Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2031/17.2T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: ENTREGA DE VIATURA
INSPECÇÃO PERIÓDICA
ACIDENTE
INEXISTÊNCIA DE CONTRATO DE SEGURO
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RP202102112031/17.2T8PNF.P1
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADES
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Com a entrega de viatura, incluindo a respetiva chave, pelo proprietário (ainda que eventualmente por intermédio de terceiro) a uma oficina para efeitos de condução do veículo a inspeção periódica, a direção efetiva daquele passa a ser detida pela indicada oficina.
Essa conclusão deve manter-se mesmo que a viatura tenha ficado estacionada fora das instalações da oficina e em momento prévio à sua abertura ao público.
II - A legal representante da oficina que abre a porta do lado do condutor para ir buscar documentos da viatura ao seu interior e não pratica qualquer ato de condução, não pode ser classificada como condutora da mesma viatura.
III - Ao ficar aberta a porta da viatura do lado do condutor, mesmo estando totalmente estacionada na berma, aumenta-se o risco de poder ser provocado um embate com outro veículo ou peão.
IV - Circulando um velocípede sem motor perto da berma e embatendo na porta aberta da viatura como referido em 3), na falta de prova de factos que possam concluir pela existência de culpa (efetiva ou presumida) de ambas as partes, deve imputar-se responsabilidade a ocorrência dos danos a título do risco de circulação de ambos os veículos.
V - Esse risco, no caso concreto, atendendo às características dos veículos, ao modo de circulação e falta de uso de proteção na cabeça pelo condutor do velocípede (local do corpo onde o condutor sofreu maiores danos), deve ser repartida atribuindo 65% ao velocípede (com o aumento de 10% por não usar proteção na cabeça) e 35% ao veículo automóvel a título de grau de responsabilização.
VI - Não tendo a oficina celebrado o obrigatório contrato de seguro, deve responder o seguro celebrado pelo proprietário do veículo.
VII - A seguradora do contrato celebrado pelo proprietário do veículo tem direito de regresso sobre a oficina.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2031/17.2T8PNF.P1.
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1). Relatório
B…, casado, residente na Av. …, .., Paços de Ferreira, propôs contra
C…, Companhia de Seguros, S. A., com sede na Rua …, .., Lisboa,
Ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré em:
. pagar-lhe a quantia de 137500 EUR por danos sofridos em resultado de acidente, sendo 70000 EUR a título de danos não patrimoniais e 67500 EUR a título de danos patrimoniais, perda geral de ganho, passado e futuro, tudo acrescido de juros à taxa legal desde a citação e até integral e efetivo pagamento;
. suportar os custos de todo o tratamento médico e medicamentoso que, no futuro, venha a necessitar por via do sinistro dos autos, eventuais internamentos que se mostrem necessários e custos decorrentes de eventual acompanhante quando a existência deste se venha amostrar necessária, cujo valor deve ser liquidado em «execução de sentença».
O sustento para tais pretensões, em resumo, consiste em:
. no dia 09/07/2014, cerca das 09.00 horas, na Rua …, …, Paços de Ferreira, no enfiamento do n.º … daquela via, ocorreu um acidente entre:
. veículo ligeiro de passageiros marca CITROËN, matrícula ..-..-XS, propriedade de D…, na altura conduzido por E…;
. velocípede sem motor, propriedade do Autor e por si conduzido;
. quando o Autor seguia no velocípede a uma velocidade de cerca de 20 Kms/hora pelo lado direito da estrada, próximo da berma direita atento o seu sentido de marcha, no exato momento em que estava a ultrapassar aquele ligeiro de passageiros, que estava parado na berma, é surpreendido com a inesperada e repentina abertura da porta do lado do condutor, sendo que a condutora o fez de modo desatento, violando o disposto violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2 e 3, 53.º, n.º 2, do Código da Estrada;
. com tal abertura, o caminho do Autor foi barrado, vindo a embater na porta;
. essa atuação causou-lhe danos físicos, patrimoniais e não patrimoniais;
. sendo E… quem detinha e conduzia na altura o veículo automóvel, com perfeito conhecimento do seu proprietário e no desempenho de tarefas de que este a havia incumbido (vistoria obrigatória da IPO), fazia-o por conta e sob a direção e no interesse do dono do veículo, numa relação de comitente-comissário, assim se presumindo a sua culpa nos termos do artigo 503.º, n.º 3, do C. C.;
. a Ré é a seguradora para quem o dono do veículo transferiu a responsabilidade pelo pagamento de danos provocados a terceiros, por contrato titulado pela apólice nº ……..
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Citada a Ré, a mesma contestou alegando em síntese que:
. aceita a celebração do contrato de seguro com o proprietário do veículo;
. quando ocorreu o acidente, o tomador do seguro não estava na posse do referido automóvel sendo a oficina F…, Lda. quem a detinha e assim também tinha a direção efetiva do veículo;
. a responsável pelo automóvel, à data do sinistro, era E…, que era quem estava na viatura quando a porta se abriu no momento em que o Autor passava de bicicleta sendo que, em rigor, E… não era a condutora do veículo nem se dirigiu ao mesmo com a intenção de o conduzir, só tendo, enquanto trabalhadora da oficina, ido buscar documentos que se encontravam no interior do XS;
. ao manipular a porta, descuidou-se e deixou-a abrir, assim violando regras estradais;
. a culpa pela ocorrência do sinistro, tal como alegado pelo Autor, é de E…, conforme também conclui o perito averiguador;
. não é assim a Ré responsável pela reparação do acidente sub judice sendo antes a F… nos termos do n.º 1, do artigo 503.º, do C. C., devendo ser acionado o seguro de mecânico/garagista, nos termos do n.º 3, do artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007;
. não tendo a oficina celebrado esse seguro, tem de ser demandado o Fundo de Garantia Automóvel.
. no mais, deduz impugnação de factos e dos valores peticionados.
Termina pedindo a sua absolvição por procedência da exceção perentória alegada ser procedente e a realização de julgamento consoante a prova produzida.
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O Autor, alegando dúvida fundamentada sobre o motivo porque a viatura segurada na Ré se encontrava estacionada no local em causa e se outros intervenientes possam ter ou não seguro que proteja a sua atividade, ao abrigo do disposto no artigo 39.º, do C. P. C., deduziu incidente de intervenção principal provocada de:
. F…, Lda.;, com sede Rua …, Paços de Ferreira;
. E…, residente na …, .., 4.º esquerdo, Paços de Ferreira;
. Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Av. …, ..- 4º, Lisboa;
. D…, residente na Rua …, .., Paços de Ferreira.
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Por despacho de 20/11/2017, foi admitida a pedida intervenção, tendo os intervenientes alegado, em síntese, que:
. «F. G. A. ...»:
. o direito do Autor está prescrito (acidente ocorrido em 09/07/2014, com pedido de intervenção em 03/10/2017) - artigo 498.º, n.º 1 do C. C. -;
. a obrigação de celebração de seguro impende sobre o proprietário do veículo automóvel com estacionamento habitual em Portugal, como condição de circulação nas vias públicas bem como sobre os garagistas ou quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a atividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos;
. nos termos do artigo 23.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, quando, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, responde em primeiro lugar o seguro desportivo ou, em caso de inexistência deste, o seguro de garagista ou, em caso de inexistência deste dois o seguro de automobilista ou, em caso de inexistência destes três, o referido no n.º 2 do artigo 6.º, ou no caso de inexistência destes quatro, o contrato celebrado nos termos do n.º 1 do artigo6.º;
. assim, o seguro de garagista responde pelos danos do veículo que lhe é entregue para reparação, desempanagem ou controle de bom funcionamento, ficando afastada a responsabilidade do segurador contratado pelo proprietário;
. o «F. G. A….» não é chamado a satisfazer a indemnização em igualdade de circunstâncias com as seguradoras, só o sendo se não for possível, no caso concreto, a indemnização ser satisfeita por seguradoras;
. assim, no caso, existindo contrato de seguro válido para o veículo lesante, compete à Ré seguradora, em face da eventual ausência de seguro de garagista e/ou seguro de carta, indemnizar os terceiros lesados, extinguindo-se aí a intervenção do «F. G. A. ...»;
. impugna por desconhecimento a factualidade alegada.
Termina pedindo que sejam as exceções invocadas julgadas procedentes e, assim não sendo, a ação seja julgada totalmente improcedente.
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. D… – será sempre parte ilegítima, mesmo a provar-se qualquer das versões;
. E… – é parte ilegítima por não ser funcionária de «F…, Lda.» mas sua gerente, pelo que os seus atos só vinculam a empresa e não a si pessoalmente;
. F…, Lda. - antes da hora acordada para o início do trabalho, a esposa do réu proprietário deixou estacionado o veículo na indicada berma, deixou as chaves na receção da oficina, indicando o local onde o veículo se encontrava e que quando chegasse a sua vez para a inspeção se o podiam encaminhar para as instalações;
. aquando do evento em causa nos autos, o veículo ainda não tinha entrado na oficina para início dos trabalhos solicitados e a ré E… dirigiu-se ao veículo levantar os documentos do veículo;
. só depois do estacionamento é que a «F… …» iria conduzir o veículo até às instalações, pelo que a direção efectiva do veículo ainda pertencia ao proprietário do mesmo que havia transferido a sua responsabilidade civil para a Ré seguradora.
É assim parte parte ilegítima.
No mais, todos impugnam a factualidade no sentido de a porta aberta não ter invadido a hemi-faixa;
. quando ali passou o velocípede, a porta já se encontrava entreaberta;
. o Autor conduzia o velocípede motor sem o uso de qualquer material refletor, luzes e capacete, esta última circunstância agravando os danos físicos.
Terminam pedindo a procedência das excepções de ilegitimidade com a consequente absolvição de instância e a improcedência da ação.
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O Autor respondeu alegando, em resumo, que:
. quanto à exceção arguida pela Ré «C… …», essa defesa não é oponível ao Autor nos termos do artigo 22.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007;
. os factos por si alegados são novos e contrariados pelos que alegou na petição inicial;
. quanto aos intervenientes «F…» e E…, os factos que alegam também são novos e contrariados por si alegados na petição inicial;
. quanto ao mencionado pelo interveniente D…, a Ré «C… …», embora assumindo ter celebrado o contrato de seguro, não confessou expressamente que o mesmo, à data do acidente, fosse válido e em vigor;
. impunha-se ainda o chamamento deste interveniente dada a necessidade de litisconsórcio necessário por imperativo do artigo 62.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007;
. quanto à prescrição invocada pelo «Fundo …», as lesões sofridas por via do sinistro dos autos são suscetíveis de configurar o crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo disposto nos artigos 148.º, n.º 3 (ou pelo menos o do 148.º, n.º 1), do C. P., crime cujo prazo prescricional é de cinco anos, sendo este o aplicável – artigo 498.º, n.º 3, do C. C. -;
. no mais, existe uma divergência doutrinal e jurisprudencial sobre a posição a assumir pelo «Fundo…» em situações como a presente e daí a necessidade da sua presença e, consequentemente a sua legitimidade.
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Foi proferido despacho saneador relegando para a sentença o conhecimento das exceções de ilegitimidade e prescrição.
Fixou-se o objeto do litígio e selecionaram-se os factos assentes e os que integravam os temas da prova.
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Realizou-se audiência de julgamento tendo sido proferida sentença onde se decidiu:
. a) absolver a Ré C…, Companhia de Seguros, S.A., dos pedidos deduzidos pelo Autor;
b) condenar solidariamente os chamados «F. G. A. …», a título de garante, F…, Lda., e E…, a pagar ao autor a quantia global de 5005,49 EUR a título de indemnização pelo dano patrimonial sofrido, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a respetiva citação de cada um daqueles chamados e até integral e efetivo pagamento;
c). condenar solidariamente os chamados «F. G. A. …» a título de garante, F…, Lda., e E…, a pagar ao Autor a quantia de 40000 EUR a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa de 4%, contabilizados desde a data da prolação da sentença e até efetivo e integral pagamento;
d) condenar solidariamente os chamados «F. G. A. …», a título de garante, F…, Lda., e E…, a pagar ao Autor as despesas ocorridas e que vieram a ocorrer, desde a data da propositura da ação e enquanto a necessidade das mesmas se mantiver, com as consultas a que alude o art. 42º dos factos provados, relegando-se a sua quantificação para execução de sentença;
e) Absolver os mencionados chamados do remanescente dos pedidos contra eles deduzidos.
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Inconformados, recorreram os seguintes sujeitos processuais, formulando as respetivas conclusões:
. «F. G. A. …».
