Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
284/13.4YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
OMISSÃO
FACTOS NÃO PROVADOS
MOTIVAÇÃO
Nº do Documento: RP20131112284/13.4YRPRT
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Deve ser anulada oficiosamente, nos termos do art.º 712.º, n.º 4, do CPC, a decisão arbitral completamente omissa quanto aos factos não provados e à motivação da decisão de facto, quando seja impossível proceder à reapreciação da matéria de facto, por não constarem do processo todos os elementos probatórios, designadamente por terem sido inquiridas testemunhas e os depoimentos não terem sido gravados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 284/13.4YRPRT
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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

B…, residente na …, …, ..º Dt.º, Vila Nova de Gaia, apresentou reclamação, em 5/2/2013, no Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) contra C… - Companhia de Seguros, S.A.”, com sede no …, n.º .., ..º, em Lisboa, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia total de 9.752,01 €, acrescida de juros legais vincendos, a partir da citação e até integral pagamento, bem como a indemnização, a liquidar em sede de execução, relativa aos danos decorrentes da privação do uso do veículo sinistrado, desde a data da propositura da acção e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
No dia 29 de Junho de 2012, pelas 18h30m, na …, freguesia …, concelho de Matosinhos, quando se preparava para circular naquela via no sentido … – …, depois de lhe ter sido cedida a passagem e de ter atravessado a mesma via no sentido … – …, com todo o cuidado e atenção, foi embatido no seu motociclo, de matrícula ..-FE-.., pelo ciclomotor, de matrícula ..-IA-.., segurado na ré e conduzido pelo seu proprietário D…, que, descuidadamente e invadindo a faixa contrária ao seu sentido de marcha, procedia à ultrapassagem dos veículos que se encontravam parados na hemi-faixa que acabara de atravessar.
Do embate resultaram danos para o seu motociclo no valor de 2.852,01 €, bem como danos decorrentes da sua paralisação que computa em 3.900,00 € e danos não patrimoniais que estima em 3.000,00 €.
Juntou 7 documentos e indicou quatro testemunhas.

Apresentou-se a contestar a E… - Companhia de Seguros, SA., por ter incorporado, por fusão, a reclamada, fazendo-o por impugnação motivada, alegando factos tendentes a imputar a culpa na ocorrência do acidente ao reclamante, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Juntou nove documentos e indicou uma testemunha.

Foi realizada a audiência de julgamento arbitral, com produção da prova indicada, tendo nela sido proferida decisão, em 4/7/2013, que julgou a reclamação improcedente, conforme consta da acta de fls. 87, nos termos que aqui se transcrevem integralmente:
“A. Importa salientar que estamos perante uma colisão entre veículos de duas rodas, ou seja, o FE e o IA.
B. O FE, saindo de uma zona privada, e sem se certificar que na faixa de rodagem, por onde pretendia entrar, à sua esquerda, circulava o IA, não deteve a sua marcha; e,
C. Ao entrar nesta faixa de rodagem, cortou a linha de marcha do IA, indo colidir com este veículo, que circulava em manobra de ultrapassagem, devidamente legal.
D. A colisão dos veículos ficou a dever-se exclusivamente à manobra ilegal e contravencional do IA.
E. No que diz respeito aos danos reclamados, apenas se apurou o valor da reparação, ou, 2.852,01 €.
Atentos os factos apurados, sendo de imputar a responsabilidade exclusiva ao condutor do FE, por violação do disposto no artigo 31.º, n.º 1 alínea a), do Código da Estrada, julga-se a reclamação improcedente, por não provada, absolvendo-se a reclamada do pedido. Notifique. Notifique com cópia.”

