Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
932/07.5TAVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: SEGURANÇA PRIVADA
SISTEMA DE VIDEOVIGILÂNCIA
AUTORIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
Nº do Documento: RP20130123932/07.5TAVRL.P1
Data do Acordão: 01/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A recolha de imagens por particulares através do sistema de vídeo vigilância consta do Decreto-Lei 35/2004 de 21/2, diploma que regula a actividade de segurança privada.
II – Considera-se actividade de segurança privada, para este efeito, a organização, por quaisquer entidades e em proveito próprio, de serviços de autoprotecção, com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes.
III – As câmaras de vídeo vigilância funcionam também como factor de dissuasão.
IV – Ao limitar o direcionamento das câmaras de vídeo vigilância para as caixas registadores visa-se proteger os códigos dos clientes relativos a cartões de débito ou de crédito.
V – A existência, ou não, de licença concedida pela CNPD para a colocação da(s) câmara(s) de videovigilância no estabelecimento comercial poderá, eventualmente, desrespeitar a legislação de protecção de dados, designadamente a Lei n° 67/98, mas não define a licitude ilicitude penal da recolha ou utilização das imagens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 932/07.5TAVRL.P1
_______________________

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular) n.º 932/07.5TAVRL.P1, do 3ª Juízo do Tribunal Judicial de Vila Real, a arguida foi submetida a julgamento e a final foi proferida decisão nos seguintes termos:
(…)
DECISÃO:
Pelo exposto, julgo a acusação procedente, e, em consequência, DECIDO:
a) Condenar a arguida pela prática, como autora material, de um crime de burla p. e p. pelo art.º 217º n.º 1 do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros, no total de mil euros, a que corresponde a pena subsidiária de cento e trinta e três dias de prisão.
b) Condenar a arguida em seis UCs de taxa de justiça, 1% desta taxa, nas custas do processo, fixando-se a procuradoria em metade da taxa de justiça ora aplicada.
Ordenar a remessa de boletim ao registo criminal.

Inconformada, a arguida B… interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
(…)
1) A douta sentença recorrida condenou a arguida pela prática do crime de burla p.p. pelo artº 217º n1 do CP de que vinha acusada.
2) O Recurso versa a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito –Artº 412 nº2 e 3 e 4 do CPP.
3) Relativamente ao reexame da matéria de facto, os pontos de facto de que a recorrente considera incorrectamente julgados estão vertidos nos pontos b), e, g, j, k, l, m, n, e o, p, dos factos provados e dos não provados o o ponto que refere que o presente processo serve apenas para assistente se furtar ao pagamento da indemnização que a arguida reclama, com fundamento em despedimento ilícito em processo a correr termos no Tribunal de Trabalho da decisão em sede de matéria de facto e respectiva fundamentação conjugada com as regras da experiência comum impunham que tal matéria fosse dada como não provada. - Art° 412 n° 3 al.a) do C.P.P.
4) As provas que impõem decisão diversa da recorrida são documentos de fls 41, horário de trabalho de trabalho da arguida junto aos autos em 29/4/2011, doc. de fls 416 a 421 que proibiam expressamente a utilização de câmaras de videovigilância nos respectivos sistemas e terminais de pagamento/caixas, e ainda uma análise critica dos depoimentos declarações das testemunhas de acusação mormente C… cujo depoimento se encontra gravado (CD de 00.00.01 a 00.18.21, mais concretamente os pontos supra transcritos) D…, cujo depoimento se encontra gravado em (CD de 00.00.01 a 00.26.02, mais concretamente os pontos supra descritos) E…, cujo depoimento se encontra gravado em (CD de 00.00.01 a 00.27.35, mais concretamente os pontos supra descritos) F…, cujo depoimento se encontra gravado em (CD de 00.00.01 a 00.37.47,e 00.00.00 a 00.02.04 e 00.00.00 a 00.01.27 mais concretamente os pontos supra descritos) G… cujo depoimento se encontra gravado em (CD de 00.00.01 a 00.04.58,e 00.00.00 a 00.06.49 e 00.00.00 a 00.03.28 mais concretamente os pontos supra descritos e H…, cujo depoimento se encontra gravado em (CD de 00.00.01 a 00.09.24,e 00.00.00 a 00.02.58 mais concretamente os pontos supra descritos. Depoimento da arguida que se encontra gravado (CD de 00.00.01 a 00.26.02, mais concretamente os pontos supra transcritos) e os depoimentos das testemunhas I… (CD de 00.00.01 a 00.15.12 mais concretamente os pontos supra transcritos) J… (CD de 00.00.01 a 00.21.21, mais concretamente os pontos supra transcritos) K… ( CD de 00.00.01 a 00.10.41 mais concretamente os pontos supra transcritos), L… (CD de 00.00.01 a 00.14.29, mais concretamente os pontos supra transcritos) e M… ( CD de 00.00.01 a 00.07.26, mais concretamente os supra transcritos), N… (CD de 00.00.01 a 00.03.37 e 00.00.00 a 00.18.40 mais concretamente os pontos supra transcritos) O… (CD de 00.00.01 a 00.08.10 mais concretamente os pontos supra transcritos) e de P… (CD de 00.00.01 a 00.19.46, mais concretamente os supra transcritos) Art° 412 nºs3 al. b) e c) e 4 do C.P.P. assim se requerendo a sua renovação ex novo.
5) Quanto aos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados, verificou-se erro notório na apreciação da prova, quanto a factualidade dada_como provada que deveria ter sido considerada não provada, por essa razão levou à condenação da arguida. art° 410 n° 2 al. a) e c) do CPP.
6) De igual forma enferma a decisão recorrida de Insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto dada como provada, uma vez que a matéria vertida nos pontos b), e), g), j), k), 1), m), n), o) e p), dos factos provados porquanto os mesmos não encontram fundamento nem na prova documental de fls 105 a 107,19 a 20,23 a 39, 40, 41 e 42 a 58, 384 a 388, 416 a 421 nem nas fotografias juntas aos autos através de cd na sessão de julgamento de 1 de Junho de 2011 nem nas imagens recolhidas através do sistema de videovigilância da assistente juntas aos autos em CD e visionadas na sessão de julgamento de 1 de Junho, pois pese embora esta prova seja proibida está em contradição com o doc. de fls 416 a 421.
7) Da admissão deste meio de CD com imagens das câmaras de videovigilância, apresentou oportunamente a arguida recurso interlocutório desse despacho em 21 de Junho de 2011, o qual se encontra junto a fls, mantendo a arguida interesse na manutenção do mesmo pelo que requer a sua apreciação.
8) E, nem o teor dos depoimentos das testemunhas de acusação que supra se referiram, é de molde a objectivamente, cair na previsão do crime de burla p. e p. art° 217 nº 1 do CP, como se não mostra verificado os elementos objectivos nem subjectivos do tipo legal de crime - ocorrendo por isso, "in casu" erro de interpretação do citado normativo legal.
9) Sendo que, em todo o caso, e ainda que assim não viesse a entender-se, sempre se imporia face às contradições insanáveis existentes em todos os depoimentos das testemunhas de acusação, conjugados estes com as regras da experiência comum, levaríamos sempre a um laivo dúvida o que por si só determinaria a aplicação do principio da in dúbio pró reo que se encontra consagrado no nosso sistema Penal Português no art° 32 da CRP, que também se mostra violado.
10) Os depoimentos das testemunhas de acusação mencionadas, conjugados com as declarações da arguida e depoimentos das testemunhas de defesa arroladas por esta bem como a documental junta aos autos e supra referida, conjugada com as regras da experiência comum, impõe decisão oposta da recorrida, pois devia-se absolver a arguida B… da prática de um crime de burla p. e p. pelo art° 217 n° 1 do C.P. que vinha acusada, por não estar demonstrada nem a factualidade descrita na acusação e consequentemente não se mostram preenchidos os elementos objectivos nem os subjectivos do tipo legal em apreço, conforme supra se referiu, ao assim não se ter decidido violou os tribunal o referido normativo legal.
11) Relativamente à impugnação da matéria de direito, a douta sentença recorrida sempre seria censurável porquanto conforme supra se referiu não estão preenchidos nem os elementos objectivos nem subjectivos do tipo de legal de crime de burla, razão pela qual se mostra violado tal preceito legal.
12) Falta de legitimidade da assistente para apresentação da participação pelo crime de Burla p. e p. pelo ar 217 nº1 do CP por não ser esta a titular do direito de queixa, conforme se extrai da douta acusação bem como da prova produzida em ADJ e consequentemente não detém o MP poderes para a prossecução da acção penal, o que determina a nulidade de toda a acusação nos termos do art° 119 nº2 al b) CPP, ao assim o tribunal não ter entendido violou entre outros, o disposto nos art°s 113 do CP ex vi 49 do CPP art° 217 nº 1 do CP e 119 n° 2 al. b) do CPP.
13) Violou ainda o Tribunal o dispostos nos artigo 127 do CPP, art° 205 da CRP e 97° n° 5 do CPP, quando na douta fundamentação refere que foram tidos em conta os documentos de fls 105 a 107,19 a 20,23 a 39, 40,41 e 42 a 58,384 a 388,416 a 421 e nas fotografias juntas aos autos através de CD na sessão de julgamento de 1 de Junho de 2011 e nas imagens recolhidas através do sistema de videovigilância da assistente juntas aos autos em CD e visionadas na sessão de julgamento de 1 de Junho, pois pese embora esta prova seja proibida a verdade é que não fundamentou em que medida é que esses documentos serviram para fundamentar a sua convicção, quais os pontos concretos desses documentos que serviram para a formação da sua convicção e consequentemente apoiar essa sua convicção. De igual modo, também não se pronunciou acerca do depoimento das testemunhas que a arguida arrolou tanto para prova de que não praticou os factualidade vertida, e que tal estratagema mais não é do que uma forma comum de a assistente poder despedir os funcionários que não interessam conforme ficou demonstrado pelo depoimento do J… e P… também eles vítimas de iguais comportamentos. Até porque art.º 127° do CPP, tem pressupõe e exige uma indicação dos meios de prova e um complementar e exigente exame crítico, de modo a que permita avaliar o porquê da decisão e o processo lógico mental que possibilitou a decisão da matéria de facto. Como tem dito o Tribunal Constitucional a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma actividade puramente subjectiva, emocional e portanto não fundamentada juridicamente. Tal princípio, no entendimento do Tribunal, concretiza-se numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitirá ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. Logo, a violação de tal normativo legal determina a nulidade da sentença nos termos do disposto no art° 379 nº 1 a) e c), por remissão para o artº 374 nº2 e 3 al. b), o que se invoca. Por outro lado, a convicção que o Tribunal formou para assentar a sua fundamentação para a factualidade passada nos dias 12 e 14 de Junho de 2007, não encontra apoio nem nos depoimentos das testemunhas de acusação, nem na documentária junta aos autos que referiu, pois esta está contrariada, conforme supra se referiu.
