Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
433/19.9GDSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CRIME PÚBLICO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
ALTERAÇÃO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
CRIME PARTICULAR
ACUSAÇÃO PARTICULAR
REGIME LEGAL
REGIME PROCESSUAL
Nº do Documento: RP20220427433/19GDSTS.P1
Data do Acordão: 04/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - As nulidades processuais ocorrem perante os pressupostos de facto e de direito existentes na data em que os actos são praticados, uma vez que a nulidade é um vício que afecta a génese do acto e, portanto, só ocorre quando, no momento da prática do acto, a lei não foi cumprida.
II - O regime legal é totalmente omisso quanto às consequências jurídicas da alteração da qualificação do crime, quando daí decorra também uma alteração dos pressupostos processuais/condições de procedibilidade.
III - A divergência jurisprudencial existente nesta matéria emerge, em princípio, do silêncio do legislador sobre os efeitos da referida alteração da qualificação jurídica, silencio este que exige, segundo alguns, a necessidade de intervenção do legislador através do aditamento de uma norma sobre a sanação da falta de legitimidade do MP.
IV - As principais linhas jurisprudenciais podem reconduzir-se a duas, uma que sustenta que o MP perde legitimidade para prosseguir a acção penal, e outra em que se defende que a falta de acusação, encarada como mera irregularidade formal, degrada-se e o arguido pode ser condenado, nos casos em que decorrer dos autos a vontade do assistente de acusar o arguido.
V - A condenação do arguido por um crime particular sem que o assistente tenha deduzido acusação particular não tem base legal assenta na degradação de uma formalidade essencial e contraria o regime do artigo 50º do CPP.
VI - Não tem, efectivamente, apoio legal ou doutrinal a tese segundo a qual o arguido deva ser condenado por ter praticado factos ilícitos e culposos, se estiver em falta uma condição de procedibilidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 433/19.9GDSTS.P1


Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. O Ministério Público acusou para julgamento em processo comum, e perante tribunal singular, AA, devidamente identificado nos autos acima referenciados, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
1.2. BB, na qualidade de lesada, deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido AA a pagar-lhe a quantia de 5.000,00€ pelos danos morais alegadamente causados pela prática de um crime de maus tratos, nos termos que melhor constam de fls.111 e ss.
1.3. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a final sido proferida sentença com a seguinte decisão:
Da parte criminal
Pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a acusação, e, em consequência,
a) absolvo o arguido AA da autoria material de um crime de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal de que vinha acusado;
b) absolvo o arguido AA da presente instância penal relativamente à prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1, do Código Penal que julgo extinta por falta de legitimidade processual;
c) sem custas.
Da parte civil
d) Julgo improcedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB e, em consequência, dele absolvo o demandado civil AA.
e) Custas pela demandante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido.
1.4. Inconformada com a absolvição do arguido, a Assistente recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, concluindo:
A) Ao entender que “a conduta do arguido integra apenas a comissão de dois isolados crimes de injúria…”, o Tribunal “a quo” não poderia decidir pela absolvição do Arguido.
B) No caso dos autos, o Ministério Publico terminou o despacho que deduziu a Acusação dizendo apenas: “Cumpra o disposto nos artigos 277.º, n.º 3 e 283.º, n.º 5, notificando o arguido da possibilidade de requerer a abertura de instrução, no prazo de vinte dias, nos termos do artigo 287.º n, n.º 1, alínea a) todos do Código de Processo Penal.”
C) O Ministério Público NÃO notificou a Assistente para deduzir acusação particular autónoma nos termos do artigo 285º, n.º 1 do CPP, o que em conformidade com o Artigo 119º, al. b) do CPP, constitui NULIDADE INSANÁVEL: “… a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º”.
D) A promoção penal que cabe ao Ministério Público nos crimes de natureza particular, que passa, necessariamente, pela notificação da Assistente para, querendo, deduzir acusação particular, no prazo previsto para o efeito.
E) O Ministério Público deixou de promover o processo como legalmente estava obrigado no caso de um ilícito de natureza particular, na verdade, não está em causa a ausência de um ato legalmente obrigatório, mas antes, a omissão de uma conduta obrigatória por parte do titular da ação penal que, nessa vertente, não promoveu o processo como estava obrigado.
F) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público constitui, assim, uma nulidade insanável, configurada na al. b) do Artº 119 do CPP, e que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do processo, pelo que, este será também o meio legal para a invocar.
