Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3032/22.4T8FNC-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: PROCESSO TUTELAR CÍVEL
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP202402083032/22.4T8FNC-E.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade da decisão por falta de fundamentação, prevista na al. b) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil – diretamente relacionada com a expressa consagração constitucional (art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e legal (art. 154.º do Cód. Proc. Civil) do dever de fundamentação –, constituindo a sanção para o incumprimento do disposto no art. 607.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, pressupõe a falta absoluta de fundamentação – e não apenas a fundamentação deficiente, incompleta ou não convincente.
II - A menor exigência no cumprimento do dever de fundamentação na prolação de decisão cautelar e provisória no âmbito de um processo de promoção e proteção não se confunde nem permite a total omissão de fundamentação.
III - Tal absoluta falta de fundamentação verifica-se quando a decisão se restringe ao dispositivo, e – não obstante a natureza do processo e o caráter cautelar e provisório da decisão – determina nulidade da decisão assim proferida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3032/22.4T8FNC-E.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo de Família e Menores do Porto – Juiz 1

Recorrente(s) …
Recorrido(a/s) …
Recorrido(a/s) Ministério Público
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Sumário:
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Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

O Ministério Público intentou no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz 2, em 10-10-2023 (Ref. 5443472), processo judicial de promoção e proteção relativamente à criança …, nascido em ../../2017, alegando, em síntese:

– ter sido remetido pela  CPCJ  do Funchal, ao abrigo do disposto no art. 11.º, n.º 2 e n.º 3, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (doravante, LPCJP), o processo de  processo de promoção e proteção a favor da criança instaurado na CPCJ em 05-07-2023, na sequência da sinalização efetuada pela respetiva progenitora, … (doravante, …) à CPCJ, em 05-07-2023, da sua suspeita de existência de abuso sexual da criança por parte da família paterna, comunicando ‘estar com receio em relação às visitas à família paterna, porque o filho tem apresentado comportamentos estranhos (simulou um ato de sexo anal com uma recarga de pistola de água’ e aos dois anos de idade tentou introduzir objetos estranhos no ânus)’;

– que se encontra pendente na Polícia Judiciária do Porto um inquérito crime onde se investiga a alegada prática de abuso sexual da criança;

– que a progenitora pretende a realização de avaliação forense para aferir se realmente a criança sofreu abuso sexual;

– que o progenitor desvaloriza os comportamentos da criança que a progenitora considera terem conotação sexual e que receia que tenham origem no agregado familiar paterno, o que potenciou uma relação de conflito entre os progenitores que se tem agravado, com problemas de comunicação e ao nível do exercício das responsabilidades parentais.

Conclui pela necessidade de proteção da criança mediante a aplicação da medida de apoio junto dos pais, proporcionando à criança e progenitores ajuda psicopedagógica, nos termos dos arts. 35.º, n.º 1, al. a), e 39.º da LPCJP, requerendo “declarada que seja aberta a fase da instrução […] se designe dia para a realização da conferência a que alude o art. 110.º, n.º 1, al. b) e 112.º da LPCJP.”

Em 12-10-2023 (Ref. 54209904) foi proferido o seguinte despacho:

«Designo como gestor do processo, o subscritor do relatório social – artigo 82º - A da LPCJP.

Considerando o teor do relatório ora junto e estando neste momento o Tribunal ciente da situação atual do menor (…), nascido a ../../2017, importa proceder à audição a que alude o artigo 107º da LPCJP seguida, caso se verifiquem os legais pressupostos, de conferência prevista no artigo 112.º do mesmo diploma, para o que designo o dia 26 de outubro de 2023 às 12 horas neste Tribunal.

Convoque:

- os progenitores;

e

- o gestor do processo ou, na sua impossibilidade, outro técnico que a substitua.

Dê cumprimento ao disposto no artigo 107.º, nº 3, da LPCJP.»

Em 13-10-2023 (Ref. 54222531) foi expedida carta registada para notificação do progenitor com o seguinte teor:
Assunto: Notificação 1 e 3 do artº 107 da LPCJP
Fica notificado, nos termos e para os efeitos a seguir indicados:
Comparecer neste Tribunal, no próximo dia 26-10-2023, às 12:00 horas, a fim de ser inquirido(a) nos autos supra referenciados, sob pena de multa, faltando injustificadamente.
Fica ainda notificado para, querendo, requererem a realização de diligências instrutórias ou juntar meios de prova, no prazo de 10 dias.
Junta-se cópia do requerimento inicial.
Mais fica notificado de que poderá requerer que a sua intervenção se realize por videoconferência através da plataforma ´webex´, ou qualquer outro meio de comunicação à distância, devendo, para o efeito, comunicar ao processo o seu endereço de ´email´ bem como contato de telemóvel.

Em 13-10-2023 (ref. 54223008) foi efetuada notificação eletrónica ao mandatário do progenitor requerido, com o seguinte teor:
Assunto: Notificação para a conferência – art.º 107.º da LPCJP
Fica notificado(a) na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado de que se encontra designado o dia 26-10-2023, às 12:00 horas para a conferência, nos termos do art.º 107º da LPCJP.
Junta-se cópia do requerimento inicial.

Em 18-10-2023 (Ref. 5456663), o progenitor da criança, … (doravante, …), apresentou requerimento pedindo a remessa do processo para apensação aos processos tutelares cíveis de regulação do exercício das responsabilidades parentais n.º 3032/22.4T8FNC e para resolução de diferendo em questão de particular importância com o n.º 3032/22.4T8FNC-A, pendentes no Juízo de Família e Menores do Porto, por ser tal tribunal o competente, e que, face à incompetência territorial arguida e ao facto de o progenitor da criança não ter sido ainda notificado para a diligência, seja a mesma dada sem efeito.