Nesta conformidade, deve acordar-se em conceder provimento ao recurso, e em consequência do reexame da matéria de facto, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra em que se considere não provada a factualidade vertida nos pontos b, e, g, j. k, 1, m, n, o e p), dos factos provados e consequentemente se absolva a arguida B… do prática do crime de Burla p. e p. pelo art° 217 nº 1 do C.P. que lhe era imputado.
Assim se fará inteira e merecida JUSTIÇA.

Havia também a arguida interposto recurso intercalar, a fls.453-461, do despacho de fls. 436 e ss., no qual formulou as seguintes conclusões:

(…)
1- Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls .., que deferiu a pretensão requerida pela assistente no seu requerimento de 26.04.2011 e aperfeiçoado a fls, de proceder em sede de audiência de julgamento ao visionamento das imagens obtidas pelas suas câmaras de videovigilância nas suas linhas de caixa, com a fundamentação de que "não se vislumbrava qualquer impedimento legal para o visionamento das imagens pretendidas, porquanto decorria dos autos a fls 416 a 421 que a assistente estaria devidamente autorizada pela entidade competente para recolher imagens nas suas linhas de caixa através de 2 câmaras móveis que podem ser direccionadas para os locais onde se registem a prática de ilícitos. E que de toda a prova produzida até agora é para nós evidente que a arguida não desconhecia a existência do sistema de videovigilância colocada em funcionamento no estabelecimento comercial da assistente. Por outro e em face do que prevê o 5/2004 de 21/2 aqui aplicável não está a caducidade de autorização concedida para a vldeovigilância".
2-Ora, a M. a Juíza a quo, no nosso humilde entender, laborou em erro notório tanto na interpretação do disposto nos artigos 167 nº1 e 2 e 126 nº3 e 125 5 do CPP, e artº 199 do CP e artº 20 do Código de Trabalho bem como na análise e interpretação dos documentos juntos a fls 416 a 421 dos autos, mormente autorização da CNPD, e planta de localização das câmaras de vigilância uma vez que, nem o disposto nos supra citados normativos permitem a visualização de tais imagens, nem a autorização para a instalação de videovigilância que foi concedida à assistente permite a captação de tais imagens, conforme consta dos autos.
3-Logo, não podia ter sido tal meio de prova permitido, muito menos permitida a sua reprodução /visionamento em sede de audiência de julgamento.
4- Ao contrário do vertido no douto despacho que se colocou em crise, a “Autorização" que a assistente dispunha para a recolha e captação de imagens na loja de Vila Real, excluía expressamente a captação de imagens ou o direccionamento de câmaras para os respectivos sistemas ou terminais de pagamento conforme se evola do seu ponto 4 (da conclusão) que refere no seu nº6 tal restrição.
5- Factualidade que facilmente está demonstrada na planta de localização das referidas câmaras que foi autorizada pela comissão nacional de protecção de dados, e que por si só determina a nulidade das mesmas e consequentemente não podia o Tribunal a quo ter permitido a sua visualização.
6- Por outro lado, dúvidas também não restam que é evidente que a recolha de imagens que a assistente efectuou são expressamente proibidas pelo do artº 20 do código de trabalho, e ainda com violação no disposto nº art 5 nº1 al.f), g)e nº2 e 3 e 5 artº 9 nº2 e 3 da Lei 1/2005 de 10/01, e como tal, não podia também face a estes normativos legais ter o Tribunal admitido tal visionamento, por se tratar de meio de prova expressamente proibido e que vai contra os princípios constitucionais vigentes no nosso ordenamento jurídico como é o direito ao trabalho, à imagem.
8- Nos termos do disposto no artº 32 nº8 da CRP são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada. E o art° 126 do CPP que conjuntamente com o artº 125 do mesmo diploma estabelece o regime de proibições de prova. "As provas obtidas mediante intromissão na vida privada". Quanto as provas obtidas por reproduções mecânicas, Nas quais se incluem os sistemas de videovigilância, preceitua o artº 167 nº 1 do CPP que só valem como prova se não forem ilícitas nos termos da lei penal, acrescentando o seu nº2 que" não se consideram nomeadamente ilícitas para os efeitos previstos úmero anterior as reproduções mecânicas ao disposto no titulo III deste livro", que tem com epigrafe "dos meios de obtenção da prova". Significa isto que o regime da legalidade da prova estabelece proibições de produção ou valoração da mesma, e comprime o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127 do CPP. Ora, no caso dos autos estamos perante uma prova proibida e como tal consubstancia uma nulidade que deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, tratando-se pois de uma nulidade insanável localizada fora do catálogo do art°119 daquele código que por essa razão não podia o Tribuna a quo ter autorizado a sua reprodução.
9-A que acresce o facto de a arguida não ter prestado sequer o seu consentimento para a sua captação, nem para a sua reprodução, o que impedia e logo o Tribunal de permitir a sua visualização.
10- E, a arguida opôs-se expressamente à sua visualização, porque a referida captacão das imagens era ilícita e como tal nula, dado que a assistente não dispunha de autorização válida para a captação das mesmas nas linhas de caixa (terminais de pagamentos) e por outro lado ainda que por mera hipótese académica se admitisse que a assistente dispunha de autorização para a recolha das mesmas, a arguida não daria o seu consentimento para a sua reprodução/divulgação, o que constitui por si só um ilícito criminal previsto no artº 199º do CP.
11-Por outro lado, a autorização concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados para a captação de imagens, há muito que se encontrava caduca, pois foi emitida em 12 de Abril de 2005 e não foi renovada, sendo que as mesmas não podem ser concedidas por mais de um ano, conforme decorre do artº 5º nº5 da Lei nº1/2005 e não foi renovada, sendo que as mesmas não podem ser concedidas por mais de um ano, conforme decorre do artº 5º nº5 da Lei nº1/2005 de 10/1) .Logo à data dos factos em mérito nesses autos 13 e 14 de Junho de 2007, e ao contrário do entendimento vertido Tribunal a quo, há muito que a referida autorização estava caduca, e portanto também por essa razão, também não deveria o Tribunal a quo ter permitido a seu visionamento, atenta a NULIDADE de obtenção das mesmas.
12-. Face ao exposto não devia o Tribunal a quo ter deferido a visualização das imagens captadas nas linhas de caixas na sua loja sita em Vila Real, porquanto as mesmas são ilícitas e consequentemente nulas porque obtidas sem o consentimento da arguida e ainda contra o disposto nos art° 20 do Código de Trabalho, art° 26 e 32 nº 8 da CRP e 79 nº 1 do CC e ainda contra o disposto artigo 167 nº 1 e 2 e 126 nº3 e 125 todos do CPP e 199 do CP, e que se espera que nesta instância superior venha a ser declarado e consequentemente indeferida a sua visualização.
13- Assim, o douto despacho proferido pela Meritíssimo Juiz" a Quo," que deferiu a pretensão da assistente de visionamento das imagens por esta captadas nas linhas de caixa da sua loja de vila Real, e que agora se coloca em crise, ressalvando-se sempre o enormissimo respeito por entendimento diverso, violou, face ao alegado nas conclusões atrás enunciadas, o disposto nos artigos 167ºnº1 e 2, artº 126 nº3 e 125 todos do CPP e artº 199 do CP e ainda os artigos 20º do Código de Trabalho e artº 26 e 32 nº8 da CRP e artº 5º nº1 al.f),g) e nº2 e 3 e artº 9º da Lei 1/2005 de 10/1 e artº 5al. a) e b) e artº 13 nº 1 do DL nº 34/2004 de 21/02, normas estas que se mostram violadas.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com devido respeito por soluções diversas deverão V. as Ex.ªs em face das conclusões atrás enunciadas, revogarem o douto despacho recorrido devendo o mesmo ser substituído por outro na qual se determine o indeferimento da visualização das imagens recolhidas pela assistente nas linhas de caixa da sua loja em Vila Real consequentemente determine a nulidade das mesmas nos termos e em conformidade com as conclusões enunciadas supra.
Assim decidindo, far-se-á uma vez mais a costumada e devida
JUSTIÇA

O Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso interposto da sentença, pugnando pela sua improcedência.
Igualmente respondeu a Assistente, pugnando pela improcedência de ambos os recursos.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso interlocutório fica prejudicado pela falta de fundamentação da sentença, a qual refere ser nula nos termos do artº 374º nº2 e 379º nº1 al.a) ambos do CPP.
Cumprido o disposto no artº 417º nº2 do CPP, não foram apresentadas respostas.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Para efeito de apreciação do recurso intercalar procede-se à transcrição do despacho recorrido de fls.436: (transcrição)
(…)
Não se vislumbra qualquer impedimento legal para o visionamento das imagens pretendido pela assistente.
Com efeito, conforme decorre dos documentos constantes dos autos (fls. 416 a 421), a assistente está devidamente autorizada pela entidade competente para recolher imagens na linha de caixas através de duas câmaras móveis direccionadas para os locais onde se registam a prática de ilícitos.
De toda a prova produzida até agora é para nós evidente que a arguida não desconhecia a existência do sistema de vídeo-vigilância colocado e em funcionamento no estabelecimento comercial da assistente.
Por outro lado, e em face do que prevê o DL 35/2004 de 21 de Fevereiro, aqui aplicável, não está a caducidade da autorização prevista para a vídeo-vigilância.