Inconformado com esta decisão, o reclamante recorreu da decisão arbitral e apresentou alegações que culminaram com as conclusões que aqui se transcrevem:
“I. Recorre-se da sentença que julgou totalmente improcedente a acção e absolveu a Recorrida do pedido;
II. A sentença arbitral é nula por falta de fundamentação;
III. A sentença dá como provados uma série de factos e conclui pela culpa exclusiva do Recorrente mas não fundamenta de qualquer modo o sentido da decisão;
IV. Fica por se perceber quais os motivos para se dar como provados os factos levados à sentença, quais as provas tomadas em consideração, o exame crítico dessas mesmas provas e o raciocínio formativo de toda a decisão;
V. Da decisão arbitral terão de constar os respectivos fundamentos de facto e direito - artigo 42º, nº 3 da Lei de Arbitragem Voluntária, artigo 18°, nº 2 do Regulamento da Arbitragem e das Custas do CIMPAS e artigo 13°, al. e) do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros;
VI. O padrão da fundamentação deve ser, num processo actual, o da inteligibilidade da decisão pelas partes, isto é, o que interessa é que o tribunal (judicial ou arbitral ou outro) consiga explicar às partes porque decidiu assim;
VII. A falta de fundamentação acarreta a nulidade da decisão arbitral;
VIII. Mostram-se violados os artigos 42º, nº 3 e 46°, nº 3, al. vi) da Lei de Arbitragem Voluntária, artigos 18°, nº 2 do Regulamento da Arbitragem e das Custas do CIMPAS, artigo 13°, al. e) do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros e artigos 668º, nº 1, al. b) do CPC, por remissão expressa do artigo 23° do Regulamento de Arbitragem e das Custas do CIMPAS e artigo 14º do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros;
IX. De igual modo, mostram-se incorrectamente provados os factos B a E;
X. Da prova produzida relativa à dinâmica do acidente resulta de forma clara, manifesta e inequívoca a responsabilidade exclusiva do condutor do veículo IA, na produção do acidente;
XI. Resulta, não só da prova testemunhal como documental carreada para os autos, que o Recorrente teve todos os cuidados legalmente exigíveis na condução do veículo;
XII. E que o condutor do veículo contrário (IA) circulava em contravenção pois não lhe era legalmente permitido ultrapassar os veículos parados pela faixa de rodagem contrária ao sentido de marcha em que circulava;
XIII. Dos documentos - Fotos juntas com a petição inicial/reclamação -, do depoimento escrito do Recorrente constante da declaração amigável, do depoimento escrito do Recorrente na participação à companhia de seguros G…, do depoimento escrito da testemunha ocular F…, bem como do seu depoimento produzido em audiência, verifica-se a culpa exclusiva do condutor do veículo IA;
XIV. Não era exigível ao Recorrente outra actuação, pois tendo ligado o pisca esquerdo, sido autorizado pela condutora do veículo automóvel a cruzar a faixa de rodagem, tendo parado no eixo da via, tendo-se assegurado que não vinha qualquer veículo na faixa à qual pretendia aceder, também não era espectável que o veículo IA viesse a ultrapassar os veículos parados e já dentro da faixa de rodagem contrária ao sentido em que circulava;
XV. Ao contrário do que entendeu o Tribunal, o Recorrente não violou o artigo 31º do Código de Estrada, antes respeitando a obrigação contida no normativo;
XVI. O Recorrente só entrou na faixa de rodagem que pretendia cruzar depois de devidamente autorizado pela condutora que se encontrava parada nessa mesma faixa de rodagem;
XVII. O Recorrente cedeu a passagem a todos os se encontravam naquela faixa de rodagem e que não quiseram autorizá-lo o a ela aceder;
XVIII. Só entrou na via de circulação quando autorizado pelo veículo que gozava de prioridade;
XIX. No momento do acidente entre os veículos, também não violou o normativo pois aquele acidente só aconteceu já depois do Recorrente ter percorrido toda a largura da faixa de rodagem cruzada e já depois de se encontrar na faixa de rodagem em que pretendia circular;
XX. Na altura do embate, não havia qualquer cedência de passagem a respeitar, até porque a faixa de rodagem adjacente à saída do caminho particular já tinha sido percorrida sem qualquer problema e o Recorrente já se encontrava com o seu veículo dentro da sua faixa de rodagem;
XXI. A culpa do acidente é exclusiva do condutor do veículo IA, o qual violou o disposto nos artigos 13º, nº 1,35°, 38º, nº1, nº 2, al. a), b) e nº 3 do Código da Estrada;
XXII. A prova levada ao processo (Documentos juntos com a PI, depoimento da testemunha ocular F…, e prova testemunhal) permite concluir antes que:
- O Recorrente teve todos os cuidados exigíveis e respeitou as normas rodoviárias;
- Respeitou a obrigação de cedência de passagem, só tendo entrado na via de circulação depois de devidamente autorizado pela condutora que se encontrava parada na faixa de rodagem (sentido … - …) e depois de ter averiguado que nenhum veículo circulava no sentido em que pretendia circular (…-…);
- O condutor do veículo IA era quem realizava manobra ilegal;
- Que o Recorrente não violou qualquer norma estradal, nomeadamente, o artigo 31° do Código de Estrada;
- Que a culpa do acidente é exclusiva do condutor do veículo IA;
- Que o Recorrente sofreu danos relativos à reparação do veículo, privação de uso e danos morais, que se computam em € 9.752,01, acrescidos dos juros de mora vincendos e de indemnização a liquidar em execução de sentença, relativamente aos danos decorrentes da privação do uso, nos termos peticionados.
XXIII. Os factos B a E devem ser alterados no sentido supra referido. Deve a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente o valor peticionado nos presentes autos;
XXIV. A sentença arbitral incorreu em erro de julgamento no tocante aos factos provados, por errada apreciação da prova produzida.
Termos em que, decidindo pelo provimento do recurso, anulando a sentença e substituindo-a por outra que condene a Recorrida, nos termos peticionados, far-se-á JUSTIÇA!”.

