Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3266/19.9T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
OCULTAÇÃO DE BENS OU RENDIMENTOS
DEPÓSITO EM CONTA BANCÁRIA DE TERCEIROS
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Nº do Documento: RP202101263266/19.9T8PNF.P1
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A familiar que, de modo concertado com os gerentes de uma sociedade que veio a ser declarada insolvente, aceitou uma elevada quantia pertencente a essa sociedade, depositando a mesma na sua conta bancária, vindo mais tarde a devolvê-la aos referidos gerentes, acabando por inviabilizar a integração de tais valores no acervo da massa insolvente, é responsável solidária pela devolução à massa insolvente dos valores em causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3266/19.9T8PNF.P1
Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Em 25.11.2019, a “Massa Insolvente de B…, Lda.” intentou no Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, ação declarativa com processo comum contra C…, formulando os seguintes pedidos de condenação da ré:
«1. Seja condenada a Ré, que de má fé se encontra na posse ou detenção das quantias no valor global de 76.450,00€, indevidamente depositadas nas contas bancárias de que é(ra) titular, a reconhecer a sua propriedade à Autora e à mesma as restituir.
2. Para o caso de as não deter já, porque se encontrava na sua posse ou detenção de má fé, seja condenada a Ré a por essas quantia responder perante a A., nos termos consignados no artigo 1269.º do Código Civil.
3. Não existindo qualquer causa justificativa para a detenção ou posse pela Ré das avisadas quantias, havendo-as para si, porque quedou a Ré enriquecida no valor que à Autora é inequivocamente devido, à sua custa se locupletou e na medida do seu empobrecimento.
4. Comum e na sequência da condenação que se impetra nos pedidos antes formulados, deve também a Ré ser condenada ao pagamento por frutos devidos ou de juros de mora pela não entrega atempada, a contabilizar à taxa legal desde a data em que tais quantias nas suas contas foram depositadas até integral pagamento, que perfazem nesta data o montante global de 5.879,12 €.».
Como fundamento da sua pretensão, alegou a autora em síntese: a sociedade “B…, Lda.” foi declarada insolvente em 21.02.2018, no âmbito do processo n.º 1584/17.0T8AMT; no exercício das suas funções, o A.I. procurou conhecer a realidade patrimonial e social da insolvente, compulsando documentação que recolheu junto de diversas entidades, tendo apurado o seguinte:
a) quantia de 50.000,00 €, pertencente à autora, foi depositada em conta bancária titulada pela ré; a sociedade insolvente havia instaurado uma ação contra D…, Lda. que correu seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Central Cível de Loures - Juiz 5, sob o n.º 3051/15.1T8PNF, na qual peticionou o pagamento do montante de 769.421,06€, a título de indemnização, tendo as partes celebrado transação, na qual a sociedade insolvente reduziu o pedido para a quantia de 50.000,00€, pagos mediante transferência bancária para a conta com o IBAN PT.. …. …. …. …. …. .; das informações recolhidas junto da Base de Dados de Contas do Banco de Portugal e da informação recebida por parte do Banco E…, a única conta nessa instituição bancária cuja titular é(ra) a insolvente, apresenta(va) o seguinte IBAN: PT .. …. …. ………. ...; constatou o AI que a conta bancária indicada para onde o pagamento resultante da transação foi realizado não era da titularidade da insolvente, mas sim da ré, que nem sequer pertencia aos órgãos de gestão da sociedade;
b) acresce que a quantia de 26.450,00 €, pertencente à autora, depositada em conta da ré; após a declaração da insolvência, a insolvente alienou à sociedade F…, Lda, diversos veículos automóveis de sua propriedade, pelo preço global de 26.450,00 €, tendo sido o preço transferido para uma outra conta titulada pela Ré, com o IBAN PT.. …. …. ……….. ..;
c) deve a ré ser condenada a transferir para a conta da autora a quantia global de 76.450,00 €, a qual se encontra na detenção ou posse da ré contra a vontade do seu legítimo proprietário, por ser ilegal a sua detenção pela ré; invoca ainda a autora a figura do enriquecimento sem causa.