Em face do exposto, defere-se o requerido pela assistente.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
a) A arguida foi funcionária do Q…, S.A. desde 20 de Julho de 1992 até ao Verão de 2007, aí desempenhando funções de operadora de caixa.
b) Pelo menos em Junho de 2007 a arguida decidiu fazer uso daquela sua posição de operadora de caixa para aproveitar as facilidades concedidas pela campanha promocional cruzada "…" promovida pela assistente Q…, S.A., em parceria com a S….
c) A campanha consistia em possibilitar aos clientes da S… usufruírem de descontos em compras nos hipermercados Q…, S.A. e vice-versa.
d) Quem fizesse compras superiores a 40 euros nos hipermercados Q…, S.A. teria direito a um desconto de 5 cêntimos por litro de combustível nos postos de abastecimento da S… mediante a apresentação do respectivo talão de compra.
e) A assistente pagava depois à S… o valor do desconto que esta fazia aos clientes que aí se abasteciam de combustível mediante a apresentação do respectivo talão de compra emitido pela primeira. f) E assim também quem se abastecesse de combustível em valor superior a 15 euros nos postos de abastecimento da S… teria direito a descontar 5 cêntimos por cada litro abastecido em compras nos hipermercados Q…, S.A. mediante a apresentação nestes hipermercados do respectivo talão de abastecimento.
g) O plano da arguida consistia em descontar talões de abastecimento de combustível em seu benefício mas sem que ela própria tivesse que efectuar qualquer compra nos hipermercados Q…, S.A., fazendo-o a coberto de compras aí efectuadas por clientes terceiros indiferenciados, sem o conhecimento deles, e metendo ao bolso os respectivos descontos.
h) Os talões de desconto obtê-los-ia por forma que não se logrou apurar.
i) Em execução deste plano procedeu então a arguida do seguinte modo:
j) Nos dias 12 e 14 de Junho de 2007, às horas abaixo indicadas, a arguida, a coberto de compras aí efectuadas por alguns clientes indiferenciados, descontou, sem o conhecimento deles, os vales de abastecimento de combustível S… abaixo relacionados, introduzindo-os no sistema de pagamentos como se tivessem sido esses clientes a apresentá-los, o que tudo fez nos seguintes montantes:
k) 12/06/2007:
N.° do valeHora do descontoMontante (euros)
………..1755 - 12:14:30 - 0,94;
………..759 - 12:52:24 - 0,94;
………..1755 - 12:59:32 - 0,94;
………..1751 - 14:13:04 - 0,94;
………..1750 - 14:37:24 - 0,94.
l) 14/06/2007:
N.° do valeHora do descontoMontante (euros)
………..1761 - 14:25:36 - 0,69;
………..1763 - 14:29:36 - 0,72;
………..1753 - 14:32:42 - 0,72;
………..1749 - 14:42:52 - 0,86;
………..1745 - 14:54:50 - 0,72;
………..1748 - 15:17:56 - 0,72;
………..1765 - 15:25:16 - 0,69;
………..1768 - 15:47:01 - 0,57;
………..1724 - 15:58:42 - 0,54;
………..1720 - 16:12:27 - 0,90;
………..1729 - 16:21:24 - 0,69;
………..1768 - 16:23:57 - 0,94.
m) De todos estes descontos, no montante total de € 13,46, se apoderou a arguida, metendo-os ao bolso e fazendo-os seus.
n) Causou assim à assistente Q…, S.A. um prejuízo patrimonial no montante de 13,46 euros.
o) A arguida agiu consciente, livre e deliberadamente, fazendo crer erradamente ao Q…, S.A. que tinham sido os clientes a apresentar os talões para desconto, o que fez com intenção de alcançar um beneficio que sabia ilegítimo, por ter sido obtido sem que ela própria fizesse qualquer compra.
p) Sabia a arguida que por isso a sua conduta é punida e censurada por lei.
q) A arguida admitiu apenas que colocava os talões de desconto emitidos pela S… ao lado da sua caixa, ou seja fora da respectiva gaveta, bem como que escreveu e assinou, pelo seu próprio punho, a carta de despedimento constante de fls. 41, negando a demais factualidade.
r) Encontra-se na situação de desempregada.
s) O seu marido é trolha.
t) Vivem em casa própria, pela qual pagam uma prestação pela sua aquisição com recurso a crédito bancário no valor mensal de € 280,00.
u) Têm uma filha de 14 anos de idade a seu cargo.
v) Não tem antecedentes criminais.
w) Os registos de compras podem ser visionados pelos clientes, se estes assim o quiserem, no monitor que se encontra direccionado para os mesmos.
x) Os descontos depois de efectuados aparecem no visor.
*
Não se provou que:
- a arguida agiu da forma descrita supra porque tinha necessidade de obter algum rendimento extra para fazer face às suas despesas diárias e da sua família;
- o presente processo serve apenas para a assistente se furtar ao pagamento da indemnização que a arguida reclama, com fundamento em despedimento ilícito, em processo a correr termos no Tribunal do Trabalho;
- todos os registos de compras são visionados pelos clientes no monitor que se encontra virado para os mesmos, os quais detectavam os descontos efectuados pela arguida.
*
Fundamentação:
A convicção do tribunal assentou nos seguintes elementos de prova, conjugados com as regras de experiência comum:
1 - Depoimentos de:
● D…, funcionário da assistente há 17 anos e que desde 2005 desempenha as funções de Chefe de Segurança, o qual após ter sido alertado por outras operadoras de caixa de que a arguida tinha fora da gaveta da sua caixa diversos talões de desconto emitidos pela S…, na sequência de campanha promocional levada a cabo pela assistente, e de que os estava a utilizar em proveito próprio, descontando-os e subtraindo o respectivo valor do desconto, diligenciou por verificar a conduta da arguida, tendo-a visto, por mais do que uma vez, a tirar dinheiro da gaveta da caixa e a colocá-lo no bolso; este depoente também esteve presente quando a arguida foi chamada ao gabinete do Director da assistente – F… – que então a confrontou com os factos, tendo então a arguida escrito e assinado a carta de despedimento que consta de fls. 41;
● E…, funcionária da assistente há 14 anos e que desde 2007 desempenha as funções de Chefe de Secção de Caixas, a qual foi alertada pela funcionária C… para o facto de a arguida ter fora da gaveta da respectiva caixa os talões de desconto emitidos pela S…; foi na sequência deste alerta que a depoente E…, aproveitando-se de momentos em que a arguida não estava na sua caixa, aí se dirigiu, tirou os nºs dos aludidos talões, que se mostram mencionados nas alíneas k) e l), tendo igualmente verificado que ainda não tinham sido descontados, foi-se mantendo vigilante, tendo constatado que tais talões iam sendo descontados ao longo do dia pela arguida;
● C…, funcionária da assistente, em Vila Real, no período compreendido entre 18 de Outubro de 1999 e 13 de Dezembro de 2010 (presentemente trabalha no Q… sito na Régua) e que à data dos factos desempenhava as funções de Supervisora de Caixa de Supermercado; esta depoente confirmou ter visto, em meados de Junho, e quando a arguida se deslocou à casa de banho, na caixa desta, fora da respectiva gaveta, debaixo de um pano, muitos talões de desconto emitidos pela S…, procedimento este que estranhou, uma vez que tais talões representavam dinheiro e como tal tinham de se encontrar no interior da gaveta da caixa, motivo pelo qual participou esta situação à sua Chefe, a testemunha E…;
● G…, a qual desempenha as funções de Vigilante na assistente, em Vila Real, desde há cerca de 10 ou 11 anos e que foi encarregue pela testemunha D… de vigiar a caixa da arguida, através do sistema de videovigilância, o que fez, por mais de uma hora, tendo visto a arguida tirar o que se lhe afigurou ser dinheiro da gaveta da caixa e meter ao bolso;
● H…, a qual desempenha as funções de Segurança na assistente, em Vila Real, desde há seis anos e que, em 2007, também foi encarregue de vigiar a caixa da arguida e o comportamento desta, tendo constatado que o cliente não entregava qualquer talão, mas a arguida tirava um talão do lado esquerdo da caixa, digitava ou passava no scanner, tirava uma caneta do bolso, apontava algo e depois metia ao bolso; esta depoente detectou, por várias vezes, este procedimento da arguida;
● F…, o qual exerceu as funções de Director de Loja no estabelecimento da assistente, sito em Vila Real, desde 2004 até Agosto de 2007 e que actualmente trabalha no estabelecimento da assistente sito em Guimarães; este depoente descreveu o modo como se processava a campanha promocional referida na alínea b), como e por quem foi detectado o comportamento da arguida, o procedimento de vigilância que levaram a cabo para confirmar o procedimento desta com os talões de desconto da S… e subsequente apropriação pela mesma dos valores descontados em talões de compras efectuadas por clientes que pagavam em dinheiro, a reunião que teve com a arguida no seu gabinete, a 15 de Junho de 2007, na qual a confrontou com os factos, a circunstância de esta ter logo assumido que era verdade e que até vinha a ter este procedimento desde o início da campanha, em 2004, bem como o facto de esta ter escrito e assinado a carta de despedimento, na dita reunião, por sua livre vontade;
2 – Documentos constantes de fls. 105 a 107, 19 a 20, 23 a 39, 40, 41 e 42 a 58, 384 a 388, 416 a 421;
3 – Fotografias juntas aos autos através de suporte digital (CD) na sessão de julgamento de 1 de Junho de 2011;
4 - Imagens recolhidas através do sistema de videovigilância da assistente e juntas aos autos em suporte digital (CD), visionadas na sessão de julgamento de 1 de Junho de 2011;
5 - Declarações da arguida que admitiu colocar os talões de desconto emitidos pela S… ao lado da sua caixa, ou seja fora da respectiva gaveta, bem como ter escrito e assinado, pelo seu próprio punho, a carta de despedimento constante de fls. 41 e que relevaram ainda quanto à sua condição socioeconómica;
6 - Certificado do registo criminal constante de fls. 184.
No que concerne à matéria de facto considerada não assente ou não foi apresentado qualquer meio de prova que a confirmasse ou resultou demonstrado precisamente o contrário.
Por um lado, nenhum elemento de prova nos permitiu aferir em concreto qual a motivação que determinou a conduta da arguida tanto mais que a testemunha T…, que referiu ser sua amiga há dez anos, disse nunca se ter apercebido que a arguida tivesse dificuldades económicas.
Por outro lado, em face da conjugação de todos os elementos de prova acima referidos que determinaram a matéria de facto dada como provada resultou, a nosso ver, cabalmente contrariada a alegação feita pela arguida na sua contestação de que o presente processo serve apenas para a assistente se furtar ao pagamento da indemnização que a arguida reclama, com fundamento em despedimento ilícito, em processo a correr termos no Tribunal do Trabalho.
No que diz respeito à alegação de que todos os registos de compras são visionados pelos clientes no monitor que se encontra virado para os mesmos, os quais detectavam os descontos efectuados pela arguida, a mesma mostra-se desde logo contrariada pelas mais elementares regras de experiência comum.
Com efeito, o senso comum diz-nos que há clientes que efectivamente têm o cuidado de olhar para o monitor e ir conferindo o registo das compras e outros que não se dão a esse cuidado.
Daí que a circunstância de os descontos efectuados surgirem no visor, por si só, não implica que o cliente se aperceba sequer que tenha sido feito qualquer desconto no seu talão de compras, tanto mais que, como decorre de forma clara dos depoimentos a que aludimos supra, o que surge primeiro no monitor é o valor total das compras efectuadas pelo cliente, sem qualquer desconto e só depois de introduzidos os dígitos ou de se passar no scanner o talão de desconto, é que este aparece no visor, ou seja, esta operação só é feita a posteriori, depois de contabilizado o valor das compras do cliente.
