Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0121692
Nº Convencional: JTRP00033749
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
COMISSÁRIO
CULPA PRESUMIDA DO CONDUTOR
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP200210080121692
Data do Acordão: 10/08/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 J CIV GONDOMAR
Processo no Tribunal Recorrido: 437/96
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ART503 N1 N3 ART342 N2 ART494 N1 ART496.
Sumário: I - Só se pode dizer que alguém agiu com culpa quando é imputável e perante o caso concreto, podia e devia ter agido de outro modo, só assim sendo possível formular um juízo de culpa.
II - A culpa do lesado afasta a obrigação de indemnizar, mas a prova dos factos constitutivos da culpa, por modificativos ou extintivos do direito do lesado, cabe ao réu, nos termos do artigo 342 n.2 do Código Civil.
III - O artigo 503 n.3 do Código Civil, estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, isto é, do comissário, presunção valida mesmo entre ele e os titulares do direito à indemnização.
IV - O condutor de um veículo deve ser considerado comissário quando tenha sido encarregado de uma comissão, traduzindo-se esta na realização de actos de carácter material ou jurídico e se integram numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado.
V - Uma comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário; este age mediante ordens ou instruções daquele.
VI - Não se tendo provado que o condutor do veículo agia por conta do proprietário e mediante ordens ou instruções deste não se pode concluir que o condutor era comissário e, assim, a presunção de culpa do n.3 do artigo 503 tem necessariamente de se afastar.
VII - Num acidente de viação entre um veículo e um peão, face à ausência, provada de culpa de qualquer dos intervenientes, a questão terá de ser analisada sob o prisma da responsabilidade pelo risco com fundamento no n.1 do artigo 503 do Código Civil.
VIII - A compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

SÓNIA....., com o benefício de apoio judiciário, menor, representada por seus pais, Jeremias..... intentou acção, com processo sumário emergente de acidente de viação, contra
COMPANHIA DE SEGUROS....., SA., já melhor identificada nos autos, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Esc. 3 523 000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que no dia 19 de Abril de 1994, pelas 14,45 horas, na Rua....., em....., ocorreu um acidente de viação, em que se verificou o atropelamento da Autora pelo veículo de matrícula ..-..-CL, pertença de Virgínia....., e na altura conduzido por Serafim....., imputando ao condutor do veículo seguro na Ré a culpa exclusiva na sua eclosão.
A Autora igualmente elencou os danos a cujo ressarcimento se acha com direito e que estima na quantia por ela peticionada.
A Ré citada deduziu contestação na qual impugna a versão do acidente apresentada pela Autora, referindo ter o mesmo ocorrido com culpa exclusiva da Autora, contrariando no demais os danos reclamados, que reputa exagerados e termina dizendo que a acção dever ser julgada improcedente por não provada, com as legais consequências.
Proferido despacho saneador e organizadas a especificação e o questionário, peças essas que passaram incólumes a qualquer reclamação e instruída a causa, procedeu-se a julgamento, com observância das formalidades legais, tendo o Tribunal, sem que se tivesse feito uso da faculdade legal concedida pelo artigo 522-B do Código Processo Civil como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial, tendo na resposta aos quesitos a fls. 159 e 160, se dirimido a factualidade controvertida.
Proferida decisão foi a acção parcialmente julgada procedente por provada tendo a Ré Seguradora sido condenada a apagar à A. a quantia de Escudos 600 000$00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

Inconformada com o seu teor interpuseram atempadamente os presentes recursos a Ré e subordinadamente a A. tendo para o efeito a primeira nas alegações oportunamente apresentadas concluído do seguinte modo:
“1 - Resultou provado que a condução do veículo ..-..-CL, era efectuada dentro de todas as regras de boa condução com o estrito cumprimento de todas as regras estradais.
2 - Não resultou provado que o condutor do ..-..-CL tenha infringido qualquer norma reguladora do direito estradal.
3 - Ficou provado que a única culpada do acidente dos presentes autos é o peão, por manifesta infracção ao art. 40° do Código da Estrada em vigor à data.