A reclamada contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

O recurso interposto foi admitido como apelação, com subida imediata e nos próprios autos (cfr. fls. 137), regime que o aqui relator manteve, atribuindo-lhe o correspondente efeito meramente devolutivo.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 e a decisão impugnada anterior a 1/9/2013 – cfr. art.º 12.º deste diploma e art.ºs 7.º, n.º 1, e 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6 -, e porque a sua legalidade deve ser apreciada à luz da lei vigente à data em que foi proferida), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que se devem apreciar questões e não razões, as questões a dirimir consistem em saber:
- se a sentença padece da nulidade que lhe é imputada;
- se pode ser alterada a matéria de facto;
- se a culpa na eclosão do acidente é do segurado na recorrida e se esta deve ser condenada nos termos peticionados.

II. Fundamentação

1. De facto

Na decisão recorrida foram dados como provados os factos (e as conclusões) nela descritos sob as alíneas A) a E), transcritos no antecedente relatório, e que, por isso, nos dispensamos de repetir aqui.

2. De direito

A tais factos resta aplicar o direito, tendo em vista a resolução das supramencionadas questões, começando, como é óbvio e lógico, pela apreciação da nulidade imputada à sentença, a que se seguirá, se for caso disso, a apreciação da matéria de facto impugnada, por a sua definição ser pressuposta pela respectiva subsunção jurídica.
Como é sabido, o dever de fundamentação das decisões que não sejam de mero expediente tem consagração constitucional no n.º 1 do art.º 205.º da CRP, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
O art.º 158.º do CPC também dispõe no n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, acrescentado o n.º 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição”.
A fórmula utilizada no n.º 1 do preceito acabado de referir é redutora, pois o dever de fundamentação existe relativamente a todas as decisões que não sejam despachos de mero expediente (cfr. art.º 156.º, n.º 4 do CPC), por imperativo constitucional, mesmo que aparentemente não estejam abrangidas por aquele preceito. Hoje, a aludida norma constitucional impõe o entendimento de que só o despacho de mero expediente não carece, por sua natureza, de ser fundamentado, devendo sê-lo qualquer outra decisão que, directa ou indirectamente, interfira no conflito de interesses entre as partes (cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, 2.ª edição, vol. 1.º, pág. 302).
Segundo estes autores, o n.º 2 do citado art.º 158.º “afasta a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência às razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma” (cfr. obra citada, págs. 302 e 303).
O dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, mesmo daquelas de que não cabe recurso, assenta no pressuposto de que a decisão não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso submetido à apreciação jurisdicional, e na necessidade de as partes serem não só esclarecidas mas convencidas do seu acerto (cfr. Alberto dos Reis, Comentário, vol. 2.º, pág. 172 e CPC anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 284), uma vez que o seu valor extrínseco flui da sua motivação, cuja função pedagógico-social se não pode subestimar, para além de, admitindo recurso, necessitarem de saber a razão ou razões do decaimento das suas pretensões para as poderem impugnar.
Por sua vez, o art.º 659.º, n.º 2 do mesmo Código, a propósito da fundamentação da sentença, manda ao juiz “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
A violação do dever de fundamentação gera a nulidade nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. b) do CPC ao preceituar que a sentença é nula quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Por outro lado, não obstante o aludido dever de fundamentação, a doutrina e a jurisprudência dominantes têm vindo a entender que só a falta absoluta de motivação, que não a meramente deficiente ou medíocre, conduz àquela nulidade.
Mas, para além daquele dever, outro existe, respeitante à decisão da matéria de facto e respectiva motivação, imposto pelo art.º 653.º, n.º 2, do CPC, nos termos do qual, concluída a instrução e a discussão sobre a matéria de facto, o tribunal aprecia a prova e declara quais os factos que julga “provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.