«1 – O FGA não responde perante o lesado se o veículo que causou o acidente beneficiava de seguro válido e eficaz outorgado pelo seu proprietário, mesmo que o veículo, no momento do acidente, esteja confiado a um garagista sem seguro e fora da direcção efectiva do proprietário;
Sem conceder,
2 - Provando-se a propriedade do veículo, presume-se a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo proprietário;
3- Incumbia ao proprietário provar a utilização abusiva e contrária ao seu interesse;
4- A F… estava na posse do veículo XS de acordo com o interesse e sob autorização e controlo do proprietário do mesmo;
5- O Tribunal a quo, não os interpretando da forma acima assinalada, violou os arts. 2.º, 6.º, 15.º e 23.º e 27.º do Decreto-Lei nº 291/2007,os artigos 483.º e 503.º do CC.».
Pede a revogação da decisão com a sua absolvição do pedido.
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F…, Lda. e E…, recurso a que aderiu o «F. G. A….» nos termos do artigo 634.º, do C. P. C, apresentando aqueles as seguintes conclusões:
. «1. Apela-se a este Venerando tribunal que altere, em face da prova produzida, a decisão sobre a matéria de facto, competência que lhe é atribuída.
2. Facto incorretamente julgado:
10. Deixou as chaves na recepção da oficina, indicando o local onde o veículo se encontrava estacionado e solicitando que, quando chegasse a sua vez para a inspeção técnica, o conduzisse para as instalações da oficina.
Ponto 13 dos factos provados:
13. Nas circunstancias de tempo e lugar referidas no ponto 1., a Ré E…, gerente da sociedade F…, Lda., desde 15/08/09, e funcionária administrativa de facto desta, existindo entre ambas uma relação de facto de empregador e trabalhadora, no contexto do que a esposa do proprietário do veículo XS havia solicitado àquela sociedade e na posse das chaves que tinham sido entregues, dirigiu-se ao veículo XS, para levantar os documentos do veículo, que tinham relevância para os serviços que foram solicitados à F…, tendo-se introduzido no mesmo pela portada frente do lado do condutor, que abriu.
Ponto 14 dos factos provados:
14. A referida missão de ir buscar os documentos, foi confiada pela F… à E… por força da sua qualidade de trabalhadora de facto daquela.
Ponto 13 do Factos Não Provados
13. O sinistro se tivesse dado por distração do autor ou porque este se tivesse atrapalhado com a passagem do camião que o ultrapassou ou tivesse sido por causa disso que o embate na porta tivesse dado.
3. Meios probatórios que impõem decisão sobre os factos impugnados Diversa da recorrida
- Depoimento da Interveniente E…, cujo depoimento se encontra gravado no CD no dia 17/06/2020 entre as 10h11m e as 11h09m03s
- Depoimento da testemunha G…, cujo depoimento se encontra gravado no CD no dia 03/07/2020 entre as 15:34:39 e as 15:40:22
- Depoimento da testemunha H…, cujo depoimento se encontra gravado no CD no dia 17/06/2020 entre as 14:43:49 e as 15:36:23
- Registos clínicos de urgência do Hospital … e do Hospital I… elaborados no próprio dia do acidente (oficio de 6/4/2018 referencia citius 4366540)
4. Resposta que se pretende seja dada aos factos impugnados:
Ponto 10 dos factos provados:
10. Entregou as chaves na via pública, antes da abertura da oficina, indicando o local onde o veículo se encontrava estacionado e solicitando que, quando chegasse a sua vez para a inspeção técnica, o conduzisse para as instalações da oficina.
Ponto 13 dos Factos Provados:
13. A Ré E…, gerente da sociedade F…, Lda., desde 15/08/09, e funcionária administrativa de facto desta, existindo entre ambas uma relação de facto de empregador e trabalhadora.
13.a) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1 e na posse das chaves que tinham sido entregues, dirigiu-se ao veículo XS, para se certificar se os documentos do veículo lá se encontravam, o que fez com conhecimento do seu proprietário, tendo-se introduzido no mesmo pela porta da frente do lado do condutor, que abriu.
Ponto 14 – Não provado.
Ponto 13 do Factos Não Provados – Pretende-se que se dê como provado o seguinte (mediante a introdução de numa nova alínea 72 aos Factos Provados):
72. O acidente deu-se porque o autor se atrapalhou com a passagem do camião, desviando-se para a direita.
5. Da prova produzida em julgamento não se extrai que a Interveniente, como funcionária ou como gerente, tivesse recebido ordens da F… para proceder à verificação ou levantamento de documentos, esta tarefa não fazia parte dos serviços que ira prestar, fê-lo no interesse da cliente.
6. Da prova produzida resulta que o autor, aquando do embate foi ultrapassado pelo camião, que se assustou e que teve necessidade de ser desviar para a direita.
7. A responsabilidade do seguro obrigatório cobre a responsabilidade do garagista quando este não tem seguro, nos termos do artigo 23 do DL291/2007.
8. A seguradora não tem direito de regresso, designadamente contra o garagista, salvo nas situações excecionais e previstas no artigo 27 do DL 291/2007, que não sucede no caso.
9. Existe a presunção de que a propriedade faz presumir a direcção efetiva por envolver um poder de facto quanto ao uso e ao destino do veículo.
10. A ré seguradora não logrou ilidir tal presunção, antes as Intervenientes provaram que não tinham a direção efetiva aquando do embate, pelo que a responsabilidade pela eventual indemnização àquela lhe cabe por inteiro.
11. Nos autos em apreço, o proprietário do veículo não perdeu a direção efetiva, no momento e nos moldes em que efetuou a sua “entrega”.
12. O acto da entrega das chaves não é necessariamente o ato que determina a mudança da titularidade da direção efetiva.
13. O acordado entre proprietário e Intervenientes foi entregar o veículo nas instalações às 14H00; o proprietário, ou a esposa deste, a mando daquele, deixou o veículo de manhã e na berma, por interesse exclusivo daqueles, pois dava jeito, porque a esposa tinha que trabalhar de tarde; tendo esta solicitado à E… que conduzisse o veículo até às instalações quando chegasse a sua vez, tendo a E…, no interesse do dono, e com o conhecimento deste, ou da esposa deste, ido verificar se os documentos se encontravam no veículo.
14. O veículo foi estacionado na berma e antes da hora marcada, por livre iniciativa da esposa do proprietário; não tendo a hora e local de estacionamento do veículo sido acordados com a F….
15. À hora do evento em causa nos autos, a F…, Lda. não tinha dado início aos trabalhos de inspeção técnica.
16. O domínio sobre o veículo apenas passaria para a F… no momento em que o mesmo entrasse nas instalações (de acordo aliás com o que havia sido combinado) para inicio dos trabalhos da inspeção técnica e era a partir daqui que ocorreria o interesse da oficina na dita inspeção e correlativamente era, nesse momento, que passava a ter a verdadeira posse e a direção efetiva.
17. O risco de o veículo ficar estacionado na berma (“o risco da circulação do mesmo”) correria contra o seu proprietário e até ao momento em que a Ré o introduzisse nas instalações para início dos trabalhos.
18. As chaves foram entregues, quando a E… estava a chegar e na via pública, tratando-se de um favor mediante o local a esposa do proprietário solicitou que, ficando ali o veículo estacionado, o levasse quando chegasse a sua vez.
19. A E… foi certificar se os documentos estavam dentro do veículo, porque, segundo referiu, os clientes às vezes esquecem-se e caso os documento lá não se encontrassem, a E… os avisaria para os ir entregar e foi nesse intuito que efetuou a verificação da existência dos documentos, o que fez no interesse do proprietário.
20. O acto de deixar o veículo na berma e antes da hora acordada não integrava assim o contrato de reparação.
21. Tratou-se de uma mera cortesia, favor ou de um acatamento, consistente no facto de, chegada a hora marcada, a F…, Lda. levaria o veículo para as natações e então aí, sim, impendia sobre a oficina o verdadeiro poder de facto sobre o veículo.
22. Se o dono solicitou essa condução (levar o veículo quando chegasse a vez dele) não perdeu a direção efetiva do veículo que continuou estacionado na berma e no seu próprio interesse.
23. O facto de a E… poder ser funcionária ou gerente, aliás é única gerente, não é bastante para se provar uma relação de comissão.
24. Torna-se necessário que se aleguem e se provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, no sentido de que o comissário atuou sob concretas ordens e instruções do comitente.
25. Não resulta que a E… tivesse recebido instruções da F… para ir levantar os documentos ao veículo ou que tivesse agido por conta e mediante ordens e instruções desta, pelo que não se pode concluir que E… actuou como comissária daquela
26. Aliás, e como se disse, a Ré E…, no momento em que se seu deu o acidente, actuava sim no interesse e com o conhecimento do seu proprietário, pois apenas foi verificar se os documentos se encontravam no veículo.
27. Sendo que, para efeitos do artigo 503.º, n.º1, do CC, há que atribuir ao proprietário do veículo a direção efetiva deste, quando não seja demonstrada a utilização abusiva do mesmo por parte do condutor quando do acidente.
28. O facto de ser gerente da F… de “per si” não fará funcionar a presunção legal prevista no artigo 503, nº 3 do CC.
29. Para que ocorra a presunção a que alude o artigo 503, nº 3 do CC necessários e torna que se alegue e prove que o sócio gerente, ao conduzir o veículo, o faz numa relação de comissão, isto é, sob as ordens e direção da sociedade.
30. Opinião diferente acarretaria sempre uma situação de desigualdade entre uma sociedade e um particular, em que aquele teria sempre um duplo agravamento, respondendo objetivamente e ainda por presunção de culpa, quando um seu sócio gerente fosse interveniente num acidente sem culpa de qualquer dos intervenientes”.
31. A presunção de quem conduz/utiliza um veículo por conta de outrem o faz deforma mais aligeirada, não poderá ser aplicável, na sua argumentação, ao órgão de gerência que se confunde com a própria pessoa coletiva, no sentido de que agindo o órgão é a própria pessoa coletiva que age.
32. Ora, como acima se referiu quanto à vertente funcionária, também na vertente de gerente não resulta provado que a E… tivesse ido ao veículo por conta da F… ou que tivesse agido por conta e mediante ordens e instruções desta.
33. Assim sendo, não é de aplicar a presunção prevista no artigo 503, nº 3 do CC.
34. O acidente deu-se porque o autor se atrapalhou com a ultrapassagem do camião que fez com que tivesse necessidade de se desviar para a direita
35. O autor conduzia o velocípede sem motor sem uso de capacete, o que, a pardo embate, contribuiu para as lesões que aquele sofreu ao nível da cabeça –Facto provado em 23 da douta sentença.
36. O velocípede não tinha material refletor e luzes – Facto provado em 24 da douta sentença.
37. À data dos factos, inexistia uma norma que obrigasse ao uso de capacete para condutores de velocípedes sem motor.
38. Porém, dispõe o artigo 3, nº 2 do CE que as pessoas devem de abster-se de atos que comprometam a segurança dos utentes da via.
39. É uma norma de caracter geral e que abrange todos os utentes da via, incluindo os próprios condutores ou utilizadores das vias de trânsito, onde se incluem obviamente os condutores de velocípedes sem motor.
40. A liberdade e a segurança rodoviária não resulta da mera observação pelos condutores das regras de transito, mas ainda da obrigação de realizar a sua condução de forma adequada para segurança não só de terceiros, como dos próprios, devendo saber interpretar as circunstancias da sua circulação, a fim de evitar acidentes.
41. De acordo com a diligência média de um homem normal é facilmente perceptivel que conduzir sem capacete na via pública, seja velocípede com motor ou sem motor, é altamente perigoso e que uma queda pode causar danos graves, designadamente ao nível da cabeça e que utilização do capacete constitui uma eficaz prevenção de danos em acidentes de viação com intervenção de ciclistas.
42. De acordo com a orientação constante deste tribunal a que se recorre a inobservância de leis e de regras de conduta que contribuam decisivamente para a ocorrência do acidente, faz presumir a culpa na produção do acidente 43. E o facto é que não fosse a falta de capacete de proteção, o autor não teria sofrido os danos que veio infelizmente a sofrer e que deveu-se à sua queda e embate com a cabeça no solo.
44. Assim sendo, a falta de uso de capacete consubstancia uma violação estradal prevista no artigo 3, nº 2 do CE como é violador das mais elementares regras de prudência na condução de velocípedes sem motor.
45. Mesmo que se entenda que o autor não teve culpa no acidente, afastada que esteja a presunção prevista no artigo 503, nº 3 do CC, relativamente à Ré E…, e provado que está que esta não teve culpa na produção do acidente, atento o disposto no artigo 506 do CC, a responsabilidade pelo risco é de repartir-se por todos os intervenientes na proporção do risco que cada um dos veículos houver contribuído para os danos, e cuja contribuição terá de se considerar de maior percentagem para o autor, pelo facto de não usar capacete.
46. Não sendo de excluir a eventual contribuição do condutor do camião, que terá também contribuído para a ocorrência do acidente, tendo, no mínimo, contribuído para que o autor se assustasse e se desviasse para sua direita, e não fosse a ultrapassagem daquele, o acidente também não se teria dado.