4 - Não resultou provado que houvesse entre o condutor e a proprietária do veículo qualquer relação de subordinação, que determinasse a aplicação da presunção de culpa prevista no art. 503° n°3 do Código Civil
5 - A Autora não logrou fazer prova dos factos que alegou para determinarem a culpa do condutor do ..-..-CL, não cumprindo assim a sua obrigação de acordo com o art. 487° n°1 do Código Civil
6 - A Douta Decisão assentou na atribuição da indemnização à apelada baseada numa na Presunção Legal de Culpa prevista no art. 503° n°3 do Código Civil, quando a mesma não foi alegada.
7 - A Douta Decisão não fundamentou a decisão com base nos factos provados e não provados, não dando seguimento à obrigação a que estava sujeita a Apelada de acordo com art. 487° n°1 do Código Civil”
Termina pedindo a revogação da decisão com a absolvição da Apelante por total responsabilidade do sinistro imputável à Autora por violação do art. 40º do Código da Estrada”.

Por sua vez a Autora aduziu a seguinte matéria conclusiva:
“1ª As lesões sofridas pela A. em consequência do acidente, conforme os factos provados nos autos, revelam-se de certa gravidade;
2ª Além de tudo mais constante dos autos.
3ª A quantia de 600.000$00, revela-se manifestamente insuficiente como indemnização à A. pelos danos não patrimoniais por si sofridos;
4ª Devendo ser tido em conta o valor peticionado pela A., em 35° da p.i., ou quando se não entenda, ser a quantia fixada substancialmente aumentada;
5ª Consideram-se violadas, ainda que restritamente, as disposições dos art.s 70°, 562°, 494°, 496°, nº1 do C. Civil.”
Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos que se mostram os vistos legais importa decidir.

DAS QUESTÕES A DECIDIR
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, em conformidade com o art. 684 nº 3 e 690 nº1 e 3, bem como uniformemente na Jurisprudência é decidido, entre muitos outros, Acs. do STJ de 13/3/91 e de 25/6/80, Act. Juríd., Ano III nº 17-3 e BMJ 359-522.
As questões subjacentes à apreciação dos presentes recursos da Ré e subordinado da Autora traduzem-se em apreciar:
a) a fixação da responsabilidade na ocorrência do sinistro;
b) a quantificação do montante indemnizatório fixado a favor da A.

DOS FACTOS E DO DIREITO
Para melhor facilidade expositiva passamos a reproduzir a facticidade considerada provada em audiência de discussão e julgamento sem registo fonográfico da prova e sobre a qual se alicerçou a decisão proferida objecto do presente recurso, indicando-se por referência as respectivas letras indicativas da Especificação (Factos Assentes) e números os factos controvertidos do correspondente Questionário (Base Instrutória).
“A menor Sónia....., nascida no dia 16 de Novembro de 1983, é filha dos AA. Jeremias..... e de Deolinda...... (Alínea A) da Especificação)
No dia 19 de Abril de 1994, cerca das 14,45 horas, na Rua....., em...., o auto-ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-CL, pertença de Virgínia..... e na altura, conduzido por Serafim....., circulava no sentido nascente-poente. (Alínea B) da Especificação)
À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros e emergente da circulação do CL havia sido transferida para a aqui Ré Seguradora, através do contrato de seguro titulado pela apólice n° ..... (Alínea C) da Especificação)
O CL circulava na referida via e na metade direita da faixa de rodagem, atento o indicado sentido de marcha. (Resposta ao quesito 5º)
E a uma velocidade não superior a 40 km/hora. (Resposta ao quesito 7º)
Provado apenas que a Sónia..... surgiu da berma direita e iniciou a travessia da referida rua, da direita para a esquerda, atento o indicado sentido de marcha da viatura. (Resposta ao quesito 8º)
Provado que não foi possível evitar o embate entre o peão e o CL. (Resposta ao quesito 10º)
Provado que a Autora, em consequência do acidente, sofreu lesões e abalo psíquico. (Resposta ao quesito 11º)
A Autora foi atingida na zona do baço, onde sofreu lesões internas. (Resposta ao quesito 13º)
Teve de ser socorrida no Serviço de Urgência de Pediatria Cirúrgica do Hospital de...... (Resposta ao quesito 14º)
