os consortes menos um, a acção apenas tem de ser instaurada contra o … consorte em falta.
Ora no caso sucede que os consortes são todos demandantes, com excepção apenas do consorte N… cuja morte determinou a sua substituição pela respectiva herança jacente. Sucede ainda que os herdeiros de N… são os seus descendentes e a viúva M…. Os seus descendentes encontram-se todos do lado activo da lide, apenas restando fora dessa posição processual a outra herdeira: a viúva.
Logo parece que a única pessoa a poder ser demandada, a ocupar a posição da herança demandada, só pode ser mesmo a viúva M…, pela singela razão de que uma pessoa não pode estar em simultâneo do lado activo e passivo da lide e não faria qualquer sentido fazer intervir em representação da herança os respectivo herdeiros que afinal … são autores e por isso mesmo têm interesse em demandar, não em contradizer!
Refira-se, não obstante, que estamos apenas a falar em legitimidade processual, isto é na chamada de uma pessoa a ocupar uma posição processual numa acção judicial para estabelecer o contraditório que a acção pressupõe. Não estamos a falar, nem confundimos, de legitimidade substantiva para dispor do direito de operar a divisão do quinhão da herança na coisa comum. Esta há-de aferir-se em conformidade com as regras de direito material próprias da comunhão hereditária, para o que poderá ser necessário consultar a vontade conjunta ou maioritária dos herdeiros, independentemente da posição que eles ocupem na acção de divisão de coisa comum.
Em conclusão: no caso, uma vez que a ré demandada é a herança do único consorte não demandante e que os herdeiros deste são, para além dos demandantes, somente a viúva demandada em representação da herança, não apenas não existe ilegitimidade passiva nem a herança necessita de ser representada por herdeiros que já se encontram na lide do lado activo e por isso não podem em simultâneo vir a ocupar o lado passivo.
Por conseguinte, a decisão recorrida tem de ser revogada, procedendo nesta parte o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida que absolveu a ré da instância por ilegitimidade, ordenando o prosseguimento da lide com a configuração subjectiva que lhe foi dada.
Custas do recurso pela recorrida.
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Porto, 26 de Setembro de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 511)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]