A ré deduziu contestação, alegando: a sua ilegitimidade, por não ser “titular da relação material controvertida”; a ilegitimidade da autora porque “nunca foi proprietária, nem teve a posse ou o domínio dos montantes cuja restituição peticiona”; a ausência de factos concretos alegados na petição, considerando, nomeadamente que “foi a própria Autora a alegar uma causa para o invocado enriquecimento da Ré: as quantias de 50.000,00 € e 26.450,00 € foram transferidas para as contas bancárias da Ré pelas empresas D…, Lda e F…, Lda (doravante D… e F…).” (sic).
Em 10.02.2020 foi proferido o seguinte despacho: «Notifique as partes para, querendo, se pronunciarem quanto a excepções, eventual conhecimento de mérito, objecto do litígio e temas da prova (arts. 3º, n.º 3; 6º e 547º do CPC).».
As partes pronunciaram-se, tendo a autora, no seu requerimento, para além do mais, deduzido o incidente de intervenção principal provocada de G… e H…, com fundamento no facto de a ré alegar que os montantes reivindicados nos autos foram entregues a estes chamados.
Por despacho de 17.03.2020 foi deferida a requerida intervenção, tendo sido citados os intervenientes, que em requerimento conjunto de 30.06.2020 vieram declarar que «nos termos do disposto no artigo 319º, nº3, do CPC (…) fazem seu o articulado de defesa apresentado pela Ré.”.
Em 23.09.2020 foi proferida sentença em cujo introito se refere: «Tendo em consideração que foi observado o princípio do contraditório em relação às questões suscitadas nos articulados, tendo as partes sido notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre o mérito da causa, determino que fique dispensada a realização da audiência prévia.».
Na sentença em apreço, foram julgadas improcedentes as exceções deduzidas pela ré, concluindo-se com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, nos termos das disposições legais supra citadas, julgase a acção procedente e decide-se: condenar a R. C… e os intervenientes G… e H… a reconhecerem a A. Massa Insolvente de B…, Lda. como proprietária da quantia global de € 76.450,00 (setenta e seis mil quatrocentos e cinquenta euros), indevidamente depositada nas contas bancárias de R., devendo restituí-la à A., sendo solidariamente responsáveis pelo pagamento integral desse valor, acrescido dos juros de mora de 4% ao ano, desde a data desses depósitos, até integral e efectivo pagamento.»
Não se conformou a ré e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações que culmina com as seguintes conclusões:
1. Salvo o sempre devido respeito, que é muito, a Recorrente não se pode conformar com a douta sentença aqui sob censura.
2. Em primeiro lugar, na douta sentença omitiu-se a necessária análise crítica das provas.
3. Violando-se, assim, o disposto no nº4, do artigo 607º, do CPC.
4. O que gera a nulidade da douta sentença.
5. Do mesmo modo, ao considerar-se na douta decisão que a Ré terá desviado as quantias em apreço e que, por tal razão, poderia ser condenada pela prática de factos ilícitos, nos termos do artigo 483º, do CC, sem que antes tivesse sido concedido à Ré o direito a exercer o contraditório, proferiu-se uma “decisão surpresa”, que conduz à nulidade da sentença.
6. Acresce que, não poderia ter-se dado como provado na douta sentença que a Ré teve a detenção material das quantias depositadas.
7. Primo, porque o conceito de “detenção material”, constitui matéria de direito.
8. Secundo, porquanto a noção de “detenção material”, se trata de matéria conclusiva que, por esse motivo, não poderia integrar o acervo de factos provados.
9. Tertio, a Autora não alegou um único facto concreto que possibilitasse ao Tribunal dar como provado tal situação.
10. Donde, tal facto teria de ser dado como não provado.
11. Posto isto, cumpre dizer que a petição inicial carece da necessária causa de pedir.
12. Por conseguinte, no que concerne à alegada posse das quantias depositadas pela Ré, temos de assinalar que nenhum facto foi alegado pela Autora que permitisse ao Tribunal concluir pela sua verificação.