Apresentando abdómen agudo traumático, ali recebeu os primeiros tratamentos e foi submetida a exame T.A.C., tendo-lhe sido diagnosticado hematoma esplénico. (Resposta ao quesito 15º)
E um rasgo no lábio inferior em ambos os lados de dentro e de fora tendo sido suturada com sete pontos. (Resposta ao quesito 17º)
Ficou internada nos Serviços de Cuidados intensivos Pediátricos sob vigilância. (Resposta ao quesito 19º)
No dia 20 de Abril de 1994, foi transferida para o Serviço de Pediatria cirúrgica, onde se manteve em observação e repouso absoluto até 9 de Maio, data em que lhe foi dada alta. (Resposta ao quesito 20º)
Passou a Autora a ser seguida na Consulta Externa de Pediatria Cirúrgica, durante cerca de seis meses. (Resposta ao quesito 21º)
Tendo sido durante as consultas externas, observada e submetida a estudo ecográfico, de controle, da área esplénica. (Resposta ao quesito 22º)
Provado que a Autora apresenta cicatriz, no lábio inferior. (Resposta ao quesito 24º)
Provado apenas que a Autora não transitou de ano lectivo. (Resposta ao quesito 29º)
Provado que, em consequência do acidente, ficaram danificadas peças de vestuário da Autora. (Resposta ao quesito 33º)

Perante estes factos apreciemos as questões suscitadas em sede de recurso.
Em primeiro lugar vejamos se como pretende a Apelante o acidente ocorreu por culpa única e exclusiva do peão.
O princípio geral da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos encontra-se enunciado no art. 483º, nº.1, do C. Civil, sendo elementos constitutivos da responsabilidade civil: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora, a culpa em sentido amplo consiste precisamente na imputação do facto ao agente e a responsabilidade civil, em regra, pressupõe a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto [Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª Ed., pág. 465]
Segundo a doutrina que resulta do Assento de 21/11/79, “não se considera a condução automóvel perigosa para que se possa presumir a culpa de quem a exerce”.
Esta doutrina tem o seu fundamento no princípio da confiança, segundo o qual não são os condutores, em regra, obrigados a prever ou a contar com a falta de prudência alheia, ou não exige que os condutores contem com os obstáculos que surjam subitamente, ainda que tenha de se procurar fazer uma condução defensiva, para evitar, no possível os acidentes.
Também, em princípio, ninguém terá de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbe.
Quem actua de acordo com as normas de trânsito pode, pois, contar com comportamento idêntico por banda dos demais utentes da via, o que por vezes não acontece.
Mas, também, não basta a condução infraccional para se concluir da culpa, presumindo-se esta da conduta transgressional ou em contra ordenação, necessário se torna provar que aquela conduta foi a causa do acidente.
Acontece porém que a violação duma regra legal de trânsito ou a desobediência por exemplo a um sinal por parte dum condutor ou dum peão, quando concomitantes com um acidente de viação, não implicam automaticamente a existência de culpa desse condutor de veículo ou desse peão na produção do mesmo acidente, será para isso necessário demonstrar que aquela ou aquelas condutas contravencionais foram causa do sinistro ou para este evento contribuíram adequadamente.
Trata-se pois de saber se a conduta comissiva ou omissiva em que se traduz uma contravenção viária é (ou foi), segundo as circunstâncias concretas do caso, idónea para produzir o evento danoso ocorrido.
Não devem pois ser consideradas causais de determinado evento aquelas contravenções concomitantes embora com ele, mas sem a ocorrência das quais o dito evento se teria igualmente produzido.
Ora, só se pode dizer que alguém agiu com culpa quando é imputável e perante o caso concreto podia e devia ter agido de outro modo, só assim sendo possível formular um juízo de culpa.
O critério geral estabelecido para apreciação da culpa é um critério objectivo e abstracto; a diligência exigível avalia-se pela conduta que teria, nas mesmas circunstâncias externas, um homem médio, atenta a natureza do acto.