Em 25-10-2023 (Ref. 5469121), foi junta aos autos pelo ISS da Madeira, IP-RAM (EMAT - Equipa Multidisciplinar de Assessoria ao Tribunal), a informação com data de 24-10-2023, dando conta que «Durante o passado mês de setembro, e segundo a mãe, após o fim de semana que … se deslocou ao Porto para os habituais convívios paterno-filiais, a criança veio a apresentar, novamente, comportamentos sexualizados, nomeadamente, utilizando a posição sexual de quatro, durante e após o momento de higiene pessoal. Neste âmbito, a mãe voltou a questionar a criança, verbalizando que a PSP iria proibir essa pessoa de voltar a fazê-lo (referindo-se ao alegado abusador), ao que a criança terá respondido “eu não quero que façam mal ao meu Pai”. Esta ocorrência, com data de 7 de outubro, levou a que a mãe se dirigisse à Polícia Judiciária (PJ) do Funchal, apresentando queixa-crime contra o pai de …, por abuso sexual ao filho. A mãe informou ainda que deixará de colaborar com a manutenção dos contactos paterno-filiais, sendo que o filho não se deslocou ao continente no último fim de semana que estava programado, tendo já efetuado comunicação ao Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais sobre a sua intenção.».

Tal informação conclui com a seguinte CONCLUSÃO/PARECER TÉCNICO: «Face aos recentes acontecimentos, e atendendo a que decorrerá um processo de investigação por abuso sexual, alegadamente perpetrado pelo pai da criança, considera-se que a proposta de acordo de promoção e proteção deva ser alterada, colocando-se em perspetiva a suspensão dos convívios paterno-filiais.

Face ao exposto, anexamos nova proposta de Acordo de Promoção e Proteção, reiterando a aplicação da Medida de Apoio Junto dos Pais, especificamente Junto da Mãe, a favor de …. (…).», constando da nova proposta de Acordo de Promoção e Proteção apresentada, além do mais, «(…) a aceitação pelo requerido …, da distância física e de contactos com …, durante a fase em que decorre o processo de investigação criminal (…)».

Em 26-10-2023 realizou-se diligência, na qual estiveram presentes o Ministério Público requerente, os progenitores da criança, … e … e os respetivos mandatários, e as técnicas da EMAT convocadas, tendo sido lavrada a ATA DE DECLARAÇÕES junta aos autos (Ref. 54308420).

Da referida Ata consta, além do mais, a decisão do tribunal quanto à sua competência para a realização da diligência, dada a urgência da situação e a atual residência da criança na Região Autónoma da Madeira e o disposto no art. 79º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, tendo sido determinada a realização da mesma com a audição das técnicas da EMAT presentes, a qual foi efetuada.

No decurso da audição das Sr.ª Técnicas da EMAT, foi solicitada a palavra pela Il. Mandatária do progenitor/pai, a qual apresentou o seguinte requerimento:

Ao entender que, tal como se alegou, este juízo de Família e Menores é territorialmente incompetente para apreciar este P.P.P., sendo competente o Juízo de Família e Menores do Porto (onde corre o processo do Exercício das Responsabilidades Parentais e que, por isso está mais habilitado a decidir as questões aqui colocadas) a diligência está a decorrer sem que tenha sido dada ao progenitor a possibilidade de requerer as diligências instrutórias para as quais foi, expressamente notificado no prazo de dez dias, para o qual foi também notificado e que ainda não terminou. Perante isto também há violação do direito ao contraditório pelo que se argui, desde já, a nulidade deste ato, pela ultrapassagem do princípio do contraditório, nulidade essa que se requer seja declarada.

Após foi retomada a audição das técnicas e, finda esta, o tribunal a quo apresentou aos progenitores a proposta de promoção e proteção do EMAT constante da informação de 25-10-2023 (Ref. 5469121), tendo o progenitor/pai declarado, expressamente, e na pessoa da sua Il. Mandatária não concordar com a aplicação da medida de promoção e proteção proposta de apoio junto dos pais, designadamente junto da mãe, bem como a suspensão dos convívios com o seu filho ou a sua decorrência no Espaço família como sugerido na diligência pela progenitora/mãe, tendo a progenitora declarado, expressamente, concordar com a referida proposta.

Nessa diligência, após ter sido dada a palavra ao Ministério Púbico, que «promoveu a aplicação provisória da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, designadamente, junto da mãe e ainda, uma vez que a progenitora assim o sugeriu, promoveu que os convívios paterno-filiais passem a ser realizados no Espaço Família.», foi proferida pelo tribunal a quo a seguinte:


Decisão

O tribunal fixa ao menor provisoriamente a medida de promoção e proteção de APOIO JUNTO DOS PAIS, [prevista no art.º 35, n.º 1, alínea a) da LPCJP, anexa à Lei nº 147/99 de 01/09], designadamente, junto da mãe, …, a favor do menor … que se lhe aplica pelo prazo de 06 (seis) meses, com revisão aos 03 (três) meses.

Relativamente aos convívios paterno-filiais, estes efetuar-se-ão, no Espaço Família da Segurança Social em horário a combinar em concreto entre aquele espaço com ambos os progenitores.