Os tribunais arbitrais são uma espécie de tribunais (cfr. art.º 209.º, n.º 2, da CRP), que, embora com menos exigências, também se encontram sujeitos ao dever de fundamentação.
Com efeito, nos termos do art.º 42.º, n.º 3 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), anexa à Lei n.º 63/2011, de 14/12, que a aprovou, aqui aplicável por já estar em vigor aquando da iniciação do processo arbitral (cfr. art.ºs 4.º, n.º 1 e 6.º), “A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º”, o que não é o caso.
O art.º 13.º, al. e), do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros, aprovado pela Assembleia Geral de 31 de Maio de 2010, nos termos previstos no art.º 12.º, al. i), dos Estatutos do Cimpas – Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros, que rege o Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros, manda fazer constar da decisão arbitral “os fundamentos, de facto e de direito, da decisão”.
E o art.º 14.º do mesmo Regulamento manda aplicar as normas da Lei da Arbitragem Voluntária [actualmente a supra referida, visto que a que é ali citada - Lei 31/86, de 29 de Agosto – foi por aquela revogada, entendo-se feita para ela tal remissão (art.ºs 3.º e 5.º, n.º 1)] – n.º 1 - e, em caso de omissão, subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral – n.º 2.
O art.º 18.º, n.º 2, do Regulamento da Arbitragem e das Custas, aprovado na mesma Assembleia Geral, também manda, além do mais, que a acta contenha a “caracterização sumária do litígio e respectiva decisão, devidamente fundamentada”.
O único árbitro decidirá de acordo com o direito constituído (art.º 12.º, n.º 1, do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem), depois de produzida a prova oferecida, que pode ser qualquer uma admitida em direito, podendo, o tribunal arbitral, por sua própria iniciativa, recolher depoimentos das partes, ouvir testemunhas ou terceiros, obter a entrega de documentos necessários, nomear peritos, mandar proceder a análise ou exames directos (art.º 14.º do Regulamento da Arbitragem e Custas).
Segundo Paula Costa Silva, citada no acórdão de 3/12/2012, proferido no processo n.º 206/12.0YRPRT, em que o aqui relator e o primeiro adjunto foram, respectivamente, 1.º e 2.º adjuntos, disponível em www.dgsi.pt, que passamos também a citar, “a exigência do n.º 3 do artigo 23.º[1] encontra a sua justificação na necessidade de se evitar a arbitrariedade do processo arbitral, podendo dizer-se que «uma sentença é provida de fundamentos sempre que seja possível compreender a motivação do árbitro. Assim, mesmo que a motivação seja deficiente, medíocre ou errada, estaremos perante uma sentença motivada, devendo as deficiências da sua fundamentação, que não geram nulidade, ser arguidas em via de recurso. Só a falta absoluta de motivação implicará uma nulidade da sentença arbitral, invocável através da acção de anulação. Sempre que a motivação seja deficiente e não havendo lugar a anulação, deve essa deficiência ser suprida através de recurso interposto contra a sentença arbitral».
A fundamentação das decisões tem um duplo objectivo: por um lado, cumpre uma função de índole endoprocessual, impondo ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica e habilitando as partes, em caso de recurso, a exprimir em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; por outro lado, cumpre uma função extraprocessual, na medida em que garante o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica.
Cumpre-se esse dever se o juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, depois de analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção – artigo 653º, n.º 2, do CPC.”
No caso dos autos, a decisão recorrida contém, somente, a especificação dos factos provados sob as alíneas B), C) e E, pois as alíneas A) e D) são integradas por matéria manifestamente conclusiva, pelo que se impunha a sua eliminação dentre aqueles factos, considerando-as não escritas.
Tal decisão é completamente omissa quanto à motivação da decisão de facto e relativamente à enunciação dos factos não provados que acabam por ser todos aqueles que foram alegados pelo reclamante, ora recorrente.
Porque contém alguma fundamentação de facto, ainda que deficiente, não é caso de nulidade prevista no invocado art.º 668.º, n.º 1, al. b), do CPC, pois esta pressupõe a falta absoluta de fundamentação da decisão, não bastando que ela seja deficiente, incompleta ou não convincente.