Se a lei ou o contrato impõe a adopção de certas precauções, verifica-se negligência só pelo facto de estas não terem sido tomadas, independentemente da previsibilidade da ocorrência do dano.
Das causas de exclusão da responsabilidade surge a que ocorre quando o acidente é imputável ao próprio lesado, ou seja, o acidente devido a facto culposo do lesado ou devido a uma conduta censurável deste, na verdade não seria justo que o condutor respondesse pelos efeitos do acidente que o lesado provoca, pelo que, quando assim é, a responsabilidade mostra-se excluída.
Não há dúvida, pois, que a culpa do lesado afasta a obrigação de indemnizar, contudo, a prova dos factos constitutivos da culpa, por modificativos ou extintivos do direito do lesado, cabe à Apelante, nos termos do art. 342º nº 2 do C. Civil, prova essa que esta não fez e que de acordo com as suas alegações e salvo o devido respeito pela opinião expendida não pode caber de forma alguma aos A. concretamente no que concerne ao facto de não se ter provado ou não provado a matéria contida concretamente nos quesitos 1º a 3º inclusive por forma a visionar a aproximação da viatura automóvel interveniente e que com o mesmo colidiu, de facto, a resposta negativa proferida à quesitação formulada não permite extrair a solução afirmativa, antes sim, e tão só, que não se provou ou provaram os factos que a poderiam alicerçar ou fundamentar.
Mas prosseguindo, não se pode igualmente deixar de referir que quando se utilizam as estradas a atenção dos condutores deve concentrar-se totalmente nas condições que enfrentam durante a condução, devendo aplicar-se uma atenção redobrada como se não conhecesse a via por onde se circula, embora nunca seja demais alertá-los, através dos sinais próprios, de todas as anomalias e percalços que possam surgir.
Ora, da matéria fáctica provada, não resulta que no local do embate houvesse circulação na faixa da esquerda por onde o veículo se pudesse desviar, nem tão pouco se pode aferir se a criança atravessou a correr, súbita e inesperadamente, sem se certificar se o podia ou não fazer, para se poder aquilatar da culpa da mesma e concretamente imputar-lhe a culpa na ocorrência do acidente.
Assim, dado que nada nos autos aponta ou pode levar a concluir que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do lesado, terão de improceder as conclusões referentes a esta matéria concretamente no que tange à concernente ao ónus da prova e sua repartição dado que como se aludiu não era ao lesado que incumbia provar o facto constitutivo do direito excludente da responsabilidade do condutor, mas antes sim a inversa é que é verdadeira, este condutor é que para ver excluída a sua responsabilidade no sinistro teria de demonstrar que o evento não ocorreu por facto que lhe não fosse imputável ou se se quiser seria devido à conduta da sinistrada.
Uma palavra mais e apenas para o que se pretende relativamente à alteração da facticidade julgada assente e provada, que conforme é tido por entendimento absolutamente uniforme da Jurisprudência, perante situações como a dos autos, em que se não procedeu ao registo fonográfico da prova, face ao principio da livre apreciação e formação da convicção do Tribunal, perante a prova testemunhal entre outra produzida, não é possível a este Tribunal perante o regime instituído no artigo 712º proceder a qualquer alteração da referida matéria, uma vez que como é obvio não pode ser exercida qualquer sindicância sobre a mesma.
Apreciemos agora a segunda das questões suscitadas e que se prende com a fixação da presunção nos termos do artigo 503º nº3 do Código Civil pelo Tribunal a quo a qual salvo o devido respeito nos merece censura dado que, atenta de novo a factualidade provada e assente, não é possível determinar-se e qualificar-se uma relação entre o condutor e a proprietária da viatura passível da subsunção jurídica perfectibilizada em tal comando normativo.