13. Não ficou, assim, provada a existência quer do animus possidendi,
14. quer do corpus.
15. Que constituem requisitos do instituto jurídico da posse,
16. e emanam do estatuído no artigo 1251º, do CC.
17. De facto, não foi imputada à Ré a prática de qualquer acto material sobre as quantias depositadas.
18. E, muito menos que esta alguma vez agido ou invocado ser proprietária de tais montantes.
19. Ao invés, foi alegado e provado que a Ré bem sabia que essas importâncias não lhe pertenciam. 20. Destarte, a Ré jamais poderia ter sido considerada como sendo possuidora dos valores depositados, em referência nos autos.
21. Pelos mesmos motivos, a Ré também não poderia ser considerada como possuidora de má-fé.
22. E, em caso algum, se poderia dizer que a Ré actuou como possuidora de má-fé.
23. Antes do mais porque somente se provou que esta sabia das dificuldades financeiras da sociedade B…, Lda.
24. Mas não provou, e não foi alegado, que a Ré tinha conhecimento da declaração de insolvência da referida sociedade.
25. Nem que esta sabia que os débitos da Autora, não eram pagos.
26. Também não se alegou nem provou que a Ré sabia que o dinheiro em causa não ia ser utilizado pelos Chamados no pagamento de dívidas sociais.
27. Assim sendo, naturalmente que esta desconhecia que a sua conduta estava a prejudicar terceiros, mormente a aqui Autora.
28. Todavia, igualmente no que diz respeito à posse por pretensa má-fé da Ré, nada foi alegado.
29. Pelo que também inexiste causa de pedir que permitisse a condenação da Ré com base nesse fundamento.
30. Até porque esta restituiu as quantias às pessoas que ela considerava serem os legítimos representantes da Autora e seus únicos sócios.
31. Não tendo, em caso algum, utilizado os montantes depositados em seu proveito ou benefício.
32. Facto que, aliás, também não foi alegado pela Autora.
33. Por outro lado, ainda que não fosse como se disse, a Ré também nunca poderia ser considerada possuidora das quantias depositadas,
34. e condenada com fundamento nessa qualidade.
35. Pois, as quantias depositadas numa conta bancária são insusceptíveis de posse e de serem usucapíveis.
36. O depositante é detentor apenas de um direito de crédito sobre as quantias depositadas.
37. Não tendo o titular de uma conta bancária, nenhum direito de propriedade sobre as quantias depositadas.
38. Diga-se ainda que, ao contrário do que se alude na douta sentença, as quantias em causa não foram depositadas sem terem por base um contrato.
39. Com efeito, as quantias foram depositadas em resultado de um acordo fiduciário entre os Chamados e a Ré.
40. Tendo esta restituído, todos os montantes depositados, como ficou provado na douta sentença.
41. Por fim, registe-se que a Ré não praticou nenhum acto ilícito.
42. Nem tal foi alegado ou provado.
43. Pelo que não poderia ser condenada a indemnizar a Autora nos termos previstos no artigo 483º, do CC.
44. Finalmente, diga-se que a douta sentença violou os artigos 1251º, 1253º e 1302º, do CC, bem como os artigos 607º e 615º, do CPC.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores, deve ao presente recurso ser dado total provimento, nos termos e pelas razões supra descritas em consequência revogar-se a douta sentença sub judice, com os legais efeitos, assim se fazendo, a costumada, inteira, habitual e sã JUSTIÇA
A autora apresentou resposta às alegações de recurso, pugnando pela sua total improcedência.
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto dos recursos delimitados pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se na apreciação das seguintes questões:
1.1. A invocada “nulidade da sentença”;
1.2. A invocada “decisão surpresa”;
1.3. A invocada natureza conclusiva do facto;
1.4. A alegada falta de causa de pedir; e
1.5. Os alegados desconhecimentos e ausência de benefício
2. Fundamentos de facto
É a seguinte factualidade relevante provada vertida na sentença recorrida:
1. A sociedade de cuja insolvência resultou a ora autora, em 21.02.2018 foi declarada insolvente no âmbito dos autos de processo com o número 1584/17.0T8AMT, que correm seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo de Comércio de Amarante, Juiz 2.