Em sede de audiência a arguida veio também dizer que tudo isto aconteceu porque havia funcionárias da assistente que lhe queriam mal, dando a entender que tudo foi “montado” contra si, para além de que foi pressionada para assinar a carta de despedimento referida supra.
Nenhuma das testemunhas ouvidas confirma esta sua versão, nomeadamente aquelas que a arguida apresentou e que, em bom rigor, nada sabiam dos factos.
Ora, o que resulta demonstrado, de forma evidente e sem margem para qualquer dúvida, da conjugação de todos os elementos de prova, testemunhais e documentais a que aludimos supra, com as mais básicas regras de experiência comum, é que a arguida praticou os factos, tal como se apuraram, sendo, aliás, até dispensável o visionamento das imagens recolhidas pelo sistema de videovigilância da assistente para formar a convicção do Tribunal nesse sentido.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. Apenas essas são pois as questões a decidir pelo tribunal.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
Começando pela apreciação do recurso interlocutório de fls. 447s interposto do despacho de fls.436.
Com o devido respeito, entendemos que a apreciação deste recurso não pode ficar prejudicado pela decisão que porventura venha a ser tomada na sentença, já que a sua apreciação é prévia à apreciação do recurso da sentença.
A recorrente alega e em síntese:
. que a autorização da assistente excluía expressamente a captação de imagens ou o direccionamento das câmaras para os respectivos sistemas ou terminais de pagamento;
. que a recolha de imagens que a assistente efectuou viola o artº 20 do CT e viola o disposto no artº 5 nº1 al.f), g) e nº2 e 3 e 5 e artº 9º nº2 e 3 da Lei 1/2005 de 10/1;
.que as imagens captadas pelo sistema de videovigilância são uma prova proibida nos termos dos arts 126º e 167º nº1 e 2 do CPP;
. que não tendo dado a arguida o seu consentimento para a captação e reprodução das imagens, tal captação constitui o crime previsto no artº 199º do CP.
.que a autorização concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados para a captação de imagens se encontrava caduca;
Para concluir que se determine o indeferimento da visualização das imagens recolhidas pela assistente nas linhas de caixa e consequentemente se determine a nulidade das mesmas.
Comecemos então pela questão do âmbito da autorização da assistente para a captação de imagens.
A recolha de imagens através do sistema de vídeo vigilância encontra-se prevista no Decreto –Lei 35/2004 de 21/2, diploma que regula a actividade de segurança privada, sendo que tal diploma dispõe no seu artº 1º : (salientado nosso)
“1 – O presente diploma regula o exercício da actividade de segurança privada.
2 – A actividade de segurança privada só pode ser exercida nos termos do presente diploma e de regulamentação complementar e tem uma função subsidiária e complementar da actividade das forças e dos serviços de segurança pública do Estado.
3- Para efeitos do presente diploma, considera-se actividade de segurança privada:
a) (…)
b) A organização, por quaisquer entidades e em proveito próprio, de serviços de autoprotecção, com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes.»
. Assim, e desde já se afirma ser esta a legislação aplicável à recolha de imagens efectuada pela assistente, entidade particular, em espaço particular ainda que utilizado pelo público, no caso supermercado, e não a Lei nº1/2005 de 10 de Janeiro, invocada pela recorrente já que esta Lei nos termos do seu artº 1º «(…) regula a utilização de sistemas de vigilância por câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum, para captação e gravação de imagem e som e seu posterior tratamento.»
Como tal não tem fundamento a invocação por parte da recorrente dos preceitos daquela lei para pretender que se considere caduca a autorização concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados para a captação de imagens, por a mesma não ter aplicabilidade nos autos como bem se afirmou no despacho recorrido, e salienta a assistente na sua resposta.
Alega a recorrente que “a “Autorização" que a assistente dispunha para a recolha e captação de imagens na loja de Vila Real, excluía expressamente a captação de imagens ou o direccionamento de câmaras para os respectivos sistemas ou terminais de pagamento.”
Continua a assistente a ter em vista a Autorização concedida à assistente pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, nos termos do artº 8º nº2 e 28º nº1 al.a) da Lei 67/98 de 26 de Outubro.
Dispõe o artº 8º nº2 desta Lei que “O tratamento de dados pessoais relativos a suspeitas de actividades ilícitas, infracções penais, contra-ordenações e decisões que apliquem penas, medidas de segurança, coimas e sanções acessórias pode ser autorizado pela CNPD, observadas as normas de protecção de dados e de segurança da informação, quando tal tratamento for necessário à execução de finalidades legítimas do seu responsável, desde que não prevaleçam os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.” (negrito nosso)
E no artº28º nº1 al.a) da mesma Lei, sob a epígrafe (Controlo prévio), dispõe-se que “Carecem de autorização da CNPD: a) O tratamento dos dados pessoais a que se referem o nº2 do artº 7º e o nº2 do artigo 8º;”
Sendo que, os termos do nº4 do artº 4ª, esta Lei aplica-se à vídeovigilância.
Dos autos consta a Autorização concedida à assistente a qual não se encontra caduca, sendo que expressamente se condiciona que os dados “só podem ser utilizados nos termos da lei processual penal”, consignando-se na mesma que a requerente, agora assistente, “Deve impedir que as Câmaras de vídeo sejam direccionadas para os respectivos sistemas ou terminais de pagamento.”
Do teor da autorização em causa, resulta, ter-se considerado que “ as câmaras funcionam como um factor de dissuasão, tanto mais que estes estabelecimentos são muitas vezes alvo de furtos, pois, como é sabido, existe sempre dinheiro “vivo” nas caixas registadoras” (negrito nosso), pelo que aquilo que está em causa no condicionamento ao direccionamento das câmaras, não são as caixas registadoras em si, já que tem em vista a prevenção de ilícitos, mas sim os próprios sistemas ou terminais de pagamento, visando-se com tal limitação como bem salienta a assistente, a protecção dos códigos dos clientes e não a actuação relativa a eventual prática de infracções penais.
Ademais, como foi já afirmado pela jurisprudência, a verificação da existência, ou não, de licença concedida pela CNPD para a colocação da(s) câmara(s) de videovigilância no estabelecimento comercial da assistente, “poderá eventualmente, integrar desrespeito pela legislação de protecção de dados, designadamente a Lei nº 67/98, aplicável à videovigilância nos termos do seu artº 4º nº4. Mas não define a licitude ilicitude penal da recolha ou utilização das imagens.”,[1] pois que a tipificação penal das gravações ou fotografias ilícitas encontra-se no artº 199º do CP.
Improcede pois também esta questão.
Mais alega a recorrente consubstanciar a captação e proibição de imagens prova proibida, por violação do disposto no artº 20º do Código de Trabalho.
Mais uma vez sem razão.
A recorrente invoca o disposto no artº20º do Código do Trabalho, o qual quer na versão actual da Lei 7/2009 de12 de Fevereiro quer na versão da Lei 99/2003 de `27/8, dispõe no seu nº1 que «O empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.», mas esquece o nº2 do mesmo preceito em que se dispõe que « A utilização do equipamento referido no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem». (negrito nosso).
Ora é precisamente o caso dos autos, em que como decorre da autorização concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, a utilização dos meios de vigilância à distância, teve por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens.
E é precisamente este escopo, de protecção e segurança de pessoas e bens, que permite às entidades particulares a utilização de equipamentos electrónicos de vigilância, nos termos do artº 13º da referida Lei 35/2004 de 21/2 que dispõe:
“1 - As entidades titulares de alvará ou de licença para o exercício dos serviços estabelecidos nas alíneas a), c) e d) do artº 2 podem utilizar equipamentos electrónicos de vigilância com o objectivo de proteger pessoas e bens desde que ressalvados os direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
2 – A gravação de imagens e som feita por entidades de segurança privada ou serviços de autoprotecção, no exercício da sua actividade, através de equipamentos electrónicos de vigilância deve ser conservada pelo prazo de 30 dias, findo o qual será destruída, só podendo ser utilizada nos termos da legislação processual penal.
3 – Nos lugares objecto de vigilância com recurso aos meios previstos nos números anteriores é obrigatória a afixação em local bem visível de um aviso com os seguintes dizeres, consoante o caso, «Para sua protecção, este lugar encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão», ou» para sua Protecção, este lugar encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som», seguido de símbolo identificativo.
4 - A autorização para a utilização dos meios de vigilância electrónica nos termos do presente diploma não prejudica a aplicação do regime Geral em matéria de protecção de dados previsto na Lei nº 67/98, de 26 de Outubro, designadamente em matéria de direito de acesso, informação, oposição de titulares e regime sancionatório».
Improcede, pois, alegação da violação do artº 20º do Código do Trabalho.
Mas prossegue a recorrente alegando que a captação e reprodução das imagens viola o direito à imagem consagrado no artº 26º da CRP e no artº 79º do CC, sendo uma prova proibida e, nos termos do artº 32º nº8 da CRP e artº 126º do CPP, consubstanciando uma “nulidade insanável localizada fora do catálogo do arº 119º daquele código.” E ainda que, não tendo a arguida dado o seu consentimento à reprodução das imagens, tal prova “constitui inclusivamente ilícito criminal contra as pessoas que as reproduzem atento o disposto no artº 199º nº1 e 2 do CP ex vi 167 nº1 do CPP”
Decorre do nº 2 do artº 13º 13º da Lei 35/2004 de 21/2, que podem ser utilizadas «nos termos da legislação processual penal» as imagens gravadas pelo equipamento electrónico de vigilância instalado nas instalações comerciais da assistente.
Ora, nos termos do artº 125º do CPP, são permitidos todos os meios de prova que não sejam proibidos por lei. Como escreve o Prof. Germano Marques da Silva, [2] “Proibindo a utilização de certos meios de prova, a norma consagra também, ao contrário do sistema da prova tarifada, a liberdade da prova, no sentido de serem admissíveis para a prova de quaisquer factos todos os meios de prova admitidos em direito, ou seja que não sejam proibidos por lei.(…) O princípio assim entendido distingue-se do da vinculação na valoração da prova, frequentemente designado por princípio da prova legal, que contrasta com o princípio da liberdade de valoração da prova que o CPP consagra no artº 127º do CPP”.
Por sua vez, no artº 126º nº3 do CP dispõe-se que «Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».
Sendo que dispõe o artº 167º do Código de Processo Penal:
“1- 1 – As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
2 – Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no numero anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no Título III deste Livro» .”
Do nº1 deste preceito resulta que as reproduções mecânicas só poderão ser usadas em processo penal, como meio de prova, se na sua obtenção não tiver sido violada qualquer disposição da penal substantiva, maxime o artº 199º do Código, o qual, no seu nº2 prevê a punição de quem sem consentimento «Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado».