Na verdade para além de nem tão pouco haver sido alegada qualquer relação desse tipo, o que desde logo, à partida, se teria por necessariamente excluída, igualmente importa dizer o seguinte perante a facticidade assente, concretamente na Alínea B) onde apenas se refere que:
“No dia 19 de Abril de 1994, cerca das 14,45 horas, na Rua....., em....., o auto-ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-CL, pertença de Virgínia..... e na altura, conduzido por Serafim....., circulava no sentido nascente-poente”
De tal matéria, retira o Exmº Magistrado do Tribunal a quo que o Serafim conduzia a viatura no interesse da respectiva proprietária, o que implicaria a “emergência de uma relação de, comitente-comissário”, cabendo deste modo ao condutor do veículo provar que não teve culpa na produção do sinistro, mas, como não o logrou fazer tal prova, existiria uma presunção legal da sua responsabilidade atento o disposto no art. 503º nº 3 do Código Civil.
Contrariamente ao que se afirma na decisão proferida seria necessário demonstrar que o condutor estivesse a agir como comissário de outrem, no contexto de serviço ou actividade realizada por conta ou sob a direcção de outrem.
Vejamos.
O art. 503º nº 3 do Código Civil estabelece:
“Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se porém, o conduzir fora das suas funções de comissário, responde nos termos do nº 1”.
Por sua vez, o Assento de 14/4/83, publicado in BMJ 326-302, pondo termo à controvérsia levantada na jurisprudência e doutrina sobre se a presunção de culpa estabelecida no nº 3 do art. 503º do Código Civil vigorava apenas no domínio da responsabilidade objectiva do dono do veículo, e nas relações entre ele e o condutor, ou se estendia às relações entre o condutor por conta de outrem e o lesado, abrangendo toda a responsabilidade proveniente do acidente, fixou a seguinte doutrina com força obrigatória geral:
"A primeira parte do nº 3 do art. 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização".
Estabelece assim o art. 503º nº 3 do Código Civil uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, isto é, do comissário, presunção válida mesmo entre ele e os titulares do direito à indemnização.
Trata-se de uma presunção juris tantum e portanto susceptível de ser afastada por prova em contrário, a fazer pelo condutor.
Ora, quando é que um condutor de um veículo deve ser considerado comissário?
De forma lógica poder-se-á dizer que terá esta característica quando tenha sido encarregado de uma comissão, traduzindo-se uma comissão "na realização de actos de carácter material ou jurídico, que se integram numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado "
O termo comissário é empregue "no sentido amplo de serviço ou actividade realizado por conta e sob direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se tanto num acto isolado, como numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual etc." (in ob. e pág. Citadas em nota).
Uma comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário.
Este age mediante ordens ou instruções daquele.
É em virtude desta circunstância que se compreende que o comitente responda independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre ele recaia também a obrigação de indemnizar e desde que o facto danoso tenha sido praticado por ele no exercício da função que lhe foi confiada, mesmo que intencionalmente e contra as suas instruções do comitente - art. 500º nºs 1 e 2 do Código Civil.
No caso vertente provou-se apenas que a viatura, era pertença da Virgínia..... e era conduzida pelo Serafim......
Destes factos será possível inferir, como se pretende, que o condutor do velocípede agiu como comissário do proprietário da viatura?
A resposta a esta questão deve ser necessariamente negativa.
Com efeito, se é possível através de presunções naturais, ilações retiradas de regras de experiência comum, concluir que o proprietário tem a direcção efectiva do veículo e que a utilização deste se faz no seu próprio interesse, por ser normal e corrente que assim seja, já não é possível inferir-se que o condutor, ao utilizar um veículo, age mediante ordens ou instruções do proprietário.
Assim, sabendo-se que o que caracteriza a função de comissário, é precisamente a circunstância de ele agir por conta de outrem e mediante ordens ou instruções deste, não se podendo tal presumir, isto é, não se provando por presunção essa circunstância, não se pode considerar que o condutor é comissário do proprietário.
A este propósito refere-se, de forma cristalina no Acórdão desta Relação do Porto de 26-10-93:
"…se é possível por presunção natural, a coincidência entre a qualidade de proprietário do veiculo e a direcção efectiva e interessada, dai não é lícito partir, em segunda presunção, para a conclusão de que o terceiro que o conduz, é comissário daquele".
Portanto no caso dos autos, não se tendo provado que o condutor do veículo agia por conta da proprietária e mediante ordens ou instruções deste (aliás nem sequer houve o cuidado de tal alegar, como supra se aludiu) não se pode concluir que o condutor era comissário e assim a presunção de culpa do nº 3 do art. 503º tem necessariamente que se afastar sendo neste segmento procedente a conclusão formulada pela Apelante Seguradora.