Nessa diligência foi ainda requerida e deferida pelo tribunal “a avaliação pericial requerida aos pais com os quesitos a serem juntos pela EMAT e a avaliação pericial agora requerida ao menor aos quesitos indicados pela progenitora.”, tendo a mandatária da progenitor apresentado requerimento indicando que “(…) não prescinde do prazo que lhe foi concedido para requerer a realização de diligências instrutórias e requer também que lhe seja notificado os quesitos periciais indicados pela mãe, para sobre eles se poder pronunciar devidamente, nos termos previstos na  lei e, querendo, indicar também novos quesitos.”, sobre o qual recaiu a seguinte decisão: “(…) deverá a Ilustre Mandatária diligenciar pela consulta física (presencial) dos presentes autos, considerando a natureza dos mesmos ou substabelecer em Il Advogado na Região.

Em 30-10-2023 (ref. 54320288), foi proferido despacho ordenando a ida dos autos com vista ao MP “quanto à nulidade invocada”.

O Ministério Público, em 31-10-2023 (Ref. 54327086), pronunciou-se no sentido de que “(…) Impõe-se em primeiro lugar proteger a criança, assegurando, no entanto, o seu contato com o progenitor em contexto supervisionado, ambiente que protege quer a criança quer o progenitor. O contraditório foi realizado em sede de conferência. (…) [sendo que] o Tribunal de Família e Menores da Comarca da Madeira é competente para apreciar as questões trazidas ao conhecimento do mesmo, independentemente de à posteriori, serem remetidos para apensação caso seja solicitado e determinado nesse sentido. E, por outro lado, a situação de perigo denunciada exigia a aplicação de medida urgente, razão pela qual se justificava um prazo menor para o exercício do contraditório, direito que, aliás, não fica coartado de ser exercido em momento ulterior.