47. Muito embora o condutor do referido camião não seja parte na acção, não significa que não se possa apurar uma eventual responsabilidade ou contribuição na eclosão do acidente, o que no nosso entender não deixa de ser um facto evidente.
48. A decisão “à quo” violou por erro de interpretação o disposto nos artigos 483,500, 503, 506 do CC; artigo 3, nº 2 do CE e artigo 15 do DL 291/2007.».
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por outra que julgue a ação não provada e improcedente relativamente às recorrentes, absolvendo-as dos pedidos contra si formulados.
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Autor.
1. É firme convicção do aqui apelante que a prova produzida permite e impõe, nos termos e pelos motivos que supra melhor se explanaram, a alteração do ponto 5 dos factos dados como provados ficando este com a seguinte redacção:
5. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, quando o autor seguia no velocípede melhor identificado em 2, no sentido …/…, e no momento em que o A. estava a(ultra)passar pelo ligeiro de passageiros melhor identificado na al. a) do mesmo nº 2, que ali estava parado na berma, deu-se o embate entre a “porta do condutor” do veículo ..-..-XS e o velocípede.
2. Mais entende que os pontos 2, 3 4 e 5 da matéria de facto dada como não provada deveriam ser dali eliminados, e aditados à matéria provada como factos 5a, 5b, 5c e 5d respectivamente, com a seguinte redacção:
5A – Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados, o velocípede seguia a uma velocidade de cerca de 20 kms/hora e pela hemifaixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, próximo da berma desse mesmo lado.
5B – O condutor do velocípede foi surpreendido com a inesperada e repentina abertura da “porta do condutor” do veículo ..-..-xs no preciso momento em que por ele passava.
5C – A referida porta foi aberta no momento em que o Autor passava de bicicleta, provocando o apurado embate, pela
5D – Condutora do veículo ..-..-xs que, completamente desatenta, não teve o cuidado de verificar se ao abrir tal porta não estaria a por em risco os demais utentes da via e, in casu, o autor, e bem assim que lhe tivesse barrado o caminho.
3. Entende por último, no que toca à matéria de facto, que o ponto 60 da matéria de facto dada como provada deveria ser alterado para a seguinte redacção:
60. De tais actividades, tendo em conta as despesas que deixava de ter de fazer, o autor obtinha um benefício médio por ano equivalente a um montante nunca inferior a €6.000,00 (250,00 X 12 X 2).
4. No provimento, como se espera, da alteração da matéria de facto atrás pedida, torna-se inequívoca a culpa e inerente responsabilidade da Ré E… na produção do sinistro dos autos por termos de concluir que foi a abertura da porta do XS para a estrada, por parte desta que deu causa ao sinistro dos autos,
Ora assim,
5. Sendo certo que no momento a mesma actuava na qualidade de funcionária da Ré F…, existindo entre ambas uma relação de comitente – comissária,
6. E sendo certo também que nem uma nem outra tinham a sua actividade coberta por seguro como pelo menos a F… estava obrigada,
7. Deverão ser ambas condenadas como responsáveis pelos danos decorrentes de tal sinistro, a chamada F…, Lda., a título de responsabilidade civil extracontratual objectiva ou pelo risco, e a chamada E…, a título da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito culposo.
8. E, solidariamente com estas, uma vez que nenhuma tinha o seguro devido, responderá o FGA (art. 49º, n.º 1, als. a) e b), do DL 291/07, de 21/08).
ou, caso assim se não entenda, o que se não concede
9. Para a remota hipótese de se entender que a direcção efectiva se manteve sempre no proprietário do veículo,
10. Tendo neste caso que se admitir que haveria uma relação comitente-comissário com a oficina e uma sub-relação com a recorrente E…,
11. Responderá, solidariamente com aquelas recorrentes, a Ré C…. sem prescindir, e independentemente do que supra vai (recurso subordinado):
12. Entendemos que as indemnizações arbitradas pelo tribunal ficaram aquém do que deveria.
13. No que toca aos danos morais, o A. pediu a condenação dos RR. no pagamento da quantia de € 70.000,00 tendo o tribunal a quo fixado o valor de €: 40.000,00.
14. Temos para nós que atenta a gravidade do sofrimento que causou e ainda causa no a., a gravidade dos danos morais, o valor arbitrado é irrisório devendo ser-lhe atribuído o montante de €: 70.000,00 tal como pedido, por ser da mais elementar justiça.
15. Já quanto ao dano patrimonial, até (mas não só) com base na alteração da matéria de facto tal como solicitado, deverá fixar-se uma indemnização nunca inferior a € 30,000,00
16. Num total indemnizatório de €: 100.000,00 (CEM MIL EUROS) com o que se fará a devida reparação e a melhor justiça.».
*
Foram apresentadas contra-alegações por «F… …» e E…, pedindo a improcedência do recurso subordinado apresentado pelo Autor.
*
As questões a apreciar no presente recurso são:
. alteração da matéria de facto relativamente à entrega da viatura automóvel a oficina, dinâmica do acidente e danos causados ao Autor;
. detenção da direção efetiva da viatura automóvel;
. responsabilidade dos intervenientes na ocorrência do acidente;
. responsabilidade pelo pagamento da eventual indemnização a atribuir.
*
2). Fundamentação.
2.1). De factos.
Foram julgados provados os seguintes factos:
«1. No dia 09 de Julho de 2014, entre as 8,30 as 09h00, na Rua …, da freguesia …, concelho de Paços de Ferreira, e no enfiamento do nº … daquela via, ocorreu um sinistro, no qual foram intervenientes, pelo menos, os seguintes veículos:
a) o veículo ligeiro de passageiros marca CITROËN com a matrícula ..-..-XS, propriedade de D…, residente na R. …, .., Paços de Ferreira, ….-… PAÇOS DE FERREIRA; e
b) o velocípede sem motor, propriedade e conduzido pelo Autor.
2. Era de dia, fazia bom tempo (não chovia) e era possível avistar a via no local em toda a sua extensão e largura.
3. A via em questão é uma rua em patamar e em recta, pavimentada em alcatrão, composta por duas hemi-faixas de sentido oposto e encontrava-se em bom estado.
4. Está inserida dentro de localidade, no centro urbano de …, e tem, no local, uma largura exacta não apurada, mas sempre entre 4,93 m e 5 metros.
5. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, quando o Autor seguia no velocípede melhor identificado em 2, no sentido …/…, e no momento em que o A. estava a (ultra)passar pelo ligeiro de passageiros melhor identificado na al. a) do mesmo nº 2, que ali estava parado na berma, deu-se o embate entre a “porta do condutor” do veículo ..-..-XS, a qual estava aberta com um ângulo de abertura que, em concreto, não foi possível apurar, e o velocípede, não tendo, de igual modo, sido possível apurar em que momento a abertura da porta foi realizada.
6. O que, para além de lhe provocar os ferimentos que infra se descreverão, provocou a queda do Autor, da qual para além do mais resultou traumatismo crânio encefálico, com as consequências que infra melhor se descreverão.
7. A Ré F…, Lda., foi incumbida pela mulher do proprietário do XS, a mando e com o conhecimento deste, para proceder a uma inspecção técnica à viatura e, em seguida, levar a mesma à vistoria obrigatória da IPO.
8. Na data acordada para a inspecção técnica e vistoria obrigatória da IPO, a esposa do proprietário, a mando deste, levou o veículo até à oficina Ré.
9. O que fez na data acordada, mas antes da hora agendada para o início do trabalho de inspecção técnica, deixando estacionado o veículo na berma da Rua …, atento o sentido …/….
10. Deixou as chaves na recepção da oficina, indicando o local onde o veículo se encontrava estacionado e solicitando que, quando chegasse a sua vez para a inspecção técnica, o conduzissem para as instalações da oficina.
11. Seguidamente, a esposa do proprietário do XS abandonou o local, pois não podia ficar à espera da hora agendada para início dos trabalhos da inspecção técnica e não ter tempo a perder.
12. Aquando do evento em causa nos autos, o veículo ainda não tinha entrado na oficina e ainda não tinham sido iniciado os trabalhos da inspecção técnica solicitada.
13. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1, a Ré E…, gerente da sociedade F…, Lda., desde 15/08/09, e funcionária administrativa de facto desta, existindo entre ambas uma relação de facto de empregador e trabalhadora, no contexto do que a esposa do proprietário do veículo XS havia solicitado àquela sociedade e na posse das chaves que tinham sido entregues, dirigiu-se ao veículo XS, para levantar os documentos do veículo, que tinham relevância para os serviços que foram solicitados à F…, tendo-se introduzido no mesmo pela porta da frente do lado do condutor, que abriu.
14. A referida missão de ir buscar os documentos, foi confiada pela F… à E… por força da sua qualidade de trabalhadora de facto daquela.
15. No momento referido 5, E… encontrava-se no interior da viatura XS, sentada no lugar do condutor.
16. A berma da estrada, atento o sentido …/…, onde o veículo XS se encontrava estacionado, tem uma largura de 2,90 metros de largura.
17. O veículo estava estacionado totalmente dentro da berma e de forma e paralela à estrada.
18. Existindo uma linha longitudinal descontinua a separar a berma da estrada/faixa de rodagem.
19. Nas mencionadas circunstâncias de tempo e lugar, a Ré E… actuou como gerente da F…, não tendo contrato de trabalho com esta sociedade.
20. Momentos após a Ré E… se ter introduzido no interior do veículo XS nos moldes descritos, passou um camião, tendo, em seguida, a referida Ré sentido um estrondo na porta do lado esquerdo, tendo então reparado que tinha ocorrido o embate supra descrito.
21. Numa sequência cronológica em relação aos descritos factos que não foi possível apurar, o referido camião iniciou e concluiu a ultrapassagem do velocípede.
22. O acidente dos autos foi participado ao DIAP de Paços de Ferreira tendo dado origem ao processo que ali correu termos com o nº 10/15.3T9PFR, que na fase de inquérito foi arquivado por despacho cuja cópia está junta com a contestação da F… como DOC.5, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
23. O autor conduzia o velocípede sem motor sem o uso de capacete, o que, a par do embate, contribuiu para as lesões infra descritas que aquele sofreu ao nível da cabeça.
24. O velocípede não tinha qualquer material reflector e luzes.
25. Após a ocorrência do sinistro, o proprietário do veículo XS foi informado que o seu veículo havia sido interveniente no sinistro supra descrito.
26. A referida E… não se dirigiu ao veículo com a intenção de o conduzir naquele momento.
27. À data do sinistro, a F… não tinha transferida a responsabilidade civil respeitante aos riscos próprios da actividade de mecânico/garagista.
28. À data do sinistro, o proprietário do veículo “XS” tinha transferido para a Ré “C…” a responsabilidade civil automóvel pelos danos provocados a terceiros pelo referido veículo, por acordo de seguro titulado pela apólice nº ……., nos termos e condições vertidas no Doc.1 junto com a contestação daquela Ré que se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais.
29. Como consequência do embate, Autor ficou politraumatizado, tendo sofrido Traumatismo Crânio-Encefálico com perda dos sentidos, para o que também contribuiu a falta de uso do capacete de protecção, traumatismo ao nível da face, torax e escoriações nos membros.
30.Foi socorrido no local pela Cruz Vermelha … e transportado aos Serviços de Urgência (SU) do Hospital … (também designado como Centro Hospitalar …), em Penafiel.
31. De onde foi reencaminhado para o Hospital I…, no Porto.
32. Onde, depois de inúmeros exames, lhe foram detectados, para além domais, múltiplos focos de contusão hemorrágicos fronto-basais e temporo-polares bilaterais, tal como temporal posterior e occipital à direita, fractura longitudinal da mastoide direita com hemotimpano associado.
33. Ficou por isso internado naquele H. de I…, onde foi mantido sedado, em “coma induzido”, desde o dia do sinistro até ao dia 19.07.2014,
34. Com ventilação assistida mecanicamente até 20/7/2014.
35.Tendo tido alta clínica no dia 21/7/2014.
36. Mas onde teve de permanecer até à alta do serviço de Neurocirurgia em 25/7/2014.
37.Com retorno para consulta de ambulatório em 7/8/2014.
38. Em consequência do embate e das lesões sofridas, o Autor teve de regressar àquele Hospital em episódio de urgência logo a 31.07.2014, onde foi novamente assistido,
39.E onde, sempre pelos mesmos motivos, regressou ainda em novo episódio de urgência a 14-08-2014, onde foi outra vez assistido.
40.Recorreu ainda, sempre pelos mesmos motivos e em mais um episódio de urgência, ao SU do Centro Hospitalar …, Hospital …, em Penafiel, em 29.08.2014.
41. De onde voltou a ser reencaminhado para o Hospital I….
42. E desde então vem sendo sistematicamente acompanhado em consultas externas de Neurologia (com a Dra J…) e de Psiquiatria (Como Dr. K…) no Hospital … em Penafiel, e Oftalmologia no Hospital L….