Tutela-se neste ilícito o direito à imagem, com consagração constitucional no artº 26 da CRP e também protegido no artº 79º nº1 do CC,segundo o qual «O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela.»
Porém, essa necessidade de consentimento sofre as excepções previstas no nº2 do artº 79º do CC que dispõe que
«Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente» (negrito nosso).
Ou seja, é o próprio artº 79ºnº2 do CC que prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada nas situações aí previstas, o que terá de ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e aos princípios da intervenção mínima e da unidade da ordem jurídica, sob pena de contradição dentro do próprio sistema jurídico (vd. artº 31º, nº1, do Código Penal), daqui decorrendo que não pode ser penalmente ilícito aquilo que qualquer outro ramo do direito declara lícito.[3]
Acerca do âmbito de aplicação do artº 79º do CC escreve Costa Andrade: «Na determinação da área de tutela típica do direito à imagem deve ainda ter-se presente o disposto no nº 2, do artº 79º do CC. Que, pelo menos em algumas das constelações previstas, se projecta logo em sede de tipicidade e não apenas de ilicitude/justificação. Deve ser assim em relação a dois grupos de casos:
a )Em primeiro lugar e pelas razões já sumariamente afloradas, quando a “imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.” Isto na medida em que a imagem da pessoa resulte inequivocamente integrada na” imagem” daqueles espaços ou eventos e neles se dissolva. Já será diferente à medida que o destaque concedido à imagem resultar em individualização e subtracção (não querida) ao anonimato.» [4]
Aplicando as normas e princípios referidos ao caso dos autos, há que concluir que a captação das imagens efectuada pela assistente, efectuada em lugar público (no sentido de lugar de livre acesso ao público) e por razões de justiça, e a sua reprodução em audiência se mostra legalmente admissível, atento o disposto no artº 13º nº2 da Lei nº35/2004, de 21 de Fevereiro e artº 167º nº1, do CPP, uma vez que na respectiva obtenção não foi violada qualquer disposição da lei penal substantiva, designadamente o artº 199º nº2 al.a) do CP.
Como tal, não assiste razão à recorrente quando alega que a prova em causa é proibida, nem se mostra violado o disposto no artº 32º nº8 da CRP nem o artº 126º do CP.
Improcede pois o recurso interlocutório.
Recurso da sentença:
A recorrente coloca as seguintes questões:
.Erro notório na apreciação da apreciação da prova;
.Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
.Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
.Falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção penal, por ausência de queixa por parte dos ofendidos;
.Nulidade do artº 379º nº1 ala) e 374º nº2 do CPP
Impugnação da matéria de facto
.Prova proibida;
.Violação do artº 127º do CPP
.Violação do princípio in dubio pro reo;
. Valoração de documentos que não foram analisados em audiência;
.Violação do artº 340º do CPP;
.Inverificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de burla p.p.pelo artº 217º nº1 do CP

O Exmº Srº Procurador Geral Adjunto suscita a questão prévia relativa à verificação da nulidade do artº 379º nº1 al.a) “pela manifesta falta de fundamentação da sentença, em face da inquestionável ausência de especificação e análise critica da prova no que respeita aos documentos, fotografias e imagens do sistema de videovigilância da Assistente visionadas no decurso da audiência de julgamento”, realçando ainda que a fundamentação da sentença se limita a individualizar e resumir a prova testemunhal, sem qualquer exame crítico ou apreciação em termos de credibilidade e valoração pelo Tribunal.
Também a arguida alega que a sentença é nula, nos termos do artº 379º nº1 al.a) e c) do CPP por remissão para o artº 374º nº2 e 3 al.b) do CPP, por não ter fundamentado em que medida é que os documentos elencados na sentença, designadamente as imagens de videovigilância, relevaram para fundamentar a convicção do tribunal, e ainda por não se ter pronunciado acerca dos depoimentos das testemunhas que a arguida arrolou- Conclusão 13) do recurso.
No que concerne à alegação da recorrente de que o tribunal não se pronunciou acerca dos depoimentos das testemunhas que a arguida arrolou, desde já se adianta improceder a invocada nulidade do artº 379º c) do CPP.
Decorre do disposto no artº 374º nº2 do CPP que o tribunal apenas tem de elencar e apreciar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal e não outras que em nada para tal tenham relevado.
Daí que se o tribunal não fez referência ao depoimento de alguma testemunha, obviamente é porque tal depoimento nenhuma relevância teve para a formação da convicção. E nunca se verificaria a invocada nulidade, já que uma coisa é pronunciar-se sobre questões, outra é sobre o teor de depoimentos e a nulidade prevista no artº 379º nº1 al. c) refere-se apenas à omissão de pronúncia sobre questões que o tribunal devia apreciar.
Vejamos então se a sentença recorrida violou o disposto no artº 374º nº2 do CPP por não ter fundamentado em que medida é que os documentos elencados na sentença, designadamente as imagens de videovigilância relevaram para fundamentar a convicção do tribunal.
Dispõe o artº 374º nº2 do CPP, que a sentença deve conter “ uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
A sentença só cumpre o dever de fundamentação quando os sujeitos processuais seus destinatários são esclarecidos sobre a base jurídica e fáctica das reprovações contra eles dirigidas. Porém e como vem sendo entendido pela Jurisprudência, a lei não vai ao ponto de exigir que, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido. O que a Lei diz é que não se pode abdicar de uma enunciação, ainda que sucinta mas suficiente, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão.[5]
Realça-se que a lei não obriga a que a fundamentação da decisão indique a concreta prova de cada um dos factos provados e não provados, nem á reprodução do teor de cada depoimento prestado. Como refere acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-03-2008, com o apoio da jurisprudência do Tribunal Constitucional que cita:
“(…) XIII - Por outro lado, a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, havendo vários. O que tem de deixar claro, de modo a que seja possível a sua reconstituição, é o porquê da decisão tomada relativamente a cada facto – cf. Ac. do STJ de 11-10-2000, Proc. n.º 2253/00 - 3.ª, e Acs. do TC n.ºs 102/99, DR, II, de 01-04-1999, e 59/2006, DR, II, de 13-04-2006 –, por forma a permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo”.[6]
Em suma, aquilo que é necessário é que o tribunal explicite o percurso cognitivo que o levou a determinada decisão sobre a matéria de facto e designadamente justifique o convencimento a que chegou, de modo a que tal seja perceptível aos destinatários da decisão e, ao tribunal superior, o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso.
Aplicadas estas normas e princípios à sentença dos autos, com o devido respeito por posição contrária, entendemos não se verificar a nulidade invocada.
É certo que a sentença se limita no que aos documentos respeita bem como às imagens recolhidas através do sistema de vídeo vigilância a elencar as mesmas como meio de prova sem se debruçar sobre o seu concreto conteúdo.
Porém, ainda assim, a leitura integral da fundamentação de facto permite apreender de forma clara a razão e o raciocínio lógico que levou a que o tribunal tivesse dado como provados os factos, pois ainda que se reconheça não estarmos perante uma fundamentação exemplar no que em sede de apreciação critica da prova impende sobre o julgador, a verdade é que a objectiva narrativa dos depoimentos das testemunhas sobre os factos que presenciaram, conjugada com uma simples leitura de apreensão dos documentos juntos aos autos, designadamente documentos de fls. 23 a 39 e doc de fls. 42 a 58, relativos ao desconto dos talões, torna transparente a razão de os factos terem sido dados como provados.
Sendo que, face ao que se decidiu em sede de recurso interlocutório, sobre a legalidade da captação das imagens efectuadas, não se coloca a questão da necessidade de saber quais as concretas imagens da videovigilância que foram valoradas pelo tribunal.
Concluímos pois que a fundamentação da sentença é de molde a permitir a apreensão do percurso cognitivo seguido pelo julgador na fixação dos factos provados e, como tal, improcede a invocada nulidade e violação dos arts 97nº5 e 205º da CRP.
A recorrente alega que a sentença recorrida enferma dos vícios do artº 410º nº2 do CPP.-conclusões 5) e 6) do recurso.
Porém, afigura-se que a recorrente vai confundindo ao longo das suas alegações duas questões que importa clarificar, o erro de julgamento na matéria de facto, e os vícios previstos nas al. a), b) e c) do nº2 do artº 410º do CPP.
O erro de julgamento ocorre quando o tribunal dá como «provado» certo facto em relação ao qual não foi feita prova bastante e que por isso, deveria ter sido considerado «não provado», ou, então, o contrário, isto é quando o tribunal considera «não provado» algum facto que, perante a prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
No caso de pretender impugnar a matéria de facto, o recorrente deverá especificar os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida artº 412, nºs 1 e 2, als. a) e b) do CPP: sendo que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações de prova previstas na alínea b) daquele preceito, fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nos termos do nº4 do mesmo preceito.
Diferentemente e no tocante a todos os vícios previstos no nº2 do artº 410º do CPP, já a respectiva existência tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.[7]
Assim e no que concerne ao alegado vício do erro notório na apreciação da prova, para que o mesmo ocorra exige-se a evidência de um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores da decisão recorrida e que se traduza em uma conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum -cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200.
Ora, o que a arguida alega, conclusão 5), é que “quanto aos pontos que a recorrente considera incorrectamente julgados, verificou-se erro notório na apreciação da prova, quanto a factualidade dada como provada que deveria ter sido considerada como não provada, por essa razão levou à condenação da arguida.”
O que a recorrente está no fundo a alegar é a incorrecta valoração da prova, e a existência de erro de julgamento, designadamente por entender que as provas que indica na motivação do recurso impõem diferente decisão, alegação que será apreciada em sede de impugnação da matéria de facto.
Igualmente quando alega a existência do vício da insuficiência da matéria de facto dada como provada, mais uma vez com base na alegação de a matéria de facto dada como provada nos pontos que impugna, “não encontram fundamento nem na prova documental de fls.105 a 107, 19 a 20, 23 a 39, 40, 41 e 42 a 58, 384 a 388, 416 a 421 nem nas fotografias juntas aos autos através de cd na sessão de julgamento de 1 de Junho de 2011 nem nas imagens recolhidas através do sistema de videovigilância da assistente juntas aos auto e visionadas na sessão de julgamento de 1 de Junho, pois pese embora esta prova seja proibida está em contradição com o doc de fls. 416 a 421,” está a faze-lo fora das condições legais para tal invocação, pois que se limita a divergir da convicção formada pelo tribunal.