G) As consequências da Nulidade são as que resultam do Artigo 122º, n.º 1 do CPP, o qual postula que: “As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.”.
H) No caso em apreço é afetado pela nulidade o despacho de Acusação e todos os termos subsequentes do processo, incluindo a remessa dos autos a juízo, sua distribuição e trâmites de todo o processo, inclusive todo o julgamento.
I) Deve, pois ser declarada a nulidade do despacho final de inquérito proferido nestes autos, ordenando o processo novamente para inquérito, a fim de serem sanadas as nulidades ora invocadas.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que declare a nulidade do despacho de Acusação proferido nestes autos, ordenando o processo novamente para inquérito, afim de serem sanadas as nulidades ora invocadas, dando-se, assim, cumprimento ao preceituado no Artigo 285.º n.º 1 do C.P.P.
1.5. O MP na 1ª instância respondeu à motivação do recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo que, “(…) tal como já referimos supra, entendemos que carece de qualquer razão a recorrente, nenhum vício ou nulidade existiu nos autos, mormente os alegados, pelo exposto deverá o recurso apresentado improceder.”
1.6. Nesta Relação, o Exº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, referindo:
“(…)
3. Pese embora o respeito devido à sentença recorrida e ao sentido da resposta do MP, sou de parecer que o recurso interposto pela assistente merece provimento quanto à questão da absolvição decretada, embora dele se divirja quanto às consequências da revogação da sentença, que igualmente se advoga, pelas razões que, de seguida, sumariamente se explanarão:
a) A sentença, apesar de ter dado como provados factos suscetíveis de integrar a prática pelo arguido de, pelo menos, 2 (dois) crimes de injúria p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do CP, de que foi vítima a assistente, considerou que, não tendo por esta sido deduzida acusação particular, pressuposto procedimental e legitimador da promoção do processo pelo MP relativamente a tais crimes, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 48º a 50º do CPP, e 181º, 184º, a contrario, e 188º do CP, determinou a absolvição do arguido e o consequente arquivamento do processo, já que, quanto ao crime de maus tratos de que vinha acusado não logrou provar-se a factualidade necessária à integração dos respetivos elementos típicos objetivos, mormente o de que a ofendida e assistente fosse pessoa particularmente indefesa;
b) Esta, por seu turno, sem questionar a matéria de facto provada e não provada, que, assim e dado não se vislumbrar qualquer vício da sentença passível de integração no artigo 410º, n.º 2, do CPP, deverá manter-se incólume, diverge da solução encontrada na sentença quanto ao destino do processo, pugnando pela verificação da nulidade insanável do procedimento, por falta de promoção do processo pelo MP, nos termos do artigo 119º, al. b), do CPP, com as consequências invalidantes do seu artigo 122º, a qual deveria ter sido reconhecida e declarada na decisão em apreço, com o consequente e necessário reenvio do processo para a fase de inquérito imediatamente anterior à prolação do despacho de encerramento, para que o MP ordenasse o cumprimento do artigo 285º do CPP, concedendo-lhe, assim, a oportunidade de deduzir a acusação particular considerada em falta pela sentença, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais;
c) Salvo melhor opinião, crê-se que, nem a sentença, nem a recorrente, analisaram corretamente a situação propiciada nos autos com a absolvição do arguido pela prática do crime de maus tratos de que vinha acusado, no que aos 2 (dois) crimes de injúria passíveis de integração pela matéria de facto considerada provada e não questionada, porque a solução não parece passar pela impunidade do arguido quanto a esses crimes, por alegada falta do pressuposto processual consubstanciado pela acusação particular, tão pouco pela do reenvio do processo para aquela fase do inquérito, a fim de se regularizar a instância criminal quanto a esse pressuposto;