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Inconformado, em 09-11-2023 (ref. 54934357) o progenitor/recorrente … interpôs recurso de apelação da decisão proferida na diligência de 26-10-2023, requerendo a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, e apresentando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido na diligência judicial realizada em 26 de outubro de 2023, que fixou a medida de apoio junto da mãe e determinou que os convívios paterno/filiais passassem a ocorrer no Espaço Família da Segurança Social.
2. Nos termos do artigo 615.º, n.º1, alínea b), do CPC (ex vi artigo 613.º ,n.º 3), deve ser declarada a nulidade do despacho recorrido, por total falta de fundamentação, de facto e de direito, já que nesse despacho não é elencado um único facto que tenha sido relevado ou considerado indiciariamente demonstrado em ordem a sustentar a medida adotada, nem qual o juízo que foi efetuado sobre as provas ou elementos trazidos aos autos, aí se omitindo também qual a análise crítica e a subsunção legal efetuada pela .M.ma. Juiz a quo relativamente à situação em que a criança se encontra, o que motivou que lhe tenha sido aplicada uma medida provisória e o que justificou que essa medida provisória tenha correspondido àquela que foi decretada.
3. Não tendo o Tribunal, ao arrepio do imposto pelo artigo 107.º, n.º 1, da LCPCJ, ouvido o pai, na diligência designada também  para esse efeito e que ocorreu no dia26 de Outubro de 2023, sobre os factos sinalizados, que justificaram a intervenção e que supostamente integram um situação de perigo para a criança, foi violado o direito ao contraditório e cometida irregularidade processual por omissão de ato prescrito e imposto por lei, com influência no exame ou na decisão da causa, que acarreta a nulidade daquela diligência, nulidade essa que assim deve ser declarada, nos termos do disposto no artigo 195.º do CPC, e abarcar a diligência em causa e os atos subsequentes que dela dependem absolutamente, como é o caso da medida provisória fixada.
4. O artigo 107.º, n.º 1, al. b) da LPJCP é materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição, quando interpretado no sentido de não ser obrigatória a audição dos pais sobre os factos objeto da causa, inconstitucionalidade que aqui se deixa expressamente arguida.
5. Tendo o progenitor sido notificado para os termos do artigo 107.º, n.º 3, da LPCJP, a diligência e a decisão proferida quanto à medida provisória enfermam também de vício que acarreta a sua nulidade por não lhe ter sido permitido requerer diligências instrutórias e juntar meios de prova até à realização da diligência judicial de 26 de Outubro, ocorrida antes de terminar o prazo que lhe havia sido concedido para esse efeito, nulidade  essa que, do mesmo modo, deve ser declarada, ao abrigo do artigo 195.º do CPC.
6. A imposição do n.º 3 do artigo 107.º da LPJCP decorre dos princípios constitucionalmente consagrados de um processo judicial justo e equitativo, razão pela qual o artigo 107.º, n.º 3, da LPJCP, é materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição, quando interpretado no sentido de não ser obrigatório o termo do prazo concedido ao progenitor para requerer diligências instrutórias ou juntar meios de prova na ata em que se realize a diligência referida no n.º 1 desse mesmo artigo 107.º, inconstitucionalidade que se deixa expressamente arguida.
7. Não tendo, no decurso da mesma diligência referida no n.º 1 do artigo 107.º da LPCJP, sido permitido à mandatária do progenitor prosseguir, depois de ter sido interrompida pela progenitora, com os esclarecimentos solicitados à Técnica da EMAT ali ouvida, a propósito do que tinha declarado, nem tendo sido permitido colocar qualquer questão à progenitora para esclarecimento do que referiu, foi desse modo também violado o direito à prova e  contraprova, que são expressão do constitucionalmente consagrado direito fundamental a um processo justo e equitativo, importando assim, essa violação, uma vez mais, a nulidade da diligência judicial em questão e da decisão nela tomada, por se encontrar viciada de irregularidade processual grave e que influi na decisão da causa.
8. Independentemente da procedência ou não das nulidades invocadas, a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 4.º, alínea j), 85.º, 104.º e 107.º da LPCJP, sendo, pois, completamente ilegal, razão pela qual não pode manter-se, devendo também por isso ser revogada.
9. A medida provisória decretada pelo Tribunal a quo é completamente contraditória e inconciliável com o regime provisório decidido quer pelo Juízo de Família e Menores do Porto, quer pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais respeitante à mesma criança, nomeadamente no que concerne aos convívios paterno/filiais, violando assim, frontalmente, o comando do artigo 27.º do RGPTC e sendo, também por isso, ilegal.
10. O Tribunal a quo, considerando, erradamente e também infundadamente, que dispunha de competência territorial para apreciar as questões suscitadas neste processo de promoção e proteção, estava, em qualquer caso, obrigado a respeitar, nas decisões que tomasse, aquilo que, em concreto no que diz respeito aos convívios paterno/filiais, fora anteriormente decidido, por outro Tribunal, no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que foi confirmado por um Tribunal Superior e que tem força de caso julgado, pelo que, assim não o fazendo, e decretando, ao invés, uma medida provisória que, particularmente no que respeita a esses convívios entre pai e filho, é contrária ao regime provisório definido naqueles outros autos, violou o despacho recorrido o artigo 619.º, n.º 1, do CPC, sendo também por isso ilegal.
11. Na decisão sub judice foram também completamente desconsiderados e violados os princípios orientadores da intervenção contemplados no artigo 4.º da LPCJP, em especial, e para além do da audição obrigatória e participação, os do interesse superior da criança, proporcionalidade e atualidade, responsabilidade parental, primado da continuidade das relações psicológicas profundas e prevalência da família, pois não existe qualquer fundamento válido para que esta criança seja afastada do convívio com o seu pai, sendo a medida aplicada completamente desproporcionada à pretensa situação de perigo, que não foi apurada nem pode ser extraída dos elementos que os autos contêm, traduzidos em relatórios/informações da Segurança Social que assentam, única e exclusivamente, no que ao perigo concerne, no verbalizado pela progenitora, que não tem qualquer laivo de consistência e coerência, e que estão completamente desgarrados do contexto em que a dita suspeita de abuso surge.
12. Dos elementos processuais juntos pelo progenitor aos autos, no requerimento que apresentou a 18 de outubro de 2023, resulta que a forma como a progenitora agiu no passado é exatamente o contrário da forma como alguém, adulto e responsável por uma criança, deve agir caso tenha reais motivos para se preocupar ou suspeitar que alguém faz mal ao seu filho.
13. O episódio, narrado pela progenitora na diligência judicial, de forma diferente do que consta ter sido narrado por ela na Informação da EMAT de folhas 27 a 30, junta na véspera daquela diligência, referindo que o … colocou-se “de quatro, como rabinho empinado” e, quando questionado o porquê de se pôr naquela posição, terá retorquido que se colocou assim porque lhe apetecia, tendo a progenitora logo referido que “se alguém te mexe no rabinho ou faz coisas no rabinho a polícia vem e dá cabo dessa pessoa” (cfr. minuto 00:40:30 a 00:41:00 da gravação no sistema Citius da diligência de 26 de Outubro de 2023), verbalização essa que supostamente fez a criança chorar e, depois, dizer que “gostava muito do pai” e que a mãe lhe tinha dito “que a polícia o iria matar” (cfr. minuto 00:41:00 a 00:41:50 da gravação no sistema Citius da mesma diligência),quer considerado apenas em si mesmo, quer contextualizado com tudo o demais, não permite que seja considerado minimamente credível, e minimamente consistente, para fundamentar as suspeitas e putativas preocupações alegadas pela progenitora e, muito menos, para fundamentar a medida aplicada, de afastamento entre pai e filho, se foi isso aquilo que a fundamentou, pois, como se viu, o despacho recorrido é completamente vazio de fundamentação e de análise crítica dessas suspeitas.
14. As regras da experiência de vida, especialmente tendo em conta os precisos momentos/timings nos quais surgem estas alegadas suspeitas da progenitora e as suas acusações em relação ao progenitor, não permitem, de todo, considerar como verossímil o alegado por ela.
15. Inexistem nos autos quaisquer elementos de prova, ainda que indiciários e minimamente consistentes, coerentes e credíveis, que possam fundar que o … se encontre numa situação de perigo, em específico por ter sido ou poder vir a ser vítima de abusos sexuais perpetrados pelo progenitor ou qualquer um outro elemento da família paterna.
16. Os relatórios sociais/informações da autoria da Técnica que foi ouvida foram elaborados tendo em consideração exclusivamente os factos descritos pela progenitora, sem nunca ter sido ouvido o progenitor – para já não falar da psicóloga, da terapeuta, das educadoras, do demais pessoal docente ou auxiliar nos equipamentos escolares que a criança frequentou, dos pediatras que teve -, e sem existir qualquer elemento probatório, ainda que meramente indiciário, que suporte o descrito pela progenitora, resultando daqueles  relatórios/informações que o contacto estabelecido com o atual equipamento escolar se resumiu a aferir que a integração escolar do … é adequada, pelo que resulta, à contrário, que não existiu qualquer informação da escola no sentido de sinalizar comportamentos não normativos, designadamente de cariz sexual, na criança.
17. Deve assim a medida provisória aplicada ser revogada, em especial na parte em que determinou que os convívios da criança com o pai sejam realizados no Espaço Família da Segurança Social, e, quanto muito, substituída por medida de apoio junto dos pais, que não estabeleça qualquer condicionamento a esses convívios(provisoriamente fixados nos autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais pendentes no Juízo de Família e Menores do porto), porquanto, além de infundamentada, é tal medida também infundada e injustificada, por não estar minimamente indiciada a existência da situação de perigo, para as segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança, que legitime a intervenção que foi efetuada, nem, muito menos, que esse invocado perigo resulte de alguma ação ou omissão do pai, justificativa de uma decisão provisória que o afaste do filho, tendo sido violado o artigo 35.º,n.º 2, da LPCJP, e também os princípios orientadores da intervenção previstos no artigo 4.º, alíneas a), d), e), f), g), h) e j) do mesmo diploma legal, assim como o artigo 1878.º, n.º 1, do Código Civil e ainda os artigos 36.º, n.º 6, e 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