Ora o vício da insuficiência não é a insuficiência da prova para a matéria dada como provada, questão que se prende com o princípio da livre apreciação da prova e erro de julgamento, mas sim a insuficiência da matéria provada para a decisão de direito. Isto é, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, pressupõe que a decisão de direito proferida não encontre na matéria de facto provada uma base sólida e consistente que a suporte: traduz-se, pois, numa insuficiência dos factos provados para a conclusão jurídica exposta no texto da decisão recorrida [nesse sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-04-2004, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XII, tomo II, pp. 166-167]. Como tal a invocação do vício por parte da recorrente improcede.
Porque a recorrente, na motivação do recurso, invoca também a existência do vício da contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevenido no artº 410º nº2 do CPP, assacando para tal um “aglomerado” de várias questões como seja a invocação da prova testemunhal, a falta de legitimidade para acusar do Ministério Público a violação dos artºs 127º, 374º nº2 e 3 al.b) 379º nº1 do CPP, e dir-se-á que manifestamente, improcede tal vício, que este é, nos termos configurados na lei, um vício da matéria de facto que não se pode confundir com as nulidades previstas no artº 379º do CPP nem com o regime da queixa p.p. nos arts 113º s do CP.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ocorre “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184.
Ou nas palavras de M.Simas Santos e M.Leal Henriques, “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al.b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”. Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379
Não é seguramente o caso da sentença recorrida, na qual não descortinamos a concreta ocorrência dos vícios invocados, antes se reafirmando que à identificação dos vícios do artº 410º nº2 do CPP é irrelevante “a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio formou sobre os factos”.[8]
Improcede pois esta alegação.
Improcedente que é a invocação dos vícios do artº 410º º2 do CPP, passemos então à apreciação da impugnação efectuada pela recorrente. Nas conclusões 3), 4) e 9) das conclusões do recurso.
Os tribunais da Relação conhecem de facto e de direito nos termos do disposto no artº 428º do CPP.
Porém o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio jurídico, um expediente jurídico que visa colmatar erros do julgamento feito pela 1ª instância.
Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
Da motivação e conclusões do recurso, resulta que a recorrente discorda da matéria dada como provada nos pontos b), e) g), j), k),l, m),n) e o),p) da sentença. E como prova que impõe decisão diversa da recorrida, o recorrente invoca: os depoimentos das testemunhas C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, K…, L… e M…, N…, e O… e P… e os documentos de fls. 41, horário de trabalho da arguida, de fls.416 a 421.
Porém, lidas as passagens transcritas pela recorrente e ouvidos integralmente os depoimentos indicados pela recorrente ao abrigo do disposto no artº 412º nº6 do CPP, desde já se adianta que tais passagens não impõem diferente decisão daquela que foi tomada pelo tribunal.
Na verdade, a lei refere provas que «impõem» e não as que «permitiriam» solução diversa, pois casos haverá em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Por isso, quando o recorrente pretenda impugnar a matéria de facto, recai sobre o mesmo o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa, o que terá de ser feito por referência ao consignado na acta, -relativamente às provas gravadas – indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
No caso dos autos, as provas indicadas pelo tribunal e ouvidas através da gravação por este tribunal de recurso, não só permitem a convicção de que os factos dados como provados ocorreram, como delas decorre até ser essa a decisão que mais conforme se revela à prova produzida.
Aliás a recorrente em momento algum aponta a existência de algum erro de julgamento à fundamentação da sentença, antes tendo enveredado pela discordância quanto à credibilidade atribuída aos depoimentos das testemunhas de acusação e descredibilização das declarações da arguida, que na sua perspectiva justificavam outra decisão.
A recorrente ataca a convicção formada pelo tribunal, por entender que todos os depoimentos se contrariam, entre si designadamente quanto a saber quem foi que alertou a testemunha C… para o comportamento da arguida, o que tudo deveria levar na perspectiva da recorrente ao funcionamento do princípio in dubio pro reo.
Não lhe assiste qualquer razão. Lida a fundamentação da sentença recorrida e ouvidos os depoimentos aí referidos, extrai-se que embora com algumas divergências quanto a aspectos laterais, como seja o referenciado pela recorrente quanto ao modo como a testemunha C… foi alertada para o comportamento da arguida, os depoimentos das testemunhas de acusação se revelam claros e coerentes entre si quanto aos factos provados. Assim o que resulta do depoimento da testemunha F… que á data exercia as funções de director de loja, é que esta afirma que foi a testemunha C… quem viu os talões fora da caixa, o que também é referido pela testemunha D… chefe de segurança, que referiu que foi a testemunha C… supervisora da linha de caixa, quem se apercebeu de que a arguida tinha os talões de desconto fora da caixa registadora, o que é absolutamente coincidente com o depoimento da testemunha C… que de modo claro e justificado referiu que aquilo que lhe chamou a atenção foi ter visto os talões de pagamento debaixo do pano fora da gaveta, tendo posteriormente alertado a testemunha E…, que confirma também tal ocorrência. Ora este é o facto relevante sobre o qual a prova é inequívoca. As divergências que possam emergir do depoimento da testemunha F… quanto às concretas circunstâncias em que a testemunha C… constatou a existência dos talões fora da caixa, até se revelam compreensíveis uma vez que a testemunha está a contar um facto que lhe foi relatado por outra pessoa e atento o tempo já decorrido, para além de que foram várias pessoas a aperceberem-se e tomarem conta da situação, o que naturalmente propicia a apreensão de diferentes aspectos que umas podem considerar mais relevantes que outras, mas não afecta o núcleo dos factos que vieram a ser dados como provados.
O que decorre do depoimento das testemunhas é, sem margens para duvidas, que a arguida tinha os talões de desconto fora da caixa, que através da leitura do sistema informático foi verificado que esses talões ainda não haviam sido descontados vindo a sê-lo posteriormente, conforme decorre do depoimento da testemunha E…, que relata como tirou os números dos talões objecto dos presentes autos e depois confirmou a entrada dos mesmos no sistema informático. E de nada vale à recorrente pretender contrariar os factos provados com o teor do documento por si junto aos autos a fls. 400, desde logo porque trata-se de mera cópia de documento particular, livremente apreciável pelo tribunal, que desde logo está em contradição com o documento apresentado pela assistente a fls.384, 385, -igualmente mera cópia de documento particular, mas essencialmente porque a testemunha E… refere expressamente que tem a certeza de que todas as horas em que ocorreram os descontos era a arguida que estava na caixa, porque “ estava a ver on line”.
E quanto ao facto dado como provado de que a arguida meteu ao bolso o valor dos descontos, o mesmo resulta quer do depoimento da testemunha G… que referiu ter visto por mais de uma hora através do sistema de videovigilância “a arguida tirar o que se lhe afigurou ser dinheiro da caixa e meter ao bolso”, bem como do depoimento da testemunha D…, que referiu estar na linha de caixa e ter visto a arguida por mais de uma vez retirar o dinheiro e meter ao bolso. Foi ainda referido pela testemunha E… que, nos dias em que confirmou a introdução dos talões de desconto pela arguida, não existiram “quebras” nem “sobras” de caixa.
Ademais, também este tribunal visionou a gravação da vídeo vigilância relativa ao dia 14 de Junho e observou o gesto da arguida retirando algo da caixa para o seu bolso.
Ora se a arguida era quem estava na caixa, introduz talões de desconto que não lhe são entregues por clientes compradores, é vista a tirar algo da caixa e a meter ao bolso, sendo certo que na caixa existe dinheiro, se no final do dia não há “sobras” é possível com toda a segurança e sem que outra hipótese se intrometa no juízo lógico, concluir que a arguida retirou e se apoderou do valor dos descontos.
Como é sabido, na formação da convicção, o juiz não está impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra[9] que “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”. Mas “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada por impressões.”[10]
E os factos provados encontram também apoio no teor dos documentos de fls. 23 a 39 e 42 a 58, dos quais resulta numa leitura literal o desconto dos talões identificados nos autos e as respectivas datas, os quais, conjugados com o depoimento da testemunha E… não deixam margem para duvidas quer quanto à data e hora em que ocorreram quer quanto aos montantes em causa.
Daí que não tenha razão a recorrente quando alega que as testemunhas “não souberam sequer indicar a que data se reportava a factualidade que acusavam a arguida, ou um de único número talão de desconto S…, nem quantos talões nem o seu montante”, pois que, como é sabido, a prova é apreciada conjuntamente e toda inter relacionada entre si. Da conjugação dos referidos documentos de fls. 23 a 39 e 42 a 58, com os depoimentos das testemunhas E…, que, sem precisar o dia, situa os factos no mês de Junho perto dos feriados 10 e 13 de Junho, sabendo que foi na semana de 10, 12, 13, 14, 15 de Junho, e C… que também refere meados de Junho, e da testemunha D… que referiu que a entrada dos talões foi verificada no sistema informático no rolo de controle, o que foi confirmado pela testemunha F…, que referiu ter analisado posteriormente confirmado a entrada dos talões no sistema informático, não se suscitam duvidas quanto à decisão da matéria de facto relativamente à identificação dos talões, data de entrada dos mesmos e respectivos montantes.
Anota-se que, contrariamente ao que a arguida alega, nada impede que o tribunal valore os documentos juntos aos autos ainda que não os tenha analisado expressamente em audiência.
Dispõe o artº 355º nº1 do CPP que “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.
Resulta ainda do nº2 do mesmo preceito que “Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.”
Decorre do arº 165º nº1 do CPP que os documentos devem ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo possível, até ao encerramento da audiência. Nos termos do nº2 deste artigo “Fica assegurada em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.”
Sobre o alcance desta disposição, pronuncia-se Maia Gonçalves no sentido de que «os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, visualização ou audição, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.»[11]. Neste sentido tem vindo a Jurisprudência a pronunciar-se referindo-se entre outros o Ac.do STJ de 31 de Maio de 2006, e o Ac da Relação do Porto 11 de Abril de 2007, ambos na linha do Ac. do Tribunal Constitucional nº87/99, de 10 de Fevereiro, onde se afirma não ser indispensável à satisfação do princípio do contraditório, quer na modalidade do princípio da oralidade, quer da imediação, a leitura de toda a prova documental pré-constituída e junta ao processo.
Ora, uma vez que os documentos já se encontravam juntos aos autos em inquérito e que, em relação àqueles que foram juntos em audiência foi sempre respeitado o exercício do contraditório e até exercido pela arguida, nada impedia a valoração dos documentos.
E dizemos nada, porque sobre a legalidade da captação e visualização das imagens da vídeo vigilância já nos pronunciámos aquando da apreciação do recurso interlocutório, pelo que improcede a alegação de que se trata de prova proibida. -conclusão 7) do recurso.
O depoimento da testemunha N…, segurança da assistente, cuja gravação foi por nós ouvida, revela-se de tal modo hesitante e inseguro, e receoso de se comprometer nas respostas, que bem se percebe que de nada tenha servido à convicção do tribunal.