2. No exercício das suas funções, o A.I. procurou conhecer a realidade patrimonial e social dessa pessoa coletiva, cuidando de inteirar-se quanto à dimensão do ativo patrimonial da sociedade e de eventuais atos suscetíveis de resolução em benefício da massa, recolhendo diversa documentação.
3. Apurou-se que a quantia de €50.000,00, destinada e pertencente à autora, foi depositada em conta bancária titulada pela ré.
4. A sociedade de que resultou a Autora havia instaurado uma ação de processo comum contra D…, Lda., que correu seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Central Cível de Loures - Juiz 5, sob o n.º 3051/15.1T8PNF.
5. Nessa ação, peticionou a B…, Lda. que fosse condenada a aí Ré D…, Lda. a pagar-lhe o montante de 769.421,06 €, a título de indemnização.
6. No desenvolvimento desses autos de processo, as partes em litígio em 06.02.2018 atravessaram requerimento conjunto, consubstanciando o mesmo transação no pleito, do qual deflui, no que aos presentes importa, consignar a autora, agora sociedade insolvente, reduzir o pedido deduzido à quantia líquida de €50.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais que a aí ré se obrigava a pagar no prazo de 10 dias após ser proferida sentença homologatória dessa transação, mediante transferência bancária para a conta com o IBAN PT.. …. ….. …. …. …. ., domiciliada no Banco E….
7. Em 7 de fevereiro de 2018, foi proferida a respetiva sentença, julgando válida a transação acordada, assim a homologando, condenando as partes ao seu cumprimento nos seus precisos termos e declarando, consequentemente, a extinção dessa instância.
8. Dez dias após ter sido realizada a transferência bancária em causa, vieram os gerentes da sociedade agora insolvente desistir da oposição ao requerimento de insolvência apresentado, vindo, então, em 21.02.2018 a ser a mesma declarada.
9. Das informações recolhidas junto da Base de Dados de Contas do Banco de Portugal e da informação recebida por parte do Banco E…, a única conta nessa instituição bancária cuja titular era a insolvente, apresentava o seguinte IBAN: PT ... …. …. ……….. ...
10. A conta bancária indicada, para onde o pagamento resultante da predita transação foi realizado, é titulada pela ré.
11. A ré não pertencia aos órgãos de gestão da sociedade insolvente, nem era dela sócia, nem realizou qualquer negócio que justificasse esse depósito na sua conta.
12. Essa quantia não entrou na conta ou nos cofres da sociedade insolvente.
13. Relativamente à quantia de €26.450,00 pertencente à autora, foi também ela depositada em conta da ré, sem qualquer negócio justificativo em relação à ré.
14. A sociedade depois declarada insolvente, a B…, em 6 de julho e 2017, alienou à sociedade F…, Lda., diversos veículos automóveis de sua propriedade, pelo preço global de € 26.450,00.
15. O preço contrapartida das referidas alienações foi considerado pago pela Insolvente.
16. Tal preço foi integral e diretamente transferido pela sociedade adquirente para outra conta titulada pela ré, com o IBAN PT.. …. …. ………. ...
17. A aludida quantia não foi entregue à insolvente, não entrando nas suas contas ou nos seus cofres.
18. A ré teve a detenção material de tais quantias e a sua disponibilidade, sem qualquer negócio válido para as haver, bem sabendo que as mesmas lhe não pertencem, sendo antes pertença da autora.
19. A ré tinha conhecimento das dificuldades financeiras da sociedade B…, pelo menos desde 2014.
20. A ré acedeu ao pedido dos seus familiares para o depósito de tais montantes nas suas contas, tendo entregue posteriormente tais valores a G… e H….