43.A situação pós sinistro do Autor foi uma situação crítica do ponto de vista neurológico, tendo ficado com a sua vida em risco.
44.Depois da alta e durante 250 dias, o Autor ficou dependente de terceiros, começando por ser uma dependência quase total para passar a ser uma dependência parcial, até para as mais básicas tarefas da vida diária, desde o banho até vestir-se ou alimentar-se.
45. E, não mais voltou a ser a pessoa que era, activa, alegre, divertida, trabalhadora, que vivia com gosto uma vida cheia, rodeado da esposa, filhas e netos, bem como dos vizinhos e amigos.
46.Que confraternizava com a família e amigos com quem gostava de se reunir, apreciando passeios e festas.
47.Subsequente ao sinistro, como consequência do mesmo e da falta de uso do capacete de protecção, sobrevieram ao Autor as sequelas seguintes:
a) ao nível do crânio, défice cognitivo ligeiro a moderado/síndrome pós-comocional;
b) diminuição da acuidade visual bilateral com consequente hipovisão bilateral (OD 1/10 OE 1/10).
48. Tudo situações que diminuíram a qualidade de vida e a capacidade do Autor, provocando-lhe, como sequela, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 65 pontos, a implicar esforços acrescidos para as actividades gerais e para o trabalho em igual valor.
49. Fruto do acidente dos autos e dos danos neurológicos e do ouvido interno por si ali sofridos, o Autor viu diminuída a sua acuidade visual e perdeu o controlo dos movimentos mais finos (impedindo-o por exemplo de fazer a barba ou cortar as unhas).
50. Deixou de conseguir ler ou fazer cálculos aritméticos por mais simples que sejam.
51. Passou a temer andar pela estrada, principalmente pelo lugar onde o sinistro ocorreu.
52. Todas estas limitações e alterações abalaram psicologicamente o Autor, passando o mesmo a ser uma pessoa menos jovial, menos extrovertida, menos trabalhadora e não tão bem resolvido com a vida.
53.A consolidação médico-legal das lesões é fixável em 01-04-2015,tendo em conta: o tipo de lesões resultantes e o tipo de tratamentos efetuados.
54.O período de incapacidade absoluta coincide com o período em que esteve internado desde a data do embate e internamento até a data da alta hospitalar (de 09/07/2014 a 25/7/2014 - 17 dias).
55. O período de défice funcional incapacidade temporário parcial vai desde a data da alta hospitalar até a data da consulta médica de oftalmologia (de 26.07.2014 a 01.04.2015 – 250 dias).
56. O quantum doloris sofrido pelo Autor é de, pelo menos, grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente, em virtude do perigo de vida, estado de inconsciência com sedação e entubação e complicação infecciosa (pneumonia contraída durante o internamento).
57. Quanto ao prejuízo de afirmação pessoal, é fixável no grau 3 numa escala de cinco graus de gravidade crescente em virtude da hipovisão bilateral.
58.Apesar de reformado, o Autor trabalhava na agricultura, fazendo-o como passatempo em face do prazer que lhe proporcionava, mas também como forma de completar a economia familiar.
59. Fazia-o por conta própria, cultivando (com batatas, cebolas, couves, tronchudas, repolhos, alfaces, pepinos, tomates, abóboras, melões e todos os outros produtos que conseguia retirar da terra) num terreno de que é proprietário e num outro que lhe emprestam, com o que retirava mais do que o necessário para alimentar com aqueles géneros alimentícios toda a família, incluindo filhas, genros e netos, que assim não necessitavam de fazer essa despesa.
60. De tais actividades, tendo em conta as despesas que deixava de ter de fazer, o Autor obtinha um benefício médio por ano equivalente a um montante nunca inferior a € 1.000,00.
61. Benefício que, fruto das incapacidades resultantes do acidente dos autos, não mais logrará obter.
62. Muito embora o rebate profissional da incapacidade atribuída se quede pelos 65%, o facto é que fruto das suas limitações físicas e neurológicas não mais o A foi nem será capaz de efectuar os trabalhos que fazia, pelo que, a consequência prática no seu caso é a de uma incapacidade total para manter a actividade até então desenvolvida.
63. O autor nasceu a 19/05/1948.
64.No momento do sinistro, o Autor temeu pela sua vida.
65. Nos momentos subsequentes e apesar de ter perdido os sentidos, foi grande o seu estado de dor e sofrimento, o que determinou que tivesse sido sedado, ficando em coma induzido.
66. E assim permaneceu até ter deixado de ficar sedado.
67. Correu perigo de vida, em face do TCE sofrido.
68. Foi com angústia e sofrimento que, quando acordou tomou consciência que perdera parte da visão nos moldes supra descritos.
69. Durante os dias da sua incapacidade temporária total e depois parcial, foi com angustia e constrangimento que se via na quase completa e depois parcial dependência de suas filhas até para as tarefas mais simples, como para tomar banho vestir-se e comer.
70. Convivia com dores.
71. Sentiu vergonha em virtude de sofrer das limitações supra descritas.»
E não se provaram:
«1.Na altura do embate, o veículo ..-..-XS estivesse em movimento a ser conduzido por E….
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados, o velocípede seguisse a uma velocidade de cerca de 20 Kms/hora e pela hemifaixa de rodagem direita, atento o seu apurado sentido de marcha, próximo da berma desse mesmo lado.
3. O condutor do velocípede tivesse sido surpreendido com a inesperada e repentina abertura da “porta do condutor” do veículo ..-..-XS no preciso momento em que por ele passava.
4. A referida porta se tivesse aberto no momento em que o Autor passava de bicicleta, provocando o apurado embate.
5. A condutora do veículo ..-..-XS, completamente desatenta, não tivesse cuidado de verificar se ao abrir tal porta não estaria a por em risco os demais utentes da via e, in casu, o Autor, e bem assim que lhe tivesse barrado o caminho.
6. O veículo XS se encontrasse encostado ao muro existente no limite direito da berma, atento o sentido …/….
7. No momento em que a Ré E… se introduziu no interior do veículo XS, nos moldes dados como provados, tivesse deixado a porta do veículo entreaberta.
8. Ou que, quando abriu a porta para entrar, se tivesse descuidado e ativesse deixado totalmente aberta.
9. A referida porta nunca tivesse chegado a invadir a hemi-faixa direita da via, atento o sentido …/….
10. A Ré E… tivesse, inicialmente, julgado que o camião referido nos factos provados tivesse embatido no velocípede.
11. O autor tivesse ou pudesse ter visto que a porta do veículo se encontrava entreaberta.
12. Quando o velocípede (ultra) passou o veículo XS, a porta esquerda deste veículo já se encontrasse entreaberta.
13. O sinistro se tivesse dado por distracção do autor ou porque este se tivesse atrapalhado com a passagem do camião que o ultrapassou e tivesse sido por causa disso que o embate na porta se tivesse dado.
14. O Autor circulasse com o velocípede a invadir, pelo menos, parcialmente a berma.
15. A falta de uso de capacete tivesse sido a única causa das lesões sofridas pelo Autor na cabeça.
16. Na altura do embate, o veículo XS se encontrasse em movimento a ser conduzido pela E….
17. Em consequência do embate, o autor tivesse ficado com as seguintes sequelas:
a) múltiplas contusões cerebrais, hemorragia subaracnoideia e fractura mastoide direita;
b) Perturbação persistente de humor – perturbação funcional moderada, com uma IPP de 10 pontos.
c) Alterações de personalidade compatíveis transtorno pós traumático moderado.
18. Em consequência do embate, o autor tivesse ficado com dificuldades de equilíbrio que lhe dificultam o andar, e o fazem cair sem causa aparente a qualquer momento.
19. Tivesse perdido o sentido de orientação, perdendo-se frequentemente pela vizinhança.
20. Tivesse perdido a sua capacidade de se situar no tempo (horas do dia e dias da semana), e em avaliar o decurso do tempo.
21. Tivesse passado a efabular cenários e a encará-los como verdadeiros, passando a desconfiar de todos e de tudo.
22. Tivesse sofrido disfunções ao nível da capacidade sexual, com danos na sua auto-estima e na vida familiar.
23. O autor fique a tremer, a transpirar e visivelmente alterado sempre que passa pelo lugar onde o sinistre ocorreu.
24. Após o embate e por causa dele, o Autor tivesse passado a ser uma pessoa profundamente depressiva.
25. O Autor tivesse passado a dizer, frequentemente, que “se já não trabalha, não merecer sequer comer ou viver”.
26. Os produtos retirados da agricultura ainda sobrassem para dar aos amigos e vender a quem precisasse.
27. O Autor ajudasse terceiros, prestando serviços remunerados a amigos que lho solicitavam.
28. Na agricultura, o Autor retirasse um rendimento anual médio não inferior a € 7.500,00.
29. O Autor ainda hoje não se tenha conformado ainda hoje com as perdas que sofreu.
30. Foi e é com vergonha e humilhação que lida com a disfunção sexual de que ficou a padecer.
31. Tal como é vexado e humilhado que constata que muitas vezes não é capaz de regressar a casa ou que se esquece das horas ou até que incomoda os vizinhos com questões por si imaginadas mas sem fundamento real.
32. Continua a reviver a situação traumática decorrente do evento dos autos e as consequências do mesmo, mormente o seu encontro com a morte iminente, o que agrava a sua angustia, tristeza, revolta e ansiedade.
33.Tudo o que o deixa profundamente deprimido e com a sensação de que passou a ser um inútil que não merece aquilo que come, e com vontade de morrer.
34.Sempre em consequência do sinistro dos autos, o Autor continua a necessitar de tratamentos de psiquiatria e de neurologia que parecem não ter fim.
35. Além disso, toma diariamente medicação e necessita de acompanhamento medicamentoso permanente.
36. A necessidade das consultas referidas nos factos provados se irá prolongar ao longo de toda a vida do autor.
37.A sua situação de cegueira quase total e de desequilíbrio obrigam a uma assistência quase permanente de terceiro.
38. Com a perspectiva de se agravar no futuro e de se tornar premente a contratação de quem o acompanhe.».
*
A). Do mérito dos recursos.
A1). Da impugnação da matéria de facto.
Iniciaremos a análise pela impugnação apresentada pelo recorrente/Autor.
Assim:
Facto provado 5 - Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, quando o Autor seguia no velocípede melhor identificado em 2, no sentido …/…, e no momento em que o A. estava a (ultra)passar pelo ligeiro de passageiros melhor identificado na al. a) do mesmo nº 2, que ali estava parado na berma, deu-se o embate entre a “porta do condutor” do veículo ..-..-XS, a qual estava aberta com um ângulo de abertura que, em concreto, não foi possível apurar, e o velocípede, não tendo, de igual modo, sido possível apurar em que momento a abertura da porta foi realizada.
Factos não provados 2 a 5
Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados, o velocípede seguisse a uma velocidade de cerca de 20 Kms/hora e pela hemifaixa de rodagem direita, atento o seu apurado sentido de marcha, próximo da berma desse mesmo lado(2).
O condutor do velocípede tivesse sido surpreendido com a inesperada e repentina abertura da “porta do condutor” do veículo ..-..-XS no preciso momento em que por ele passava (3).
A referida porta se tivesse aberto no momento em que o Autor passava de bicicleta, provocando o apurado embate (4).
A condutora do veículo ..-..-XS, completamente desatenta, não tivesse cuidado de verificar se ao abrir tal porta não estaria a por em risco os demais utentes da via e, in casu, o Autor, e bem assim que lhe tivesse barrado o caminho (5).
O recorrente sustenta a sua discordância com base:
a).na participação de acidente de viação;
b).nas declarações do agente autuante prestadas em inquérito crime;
c).nas assentadas lavradas em audiência;
d). no relatório pericial junto aos autos pela Ré C… com a sua contestação;
e).no depoimento de parte do Autor;
f). nos depoimentos prestados pelas testemunhas M…, H…, O….
Ouvidos os depoimentos agora referidos (e outros, como infra se mencionará), pensamos que não há que alterar esta factualidade.
Quanto ao facto provado 5, a discordância deste recorrente/Autor prende-se com a parte final onde se menciona que se desconhece qual o ângulo de abertura da porta da viatura onde o mesmo recorrente foi embater tripulando o velocípede e quando é que a porta foi aberta.
No entanto, nenhuma da prova produzida nos autos permite concluir qual o referido ângulo nem se a porta foi aberta em momento próximo ou distante da passagem do recorrente/Autor (é inquestionável que a porta foi aberta pois a própria chamada E… menciona que o fez).
A participação do acidente no caso não tem a mínima potencialidade para dar como provada essas duas situações pois o agente H… não viu o acidente e «apenas» traduziu para escrito as declarações que obteve dos intervenientes.