Tudo o mais que a recorrente alega são meras conjecturas e hipóteses, que até poderiam ser possíveis, como aquelas que a recorrente alega quanto poder ter sido outra a actuação imediata das testemunhas funcionárias que se aperceberam do comportamento da arguida, mas que não são impostas pela prova indicada pela arguida e antes são contrariadas pela prova constante da fundamentação da sentença.
Por fim e conquanto tal facto entronque na questão de direito suscitada pela arguida, e que oportunamente será apreciada, relativa à falta de legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, porque a recorrente ora fala na acusação ora na prova produzida, e expressamente impugna o facto dado como provado sob a alínea n) dos factos provados, diremos apenas que a materialidade provada encerra uma conclusão, decorrente do facto dado como provado na alínea m) e que não foi posta em causa pela prova indicada pela arguida.
Quanto à versão da “trama” contra a arguida, a mesma como bem realça a sentença recorrida não teve qualquer apoio na prova produzida, sendo que as testemunhas de defesa, umas parentes próximos e amiga da arguida e outras ex-funcionárias da ofendida, não revelaram conhecimento dos concretos factos objecto destes autos, antes revelando as últimas uma pré posição relativamente à assistente. Por outro lado, o facto de a arguida até poder ter sido em momento anterior premiada pelo seu bom desempenho como funcionária, não é impeditivo de ter cometido os factos pelos quais se encontra acusada nos autos.
A materialidade provada nas alíneas o) e q) refere-se ao elemento subjectivo, sendo que fora dos casos de confissão, tal materialidade terá de resultar necessariamente de prova indirecta, por se tratarem de elementos de estrutura psicológica. Como se escreveu no ac. da Rel. de Lisboa de 8/2/2007 “o que pertence à vida interior de cada um, só possível de apreender através de factos materiais comuns, podendo comprovar-se por meio de presunções judiciais, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.”[12] No caso dos autos, face à materialidade objectiva assente, tais elementos resultam dos factos objectivos, nada tendo resultado dos autos que afaste a evidência de uma actuação voluntária da arguida e do conhecimento da ilicitude da sua conduta.
No que concerne ao documento de fls.41, o mesmo apenas releva para a prova do facto dado como provado sob o ponto q) dos factos provados, nos precisos termos em que aí é referenciado, uma vez que não faz parte do objecto deste processo, nem compete a este tribunal a discussão sobre o despedimento da arguida
Os factos dados como provados, relativos à campanha promocional cruzada com a S…, resultam dos depoimentos das testemunhas, D… e F…, pelo que os documentos juntos aos autos a fls. 386 e 388 folhas tiradas da Internet, e livremente apreciáveis, ainda que não sejam considerados, não põem em causa a convicção formada.
Face ao que ficou dito relativamente aos factos dados como provados, por maioria de razão improcede a impugnação da materialidade não provada quando a sentença dá como não provado que “o presente processo serve apenas para a assistente se furtar ao pagamento da indemnização que a arguida reclama, com fundamento em despedimento ilícito, em processo a correr termos no Tribunal do Trabalho.”, sendo que nem a recorrente indica qualquer prova ou passagem que imponha diferente decisão.
Alega ainda a arguida a violação do artº 340º do CPP, por o tribunal não ter permitido que fosse questionada a matéria relativa ao processo de trabalho que se encontra a correr, nem ordenado a junção aos autos de certidão comprovativa dessa matéria. A direcção da audiência está atribuída por lei ao presidente, cfr. artº 322º nº1 e 2 do CPP. Das actas de audiência não consta qualquer requerimento formulado pela arguida a requerer a junção dos elementos do processo de trabalho sobre o qual tenha recaído despacho do tribunal recorrido. Como tal, trata-se de uma questão nova, que não foi colocada perante o tribunal.
Ora, os tribunais de recurso não servem para decidir questões novas, mas antes para apreciar as decisões dos tribunais de 1ª instância sobre as questões que aí lhes foram oportunamente colocadas, sendo “remédios jurídicos, destinados a eliminar os erros de apreciação e de julgamento cometidos no tribunal recorrido”.[13]
Assim, e porque não se trata de alguma nulidade de conhecimento oficioso, não se conhece de tal questão.
Improcede pois esta alegação.
Em suma, a convicção formada pelo tribunal no sentido da ocorrência dos factos assenta nas provas produzidas e constantes da fundamentação, não se detectando erros de julgamento nem valoração de provas proibidas ou das regras da experiência nos termos do artº 127º do CPP.
Por fim, do texto da decisão recorrida não ressalta que o tribunal a quo tivesse tido dúvidas sobre a existência dos factos impugnados. Daí que não se vislumbre em que medida é que existiu violação do princípio in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal -cfr. Figueiredo Dias Dtº Processual Penal, pág 213.
Daí que a violação deste princípio só ocorra quando resulta da decisão que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra a arguida. Ora, a decisão impugnada não revela, em momento algum, que o tribunal recorrido tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto dado como provado. Bem pelo contrário, afirma convictamente a matéria dada como provada. Com o que não tem fundamento invocar a violação de tal princípio [nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2008, Processo n.º 1787/08 - 5.ª Secção (Cons. Souto Moura): I - A invocação do princípio in dubio pro reo só tem razão de ser se, depois do tribunal a quo reconhecer ter caído num estado de dúvida, contornasse um non liquet decidindo-se, sem mais, no sentido mais desfavorável para o arguido. Mas já não assim se, depois de ultrapassadas as dúvidas que o pudessem ter assaltado, perfilhasse uma determinada convicção e decidisse coerentemente – in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, http://www.stj.pt acedido em Janeiro de 2009].
Assim, improcedente que é a impugnação efectuada, bem como a alegação da utilização de prova proibida e do princípio in dubio pro reo, não se verificando a ocorrência dos vícios do artº 410º nº2 do CPP ou de nulidade de que cumpra conhecer, dá-se a matéria de facto provada por definitivamente assente.
Nota-se ainda que, muito embora a recorrente diga que requer a renovação ex novo das provas que indica usa tal expressão em sentido técnico, nem faz qualquer indicação das provas que devem ser renovadas para efeito do disposto no artº 430º do CPP, já que antes remete para os depoimentos gravados em acta. Para além disso, decorre do artº 430º nº1 do CPP, que o pedido de renovação da prova se encontra condicionado à verificação, além do mais, da existência dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do artº 410º do CPP, os quais como afirmado não ocorrem in casu.
Assente que se encontra a matéria de facto vejamos então se tal matéria permite a subsunção jurídica efectuada no acórdão. Nesta sede alega a recorrente que “ o teor dos depoimentos das testemunhas de acusação não é de molde a cair na previsão do crime de burla p.p. no artº 217º do CP, como não se mostram verificados os elementos objectivos nem subjectivos do tipo legal de crime -ocorrendo por isso, “in casu” erro de interpretação do citado normativo legal.” Conclusões 8, 10, e 11) do recurso.
Afigura-se que tal como a alegação se encontra efectuada, mais uma vez o que a recorrente pretende pôr em causa é a matéria dada como provada pelo tribunal, sobre a qual nos pronunciámos, e não a subsunção jurídica efectuada face a tal matéria.
Porém, e uma vez que a recorrente coloca a questão da existência de queixa e legitimidade do Ministério Público para acusar, vejamos então, em primeiro lugar se os factos dados como provados integram o crime de burla p.p. pelo artº 217º nº1 do CP, pelo qual a arguida foi condenada.
São os elementos do crime de burla:
1º a obtenção para o agente ou terceiro de um enriquecimento ilegítimo;
2º que o agente, para obtenção de um enriquecimento ilegítimo, astuciosamente induza em erro ou engane alguém;
3º-que através desses meios, determine outrém à prática de actos causadores de prejuízos patrimoniais;.
Como refere José António Barreiros, [14] estamos perante um crime de acção complexa, em que se exige pois a verificação, simultânea daqueles referidos elementos objectivos e subjectivos.
E ensina o Prof. Cavaleiro de Ferreira “.... na burla o modo de ofensa ao património implica o aproveitamento fraudulento da vontade de outrém , mediante a entrega voluntária do objecto material do crime. A ofensa dos interesses patrimoniais realiza-se através da viciação da livre disposição patrimonial. O interesse patrimonial é lesado pela agressão à normalidade da vontade em actos de disposição. E assim, dentro da rubrica dos crimes contra a propriedade, a incriminação por burla introduz a tutela da liberdade da vontade no acto de disposição patrimonial, através de cuja viciação se produz um dano injusto.” [15] (sublinhados nossos).
Também A. M. Almeida e Costa refere que “a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontre o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro. Requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais (....)
Tratando-se de um crime material ou de resultado (....) a consumação da burla passa, assim por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) 1) e, depois, entre os ´´ultimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial 2), “acrescentando ainda o mesmo autor que “a particularidade do delito de burla deriva de se estar perante um processo executivo que comporta, de permeio, a intervenção de um ser autónomo e livre”[16]. (negrito nosso)
A nível subjectivo, exige-se um dolo específico do agente consubstanciado na intenção de obtenção de um enriquecimento ilegítimo, para além de um dolo que abranja todas as circunstâncias pertencentes ao tipo de ilícito objectivo.
O tipo, porém, satisfaz-se com o dolo eventual nos termos do artº 14º nº3 do CP.
Como ficou dito supra um dos elementos do tipo objectivo do crime de burla é que a conduta do agente tenha sido determinante da prática de actos por parte de terceiro que lhe causem prejuízos.
Ora, basta ler a acusação e os factos dados como provados, para logo se alcançar que, nos termos aí descritos, a arguida com a sua conduta não provocou erro ou engano em pessoa alguma, antes introduziu os talões no sistema de pagamentos da assistente como se tivessem sido os clientes desta a apresentá-los. É o que resulta da matéria dada como provada sob a alínea j) dos factos provados, e que já constava da acusação: “Nos dias 12 e 14 de Junho de 2007, às horas abaixo indicadas, a arguida, a coberto de compras aí efectuadas por alguns clientes indiferenciados, descontou, sem o consentimento deles, os vales de abastecimento de combustível S… abaixo relacionados, introduzindo-os no sistema de pagamentos como se tivessem sido esses clientes a apresentá-los(..)”.
Ou seja, a arguida não determinou pessoa alguma à prática dos descontos; ela antes se aproveitou da campanha de descontos que a assistente Q… havia promovido, e do sistema de pagamentos instituído.
Como tal, faltou o elemento da indução em erro ou engano de alguém, e da determinação desse alguém à prática dos actos que causaram o prejuízo e como tal estamos em condições de afirmar que os factos provados não integram o crime de burla pelo qual a arguida foi acusada e condenada.