3. Fundamentos de direito
3.1. A invocada “nulidade da sentença”
Alega a recorrente [conclusões 1.ª a 4.ª], que na sentença se omite a análise crítica das provas, violando o disposto no n.º 4, do artigo 607º, do CPC, o que gera a sua nulidade.
Cumpre decidir.
Consta da sentença que os factos se consideram provados “face ao acordo das partes e aos documentos juntos aos autos”.
Trata-se de saneador-sentença, no qual é admissível o imediato conhecimento do mérito da causa “sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas”, conforme prevê a alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do Código de Processo Civil.
Nas situações em que se conhece do mérito da causa sem prévia audiência de julgamento, a prova só pode resultar das alegações das partes, dos documentos juntos e da admissão dos factos.
Foi o que considerou o Mº Juiz, muito corretamente, considerando que a factualidade provada, vertida na sentença, não foi impugnada, assim como não houve impugnação dos documentos juntos.
Revela-se manifesta a improcedência do recurso neste segmento.
3.2. A invocada “decisão surpresa”
Alega a recorrente [conclusão 5.ª] que, ao considerar-se na sentença que a recorrente desviou as quantias em apreço e que, “por tal razão, poderia ser condenada pela prática de factos ilícitos, nos termos do artigo 483º, do CC, sem que antes tivesse sido concedido à Ré o direito a exercer o contraditório, proferiu-se uma “decisão surpresa”, que conduz à nulidade da sentença”.
Com o devido respeito, temos alguma dificuldade em compreender a argumentação aduzida pela recorrente, face à fundamentação jurídica da sentença, que parcialmente se transcreve:
«No que à R. diz respeito, também não há dúvidas que a mesma teve na sua posse tais quantias monetárias, tendo disposto delas como entendeu, aceitando-as nas suas contas e dando-lhes destino diverso do adequado de entrega à B….
Está provado que a R. sabia da proveniência de tais quantias e que as mesmas eram pertença da B…, estando também provado que a R. sabia das dificuldades económicas dessa sociedade, pelo menos desde 2014, e que aceitou que fossem depositadas nas suas contas bancárias montantes pertencentes à dita sociedade, quer em 2017, quer em 2018.
Ao dispor das quantias em causa, dando-lhes destino diverso do legal, a R. actuou como possuidora de má-fé, pois não podia ignorar que lesava direitos de outrem, nomeadamente dos credores da B… (art. 1260º, n.º 1, a contrario sensu, do CC), sabendo das suas dificuldades financeiras e que com isso retirariam tais montantes da disponibilidade financeira da sociedade, que depois veio, aliás, a ser declarada insolvente (sem que lhe tivessem sido restituídos os aludidos montantes).Responde de igual forma pela retirada de tais valores da disponibilidade da sociedade, bem como pelos juros devidos nos termos do art. 1271º do CC.
Diga-se, além do mais, que mesmo na simples detenção (art. 1253º do CC), o desvio das quantias em causa sempre daria direito à A. à indemnização pela R., nos termos dos arts. 483º (“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” – n.º 1) e 566º do CC, face ao preenchimento dos seus pressupostos, pela prática de actos culposos (dolo ou mesmo mera culpa), violadores do direito de outrem e de normas tendentes à protecção de terceiros (da própria B… e dos seus credores) e, com isso, causando os danos verificados em relação à A., face à apropriação indevida dos aludidos montantes (cfr. o Ac. da RG de 11/07/2013, processo n.º 362/08.1TBMCN.G1, in www.dgsi.pt).
Face ao decidido, mostra-se despicienda a análise da parte relativa ao enriquecimento sem causa (que sempre seria de admitir nos termos do art. 473º do CC).»
Na petição, alegou a autora:
«27. Essa quantia em causa é inequivocamente de pertença da aqui massa insolvente, encontrando-se indevida e ilegalmente na detenção da Ré, bem sabendo que lhe não pertence.
28. Caso esta se arrogue na sua posse, a mesma encontra-se inequivocamente de má fé,
29. Não a tendo restituído nunca a quem é a sua legítima proprietária, vale dizer a ora Massa Insolvente, como deflui de toda a documentação da sociedade insolvente.