Mesmo o depoimento deste agente em julgamento, em duas sessões, não permite atingir a prova da factualidade em causa. É certo que esta testemunha referiu que, quando chegou ao local, a porta estaria toda aberta (minuto 05.45) mas nessa altura já tinha ocorrido o embate na porta, podendo muito provavelmente, ter ficado mais aberta ou aberta na totalidade por causa desse embate (assim o referiu E…).
Quanto às declarações prestadas em processo-crime, em sede de inquérito (sem existência de contraditório como se denota da documentação junta em 24/06/2020, referência 6386461, documento 1, ao invés do que sucede na presente ação, assim só podendo ser apreciadas como um princípio de prova - artigo 421.º, n.º 1, do C. P. C. -), também não vemos que possam alterar a mencionada falta de prova inserida num facto provado (falta de apuramento do ângulo de abertura e do momento de abertura da porta). O mesmo agente refere que não se recorda se a porta aberta ocupava a faixa de rodagem.
O denominado «relatório pericial» junto pela Ré, seguradora «C…» mais não é que um documento particular, de investigação igualmente particular, realizado a pedido por parte de quem tem interesse no desfecho da demanda e que produz conclusões mas que não pode servir de base ao que terá sucedido antes do embate.
O depoimento de parte do recorrente/Autor é muito pouco esclarecedor, situação totalmente compreensível para quem sofre o acidente e ficou com lesões a nível neurológico, acabando por referiu que «lhe bateu qualquer coisa» e depois caiu, não se lembrando de mais nada.
Os depoimentos do agente O… (que elaborou um estudo do acidente que está junto ao referido processo de inquérito – referência 6386461 de 24/06/2020 -) são afirmações baseadas em desenhos e fotografias e na análise que o mesmo agente fez da situação mas não permitem concluir o que efetivamente se passou pois não viu o embate a ocorrer.
E, dessas medidas e desenhos, não se pode concluir quando é que a porta foi aberta e em que medida (ângulo) pois essa prova teria, por regra, de resultar de um qualquer tipo de visualização direta do evento.
Mesmo que se soubesse onde ocorreu o dano na porta do veículo ligeiro e quais os danos existentes no velocípede, não se conseguia concluir com segurança em que medida a porta estava aberta pois o embate podia ocorrer no fim da porta e ela estar parcialmente aberta ou ocorrer no início da mesma porta e estar totalmente aberta.
Acresce que não existe prova nos autos que permita concluir que danos teve a porta do veículo ligeiro pelo que não é possível atingir aquela conclusão.
M…, condutor de um veículo pesado que passou pelo recorrente/Autor antes deste embater na porta, para nós, não prestou um depoimento sereno, descomprometido, revelando preocupação em não se relacionar a sua passagem ao conduzir o camião com a queda em análise. Essa preocupação não só se revelou em mencionar que houve quem atirasse as culpas para ele (dono da oficina) como pela explicação de que ouviu uns gritos depois de passar e pelo retrovisor viu que havia um problema e por isso parou a cerca de quinhentos metros do local.
O tribunal recorrido explicou esta situação, reportando que não se pode esquecer que esta testemunha foi investigada como um possível causador do acidente, situação que também pode ter retirado a serenidade à testemunha.
Mas, em termos concretos, tendo por base o grau de credibilidade de pouco elevado que atribuímos à testemunha, também não se pode ter a segurança necessária de que a porta estava muito ou pouco aberta antes do embate pois esta testemunha não o confirmou - «porta ocupava parte da faixa mas não sabia se já estava aberta quando passou ou se foi aberta depois do acidente» referindo depois que não devia estar toda aberta quando passou pois, conforme o mandatário então inquiridor referiu em julgamento, se assim fosse, teria reparado; e depois acaba por mencionar que não tem a certeza se a porta ocupava 30-40 cm da faixa de rodagem, tendo a ideia que ocupava.
É um depoimento que não pode servir para concluir tal matéria como efetivamente o tribunal recorrido efetivamente não concluiu.
Por último, as mencionadas assentadas, que são efetuadas ao abrigo do artigo 463.º, nºs. 1 a 3, do C. P. C., teriam de se reportar a depoimentos da parte em que houvesse confissão, ou seja, quando o depoente reconhecesse a realidade de um facto que lhe fosse desfavorável e favorecesse a parte contrária – artigo 352.º, do C. C. -.
Ora, não vemos que declarar que o recorrente/Autor seguia no lado direito da estrada e perto da berma (chamada E…) ou que, nas palavras do recorrente/Autor, o veículo ligeiro estava estacionado na berma e que quando passou pelo mesmo sentiu que alguma coisa lhe bateu seja desfavorável para quem prestou tais depoimentos.
A circunstância de o velocípede seguir naquele lado da estrada e perto da berma não significa que isso desfavoreça a posição de E…; o que poderia desfavorecer é se admitisse que a porta por si aberta impedia a passagem do recorrente/Autor que seguia na faixa de rodagem; o seguir naquele local, sem mais, não é uma confissão.
E o veículo estar estacionado na berma também não é desfavorável para o Autor/recorrente, nem sequer para quem possa ter alguma responsabilidade por esse estacionamento pelo que também aqui a assentada não corresponde a uma confissão.
Mantém-se assim a redação do facto 5, incluindo a parte final, concretizadora, pela negativa, da parte inicial.
Facto provado 60.
De tais actividades, tendo em conta as despesas que deixava de ter de fazer, o Autor obtinha um benefício médio por ano equivalente a um montante nunca inferior a € 1.000,00.
Mesmo a prova que o recorrente indica como potenciadora da alteração deste facto, passando para um montante nunca inferior a 6.000 EUR – testemunha P…, filha do mesmo – não é suficiente para alterar o facto pois não é referido qualquer valor minimamente sustentado.
A testemunha não referiu esse valor, mencionando que, sem a produção de produtos hortícolas (cebolas, batatas, courgette, abóbora, feijão, couve-flor) e criação de galinhas há um gasto de cerca de 250-300 EUR/mês na aquisição de produtos, em relação a quatro agregados.
Mas esse valor não tem sustento documental pelo que teria de ser fixado um montante equitativamente tal como o fez o tribunal recorrido; e fixando-se em 1 000 EUR/ano a perda do benefício que se retirava daquela atividade, pensamos que não deve ser alterado. Alegadamente, como referiu a testemunha, parte da produção era dada a amigos e outra era congelada mas não há qualquer certeza da regularidade dessa atividade nem sequer que fossem em tão grande quantidade como referido.
Daí que, dessa atividade, pode fixar-se um valor minimamente seguro do que se poderia poupar com essa atividade a qual também tem custos que sempre teriam de ser deduzidos aos benefícios; esse valor de 1.000 EUR/ano considera-se assim adequado e equitativo.
Improcede assim esta argumentação.
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Os factos não provados 3 a 5 são a concretização da não prova de que como sucedeu o embate, conclusão com que concordamos pois não há qualquer testemunha que tenha visto o momento do embate, a vítima não se recorda sequer onde embateu e E… alega ter sido surpreendida com a visão do recorrente/Autor caído no chão ao pé de si.
Em relação ao croquis, o mesmo também não permite retirar uma conclusão segura sobre se a porta da viatura ligeira estava aberta de modo a invadir a hemifaixa de rodagem por onde seguia o recorrente/autor pois, estando a viatura estacionada a cerca de 70 cm da linha delimitadora da berma, pode admitir-se que uma porta parcialmente aberta não invade aquela hemifaixa.
Mesmo o estudo policial efetuado por O… no processo crime já mencionado não retira conclusões seguras pois, se por um lado, se afirma que se a porta estivesse aberta na totalidade teria 90 cm, assim invadindo a hemifaixa de rodagem em 20 cm, por outro (e bem) afirma igualmente que não se conseguiu apurar que a porta estivesse totalmente aberta.
Note-se que não consta nos autos qualquer referência técnica no sentido de que a porta do veículo ligeiro quando aberta na totalidade descreva um ângulo de 90º, podendo então contabilizar-se os indicados 20 cm de ocupação da faixa de rodagem (ângulo que foi o que o agente O… atendeu conforme consta no seu depoimento).
O facto não provado 2 também assim deve permanecer pois, contendo diversos aspetos factuais, nenhum se deve dar como provado atendendo ao seu significado, ou seja, o que esteve em causa foi dar como não provado determinada factualidade referente ao momento que antecede o embate e no seu decurso; daí que se mencione nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados.
E assim, efetivamente, inexiste prova que demonstre que:
. o velocípede seguisse a uma velocidade de cerca de 20 Kms/hora - não há qualquer dado objetivo ou até subjetivo que possa fazer alcançar tal conclusão;
. é certo que o recorrente/Autor, momentos antes do embate, teria de seguir pela hemifaixa de rodagem direita pois foi embater num veículo estacionado desse lado mas não se pode concluir que fosse sempre esse o seu sentido de marcha nem que seguisse próximo da berma desse mesmo lado. O depoimento de O…, única pessoa que terá visto o recorrente/Autor, além de não nos merecer elevada credibilidade, apenas poderia ser atendido na parte em que menciona que ultrapassou o velocípede em causa mas o que sucedeu depois dessa manobra não teve o mínimo esclarecimento.
Acresce que não está em causa saber nos autos se o recorrente/Autor seguia nesse lado da hemifaixa, o que está em causa é saber se o mesmo sempre permaneceu no interior da mesma ou se invadiu a berma.
Mantém-se assim esta factualidade como não provada, improcedendo a impugnação da matéria de facto em causa.
*
Impugnação da matéria de facto apresentada pelos recorrentes/chamados F…, Lda. e E….
Estão em causa os seguintes factos:
Factos provados 10, 13 e 14 e não provados 13, com o seguinte conteúdo:
Factos provados.
10). Deixou as chaves na recepção da oficina, indicando o local onde o veículo se encontrava estacionado e solicitando que, quando chegasse a sua vez para a inspecção técnica, o conduzissem para as instalações da oficina.
13). Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1, a Ré E…, gerente da sociedade F…, Lda., desde 15/08/09, e funcionária administrativa de facto desta, existindo entre ambas uma relação de facto de empregador e trabalhadora, no contexto do que a esposa do proprietário do veículo XS havia solicitado àquela sociedade e na posse das chaves que tinham sido entregues, dirigiu-se ao veículo XS, para levantar os documentos do veículo, que tinham relevância para os serviços que foram solicitados à F…, tendo-se introduzido no mesmo pela porta da frente do lado do condutor, que abriu.
14). A referida missão de ir buscar os documentos, foi confiada pela F… à E… por força da sua qualidade de trabalhadora de facto daquela.
Facto não provado 13:
O sinistro se tivesse dado por distracção do autor ou porque este se tivesse atrapalhado com a passagem do camião que o ultrapassou e tivesse sido por causa disso que o embate na porta se tivesse dado.
Os recorrentes sustentam a alteração desses factos com base nos depoimentos de E…, Q…, N… e registos clínicos do dia do acidente.
Vejamos então.
Quanto ao facto 10, pensamos que efetivamente deve o mesmo ser parcialmente alterado (apesar de corresponder ao alegado no artigo 11.º, da contestação pelos recorrentes que, ainda assim, têm legitimidade por serem partes vencidas).
Na verdade, seja pelo teor do depoimento da chamada E… seja pelo de Q… (que seria a proprietária da viatura e quem a entregou para efeitos de vir a ser inspeccionada), essa entrega ocorreu diretamente a E… quando esta chegou e não na receção da oficina que ainda estava fechada ao público. Mais referiram que a entrega ocorreu às 08.30 horas.
Não houve ainda menção por parte destas duas pessoas que a viatura fosse previamente conduzida para as instalações da oficina antes de ser efetuada a inspeção periódica, condução essa que podendo, muito naturalmente, pensar-se que iria suceder, o certo é que não há prova que tenha sido objeto de conversa nesse momento.
Assim, o facto provado 10 passa a ter a seguinte redação:
Entregou as chaves à chamada E… na via pública, indicando o local onde o veículo se encontrava estacionado de modo a que, como anteriormente combinado, F… procedesse às atividades referidas em 7.
E resulta não provado:
39). A entrega de chaves referida em 10) dos factos provados tenha ocorrido na receção da oficina e que tenha sido referido indicado à chamada E… que, quando chegasse a sua vez para a inspecção se faziam o favor de o reencaminhar para as instalações.
Factos provados 13 e 14.
Lendo estes factos, o que pensamos que poderá ser desde logo suscitado, salvo erro da nossa parte, é que E… não é «somente» gerente de «F…» mas antes sua sócia-gerente, conforme consta na competente escritura comercial junta como doc. 1 em 09/01/2018, com a contestação dos ora recorrentes. E é-o desde 25/08/2009, data do registo, por deliberação de 13/08/2009 (em conjunto com E1…).