Quanto à questão subsequente suscitada, está a mesma prejudicada pela resposta e posição já assumida uma vez que os subsídios de ordem fenomenológica não tiveram a virtualidade de determinar o convencimento do Tribunal no sentido da responsabilidade culposa de qualquer dos intervenientes e daí que importe convolar a responsabilidade do sinistro, não perfectibilizados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana para a responsabilidade pelo risco.
A responsabilidade pelo risco nasceu da necessidade de reparar os danos produzidos sem culpa, mas que o direito entende que devem ser indemnizáveis, assentando no princípio “ubi commoda ibi incommoda” dispondo o nº 1 do art. 503º do Código Civil que:
“Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Esta responsabilidade do utente do veículo, só é excluída quando o acidente for imputável ao lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo – art. 505º do mesmo normativo por último citado.
O facto de os veículos serem portadores de perigos especiais obriga a determinados cuidados ou prevenções, por parte de quem os possui ou utiliza, concretamente de quem deles tira os benefícios e colhe os proveitos na representação da aludida máxima latina e assim necessariamente que tem de suportar os inerentes incómodos eventualmente advenientes de tal perigo de circulação ou da própria viatura e independentemente de existência de verificação de culpa do seu proprietário.
Também, o legislador não quis que estes danos deixassem de ser reparados.
Assim, se não o forem com fundamento na responsabilidade por culpa, sê-lo-ão através da responsabilidade pelo risco e daí a previsão da primeira das enunciadas normas contidas no artigo 503º nº 1 do Código Civil.
Pelo que vem de ser exposto é evidente que, embora a causa de pedir assente na culpa do condutor da viatura e tal culpa não tendo sido provada nem por isso se terá de determinar a improcedência da acção face à limitação estabelecida pelos artigos 268º, 272º, 660 nº 2, e 668º nº1 todos do Código Civil.
Na verdade como ensina A. Varela in “Das Obrigações em Geral” pág. 652 a causa de pedir neste tipo de acção, como facto jurídico donde procede o pedido, abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar ou, como doutrina A. Vaz Serra [In Rev. Leg. Jur. Ano 123 pág. 511 em anotação ao Ac. do S.T.J. de 28/10/89, “faz portanto parte da causa de pedir o nexo causal objectivo (criação do risco) ou a culpa do responsável, já que a responsabilidade deste pode fundar-se no risco (Cód. Civil art. 503º) como na culpa (Cód. Civil 483º), e são diversos os regimes jurídicos a que ela está sujeita, conforme se trate de um caso ou de outro”].
E prossegue na referida anotação, dizendo que, quando o lesado ao propor uma acção de indemnização por acidente de viação exige uma indemnização invoca implicitamente, a fonte de que resulta a obrigação de indemnizar, que pode ser culpa ou risco, “E se alega a culpa, não exclui isso que alegue também, implicitamente, o risco, pois o que pretende substancialmente é obter a indemnização a ele devida”.
Ora, assim sendo, não se tendo provado a culpa do titular ou condutor da referida viatura, efectiva ou presumida, e a do peão ou de terceiro, exclusiva ou excludente daquelas, ou ainda igualmente haja resultado de força maior estranha ao funcionamento do veículo, é evidente, tal como é jurisprudência unânime, que a responsabilidade se desloca para a sede do seu conhecimento como responsabilidade objectiva relativa acidentes causados por veículos nos termos contidos no artigo 503º do Código Civil.
É neste sentido que vai, o Ac. do STJ de 23/3/2000, BMJ 495, pág. 298 no qual para além de se elencar exaustivamente a orientação de toda a Jurisprudência, que nos dispensamos de reproduzir se refere que:
“Num acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão, face à ausência de culpa provada, pelo afastamento da responsabilidade subjectiva de ambos os intervenientes, a questão terá de ser analisada sob o prisma da responsabilidade pelo risco, com fundamento no nº 1 do artigo 503º do Código Civil”.