30 O que desde já se impetra seja a Ré condenada reconhecer e a assim proceder.
31. Invariavelmente nos negócios antes reportados, as quantias que cabiam à Autora, como sua proprietária, foram directamente transferidas para contas bancárias de que a Ré é(ra)titular,
32. sem que as tenha depois alguma vez entregue à sociedade insolvente, como à saciedade resulta pela documentação a que o A.I. compulsou.
33. Porque indevida e ilegalmente se quedou a Ré na detenção material de tais quantias ou na sua disponibilidade jurídica, sempre de má fé, porque as mesmas lhe não pertencem, sim à ora A., deve este Venerando Tribunal assim condenar a Ré a reconhecer e àquela entregar essa quantia global de 76.450,00€.
34. Encontrando-se, pois, tal quantia na detenção ou posse contra a vontade do seu legítimo proprietário, a ora A. impõe-se, por isso a assim ser condenada.
35. Além do mais, deve ser condenada a Ré, nos termos do artigo 1271.º do Código Civil, ao pagamento dos frutos que os capitais em seu poder, que não lhe pertencem, possam ter produzido…».
Provou-se que: as quantias em apreço pertenciam à sociedade insolvente [factos 3 a 9]; ao invés de serem depositadas na conta da sociedade, foram-no numa conta da ré [facto 10]; a ré tinha conhecimento das dificuldades financeiras da sociedade B…, pelo menos desde 2014 [facto 19]; a ré acedeu ao pedido dos seus familiares para o depósito de tais montantes nas suas contas, tendo entregue posteriormente tais valores a G… e H… [facto 20].
Perante esta factualidade provada, não impugnada, considerando que foi sempre cumprido o contraditório, nomeadamente quanto à prolação da sentença em fase de saneador, permitimo-nos questionar: que surpresa pode a ré ter sentido, com a sua condenação?
Como é sabido e decorre diretamente da lei, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito” [art.º 5.º, n.º 3 do CPC], vigorando no nosso ordenamento processual o princípio jura novit curia, e só quando vigorar um enquadramento jurídico não equacionado pelas partes nos seus articulados, se terá de dar cumprimento ao contraditório quanto à solução jurídica inovadora que se pretenda consignar[1].
Na situação sub judice, tendo a autora alegado e provado (por expressa admissão da ré), que as quantias que pertenciam à sociedade insolvente foram depositadas na conta bancária da ré, uma das soluções jurídicas óbvias seria sempre a obrigação de indemnizar – sendo certo que a autora apresentou, subsidiariamente, como fundamento jurídico viável da sua pretensão, a obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa.
Revela-se, com o devido respeito, manifestamente improcedente o recurso, também neste segmento.
3.3. A invocada natureza conclusiva do facto
Alega a recorrente [conclusões 6.ª a 10.ª] que não poderia ter-se dado como provado que a ré teve a detenção material das quantias depositadas, porque se trata de matéria conclusiva.
Vejamos.
Provou-se, sem impugnação, que a conta bancária onde foram depositadas as quantias em discussão nos autos (€76.450,00) é titulada pela ré, apesar de as mesmas serem pertença da sociedade insolvente [factos 9 a 13].
Trata-se de uma conduta grave, quer numa perspetiva meramente ética, quer na vertente jurídica.
A prova deste facto era quanto bastava, não sendo necessária, por absolutamente irrelevante, a consignação no facto 18, de que “A ré teve a detenção material de tais quantias”.
No que respeita à natureza do “facto” em causa, não restam dúvidas sobre o seu caráter conclusivo.
No entanto, como constata o Professor Antunes Varela[2], não é fácil a tarefa de distinção entre questão de facto e questão de direito, porque «há numerosos termos que podem revestir um duplo sentido: o sentido corrente e o sentido jurídico, envolvendo pura questão de facto; e o sentido jurídico, assumindo já a natureza de verdadeira questão de direito».
Conforme refere Abrantes Geraldes[3], devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico, de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que porventura tenham, simultaneamente, uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem.