d) Efetivamente, apesar da persistência de alguma divergência jurisprudencial acerca da questão enunciada, num aspeto se afigura haver consenso, qual seja o de que, quando, como no caso dos autos, soçobra a acusação pública por um crime tutelar de bens jurídicos complexos, que integram os bens jurídicos protegidos por crimes menos graves e de natureza diferenciada, se os correspondentes factos fossem isoladamente analisados e considerados, como é o caso dos crimes de violência doméstica e de maus tratos, das duas uma: ou a condenação pelos crimes menos graves, semipúblicos ou particulares, reconhecidamente integrados pelos factos provados, e que se perfilavam numa relação de concurso aparente com o mais grave, se mostra possível e deve ser oficiosamente decretada, mesmo sem necessidade de cumprimento do disposto nos artigos 358º e 359º do CPP; ou ela não pode ter lugar por falta dos correspondentes pressupostos procedimentais da queixa e/ou acusação particular, ao menos mediante adesão dos ofendidos à acusação pública deduzida pelo MP, com a inevitável extinção da instância penal, sem qualquer regresso a fases anteriores do processo;
e) No primeiro sentido, podem ver-se, a título meramente exemplificativo, do Tribunal da Relação do Porto, com vasta referenciação de acórdãos dos demais Tribunais da Relação, os seguintes, todos consultados e disponíveis no sitio https://www.pt/jtrp. nsf/:
- Acórdão de 13.01.2021, proferido no processo n.º 799/18.8GBPNF.P1, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato;
- Acórdãos de 10.2.2021 e de 28.4.2021, proferidos nos processos n.ºs 383/18.6 GAVNG.P1 e 668/19.4GAFLG.P1, respetivamente, ambos relatados pelo Desembargador Paulo Costa;
- Acórdão de 2.2.2022, proferido no processo n.º 927/20.3KRPRT.P1, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio.
f) No segundo dos indicados sentidos, pode ver-se, também a título meramente exemplificativo e do mesmo TRP, com referenciação de outros acórdãos no mesmo sentido, consultado e disponível no mesmo sítio, o acórdão de 11.10.2021, proferido no processo n.º 63/20.5GBOVR.P1, relatado pelo Desembargador João Pedro Nunes Maldonado;
g) Tendo em consideração essas correntes jurisprudenciais, forçoso é concluir pela improcedência da pretendida declaração da nulidade insanável do procedimento prevista na al. b) do artigo 119º do CPP, com as consequências invalidantes estabelecidas no seu artigo 122º, pois como se extrai do acórdão do TRP relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e ficou a constar dos pontos V e VI do sumário publicado, «Iniciando-se validamente o procedimento sem necessidade de queixa, vindo a questão a colocar-se apenas na sequência de alteração ocorrida na sequência da prova produzida em julgamento não renasce, em tal fase, a matéria relativa à procedibilidade do procedimento ou legitimidade do Ministério Público para a prossecução do processo - até porque a imputação criminosa inovatória não resulta de ato próprio deste, mas antes de atividade cometida ao tribunal -, pelo que o curso normal do processo apenas poderá ser impedido pelo surgimento de um obstáculo, como seja a apresentação de desistência de queixa pelo ofendido» e «Mesmo nos casos em que o procedimento se inicie por crime público, a ulterior imputação e responsabilização por crime de natureza semi-pública resultante da prova produzida em audiência de julgamento, dependerá necessariamente dos factos terem chegado ao conhecimento do Ministério Público dentro do prazo legal de seis meses, sob pena de, a não ser assim, se violar o princípio da igualdade relativamente a ofendidos e arguidos que, em idênticas circunstâncias mas em que o procedimento se iniciasse logo como relativo a crime semipúblico, seriam confrontados com a caducidade do direito de queixa (ofendidos) e beneficiariam do arquivamento do processo (arguidos)»;
h) E dos acórdãos também acima referenciados relatados pelo Desembargador Paulo Costa, cuja orientação se mostra sintetizada no sumário publicado do primeiro deles «Os pressupostos processuais, em geral, de que os atinentes à procedibilidade são um mero espécimen, só podem estar ao serviço da Justiça (do caso concreto) e não ao invés. Se assim não for, é a própria verdade que se não atinge» e «O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal de ausência de acusação particular, não mais se pode continuar com o processo».