Não sendo possível definir a culpa de qualquer dos intervenientes no acidente, não deixa a lei de estabelecer mecanismos de ressarcimento dos prejuízos sofridos pela parte socialmente mais fraca, à custa daquele que gera o risco, que usa a coisa e dela retira proveito.
Ora, no caso dos autos, não se provou que houvesse culpa por parte do peão, nem se provou a culpa do condutor, não permite também a lei que estas situações deixem de ser reparadas, pelo que não se provando a culpa de qualquer dos intervenientes, teremos de admitir a existência de responsabilidade pelo risco e a obrigação de indemnizar por parte de quem assumiu esse risco necessariamente a Ré Seguradora por força do contrato estabelecido.
Apreciemos de seguida a questão inerente ao recurso subordinado interposto pela Autora relativo ao montante indemnizatório fixado pelo ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos em virtude do sinistro no montante de Escudos 600.000$00 considerando-o escasso.
Dispõe o artigo 496º do Código Civil nos seus nºs 1 e 3 que:
“Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” e que
“O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º...”.
Como resulta do nº 1 do preceito enunciado os prejuízos devem ser de gravidade para que mereçam a tutela do direito.
Mas outra restrição resulta do artigo 496º, qual seja, a de que o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua determinação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático de justa medida das coisas de criteriosa ponderação das realidades da vida.
É esta uma das matérias e domínios em que a Jurisprudência assume papel de especial relevância e onde mais necessário se torna o bom senso, equilíbrio e noção das proporções em que o julgador deve decidir.
“É reconhecidamente muito difícil a avaliação da compensação devida por danos não patrimoniais; não se antevê, porém, nenhum outro critério susceptível de garantir mais objectividade na fixação do montante indemnizatório, do que comparar situações análogas aprovadas noutras decisões” Ac. do STJ de 23/10/79 in BMJ 290-390 e RLJ 113-91 em Anotação do Prof. Vaz Serra.
Mas, como referíamos, para além das restrições resultantes do normativo em exegese, igualmente importa dizer que a gravidade do dano tem de determinar-se na sua extensão ou quantidade por um padrão objectivo enquanto a apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso e não à luz de factores ou vectores subjectivos v.g. de uma sensibilidade particularmente embotada ou pelo contrário extremamente apurada.
Por outro lado a referida gravidade deverá ser apreciada em função da tutela do direito, isto é, o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação pecuniária ao lesado.
Finalmente a reparação deverá obedecer e ser fixada segundo a “equidade”, tendo em conta as referidas circunstâncias de cada caso concreto quer ainda pelo apelo que se faz de remissão para os factores elencados no artigo 494º do Código Civil.
Como doutrina o Prof. Antunes Varela in “Das Obrigações” pág. 628: “A indemnização tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do lesado, é assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização”.
Com a remissão para os elencados vectores resulta e releva que a ratio do normativo tem subjacente o espírito de que se não aderiu à tese segundo a qual a indemnização se destinaria a proporcionar ao ofendido, de acordo com a seu teor de vida, os meios económicos necessários para satisfazer ou compensar os prazeres proporcionados pela força e valor do dinheiro, os desgostos, sofrimentos ou as inibições que sofrera por virtude das lesões.
A indemnização reveste para o caso dos danos não patrimoniais uma natureza acentuadamente mista:
a) Sancionatória no sentido de mandar atender à conduta do agente, isto é no sentido de reprovar ou castigar no plano civilístico através dos meios próprios do direito privado e por outro
b) Reparadora, visando, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada.
Fixa-se, em suma, não uma concepção materialista da vida, mas um critério que consista na concessão ao ofendido de uma quantia em dinheiro considerada e adequada a proporcionar-lhe alegria e satisfação, que de alguma forma compensem ou contrabalancem, as dores, desilusões, angustias e desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado.
Tal valor importa como se disse uma séria dificuldade de cálculo, com o inerente risco de nunca se estabelecer uma indemnização rigorosa e precisa.