Foi na qualidade de sócia-gerente que E… se introduziu na viatura e foi buscar os documentos que seriam necessários para a realização da inspeção periódica, sendo tudo o para além desta realidade consta no facto 13 desmentido por ter aquela qualidade (se é sócia-gerente não é funcionária, de facto ou de direito).
Pode depois, em sede de direito, apreciar se uma sócia-gerente pode ser entendida como uma comissária da empresa de que é sócia-gerente (como se fez na sentença recorrida) até por eventualmente ser representante da empresa que ajudava em concreto em atividades diárias da empresa, mas isso não pode determinar que se qualifique aquela pessoa como funcionária, de facto ou de direito.
Deste modo, o facto provado 13) passa a ter a seguinte redação:
Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1, a Ré E…, sócia-gerente da sociedade F…, Lda., desde 15/08/09, no contexto do que a esposa do proprietário do veículo XS havia solicitado àquela sociedade e na posse das chaves que tinham sido entregues, dirigiu-se ao veículo XS, para levantar os documentos do veículo, que tinham relevância para os serviços que foram solicitados, tendo-se introduzido no mesmo pela porta da frente do lado do condutor que previamente abriu.
E resulta não provado:
1.1). A interveniente E… fosse funcionária de F…, Lda.
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Facto provado 14.
Este facto é eliminado pois já resulta não provado que E… seja funcionária/trabalhadora de F…, Lda. e a missão em causa (buscar documentos a viatura) é levada a cabo por aquela como sócia-gerente e não por ser uma trabalhadora de facto.
Elimina-se igualmente parte do facto não provado 19 da seguinte forma:
Nas mencionadas circunstâncias de tempo e lugar, a Ré E… atuou como gerente da F…, ficando a redação nos seguintes termos:
A interveniente E… não tinha contrato de trabalho com F…, Lda..
*
Facto não provado 13.
Estão em causa as afirmações de que:
. o sinistro ocorreu por distração do Autor ou
. porque se atrapalhou com a passagem do camião que o ultrapassou e assim tenha embatido na porta do veículo estacionado.
Não há prova desta factualidade como já acima mencionamos, não se podendo assegurar que assim tenha ocorrido. A referência a atropelamento em sede de declarações numa ida a um Hospital é irrelevante em termos processuais pois não constitui um depoimento judicial nem sequer um depoimento escrito que possa ser valorado em tribunal (artigo 518.º, do C. P. C.). Pode servir para aferir da credibilidade de uma testemunha mas, além dessa questão de credibilidade não ser suscitada no recurso, a menção a atropelamento não tem significado nos autos pois, em todas as versões constantes dos autos, não há referência a qualquer atropelamento.
Por fim, a circunstância de o agente autuante ter referido que o Autor lhe mencionou que se teve de desviar para a direita por causa da passagem do camião, além de não ser suficiente para concluir que o embate foi por causa desse desvio, não pode ser atendido atentas as dúvidas suscitadas em julgamento pelo próprio Autor quanto ao que efetivamente sucedeu.
Mantém-se assim a redação deste facto não provado 13.
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A2). Da apreciação jurídica.
Face ao que resulta apurado, verifica-se que ocorreu um embate entre o velocípede sem motor conduzido pelo recorrente/Autor e o veículo ligeiro de passageiros, pertencente ao interveniente D….
O embate ocorre numa altura em que a viatura estava totalmente estacionada na berma de uma estrada e o velocípede tripulado pelo Autor/recorrente seguia no mesmo lado da estrada em que tal veículo estava estacionado, tendo este uma porta aberta.
Mais se apura que o veículo tinha sido estacionado pela mulher do interveniente D…, tendo aquela entregue as chaves da viatura à interveniente E… no sentido de ser realizada uma inspecção técnica pela também interveniente F…, Lda. e, em seguida, a levar a inspeção periódica obrigatória (I. P. O.), tudo como anteriormente combinado.
A referida E…, sócia-gerente da referida oficina, antes do embate, dirigiu-se à viatura para ir buscar uns documentos tendo para o efeito aberto a porta do lado do condutor, entrado na viatura e depois o Autor vem embater nessa porta que estava aberta.
Desconhece-se o motivo porque o Autor/recorrente embate na porta e se esta invadia a hemifaixa de rodagem onde o mesmo seguia.
A2.1). Da responsabilidade pela indemnização dos danos sofridos pelo Autor.
a). Da responsabilidade pela ocorrência do embate.
Como se denota dos factos e foi mencionado pelo tribunal recorrido, pensamos que não é possível concluir que o embate se deve a uma atuação dolosa ou negligente de alguns dos intervenientes.
Desconhecendo-se o motivo porque o Autor vai embater na porta do veículo estacionado, não se lhe pode imputar uma condução descuidada pois não existe sequer a prova de que tenha praticado algum ato desconforme as regras de condução estradal ou qualquer regra de cuidado.
E estando o veículo totalmente estacionado na berma (estacionamento permitido pelo artigo 48.º, n.º 3, do C. E – redação da Lei n.º 72/2013, de 03/09) e desconhecendo-se se a porta foi aberta de modo a invadir a linha de circulação do velocípede na sua hemifaixa de rodagem, também não se consegue concluir pela existência de algum tipo de atuação pouco cuidada por parte de quem abriu a porta.
Assim, não há prova nos autos de que o Autor/recorrente ou E…/interveniente/recorrente tenham praticado um ato ilícito nem que haja descuido nessa atuação, o que significa que não se preenchem requisitos da ilicitude, nexo de causalidade e culpa previstos para a responsabilidade extracontratual conforme artigo 483.º, n.º 1, do C. C...
Afastada essa possibilidade, importa então analisar se existe algum tipo de responsabilidade pela ocorrência do embate a nível de risco, ou seja, se pela circunstância de, no caso, dois veículos se encontrarem na via pública, esse facto é de tal modo potenciador da criação de um evento lesivo que, quem beneficia das vantagens dessa circulação, deve igualmente suportar os danos que daí derivam.
Essa responsabilidade, no que aqui releva, está prevista no artigo 503.º, n.º 1, do C. C. que estatui que «aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.».
O tribunal recorrido e os recorrentes/recorridos analisaram a questão de se saber quando se tem a direção efetiva de uma viatura pelo que, sem haver necessidade de prolongados considerados sobre a matéria face à clara perceção de todos o que está em causa, diremos que tem a direção efetiva toda aquela pessoa, singular ou coletiva, que tem uma real possibilidade de determinar o modo como a viatura é dirigida, assim controlando o seu funcionamento.
O proprietário da viatura que a conduz tem esse controlo; mas o proprietário que a empresta a um terceiro ou a entrega a um terceiro para a realização de algum tipo de intervenção, já não o tem.
É, para nós, o que sucede na presente situação em que o dono da viatura (por si ou através de alguém) a entrega à interveniente F…, Lda. para esta realizar uma intervenção na oficina (vistoria ao veículo certamente para aquilatar do seu correto funcionamento) e posterior sujeição da mesma viatura a uma inspeção periódica obrigatória.
A partir do momento em que o proprietário entrega a viatura à oficina, do que é (e in casu verificado) pressuposto a entrega da chave da mesma, aquele deixa de ter qualquer poder real sobre esse veículo.
Tomando como base a factualidade dos autos, tendo a viatura sido estacionada por uma pessoa (cônjuge do indicado proprietário, desconhecendo-se o regime de bens do respetivo casamento) que entregou as chaves à legal representante da oficina para efetuar aquelas duas atividades e não havendo qualquer outro tipo de facto de onde se possa concluir que o proprietário teve algum tipo de decisão sobre quer algum outro tipo de movimento do veículo após estacionado, a direção efetiva passou a estar, a partir da entrega da chave, a cargo da mesma oficina pois aí passa a ter o total controlo sobre a viatura.
E essa direção efetiva podia passar por se decidir manter a viatura no mesmo local onde tinha sido estacionada por quem a aí deixou, mudá-la de sítio (para o interior da oficina, por exemplo), abri-la e/ou conduzi-la para o centro onde se realizaria a I. P. O..
Era a oficina que tinha o total controlo sobre a viatura, decidindo o que podia fazer quanto à sua movimentação.
Quem recebeu a viatura foi a própria oficina, na pessoa da sua legal representante.
E, sendo sócia-gerente, se porventura numa visão mais purista dessa qualidade se poderia afirmar que, assim, era a própria empresa si quem atuava, através da legal representante, não sendo esta comissária[1], pensamos que essa qualidade não obsta a que possa existir uma relação de comitente-comissário.
Basta atentarna função de um sócio-gerente que gere a empresa por conta destaem que «distinta da subordinação jurídico-laboral que permite distinguir o contrato de trabalho subordinado de outras figuras afins, tais como o contrato de prestação de serviço, de mandato, de agência, etc.»,o que o «artº 500º, nº 3 do Código Civil exige é a condução por conta de outrem e, o sócio-gerente que conduz a viatura empresarial, numa actividade de distribuição de produtos da empresa que gere, desempenha tal actividade por conta de tal empresa.» - Ac. S. T. J. de 05/07/2012 citado na sentença recorrida -.
Assim, não vemos que haja que distinguir entre a condução efetuada por um funcionário de uma empresa e um sócio gerente para se poder concluir que existe uma relação de comissão pois em ambas as situações há sempre a condução de uma viatura por conta da empresa.
Deste modo, no caso concreto, a empresa «F…, Lda.», se ocorresse uma condução da viatura automóvel por parte da sua sócia-gerente, esta fá-lo-ia numa relação de comissária-comitente em relação à mesma empresa.
Para nós, a circunstância de ainda não se ter iniciado o horário laboral da empresa é irrelevante pois:
. a empresa, através da atuação sua legal representante, aceitou a entrega, recebendo a chave da viatura pelo que, a partir desse momento, passou a deter o controlo sobre a mesma, aguardando pela abertura das instalações ou abrindo-as a própria representante mas já com a incumbência de controlar a circulação da viatura;
. se assim não quisesse assumir, bastaria não ter aceitado a entrega da chave, determinando que só podia ocorrer quando se iniciasse o período de laboração da empresa, algo de que não há notícia que sequer tenha sido colocado como hipótese.
Pensamos que igual raciocínio se deve adotar quanto à circunstância de a entrega da chave ter ocorrido na via pública e não nas instalações da oficina pois a própria oficina, na pessoa da sua legal representante, aceitou que a entrega ocorresse fora das instalações, ficando então «responsável» pela viatura, sendo essa assunção o que releva para se aferir quem tinha a direção efetiva da viatura e não onde ocorreu.
Se a interveniente F… não quisesse assumir essa responsabilidade fora das suas instalações, bastar-lhe-ia igualmente ter comunicado esse circunstancialismo ao cliente, o que também não consta nos factos em análise.
Assim, concluímos que quem detinha a direção da viatura ligeira de passageiros era a interveniente F…, Lda..
Ao contrário do doutamente mencionado na sentença recorrida, pensamos que não está em causa a presunção de culpa prevista no artigo 503.º, n.º 3, do C. C. pois a viatura não estava a ser conduzida por E… que «apenas» abriu a porta para ir buscar uns documentos, não praticando qualquer ato de condução, mesmo que inicial.
Essa presunção só se aplica a quem conduz a viatura e não a quem entra na mesma e não pratica qualquer ato de condução.
Definindo-se assim que uma eventual responsabilidade pelos danos advindos ao Autor/recorrente só pode ter como base o risco de circulação, importa aferir em concreto se assim é e, na afirmativa, em que medida.
A especialidade do caso em análise é que uma viatura (automóvel) está imobilizada, ao que se apura, sem violar qualquer regra de estacionamento e a outra (velocípede) circulava, sendo esta última que vai embater naquela.
Se o artigo 503.º, n.º 1, do C. C. determina que mesmo uma viatura estacionada cria risco, à partida pensa-se em situações em que o risco da viatura criar danos existe apesar de imobilizada (incêndio que deflagra por mau funcionamento de sistema elétrico, pneu defeituoso de veículo estacionado que rebenta à passagem de um peão, …).
Mas se a viatura está corretamente estacionada e um outro veículo (ou um peão) vai embater na mesma, é mais complexo concluir que o risco da circulação do veículo contribuiu para o embate pois à partida deve existir uma causa alheia ao veículo para que o embate tenha ocorrido - distração do condutor do veículo que lhe vai embater, perda de controlo dessa viatura que embate por excesso de velocidade ou causa fortuita, avaria dos travões, desatenção do peão, …-.
No caso concreto, o embate do Autor enquanto condutor de um velocípede ocorre na porta do lado do condutor que estava aberta enquanto a sócia-gerente da oficina estava no seu interior a procurar documentos. Ora, não se provando qualquer facto que possa fazer imputar sobre qualquer dos intervenientes não só uma atuação culposa como já referimos mas também qualquer causa para que o embate possa ter ocorrido, pensamos ainda assim que, com a abertura de porta, houve a criação de um risco de embate por parte do veículo, mesmo estacionado.