 

Em 13-11-2023 (54394800) foi proferido despacho que declarou o Tribunal da Madeira incompetente em razão do território, e competente o Juízo de Família e Menores do Porto, e ordenou a remessa a este último.

A progenitora/recorrida … apresentou em 17-11-2023 (Ref. 5508775) resposta às alegações, pronunciando-se pela atribuição de efeito devolutivo ao recurso, atenta a natureza do processo e o disposto no art. 32.º, n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, pronunciando-se:

a) pela improcedência da nulidade por falta de fundamentação, defendendo que as declarações prestadas pelas técnicas que elaboraram o relatório que consta do processo – conforme gravação da diligência na qual o despacho foi proferido – permite inferir que o despacho foi fundamentado, e que a jurisprudência tem entendido que só a absoluta falta de fundamentação, não apenas a sua insuficiência, determina a nulidade da decisão, sendo possível descortinar, do despacho recorrido, de forma clara, as razões do decidir;

b) pela inexistência de violação do disposto no art. 27.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e da violação de caso julgado;

c) pela improcedência da arguição de nulidades consistentes na violação do direito de audição e participação e ao contraditório do recorrente;

d) pela improcedência da falta de falta de fundamento para a medida provisória aplicada e da violação dos princípios orientadores da intervenção.

Em 15-12-2023 (Ref. 54551654) foi efetuada a transferência eletrónica do processo do Juízo de Menores e Família do Funchal para o Juízo de Menores e Família do Porto.

O Ministério Público, em 29-12-2023 (Ref. 455361645),  apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se pelo indeferimento do requerimento de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, por oposição e contradição ao artigo 124.º, n.º 2 da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo/ Lei 147/99, de 1.09, e por não existirem fundamentos justificativos da atribuição de tal efeito, e pela improcedência do recurso, por se tratar de uma medida cautelar provisória, passível de subsequente alteração, “(…) proferida no interesse da criança …, após o conhecimento de factualidade merecedora de apreciação jurídico-criminal, por           referência a comportamentos, eventualmente, consubstanciadores de abuso sexual (…)”, proferida no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, pelo que “(…) até tal recolha de elementos que permitam outra fundamentação, a decisão proferida a título cautelar deverá perdurar, por só assim estar assegurado o cabal interesse, segurança e bem-estar da criança (…)”, e que “(…) em face das circunstâncias conhecidas e alegadas pelo M.P., é evidente a necessidade de intervenção em sede de promoção e proteção, bem assim, subsequentemente, a fixação de um regime cautelar, para proteção e segurança do …, criança de seis anos de idade, sem prejuízo, do posterior andamento do processo e realização e conhecimento de todas as diligências tidas por necessárias, quer declarações/inquirições/audições, quer perícias médico – legais, ou outras tidas por relevantes e fundamentais, já realizadas ou a realizar no âmbito criminal.(…)”, concluindo que “(…) não violando a decisão recorrida qualquer norma legal, nem estando ferida de nulidade, isto é, a norma do artigo 615º do C.P.C. e as normas plasmadas na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, deve confirmar-se a douta decisão recorrida proferida a título provisório e cautelar. (…)”.

Por despacho de 04-01-2024 (Ref. 455428116) o tribunal a quo admitiu o recurso interposto, atribuindo-lhe efeito devolutivo.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso:

São as seguintes as questões suscitadas no recurso interposto:

1. Irregularidades da diligência de 26-10-2023, geradoras da sua nulidade incluindo a decisão aí proferida, por omissão de atos prescritos e irregularidades passíveis de influir na decisão, nos termos do disposto no art. 195.º do Cód. Proc. Civil.

2. Nulidade da decisão por falta de fundamentação – art. 615.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil.

3. Violação do artigo 27.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e do caso julgado que incide sobre o regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais.

4. Falta de fundamento para a medida provisória aplicada e da violação dos princípios orientadores da intervenção.

III. Fundamentação:

A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a referida no relatório que antecede.

Apreciação dos fundamentos do recurso

1. Nulidade da decisão proferida em 26-10-2023 por verificação de irregularidades/omissões geradoras da nulidade da diligência

Invoca o recorrente a nulidade da diligência e, subsequentemente, da decisão nela proferida, por verificação das seguintes irregularidades processuais/omissão de atos prescritos que, influenciando a decisão da causa, geram tal nulidade, nos termos do disposto no art. 195.º do Cód. Proc. Civil:

a) omissão da audição obrigatória do recorrente sobre os factos sinalizados;

b) por retirada da palavra à mandatária do progenitor no decurso da diligência, impedindo o exercício do contraditório e violando o direito constitucional a um processo justo e equitativo;

c) por realização da diligência antes do decurso do prazo previsto no n.º 3 do art. 107.º da LPJCP para requerer diligências instrutórias e juntar meios de prova até à realização da diligência judicial de 26 de outubro de 2023.