i) Ao invés, considerando que os factos provados e integrantes da prática de 2 (dois) crimes de injúria, ocorreram entre Junho e agosto e em 5 de dezembro de 2019, que a ofendida apresentou denúncia na GNR ... no dia 5 de dezembro de 2019, requereu a sua constituição como assistente no dia 12 de dezembro de 2019 e reiterou essa vontade em 18 de dezembro de 2019, mediante requerimentos oportuna e tempestivamente apresentados no processo, e que, após decisão favorável da segurança social quanto ao apoio judiciário solicitado, naquelas datas, foi efetivamente admitida a intervir nos autos nessa qualidade, por despacho judicial de 9 de março de 2020 (referência 413046676), quando ouvida no processo, no dia 9.1.2020, reiterou os factos denunciados e manifestou expressamente a vontade de procedimento criminal contra o denunciado e arguido pelos mesmos, e que, apos notificação da acusação deduzida pelo MP pelo crime público de maus tratos, em peça entrada no dia 17.7.2020, deduziu pedido cível contra o arguido, sufragando expressamente essa acusação, logo no artigo 1º do correspondente articulado, dúvidas não restam de que se mostram preenchidos todos os elementos necessários que impunham à juíza a quo que condenasse o arguido pela prática dos crimes de injúria reconhecidos na sentença e apreciasse o pedido cível formulado, embora reduzido a essa matéria criminal, de que igualmente decorreram parte dos danos não patrimoniais nele reclamados;
j) Ao não condenar o arguido pela prática desses crimes e abstendo-se de conhecer da parte do pedido cível correspondente aos mesmos, incorreu, pois, a sentença sob escrutínio em erro de direito, que, como tal, é passível de conhecimento e correção pelo Tribunal de Recurso, nos termos das disposições conjugadas dos artigo 403º, n.º 3, e 428º do CPP, tanto mais que a questão da absolvição e do destino do processo constitui o verdadeiro objeto do recurso levado às conclusões, impondo-se, por isso, a sua revogação e substituição por outra que puna o arguido pela prática dos aludidos crimes de injúria e correspondente pedido cível, o que, se afigura dever ocorrer na 1ª instância, sob pena de se privar o arguido do direito de recurso quanto às penas em que venha a ser condenado, para tanto devendo ser o processo ser-lhe reenviado, nos termos do artigo 426 do mesmo CPP.
(…)”
1.6. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2 do CPP.
1.7.Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
Factos Provados
1- BB trabalhou ao serviço do arguido AA pelo período de cerca de seis anos e foi funcionária da sociedade “F..., Unipessoal, Lda.” NIF ..., sita na Rua ..., freguesia ..., Santo Tirso, durante cerca de 18 meses.
2- O arguido AA, proprietário da “F..., Unipessoal, Lda.” e na qualidade de entidade patronal da assistente BB, desde que esta iniciou as funções como sua colaboradora, sempre se dirigiu a esta com modos agressivos.
3- Desde meados de 2019, os comportamentos agressivos do arguido AA para com a assistente BB, intensificaram-se e entre Junho e Agosto de 2019, a ofendida, apesar de ser uma funcionária cumpridora das suas tarefas e assídua foi apelidada de “burra” e de “estupida” à frente de quem quer que fosse e que se encontrasse no interior das instalações da “F..., Unipessoal, Lda.”, sitas na Rua ..., freguesia ....
4- No dia 5 de Dezembro de 2019, cerca das 10h00 por questões relacionadas com a descarga de um camião, o arguido AA disse-lhe “ó sua burra e estúpida quem lhe deu indicações para descarregar esta merda à frente” e com tom zangado ainda lhe disse “o que está a fazer aqui sua estúpida” e “és uma burra é para abrir a merda das paletes”.
5- A ofendida sentiu-se humilhada por estas palavras e receosa com a agressividade com que o arguido proferiu estas expressões, abandonou o local de trabalho e não foi capaz de retomar o serviço naquele dia.
6- Com tais atos, o arguido AA não respeitou a situação que existia entre ele e a ofendida, valendo-se da sua posição de entidade patronal para manter o seu comportamento agressivo e inadequado para com esta.
7- A conduta do arguido humilhou a ofendida tornando a vida profissional desta insuportável ao criar-lhe um ambiente de medo e temor de que as agressões psíquicas se repetissem.
8- Com tais atitudes o arguido AA atingiu a ofendida na sua honra e consideração, causando-lhe vexame, incluindo perante terceiros.
9- Atuou com a intenção concretizada de afetar a BB, sua funcionária, na sua honra, atingiu-a na sua saúde psíquica, lesando a sua integridade moral e dignidade pessoal.
10- O arguido AA agiu sempre de modo livre e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
11- Os comportamentos do arguido causaram constrangimento, desgosto, vexame, vergonha, angústia, ansiedade, sentimentos de inferioridade, sofrimento psíquico à assistente e fizeram-na sentir uma inútil.