Pela mesma razão não é caso subsumível ao art.º 46.º da LAV, visto pressupor uma absoluta falta de motivação, cuja nulidade seria invocável através da acção ali prevista e não por via de recurso.
Porém, existe falta de observância do aludido dever de fundamentação, pois o tribunal arbitral, além de não declarar quais os factos que julgou não provados, não especificou os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção.
Apesar da natureza informal e prática do processo arbitral, “a fundamentação deve conter os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão em termos que não diferem do regime do CPC (artigo 659º, números 1 a 3) para a sentença judicial, pois, de outro modo, tornar-se-ia difícil a sua apreciação pelo tribunal judicial em caso de recurso ou de acção de anulação.”
A inobservância do n.º 2 do art.º 653.º do CPC, na redacção vigente à data em que foi proferida a decisão arbitral, acarretava a devolução dos autos à 1.ª instância, a requerimento da parte, para que a decisão sobre a matéria de facto fosse devidamente fundamentada, nos termos do art.º 712.º, n.º 5 do mesmo Código, sendo que, actualmente, após a versão dada pela citada Lei n.º 41/13, a devolução para fundamentação passou a poder ser feita oficiosamente pelo tribunal de recurso [cfr. art.º 662.º, n.º 2, al. d)].
É flagrante e inconcebível a omissão da fundamentação, quer da decisão de facto, quer da enunciação dos factos não provados.
Além de ser completamente omitida a análise crítica das provas produzidas, houve completa omissão de pronúncia do tribunal arbitral quanto aos factos alegados pelo reclamante, cuja apreciação não pode ser considerada prejudicada pelos factos dados como provados, por se reportar à versão contrária.
Estas omissões não podem ser supridas por nós, visto que houve produção de prova testemunhal, conforme consta da respectiva acta, e não temos acesso aos seus depoimentos, pois nem sequer foram gravados.
Por isso mesmo, não podemos proceder à reapreciação da prova e eventual modificação da matéria de facto, como pretende o apelante, pois, para que tal pudesse suceder, era necessário que o processo contivesse todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ou, tendo havido gravação dos depoimentos prestados, que a decisão fosse impugnada nos termos do art.º 685.º-B, o que não é o caso [cfr. art.º 712.º, n.º 1, al. a), do CPC].
Em face desta impossibilidade e porque a indagação da factualidade omitida se mostra essencial à causa, haveria lugar à anulação oficiosa da decisão arbitral, ao abrigo do disposto no n.º 4 do citado art.º 712.º [equivalente ao actual art.º 662.º, n.º 2, al. c)], para alargamento da discussão aos factos sobre os quais o tribunal arbitral não se pronunciou, repetindo-se o julgamento, e posterior motivação da decisão sobre a decisão de facto.
Contudo, dado que o poder jurisdicional do árbitro que proferiu a decisão recorrida se extinguiu com a sua prolação, torna-se inviável a repetição do julgamento (cfr. art.ºs 44.º, n.ºs 1 e 3, e porque não é caso dos art.ºs 45.º e 46.º, n.º 8, da LAV).
Resulta do exposto que não se verificam as condições necessárias à avaliação da justeza da decisão recorrida, tornando-se impossível o conhecimento das restantes questões.
Deste modo, a consequência das falhas detectadas na decisão arbitral será estritamente a sua anulação.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC:

Deve ser anulada oficiosamente, nos termos do art.º 712.º, n.º 4, do CPC, a decisão arbitral completamente omissa quanto aos factos não provados e à motivação da decisão de facto, quando seja impossível proceder à reapreciação da matéria de facto, por não constarem do processo todos os elementos probatórios, designadamente por terem sido inquiridas testemunhas e os depoimentos não terem sido gravados.

III. Decisão

Por tudo o exposto, na procedência da apelação, anula-se a decisão arbitral.
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Custas pela apelada.
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Porto, 12 de Novembro de 2013
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
______________
[1] Da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, cuja doutrina tem aqui inteiro cabimento por identidade de razão.