Mas desta conclusão não decorre a irrelevância criminal da conduta da arguida, pois a matéria provada preenche todos os elementos do crime de burla informática p.p. pelo artº 221º do CP.
Dispõe este preceito:
“1- Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamentos de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…)
3. A tentativa é punível.
4.O procedimento criminal depende de queixa.”
Seguindo Almeida e Costa, trata-se de um crime em que tal como no crime de burla previsto no artº 217º do CP, o bem jurídico protegido, continua a ser o património, sendo um crime de resultado, e de execução vinculada entendida esta como restringida “à exigência de que a lesão do património se produza através da utilização de meios informáticos e, em todo o caso, não se mostre reconduzível ao modus operandi da burla do artº 217º do CP”[17]
E escreve o mesmo autor “No que concerne ao aspecto a que vem de aludir-se, a infracção do nº1 do artº 221º assume uma estrutura diversa do delito fundamental de burla do artº 217º. Como se assinalou, neste último o agente cria no sujeito passivo um estado de erro que o leva à prática de actos de diminuição patrimonial (própria ou alheia), deparando-se com um iter criminis que comporta, nos termos expostos um duplo nexo de imputação objectiva (…). Ao invés, a denominada “burla informática” concretiza-se num atentado directo ao património, i.e. num processo que não contempla, de permeio, a intervenção de outra pessoa e cuja única peculiaridade reside no facto de a ofensa ao bem jurídico se observar através da utilização de meios informáticos.”[18] (negrito nosso)
Como refere João Carlos Cruz Barbosa de Macedo, “Na burla informática não existe essa exigência de um meio ardiloso, nem tão pouco é uma exigência do tipo que a vítima tenha uma parte activa no processo de execução do crime”. (negrito nosso) [19]
A nível subjectivo, trata-se de um crime doloso, sendo um delito de intenção na medida em que se exige que o agente actue com a intenção de obter, para si ou para outrem, um enriquecimento ilegítimo.
Expostos os elementos, objectivos e subjectivos deste tipo de ilícito, podemos então afirmar que no caso dos autos todos eles ocorrem:
A arguida, de forma não autorizada –porque sem o conhecimento dos clientes e da assistente- introduziu os talões de desconto no sistema de pagamentos da ofendida como se tivessem sido os clientes a apresentá-los. Fê-lo com intenção de obter um benefício ilegítimo para ela que não havia feito qualquer compra, e veio a apoderar-se do valor dos descontos, causando um prejuízo patrimonial à assistente Q….
Uma vez que se trata de uma alteração da qualificação jurídica nos termos do artº 358º nº3 do CPP, já que os factos se mantêm intocáveis, e foi cumprido o disposto no artº 424º nº3 do CPP[20], nada obsta a que este tribunal da Relação proceda à referida alteração da qualificação jurídica.
Assente que os factos constantes da acusação e dados como provados em audiência integram o ilícito previsto no artº 221º nº1 do CP, passemos então a apreciar a questão suscitada pela recorrente relativa à “Falta de legitimidade da assistente para apresentação da participação pelo crime de burla p.p. pelo artº 217º do CP por não ser esta a titular do direito de queixa (…) e consequentemente não detém o MP poderes para a prossecução da acção penal, o que determina a nulidade de toda a acusação nos termos do artº 119º nº2 al.b) do CPP, ao assim o tribunal não ter entendido violou entre outros, o disposto nos artºs 113º do CP ex vi artº 49 do CPP artº 217º nº1 do CP e 119º nº2 al.b) do CPP.”- conclusão 12 do recurso.
Invoca a recorrente que a assistente Q…, SA, não é a titular do direito de queixa, alegando para tal que “os talões em mérito são verdadeiros, ou seja foram validamente emitidos pela S… aos seus clientes, os quais por força da aludida campanha cruzada redundariam num benefício aos seus portadores, clientes daquele hipermercado. A existir factualidade susceptível de ser perseguida criminalmente, a mesma teria que ser denunciada pelos ofendidos, ou seja clientes que no uso daqueles talões iriam obter o benefício (mínimo) contratualizado. Ora, ao não se ter apurado em sede de inquérito nem depois em sede de audiência de Discussão e julgamento qualquer conduta fraudulenta por banda da arguida na obtenção de tais talões, a existir um lesado, seriam os clientes que os obtiveram legitimamente, ou os supostos clientes que efectuaram compras na assistente e aonde os mesmos foram descontado indevidamente, como refere a acusação, ou na pior das hipóteses a S….”
Afigura-se não lhe assistir razão. Ainda que se admita que os talões eram verdadeiros, no sentido em que foram emitidos pela S…, e até entregues aos seus clientes, a verdade é que estes não os apresentaram, nem os clientes que efectivamente fizeram compras na assistente Q…. Deste modo, não fora a intervenção da arguida provocando um desconto na conta dos clientes que efectivamente fizeram compras, e apoderando-se depois de tal valor, o Q…e teria recebido o valor correspondente às compras efectivamente efectuadas e, como tal, foi quem sofreu o prejuízo com a conduta da arguida.
Aqui chegados, e independentemente da qualificação jurídica atribuída aos factos pela assistente na queixa efectuada, a qual não vincula o tribunal, podemos afirmar que a assistente é a titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação do artº 221º do CP, para efeitos de aferição dos titulares do direito de queixa nos termos do artº 113º do CP.
Como tal, e uma vez que estamos perante um crime de natureza semi-pública, exercida que foi tempestivamente o direito de queixa nos termos do artº 115º do CP, tem o Ministério Público legitimidade para prosseguir a acção penal, artº 49º do CPP e deduzir acusação nos autos, sem prejuízo da alteração jurídica efectuada ao abrigo do disposto nos artºs 358º nº3 e 424º nº3 do CPP, não se verificando, pois, a invocada nulidade do artº 119º b) do CPP.
Improcede, pois, esta questão.
O crime efectivamente cometido pela arguida é punido abstractamente com uma moldura pena igual àquele porque vem condenada, vale dizer pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O tribunal recorrido tinha optado por uma pena não detentiva que fixou em 200 dias. Por força da proibição de reformatio in pejus –artº 409º do CPP- este tribunal tem de acatar tal opção e aquele limite.
Nos termos do artº 71º do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, designadamente as elencadas nesse preceito. Por outro lado, nos termos do artº 40º nº2 do CP a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Culpa e prevenção, são assim nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena, o que vale dizer de determinação concreta da pena. Cfr. Direito Penal Português, Parte Geral, II - As Consequências do Crime, § 280. Sendo que o modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é “ aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena: à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite é fornecido pelas exigências irrenunciáveis do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou em casos particulares, de advertência ou de segurança do delinquente”. Cfr. mesmo autor in Revista Portuguesa de Ciência criminal, Ano 3, Abril, Dezembro 1993, págs 186 e 187.
Assim e considerando os critérios definidos no artº 71º nº1 do CP e os demais factores que foram considerados na decisão recorrida, mantém-se a pena de fixada de 200 (duzentos) dias de multa.
Há no entanto que ter em conta que à data dos factos estava em vigor o artº 47º nº2 do CP na redacção anterior à Lei 59/2007 de 4 de Setembro em que o mínimo legal estava fixado em 1 euro e por isso há averiguar qual o regime concretamente mais favorável.
Ora considerando a situação económica dada como provada tem-se por adequado fixar à luz do anterior regime a taxa diária de 3 (três) euros.
Procede pois o recurso parcialmente
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos expostos acordam os juízes desta Relação em:
Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela arguida B… e manter a decisão recorrida.
No parcial provimento do recurso interposto pela arguida da sentença, e consequentemente efectuada legal convolação cumprido que se mostra o disposto no artº 424º nº3 do CPP absolver a arguida B… pela prática de um crime de burla p.p. pelo artº 217º nº1 do Código Penal pelo qual foi acusada, mas condenar a mesma pela prática de um crime de burla informática previsto e punido pelo artº 221º nº1 do Código Penal na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de 3 (três) euros, no total de 600 (seiscentos) euros.

Sem tributação

Elaborado e revisto pela relatora
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Porto, 23/1/2013
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
Vítor Carlos Simões Morgado
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[1] Ver ac. da Relação de Lisboa de 28/5/2009, proferido no proc. 10210/2008-9 (relatora Fátima Mata-Moros e ac. da Relação do Porto de 3/2/2010, proferido no processo RP20100203371/06.5GBVNF.P1 (relatora Eduarda Lobo).
[2] Germano marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo 2008, pág.137.
[3] Neste sentido cf. ciac. Da relação do Porto de 3/2/2010, e ainda o acórdão da Relação de Guimarães proferido no proc.1191/06.PBGMR.G1 em que foi relatora Nazaré Saraiva.
[4] Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra editora, tomo I, págs 833-834.
[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2007 [Cons. Armindo Monteiro], processo 3193/06 – 3.ª Secção, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
[6] [Conselheiro Raul Borges, processo 07P4833, in www.dgsi.pt, acedido em Novembro de 2008].
[7] Cfr. Ac.STJ de 24 de Março de 2004, proc.03P4043 (relator Henriques Gaspar)
[8] cfr. Ac. STJ de 17/3/2004, 03P2612 (relator tb. Henriques Gaspar).
[9] Direito Probatório Material – BMJ 112/190.
[10] Ac. do STJ de 17/03/04 (Processso nº265/03), in http://www.dgsi..pt/jstj,nsf
[11] Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código de Processo Penal,- Anotado, pág 803, 17ª edição – 2009.
[12] Proferido no processo nº197/07, 9ª secção (relator Carlos Benido) citado no ac. de 12/5/2007 da Relação do Porto, proc.OTRP000400822 relatado por Artur Oliveira.
[13] Cf. Ac. STJ de 21/7/2010, proc. 586/10.1YRLSB.S1 (relator Santos Carvalho) dgsi.pt.
[14] in “ Crimes contra o património ” Universidade Lusíada 1996, pág. 156,
[15] Depósito Bancário. Simulação. Falsificação. Burla, Ssiencia Ivridica, junho de 1970, nº103-104, pág.291
[16] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, tomo II, Coimbra Editora, págs. 293 e 299.
[17] Cfr. A. M. Almeida e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, Tomo II, pág.329, Coimbra Editora 1999.
[18] .Obcit pág. 329,330.
[19] João Carlos Cruz Barbosa de Macedo, “Algumas considerações acerca dos crimes informáticos em Portugal” in Direito Penal hoje, Novos desafios e novas respostas, Organizadores Manuel da Costa Andrade e Rita Castanheira Neves, Coimbra Editora, 2009, pág. 254.
[20] A arguida não se pronunciou no prazo legal de 10 dias, tendo apenas requerido que lhe fosse fixado prazo para a defesa, o que foi indeferido por despacho já transitado.