Um ciclista deverá conduzir o velocípede pelo lado da via de trânsito, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes – artigo 90.º, n.º 3, do C. E. (redação dada pela indicada Lei n.º 72/2013, de 03/09 – C. E./2014 -) -.
No que percebemos desta norma, o ciclista deve conduzir o velocípede na hemifaixa onde circula mantendo uma distância de segurança da berma de modo a que possa conseguir evitar algum tipo de constrangimento causado por um obstáculo que surja perto da berma ou na própria berma. Por exemplo, é sabido que junto dos passeios ou das bermas existem grelhas de escoamento de água que as quais, para uma bicicleta, podem ser sinónimo de muito perigo por a roda poder aí ficar presa.
Ou ainda porque junto das bermas ou passeios é natural que se abram portas de veículos assim limitando a largura da hemifaixa por onde se circula.
Daí que o ciclista deva circular afastado da berma ou passeio por forma a evitar esse tipo de acidentes de modo a que, mesmo que possa surgir algum obstáculo, consiga evitá-lo e, ainda assim, não invada a outra hemifaixa de rodagem.
Antes do embate, o Autor/recorrente objetivamente não terá cumprido esta regra pois vai embater na porta de veículo totalmente estacionado na berma, desconhecendo-se o motivo porque tal sucedeu.
Por outro lado, o estacionamento na berma é permitido face ao já mencionado no artigo 48.º, n.º 3, do C. E./2014, desconhecendo-se se a abertura da porta invadiu a hemifaixa de rodagem onde seguia o Autor/recorrente.
O risco criado por parte do veículo estacionado resulta unicamente da abertura de uma porta, a qual é parte integrante da viatura e que, no caso, desconhecendo-se se houve negligência na sua abertura, acaba por ser uma situação idêntica a se ter aberto uma porta sem intervenção humana.
O risco de circulação do velocípede já nasce de uma efetiva circulação e, pelo menos momentaneamente, muito próximo da berma, pelo que se entende que o risco em causa deve ser colocado com maior peso no velocípede do que no veículo estacionado que, por ter a porta aberta, é que pode ter criado esse incómodo na circulação.
Acresce ainda ao risco de circulação do velocípede poder criar danos ao próprio condutor a circunstância deste seguir sem uma proteção na sua cabeça (capacete) apesar de legalmente não estar obrigado a fazê-lo. É, para nós, uma regra de cuidado que um ciclista deve observar pois sabe-se que uma queda com embate na cabeça pode causar danos graves, no caso, atenta a idade do ciclista, mais se justificava esse cuidado; no entanto, não sendo uma obrigação legal, esse aumento de risco tem de ser ponderado em termos mínimos.
Distribui-se assim o risco atribuindo-se 65% ao velocípede (com o aumento de 10% por não usar proteção na cabeça) e 35% ao veículo automóvel – artigo 506.º, n.º 1, do C. C. -.
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Prosseguindo, como garagista que é, a interveniente F…, Lda. tinha de ter celebrado o competente contrato de seguro – artigo 6.º, n.º 3, da Lei do Seguro Obrigatório Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/98 - quefaz impender sobre si a obrigação de segurar («estão ainda obrigados os garagistas bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.»).
A referida interveniente garagista não celebrou esse contrato; o tribunal recorrido entendeu que seria assim o Fundo de Garantia Automóvel quem tinha de assumir o ressarcimento de danos causados pelo risco. Vejamos então.
Nos termos do artigo 8.º do já revogado Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12, o contrato de seguro garantia a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo.
No atual artigo 15.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, estabelece-se igual conceito no sentido de que o contrato também garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo.
No anterior Decreto-Lei 522/85, de 31/12, em caso de pluralidade de contratos de seguro, o artigo 15.º determinava que em primeiro lugar respondia o seguro do garagista, na sua falta o do automobilista e, por fim, o de outra pessoa que não o proprietário, usufrutuário, adquirente ou locatário.
Atualmente, o artigo 23.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08 determina que nessa situação de pluralidade de seguros, responde em primeiro lugar o seguro desportivo, depois o do garagista, em terceiro lugar o seguro de automobilista e, em último lugar, o seguro do proprietário do veículo.
Temos então que, tanto no anterior regime do seguro obrigatório como no vigente (este aplicável à situação em análise), o contrato de seguro celebrado pelo proprietário abrange o que suceda quando o veículo se encontra nas mãos de um legítimo detentor.
A questão a resolver é apreciar se, quando é um terceiro, que não o proprietário, que tem a direção efetiva da viatura mas não celebrou o competente seguro, deve ser o seguro celebrado por aquele (proprietário) a responder pelos danos causados.
Ou, no caso concreto, se o garagista tem a direção efetiva da viatura mas não celebrou o respetivo contrato de seguro, se o seguro do veículo celebrado pelo dono deve ser chamado a responder ou, pelo contrário, inexistindo contrato de seguro celebrado pelo garagista, se deve ser chamado o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, b), do Decreto-Lei n.º 522/85 ou 47.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007.
Pensamos que, ao abrigo do anterior regime de seguro obrigatório, se vinha entendendo maioritariamente que, não tendo o proprietário do veículo a direção efetiva da viatura quando a entregava ao garagista, não podia estender-se a proteção do seguro celebrado por si, proprietário, à atuação do garagista. Só se a legítima detenção do veículo por outra pessoa que não o proprietário não afastasse a conclusão que a direção efetiva permanecia na pessoa do proprietário é que se podia entender que o seguro celebrado por este ainda abrangia essa detenção – veja-se Ac. da R. P. de 03/11/2009, www.dgsi. -.
Já concluímos que ao entregar a viatura ao garagista, o proprietário perdeu a sua direção efetiva; e, ao abrigo do anterior regime do seguro obrigatório, não tendo o mesmo garagista celebrado o contrato de seguro e não fixando a lei, no caso dessa inexistência, qualquer subsidiariedade no contrato de seguro do proprietário, restaria demandar o Fundo de Garantia Automóvel.
Mas no atual regime do seguro obrigatório, sendo certo que o proprietário continua a não deter a direção efetiva da viatura quando a entrega, como no caso dos autos, a um garagista, também é certo que, na falta deste contrato de seguro, já é chamada a intervir, para ressarcir o lesado, a seguradora do contrato de seguro celebrado pelo proprietário.
Houve esta alteração de subsidiariedade que faz com que, não existindo seguro de garagista nem de automobilista, responde o seguro do proprietário do veículo.
Daí que esta seguradora tem direito de regresso sobre o garagista – artigo 27.º, n.º, 1, f), do citado Decreto-Lei n.º 291/2007- «satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o incumpridor da obrigação prevista no n.º 3 do artigo 6.º».
E só se não existir este seguro obrigatório celebrado pelo proprietário, é que tem de ser demandado o Fundo de Garantia Automóvel.
Assim se menciona no citado Acórdão da R. P. de 03/11/2009 - «É certo que a nova legislação sobre seguro automóvel (D.-L. nº 291/2007 de 21 de Agosto), (…) presume-se que a seguradora do proprietário ou as demais referidas no actual artº 6º (antigo artº 2º D.-L. nº 522/85) possam ver satisfeito um direito de regresso contra o responsável pelo acidente (garagista) que tenha incumprido a obrigação de seguro de garagista – artº 27º nº1 al.f) D.-L. nº 291/2007.
Por sua vez, a interpretação que entendemos mais arrojada e referida no atrás citado Ac. R.C. 29/11/05 deixa de poder valer, precisamente porque se acrescentou que, no caso da existência de pluralidade de seguros, o seguro do proprietário também responde subsidiariamente – artº 23º, paralelo ao artº 15º do anterior regime do seguro obrigatório.
Esta é porém uma matéria que não influi no caso concreto (…). Apenas acrescentamos que não vemos outro objectivo na alteração da norma que não o que derive da insistência das sucessivas Directivas do Conselho e do Parlamento e do Conselho da União Europeia no aprimoramento da aproximação das seguradoras aos lesados (seguradoras responsáveis que devem ser facilmente identificáveis pelos lesados), favorecendo o pagamento tanto quanto possível célere das indemnizações, as quais deverão aproximativamente conter valores adequados ou justos.».
Também no Ac. do S. T. J. de 05/11/2009, www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, se aborda este novo regime.
Na realidade, este Acórdão relatando uma situação em que já existia caso julgado sobre a decisão condenatória da seguradora celebrado pelo proprietário do veículo em assumir a responsabilidade por danos causados quando o veículo estava na direção efetiva da viatura e se indagava se aquela seguradora tinha direito de regresso sobre o garagista, menciona-se que «…esta questão de direito mostra-se actualmente resolvida por via legislativa, tendo o DL 291/07 optado por perspectivar o direito ao reembolso da seguradora do proprietário do veículo sobre a empresa de reparação de veículos que omitiu a feitura do seguro obrigatório especial da sua responsabilidade civil como mais uma das situações, tipicamente previstas, que se consubstanciam na figura do «direito de regresso» da seguradora (art.27º, nº1, alínea f);»
Ou seja, por força da alteração do sucessivo encadeamento de responsabilidades em que surge, em último lugar, o seguro celebrado pelo proprietário, se esta seguradora assumir a qualidade de garante da indemnização perante o lesado, tem direito de regresso sobre o efetivo responsável, no caso o garagista.
Pensamos então que, atualmente, se o garagista não tiver celebrado contrato de seguro, deve ser chamada à responsabilidade a seguradora do contrato seguro celebrado pelo, no caso, proprietário.
Em sentido contrário, já com análise deste novo regime, temos o Ac. da R. G. de 07/01/2016, www.dgsi.pt onde se menciona que:
. «É certo que o FGA tem uma intervenção residual - o próprio preâmbulo do referido Dec-Lei 291/07, considera que o conjunto das alterações operadas «…reforça a conveniência de acentuar o carácter do Fundo como de último recurso para o ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, concentrando-se no seu fim identitário, por forma a libertá-lo para o acréscimo de tarefas»-, mas isso não derroga os princípios gerais da responsabilidade civil, chamando a seguradora do dono do veículo a reparar os danos, não tendo este a direcção efectiva do veículo, e o direito de regresso previsto no artigo 27º, nº1, alínea f), não é a nosso ver argumento decisivo, fazendo parte do conjunto de alterações introduzidas no SORCA, na transposição da directiva nº. 2005/14/CE, com vista a tornar efectiva e célere a reparação dos danos sofridos pelos lesados, pondo-se assim termo a dúvidas que o anterior diploma suscitava na sua aplicação prática (DL 522/85)» - nosso sublinhado -.
Como se denota, a nossa visão é outra pois outra foi igualmente a visão do legislador: antes de se recorrer ao Fundo de Garantia Automóvel, em última instância, para se indemnizar lesados, como consta do preâmbulo da atual Lei de Seguro Obrigatório[2], deve onerar-se primeiro (no que aqui releva) a seguradora do garagista e depois a do proprietário (em último lugar) e só se por esta cadeia não se conseguir proteger o lesado é que este tem de recorrer ao Fundo de Garantia Automóvel.
Respondendo a seguradora do proprietário do veículo, ao exercer o seu direito de regresso sobre o garagista, em última análise, a responsabilidade pelo acidente passa a ser de quem causou o dano, assim se cumprindo os princípios da responsabilidade civil.
Concluímos então que pelos danos em causa deve ser responsabilizada a Ré C… …» como seguradora do veículo através de contrato celebrado pelo proprietário, devendo o Fundo de Garantia Automóvel e intervenientes F…, Lda. e E… serem absolvidos do pedido.
*
Dos montantes indemnizatórios.
Em primeiro lugar, está em causa a apreciação do recurso subordinado apresentado pelo Autor que questiona duas parcelas da indemnização:
. valor fixado a título de danos patrimoniais tendo por base não só a pretendida alteração de factos provados quanto aos seus rendimentos (com indemnização então a ser fixada em 67.500 EUR) mas também, caso não se alicerce o cálculo em tal valor, na diferente ponderação dos valores a inserir em fórmula matemática (devendo a indemnização ser contabilizada em 50.000 EUR).
. quantum dos danos não patrimoniais.
Vejamos então.
. Danos patrimoniais.
O tribunal recorrido ficou duas parcelas de indemnização, a saber:
. perda de rendimento sofrido pelo recorrente/Autor desde a data do acidente até à data da consolidação médico-legal (01/04/2015), num totalde 267 dias- 1005,49 EUR (267 dias x 1000 EUR: 365 dias).
Este dano é claramente um dano patrimonial na vertente de lucro cessante e sobre ele não foi colocada qualquer objeção.
. perda total de capacidade para a sua atividade profissional de agricultura, com fixação de 4.000 EUR de indemnização por estar em causa um lesado de sessenta e seis anos, com vida profissional até aos setenta anos e rendimentos anuais de pelo menos 1.000 EUR/ano.