Apenas uma palavra mais a fim de que se tenha igualmente presente como elemento coadjuvante e fundamentador da decisão a proferir o que foi judiciosamente exarado no Ac. do STJ de 16/12/93 pela pena do então Exm.º Juiz Conselheiro Presidente do mesmo Tribunal: “É mais que tempo, conforme Jurisprudência que, hoje, vai prevalecendo, de se acabar com miserabilismos indemnizatórios.
A indemnização por danos patrimoniais deve ser correcta, e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efectivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isso, neste âmbito, já ninguém e nada consegue! Mas – “et pour cause” – a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo, e não meramente simbólico”.
Aliás, é nesta linha que se encontra, conforme é do conhecimento geral, o contínuo aumento dos seguros obrigatórios estradais e dos respectivos prémios (vejam-se as repetidas e sucessivas alterações ao art. 6º do DL 522/85, de 31 Dez., a ultima através do DL 18/93 de 23 Janeiro, no seguimento da Directiva n°. 84/5/CEE, de 30.12.83).
Não se trata de encontrar, aí, maior fonte de rendimento das seguradoras mas, sim, de dar um sinal legislativo acerca da justificação de significativas indemnizações – não demais mas não de menos – e da viabilizar, também, uma certa compensação das seguradoras, no âmbito do contrato de seguro, cujo núcleo alias, tem de ser assumido e que radica na álea que lhe é própria.
Ora incidindo em face do que vem de ser exposto, a apreciação sobre a matéria fáctica assente, verifica-se, como aliás foi explanado e apreciado na decisão proferida que as lesões determinaram na pessoa da Autora, uma lesão no baço a nível interno, além de lesões no seu lábio inferior de que lhe resultou uma cicatriz, e na sequência desse acidente veio a experimentar as consequentes dores tendo aliás estado internada até 9 de Maio de 1994 para além de ter sido submetida a um relativamente prolongado período de tratamento médico-medicamentoso, durante cerca de seis meses não tendo transitado de ano lectivo.
Por último, convém referir que se trata de uma jovem à data do sinistro com 11 anos de idade, que esteve limitada pelo referido período de tempo, nas actividades da sua vida diária.
Assim e finalizando porque perante todos os elementos referidos, bem como os demais parâmetros elencados crê-se mais equitativo um valor superior ao que foi determinado na decisão proferida e ainda, porque tal não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim de um critério para correcção do direito, com ordem a que se tenha em consideração, fundamentalmente as circunstâncias do caso concreto, fixa-se o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor resultantes das lesões provocadas, dores correspondentes, angústia sofrida, estado de espírito inerente ao internamento hospitalar e com as privações sofridas o montante de Escudos 1 000 000$00 (um milhão de escudos) ou € 4 987,98 (quatro mil 987 euros e noventa e oito cêntimos) a que acrescem os respectivos juros de mora à taxa legal desde a citação, conforme decidido e não impugnado, até efectivo e integral pagamento.

DECISÃO
Nestes temos em face de tudo quanto vem de ser exposto decide-se:
a) Julgar parcialmente procedentes por demonstradas e provadas as conclusões elencadas pela Ré Seguradora no que tange à inexistência de presunção de culpa relativamente ao condutor da viatura,
b) Julgar todavia improcedentes no que concerne à imputabilidade e exclusividade de culpa na ocorrência do sinistro à Autora e, consequentemente, face à inexistência de culpa efectiva ou presumida da proprietária, responsabilizar a Ré nos termos supra expostos atenta a verificação dos pressupostos da responsabilidade pelo risco negando-se a Apelação.
b) Julgar parcialmente procedente por provado o recurso subordinado de Apelação, interposto pela Autora no que concerne ao segmento da decisão do Tribunal a quo que concedeu o montante indemnizatório por danos patrimoniais no valor de Esc. 600 000$00 e substitui-lo revogando-a consequentemente nessa parte, pelo valor de Escudos 1 000 000$00, correspondente em Euros € 4 987,98 (quatro mil 987 euros e noventa e oito cêntimos) mantendo no demais e confirmando a decisão proferida.
c) Custas pelo A. e Ré na proporção do decaimento, sem prejuízo a primeira do benefício de que goza.
Porto, 08 de Outubro de 2002
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes
Fernando Augusto de Beça