1.1. Nulidade decorrente da falta de audição do recorrente e de retirada da palavra à mandatária do progenitor no decurso da diligência

As irregularidades geradoras da nulidade invocada, tendo – de acordo com o alegado – ocorrido no decurso da diligência de 26 de outubro de 2023, na qual o aqui recorrente estava presente (pessoalmente e representado pela respetiva mandatária judicial) tinham, nos termos do disposto no art. 199.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, que ter sido arguidas até ao final da referida diligência perante o tribunal a quo. Como resulta da leitura da Ata de Audição de 26-10-2023, não foi arguida na referida diligência a existência de nulidade, quer por falta de audição do pai, aí presente (em violação do disposto no art. 107.º, n.º 1, al. b), da LPCJP), quer por não ter sido permitido à mandatária do recorrente efetuar mais questões.

Os recursos destinam-se a obter, pelo tribunal ad quem, a reapreciação das decisões proferidas pelo tribunal a quo. Estando em causa nulidades atinentes à tramitação processual – erro de procedimento –, como aqui sucede, as mesmas têm que ser arguidas perante o tribunal a quo, e por este decididas, sendo então dessa(s) decisão(ões) que aprecia(m) e decide(m) sobre a (in)existência e procedência ou improcedência da arguida nulidade que pode ser interposto recurso. Só as nulidades previstas no art. 615.º do Cód. Proc. Civil é que podem ser arguidas em sede de recurso.

Não pode este tribunal de recurso conhecer das irregularidades referidas nas als. a) e b) – invocadas pela primeira vez no recurso interposto, não se verificando a situação prevista no n.º 3 do art. 199.º do Cód. Proc. Civil –, que não foram arguidas perante o tribunal a quo, como, se entendia que se verificavam, teria o apelante que ter efetuado.[1]

Conforme referido no Ac. deste TRP de 15-12-2021, proc. 515/14.3TBVCD-G.P1, cuja sucinta clareza da fundamentação se passa a transcrever, «(…)[d]o recurso deve destrinçar-se a arguição de nulidades processuais, uma vez que o regime das nulidades impõe, em princípio, a sua arguição perante o tribunal onde estas são cometidas.

A nulidade processual (ou nulidade de procedimento, por contraposição à nulidade de julgamento) verifica-se quando existe desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo seguido nos autos, ao qual aquela faça corresponder – embora de modo não expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais[1].

O regime das nulidades secundárias é inteiramente inspirado, nos vários aspectos em que se desdobra, por um são princípio de economia processual[2] – a nulidade de um acto só arrastará consigo a inutilização dos termos subsequentes que dele dependam essencialmente; se um acto for nulo apenas numa das suas partes, as partes restantes que dela não dependam, manterão a sua validade; se o vício do acto apenas impedir a produção de determinados efeitos, não serão afectados os restantes efeitos para que o acto seja apto; para a apreciação das nulidades é competente o tribunal onde o processo se encontre ao tempo da reclamação.

A nulidade (e ressalvadas as nulidades principais previstas nos arts. 186º a 194º do CPC) só se verifica quando a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa (art. 195º, nº 1 do CPC), dependendo a sua apreciação e julgamento de invocação por parte do interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto (arts. 196º, 2ª parte e 197º, nº 1 do CPC).

Do regime legal estabelecido cabe realçar que a arguição de nulidade secundária é feita perante o tribunal onde a irregularidade foi cometida, nos prazos previstos no art. 199º, nº 1 do CPC (cfr. também o art. 149º, nº 1 do CPC), podendo ser arguida perante o tribunal superior no caso de o processo ser expedido em recurso antes de findar o prazo para a parte a invocar (art. 199º, nº 3 do CPC).

Fácil concluir que uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, tem de seguir o regime próprio para a sua arguição, não podendo ser atacada através de recurso – sem embargo dos casos em que são de oficioso conhecimento, as nulidades ‘devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz’ e é a ‘decisão que vier a ser proferida que poderá ser impugnada por via recursória’ (ainda que tal faculdade sofra agora da limitação estabelecia no nº 2 do art. 630º do CPC – o recurso das decisões proferidas sobre nulidades previstas no nº 1 do art. 195º do CPC só é admissível se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios)[3].

Esta ‘solução deve ser aplicada aos casos em que tenha sido praticada uma nulidade processual que se projecte na sentença, mas que não se reporte a qualquer das als. do nº 1 do art. 615º’ do CPC – embora ‘afecte a sentença, deve ser objecto de prévia reclamação que permita ao juiz reparar as consequências’ extraídas, ainda que com prejuízo da decisão proferida[4].

Nos casos de erro de procedimento, que não de erro de julgamento, deve a parte reclamar (arguir a nulidade), possibilitando ao juiz a sua sanação e não já reagir através da interposição de recurso. Solução traduzida pela máxima ‘dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se’.

A reclamação por nulidade e a impugnação por recurso articulam-se de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia de reclamação. O que pode ser impugnado por via de recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade, e não a nulidade ela mesma, sendo que a perda do direito à impugnação por via de reclamação importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso[5]. (…)».

Concluímos, deste modo, pela impossibilidade de apreciação destas arguidas irregularidades, por as mesmas – constituindo irregularidades passíveis de enquadrar nulidades de procedimento e não de julgamento, não sendo de conhecimento oficioso –, não poderem ser arguidas por meio de recurso nem, por maioria de razão, aqui apreciadas.