Nesta última parcela, pensamos que é relevante mencionar que o que foi determinado foi ainda a atribuição de uma indemnização por um lucro cessante pelo valor que o Autor deixou de receber até poder exercer a sua atividade.
Na verdade, mencionando-se que o Autor ficou totalmente incapaz de exercer aquela atividade de onde retirava rendimentos, que se contabilizavam em 1.000 EUR anuais e que se devia atender essa perda até ao fim da atividade profissional fixada nos setenta anos, está a concluir-se que o Autor deixou de auferir, a título de lucro cessante futuro, aquela quantia de 4.000 EUR.
Não se está a analisar que, por força de um défice funcional permanente de 65 pontos, que implica esforço acrescido para as atividades gerais e para o trabalho em igual valor, o Autor sofreu um dano no seu corpo com que viverá até ao fim da sua vida e que deve ser indemnizado até esse previsível momento (tendo por base a esperança de vida) e que, à falta de outros elementos, tem como base o seu rendimento anual.
Ou seja, este dano biológico não foi alvo de compensação na decisão proferida pelo tribunal pois, para além de perder aquele rendimento de quatro anos (4.000 EUR), o Autor tem ainda uma lesão que o afeta enquanto pessoa e que por isso é indemnizável.
Assim, é necessário aferir em termos equitativos qual pode ser a indemnização justa a atribuir a uma pessoa que tinha sessenta e seis anos de idade quando sofre o acidente e se vê diminuída em 65 pontos dos 100 que são o total da sua funcionalidade.
Atualmente, a esperança média de vida está fixada em cerca de setenta e oito anos para o sexo masculino pelo que, tendo nascido em 1948, já tendo certamente ultrapassado a esperança média de vida para quem nasceu nesse ano (para quem nasce na década de 1960 tinha uma esperança média de vida de sessenta anos), mas atendendo a que pode beneficiar dos cuidados que a medicina atualmente proporciona e não sendo conhecida qualquer doença ao mesmo recorrente, pensamos que se pode fixar como tendo a possibilidade de viver até perfazer os indicados setenta e oito anos.
E, como o único rendimento que está provado que o recorrente auferia eram os 1.000 EUR/ano que se referiu (não tendo sido alegado qualquer outro incluindo a título de reforma), temos que, em doze anos, até perfazer setenta e oito anos, iria auferir 12.000 EUR.
Sofrendo uma diminuição na sua capacidade de 65 pontos, em termos aritméticos, essa redução significava patrimonialmente 7.800 EUR.
Ora, ponderando que já foi atribuída uma compensação pela perda total de rendimentos até aos setenta anos (4.000 EUR), em termos estritamente de capacidade de ganho estariam em causa 5.200 EUR (1.000 EUR x 8 anos x 65%).
Atendendo que o Autor recebe esta compensação de uma só vez mas que se trata de um valor muito baixo, bastante inferior à retribuição mínima mensal de um trabalhador que tivesse um acidente em 2014, sem qualquer perspetiva concreta e provada de, no futuro, vir a auferir qualquer rendimento laboral, e que ainda se tem de ponderar a vertente pessoal do dano de que padece e impedirá de exercer outras atividades, remuneradas ou não, sem esforço, pensamos que se deve fixar em 5.000 EUR a indemnização por este dano biológico.
Assim, o Autor, em termos genéricos, tem direito a receber aqueles valores patrimoniais de 1005,49 EUR, 4 000 EUR a que acrescem os agora referidos 5.000 EUR.
. Danos não patrimoniais.
Ao Autor/recorrente foram fixados a título de danos não patrimoniais a quantia de 40.000, pugnando que se fixe em 70.000 EUR.
Em sede de acidentes de viação, é pacífico que a sua fixação, sendo equitativa, atenderá a diversos fatores como:
. quantum doloris, prejuízo estético, prejuízo de afirmação pessoal (alegria de viver), desgosto do lesado de se ver na situação em que se encontra, clausura hospitalar (Ac. S. T. J. de 04/05/2010) e, além destes, danos resultantes de desvalorização, deformidades, angústia acerca da incerteza e futuro da situação, a existência e grau de incapacidade sofridos, restrições pessoais e sociais decorrentes das lesões (Ac. R. E. de 11/06/2015, ambos em www.dgsi.pt).
Ponderando estes fatores e outros que se possam considerar relevantes no caso e atendendo à jurisprudência em casos relativamente semelhantes (artigo 8.º, n.º 3, do C. C.).
Temos então que o Autor/recorrente:
. ficou politraumatizado ao nível da face, torax e escoriações nos membros;
. sofreu múltiplos focos de contusão hemorrágicos fronto-basais e temporo-polares bilaterais;
. esteve internado dezassete dias, ficando em coma induzido entre 09/07 e 19/07 de 2014, com ventilação assistida mecanicamente até 20/07/2014;
. teve de regressar ao Hospital em episódios de urgência em 31/07/2014, 14/08/2014, 29/08/2014;
. vem sendo acompanhado em consultas externas de neurologia, psiquiatria;
. teve a vida em risco;
. depois da alta, e durante duzentos e cinquenta dias, ficou dependente de terceiros, começando por ser uma dependência quase total para passar a ser uma dependência parcial, até para as mais básicas tarefas da vida diária, desde o banho até vestir-se ou alimentar-se;
. não mais voltou a ser ativo, alegre, divertida, trabalhador, a viver com gosto;
.o défice funcional de que padece deriva na esmagadora contabilização da incapacidade de visão, perdendo o controlo dos movimentos mais finos;
. deixou de conseguir ler ou fazer cálculos aritméticos por mais simples que sejam;
. passou a temer andar pela estrada, principalmente pelo lugar onde o sinistro ocorreu;
. sofreu um quantum doloris degrau 4 numa escala crescente de sete;
. padece de um prejuízo de afirmação pessoal no grau 3 numa escala crescente de cinco;
. no momento do sinistro, temeu pela sua vida.
. sentiu vergonha em virtude de sofrer das indicadas limitações.
Em termos jurisprudenciais, procurando alguns casos com parciais semelhanças (todos em www.dgsi.pt):
. Ac. S. T. J. de 29/10/2019, défice funcional de 16 pontos, lesado com 34 anos, quantum doloris de grau 4, dano estético de grau 3, com depressão – 30.000 EUR;
. Ac. R. C. de 21/01/2020, défice funcional de 7 pontos, lesado com 34 anos, dano estético de grau 2 – 15.000 EUR;
. Ac. R. P. de 28/04/2020, défice funcional de 24 pontos, lesado com 29 anos, quantum doloris de grau 4, dano estético de grau 3 – 50,000 EUR;
. Ac. R. C. de 09/01/2017, défice funcional de 35 pontos, lesado com 41 anos, quantum doloris de grau 6, dano estético de grau 5 – 40,000 EUR;
. Ac. S. T. J. de 26/01/2016, défice funcional de 40 pontos, lesado com 20 anos, quantum doloris de grau 5, dano estético de grau 4 – 45,000 EUR;
. Ac. S. T. J. de 17/12/2019, défice funcional de 4 pontos, lesado com 60 anos, quantum doloris de grau 4 – 15,000 EUR;
. Ac. S. T. J. de 07/09/2020,défice funcional de 67 pontos, lesado com 34 anos, quantum doloris de grau 6, dano estético de grau 5 – 60,000 EUR -.
Assim, se por um lado se tem um défice funcional permanente elevado e que afeta a visão com elevada limitação da vida diária, com igualmente elevada necessidade de adaptação a essa nova realidade, tem-se a idade do lesado que é superior à de um jovem, sendo que este pode ver frustrada a longa vida com a qualidade que legitimamente esperava.
No entanto, esse défice afetou bastante o Autor em concreto pois era uma pessoa ativa e que nutria gosto pela vida que ainda podia esperar usufruir com tal qualidade por mais de uma década.
As dores que sofreu foram bastante relevantes e o sentimento não só de eventual perda de vida como de perspetiva de mudança radical no futuro é igualmente de ponderar com relevo.
Daí que, podendo considerar-se ajustada a quantia fixada pelo tribunal recorrido, na nossa sensibilidade pensamos que o valor de 46,000 EUR será porventura mais adequado para este tipo de danos.
Fixa-se assim em 46,000 EUR a compensação por danos não patrimoniais, actualizada à data da prolação da sentença em primeira instância.
*
A3). Da repartição do risco pelos valores indemnizatórios/compensatórios.
Aqui chegados, determinados os valores a que o Autor/recorrente tem direito e tendo-se concluído que a responsabilidade pela ocorrência do acidente se devia ao risco de circulação do velocípede conduzido pelo Autor e pela direção efetiva do veículo ligeiro, importa retirar a consequência não só do pedido inicial do Autor/recorrente (condenação da seguradora do veículo por contrato celebrado pelo proprietário) como da procedência do recurso dos intervenientes garagista e sua sócia-gerente (F…, Lda. e E…, respetivamente) e do Fundo de Garantia Automóvel que conduz à respetiva absolvição.
O Autor pretende, na petição inicial, a condenação da Ré «C… …» ainda que por outro motivo jurídico (o proprietário ainda detinha adireção efetiva do veículo); e no recurso ainda pugna, no seguimento do que alegou na petição inicial, a condenação dessa seguradora, ainda que com outro enfoque jurídico (condenação solidária).
Mas, concluindo-se que só essa seguradora tem de responder, tem de se prosseguir na análise da pretensão na parte em que o tribunal recorrido concluiu que não era necessária (por entender serem outros os responsáveis).
Deste modo, a referida seguradora do veículo (C…, Companhia de Seguros, S. A.) tem de ser condenada a pagar os valores fixados, de acordo com a divisão determinada quanto à proporção em que cada veículo contribuiu para o acidente.
Tendo a circulação do velocípede conduzido pelo Autor/recorrente contribuído em 65% para o acidente, tem o mesmo de suportar essa percentagem de dano, tendo a seguradora de o indemnizar em 35%.
Daí que a Ré «C…, …» terá de pagar, em relação aos valores acima indicados:
. 351,92 EUR (1.005,48 EUR x 35%);
. 1 400 EUR (4.000 EUR x 35%);
. 1 750 EUR (5.000 EUR x 35%);
. 16.100 EUR (46.000 x 35%), num total de 19.602 EUR (valor arredondado).
A esses valores acrescem juros como fixado na sentença da primeira instância.
Será igualmente a Ré seguradora «C…, ...» condenada a pagar 35% do valor das despesas futuras (desde a propositura da ação) e que vieram a ocorrer, desde a data da propositura da ação (não tendo havido ampliação de pedido) e enquanto a necessidade das mesmas se mantiver, com as consultas a que se refere o facto provado 42, a liquidar no respetivo incidente de liquidação.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julgando-se procedentes os recursos interpostos por Fundo de Garantia Automóvel, F…, Lda. e E… e parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelo Autor B…, altera-se a decisão nos seguintes termos:
a). Absolvem-se Fundo de Garantia Automóvel, F…, Lda. e E… dos pedidos contra si formulados.
b). Condena-se a Ré C…, Companhia de Seguros, S. A a pagar ao Autor as quantias de:
. 351,92 EUR, 1.400 EUR, 1.750 EUR, 16.100 EUR num total de 19.602 EUR, acrescidas de juros como determinado na sentença recorrida.
. b1). A pagar 35% do valor das despesas futuras, que vieram a ocorrer, desde a data da propositura da ação e enquanto a necessidade das mesmas se mantiver, com as consultas a que se refere o facto provado 42, a liquidar no respetivo incidente.
Custas dos recursos intentados por Fundo de Garantia Automóvel, F…, Lda. e E… a cargo do Autor recorrido.
Custas do recurso subordinado intentado pelo Autor a cargo de recorrente e recorridos, na proporção de 2/3 e 1/3, respetivamente.
Registe e notifique.

Porto, 11 de fevereiro de 2021
João Venade
Paulo Duarte
Amaral Ferreira
_______________
[1] Ac. do S. T. J. de 19/06/2008, www.dgsi.pt, onde se menciona que os legais representantes de uma empresa «não são encarregados de uma comissão, mas são eles próprios os formuladores da vontade da pessoa colectiva, os titulares de toda a iniciativa e não meros comitidos»).
[2] «O conjunto dessas alterações, ao fazer recair sobre o Fundo de Garantia Automóvel (FGA) parte fundamental da operacionalização do aumento de protecção dos lesados, bem como do aumento de eficácia do controlo do cumprimento da obrigação de segurar, reforça a conveniência de acentuar o carácter do Fundo como de último recurso para o ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, concentrando-o no seu fim identitário, por forma a libertá-lo para o acréscimo de tarefas» - nosso sublinhado -.
[3] Assim procedendo parcialmente o recurso do Autor na parte subsidiária onde pede, caso improcedam as anteriores conclusões, a condenação da Ré «C… …», ainda que solidariamente com outras pessoas, aqui radicando a parcial improcedência.