Na situação sub judice, a “detenção” das quantias ilicitamente[4] depositadas na conta da recorrente tem, manifestamente, um significado corrente, não se vislumbrando razão para a eliminação de tal expressão, apesar da sua já referida irrelevância.
Improcede o recurso neste segmento.
3.4. A alegada falta de causa de pedir
Alega a recorrente que a petição carece de causa de pedir [conclusões 9.ª a 12.ª].
Não se vislumbra qualquer fundamento para tal alegação.
Com efeito, provando-se que a ré, ilicitamente, deteve na sua conta bancária uma quantia que não lhe pertencia, que era pertença da sociedade insolvente, bem sabendo das dificuldades financeiras desta, pelo menos desde 2014 [facto 19], não se compreende como possa defender a sua ausência de responsabilidade perante o eventual descaminho de tais valores.
Nunca será de mais enfatizar, face aos factos provados 19 e 20, que a ré, ao aceitar o conluio dos seus familiares com vista a desviar o dinheiro da sociedade insolvente, depositando-o na sua conta, praticou um ato ilícito, reprovável, que obrigou o Administrador da Insolvência a intentar a presente ação para que a lei se cumpra – com a devolução à massa insolvente de todos os valores que garantem o pagamento aos credores lesados.
Improcede o recurso neste segmento.
3.5. Os alegados desconhecimentos e ausência de benefício
Finalmente, alega a recorrente que: não atuou como possuidora de má-fé; apenas se provou que sabia das dificuldades financeiras da sociedade B…, Lda; não se provou que tivesse conhecimento da declaração de insolvência; desconhecia que a sua conduta estava a prejudicar terceiros; restituiu as quantias às pessoas que ela considerava serem os legítimos representantes da autora e seus únicos sócios; não teve qualquer proveito ou benefício.
Salvo todo o respeito devido, a alegação da ré neste contexto situa-se, pelo menos, na fronteira entre a lide temerária e a litigância de má-fé.
Vejamos porquê.
Os sócios da sociedade insolvente são familiares da recorrente (facto 20), sabendo a recorrente que eram os únicos sócios da insolvente (como ela própria afirma), tendo-se provado que a recorrente tinha conhecimento das dificuldades financeiras da sociedade desde, pelo menos, 2014, e que os referidos familiares acordaram com a ré o depósito na sua conta de valores da insolvente (solicitando-lhe a oportuna devolução).
Perante estes factos, como pode a recorrente alegar que desconhecia a declaração de insolvência, face à insofismável presunção judicial, traduzida num raciocínio lógico-dedutivo a ter em consideração no julgamento da matéria de facto[5], sujeita à livre apreciação do julgador nos termos dos artigos 349º e 351º do Código Civil?
A ilicitude da conduta da recorrente reside, não nos eventuais benefícios materiais que pudesse obter, mas no óbvio prejuízo que causou (de forma concertada com os seus familiares, sócios da insolvente), permitindo que tivesse sido subtraídos à massa insolvente e aos credores uma quantia pecuniária significativa.
Perante a conclusão enunciada, sem quebra de respeito, consideramos irrelevantes e juridicamente desenquadradas as alegações vertidas, nomeadamente, nas conclusões 35.ª a 40.ª: de que as quantias depositadas numa conta bancária são insuscetíveis de posse e de serem usucapíveis; de que o depositante é detentor apenas de um direito de crédito sobre as quantias depositadas; der que o titular de uma conta bancária, nenhum direito de propriedade sobre as quantias depositadas; de que as quantias foram depositadas em resultado de um acordo fiduciário entre os chamados e a ré.
Revela-se manifesta a improcedência do recurso.
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III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
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Porto, 26.01.2021
Carlos Querido
José Igreja Matos
Rui Moreira
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[1] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 333.
[2] Antunes Varela e Outros, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 112.
[3] Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, pág. 138.
[4] Trata-se de um comportamento eticamente reprovável, como já referimos.
[5] Neste sentido veja-se, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª ed. revista e ampliada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 232 a 235.