1.2. Nulidade decorrente da realização da diligência quando ainda estava em curso o prazo previsto no n.º 3 do art. 107.º da LPJCP para requerer diligências instrutórias e juntar meios de prova

Esta nulidade foi arguida na diligência, como consta da referida Ata de 26-10-2023. A decisão objeto do presente recurso não contém qualquer pronúncia quanto a tal arguição. Afigura-se-nos que será da decisão que o tribunal a quo proferir quanto a tal arguição de nulidade que poderá ser interposto recurso. Afigura-se-nos que não pode este tribunal ad quem substituir-se ao tribunal a quo na apreciação da referida nulidade, no âmbito deste recurso, valendo aqui igualmente as razões supra expendidas.

2. Nulidade da decisão por falta de fundamentação – art. 615.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil

Argui o apelante que a decisão proferida na diligência realizada em 26-10-2023 é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), aplicável ex vi art. 613.º, n.º 3, ambos do Cód. Proc. Civil, por não especificar os fundamentos de factos e de direito que justificam a decisão, uma vez que:

– não existe a enumeração de um único facto que tenha sido relevado ou considerado indiciariamente demonstrado em ordem a sustentar a medida adotada;

– nem qual o juízo que foi efetuado sobre as provas ou elementos trazidos aos autos, nem tampouco são apresentados os motivos da decisão, não havendo, sequer, qualquer alusão a algum meio de prova, nem mesmo aos relatórios que constam dos autos, no sentido de deles se extrair qualquer valoração para dar como assente, ainda que de forma indiciária, uma concreta factualidade referente à criança, e/ou aos pais, que terá fundamentado a medida provisória aplicada e, em específico, a decisão de circunscrever os convívios paterno/filiais a visitas vigiadas na Segurança Social;

– também nenhuma alusão é feita relativamente ao quadro legal que conformou a decisão nele proferida, nomeadamente no que concerne ao concreto perigo em que a criança se encontra, quais as suas causas ou os seus agentes e de que forma é a medida aplicada apta a remover aquele dito perigo e a proporcionar à criança as condições que permitam proteger e promover o seu interesse, ou seja, a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, nem em que termos é a mesma proporcional,

– tampouco esclarece o despacho recorrido quais as circunstâncias, de urgência, que demandaram que fosse tomada uma medida de natureza provisória com o conteúdo daquela que foi fixada.

Na diligência realizada em 26-10-2023, o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão: « O tribunal fixa ao menor provisoriamente a medida de promoção e proteção de APOIO JUNTO DOS PAIS, [prevista no art.º 35, n.º 1, alínea a) da LPCJP, anexa à Lei nº 147/99 de 01/09], designadamente, junto da mãe, …, a favor do menor … que se lhe aplica pelo prazo de 06 (seis) meses, com revisão aos 03 (três) meses.

Relativamente aos convívios paterno-filiais, estes efetuar-se-ão, no Espaço Família da Segurança Social em horário a combinar em concreto entre aquele espaço com ambos os progenitores.».

Nos termos da al. b) do n.º 1 art. 615.º do Cód. Proc. Civil, “[é] nula a sentença quando (…) [n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Esta nulidade por falta de fundamentação está diretamente relacionada com o dever de fundamentação legalmente previsto no art. 154.º do Cód. Proc. Civil e com consagração constitucional desse dever de fundamentação no art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, constituindo tal nulidade a sanção para o incumprimento do disposto no art. 607.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, que impõe ao juiz, na fundamentação da decisão, o dever de ‘discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes’.

Compreende-se que assim seja, uma vez que a fundamentação consiste na explicação das razões pelas quais se toma determinada decisão, o que é essencial para que os seus destinatários possam perceber a mesma e acatar (designadamente, por a fundamentação os ter convencido do acerto da decisão) ou contestar a mesma, mediante a interposição do competente recurso.

Com efeito, «A nulidade da sentença carecida de fundamentação justifica-se por duas ordens de razões.

A primeira, baseada na função dos tribunais como órgãos de pacificação social, consistente na necessidade de a decisão judicial explicitar os seus fundamentos como forma de persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada pelo Estado. (…)

A segunda liga-se directamente à recorribilidade das decisões judiciais.

A lei assegura aos particulares (…) a possibilidade de impugná-la, submetendo-a à consideração de um tribunal superior. Mas para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos (…) em que o julgador a baseou.». – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, págs. 688 e 689.

O cumprimento deste dever de fundamentação é, assim «(…) indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz. (…)» - cfr. Ac. do TRG de 02-11-2017, proc. 42/14.9TBMDB.G1.

Incontroverso, na nossa doutrina[2] e jurisprudência[3], que só a falta absoluta de fundamentação – e não apenas a fundamentação deficiente, incompleta ou não convincente – gera a nulidade da sentença.

No caso, a decisão proferida, acima transcrita na íntegra, não elenca nem sequer indica (ainda que de forma não discriminada) qualquer facto que suporte a decisão tomada, não faz qualquer referência a qualquer meio de prova que tenha sido considerado pelo tribunal, não faz qualquer enquadramento, ainda que mínimo, quanto à justificação de facto e de direito para a decisão tomada. No fundo, a decisão restringe-se apenas ao dispositivo, não possuindo qualquer fundamentação.

O facto de se tratar de uma decisão cautelar e provisória no âmbito de um processo de promoção e proteção, embora justificando uma menor exigência no cumprimento do dever de fundamentação, não permite a sua total omissão, que é o que ocorre no caso sub judice.

Tal decorre não só do já acima expendido quanto à consagração legal e constitucional do dever de fundamentação das decisões, mas ainda, no que concretamente se reporta às decisões de aplicação de medidas cautelares no âmbito do processo de promoção e proteção, do facto de estarem em causa medidas que incidem sobre direitos quer da criança, quer dos progenitores, não subsistindo dúvidas de que, sendo a decisão de aplicação de medida cautelar passível de recurso – art. 123.º da LPCJP –, o exercício de tal direito quanto ao acerto ou desacerto da decisão cautelar só pode ser efetivado se se perceber qual a factualidade que foi considerada (e porquê) e qual foi o enquadramento jurídico da situação que levou à aplicação da medida.

De igual modo, na falta da indicação das razões, de facto (e indicação dos meios de prova que levaram o tribunal a considerar indiciada a verificação dos referidos factos) e de direito da decisão tomada, não pode ser exercido, pelo tribunal ad quem, o juízo de reponderação da decisão de aplicação da medida cautelar tomada pelo tribunal a quo.

Com efeito, atualmente, a finalidade dos recursos (ordinários), que pertencem ao modelo de reponderação, é permitir um controlo da decisão impugnada: não a de repetir a ação num tribunal superior e de possibilitar o proferimento de uma decisão sobre novos pedidos do autor ou do réu. Ou seja, a finalidade do recurso não é permitir que o tribunal ad quem reaprecie a decisão recorrida em função de novos factos e de novas provas (bem como de novas contraprovas ou provas do contrário), mas antes possibilitar que aquele tribunal controle a correção da decisão recorrida em função dos elementos disponíveis pelo tribunal a quo” – cfr. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, Lisboa, AAFDL, 2022, p. 123. “O objeto do recurso é a decisão recorrida, visando o recurso apreciar se foi aquela que ex lege devia ter sido proferida, ou seja, destinando-se o recurso apenas a controlar e a corrigir os erros da decisão recorrida” – idem, ibidem, p. 129.

Para poder realizar tal função, tem o tribunal ad quem que saber quais foram os fundamentos – de facto e de direito – da decisão recorrida. Daí que, no âmbito do regime recursivo vigente, não caiba ao tribunal de recurso decidir questões novas.

Para o tribunal ad quem poder ser chamado a decidir pela primeira vez questões já colocadas perante o tribunal a quo, de facto ou de direito, mas que este, irregularmente, se absteve de conhecer, é indispensável que o Tribunal da Relação disponha dos elementos necessários – cfr. o art. 662.º, n.º 2, al. c), e 665.º, n.os 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.

Não havendo – como, no caso, não há – qualquer matéria de facto indicada na decisão proferida, nem qualquer enquadramento jurídico que permita perceber qual é a razão da aplicação da medida cautelar provisória, está este tribunal impedido de exercer a função de reapreciação da decisão proferida, nomeadamente mediante a sindicância do acerto ou desacerto desta decisão, por inexistência de qualquer fundamentação da decisão tomada. Assim, “[p]adecendo a decisão recorrida de total ausência de fundamentação de facto, ou seja, omitindo-se nessa sentença por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final, deve oficiosamente o tribunal ad quem, à luz do art. 662.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, anular tal sentença e determinar que, na 1.ª instância, seja proferida nova sentença com a colmatação tal vício/deficiência” – cfr. o Ac. do TRE de 11-02-2021, proc. 1433/20.1T8FAR-A.E1). [4]

Concluímos, deste modo, pela nulidade da decisão impugnada, devendo a sua falta de fundamentação ser suprida pelo tribunal a quo, nomeadamente mediante a prolação de nova decisão que contenha a fundamentação de facto (com indicação dos meios de prova que foram considerados na formação da convicção quanto a tais factos) e jurídica da decisão que se vier a proferir.

3. Violação do artigo 27.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e do caso julgado decorrente do regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais e

4. Falta de fundamento para a medida provisória aplicada e da violação dos princípios orientadores da intervenção.

Considerando a procedência da arguida nulidade da decisão, fica prejudicado o conhecimento destas duas questões suscitadas no recurso (art. 608.º, n.º 2, ex vi art. 663.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil).

IV. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 3.ª Secção Cível deste Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo apelante, quanto à  arguida nulidade da decisão recorrida, determinando-se que o tribunal recorrido profira uma nova decisão, na qual fixe a fundamentação de facto (incluindo ainda a indicação dos meios de prova que foram considerados na formação da convicção quanto a tais factos) e jurídica da decisão a proferir.

Custas que forem devidas a cargo da apelada … (por ter ficado vencida, tendo oferecido contra-alegação – art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

Notifique.


Porto, 8 de fevereiro de 2024
Ana Luísa Loureiro
António Paulo Vasconcelos
António Carneiro da Silva
_________________
[1] Ver o Ac. TRL de 10-05-2018, proc. n.º 1905/13.4TYLSB-F.L1-6, acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ.
[2] Antunes Varela e outros, op. cit, pág. 687.
[3] Entre outros, Acs. do STJ de 03-03-2021, proc. 844/18.7T8NV.E1.S1 e de 18-02-2021, proc. 1695/17.1T8PDL-A.L2.S1; Ac. do TRC de 13-12-2022, proc. 98/17.2T8SRT.C1, todos acessíveis na base de dados de jurisprudência do IGFEJ.
[4] Ver ainda os Acs. do TRP de 10-02-2016, proc. 847/05.1TMPRT-C.P1, do TRL de 09-02-2010, proc. 2609/09.8TBVFX-A.L1-1, e de 27-06-2019, proc. 10849/15.4T8SNT-J.L1-6; do Ac. do TRE de 04-06-2020, proc. 2359/19.7T8FAR.E1.