12- A assistente passou por um estado depressivo, irritava-se facilmente, andava muito triste e com oscilações de humor.
13- A assistente é pessoa séria, honesta e socialmente considerada e estimada na zona onde reside.
14- Integral teor dos documentos de fls. 117, 118-121, 122-126, 127 e 128 que aqui se dá por reproduzido.
15- O arguido tem os antecedentes criminais que constam do respectivo certificado, junto aos autos, que aqui se dá por reproduzido.
Factos Não Provados
O arguido por várias vezes humilhou a BB dirigindo-lhe as expressões “você só consegue ganhar isto porque noutro lado só era boa para limpar retretes” querendo referir-se à baixa escolaridade da ofendida.
Em data não concretamente apurada, mas situada no período de tempo compreendido entre o dia 1 de agosto e o dia 5 de dezembro de 2019, cerca das 12h30, o arguido, dirigiu-se à ofendida, na sequência de uma troca de palavras e agarrou-a com força pelo braço esquerdo, apertando-o, causando-lhe dores e um hematoma.
Em consequência, de tal agressão sofreu BB, dores físicas e hematoma que, todavia, não foram de molde a necessitar de tratamento médico-hospitalar traumatismo.
Ao agir do modo descrito, sabia o arguido AA que causava dores e lesões físicas no corpo da ofendida BB, o que quis e fez.
Em dia, também, não concretamente apurado, mas nas mesmas circunstâncias e lugar o arguido pegou num furador e, em tom sério e agressivo, dirigiu-se à ofendida e disse-lhe que o atirava contra si, o que lhe causou receio, que este venha a atentar novamente contra a sua integridade física e, ainda, lhe dirigiu a expressão “cale-se que você só diz merda quanto menos falar para mim melhor” quando esta o questionou sobre uma fatura.
Na tarde do dia 4 de dezembro de 2019, no interior daquela empresa e porque a ofendida não sabia onde desligar as luzes, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe “és mesmo burra”.
Estes comportamentos injuriosos e violentos do arguido foram frequentes nos últimos seis meses do ano de 2019.
O arguido criou um ambiente de medo e temor de que as agressões físicas se repetissem.
Com tais atitudes o arguido tratou cruelmente a ofendida.
A conduta do arguido é idónea para provocar medo ou inquietação à ofendida, o que aconteceu, na medida em que esta em consequência da mesma ficou a temer pela sua integridade física.
Atuou com a intenção concretizada de afetar a BB, sua funcionária, na respetiva integridade física e atingiu-a na sua saúde física.
A conduta do arguido foi perpetrada ao longo de vários meses, dia após dia.
O comportamento do arguido motivou o isolamento da assistente em casa, de onde não saia nem para realizar qualquer tarefa do quotidiano, permanecendo sempre no interior da sua residência, dialogando e interagindo o mínimo possível, com refúgio constante no choro, quer de dia, quer de noite, tendo perdido o apetite.
Em consequência da conduta do arguido, a assistente tomou medicamentos ansiolíticos e anti-depressivos durante vários meses; esteve sem conseguir dormir durante meses, visualizando constantemente os momentos em que foi humilhada pelo arguido.
Em virtude da conduta do arguido, a assistente esteve de baixa entre 6 de Dezembro de 2019 e 15 de Fevereiro de 2020.
A assistente ainda não recuperou totalmente a sua autoestima e alegria.
Em consequência da conduta do arguido, a assistente ficou três meses sem auferir qualquer rendimento.
À demais matéria não se responde por ser impertinente, conclusiva ou de direito.
Fundamentação
(…)”
2.2. Matéria de direito
A assistente insurge-se contra a sentença que, além do mais, absolveu o arguido (i) da autoria material de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, de que vinha acusado; (ii) da instância penal relativamente à prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1, do Código Penal, julgando-a extinta por falta de legitimidade processual e (iii) do pedido de indemnização civil formulado pela demandante.
A questão a decidir no presente recurso não é nova e tem sido objecto de soluções diversas pela Jurisprudência, como dá nota o MP nesta Relação. Trata-se da questão de saber se, perante uma acusação por crime público - maus-tratos - julgada improcedente por se terem provado apenas factos integrantes da prática de crimes de natureza particular - injúrias - está (ou não) correcta a decisão que absolveu o arguido do crime de maus-tratos e o absolveu ainda “da instância penal” relativamente aos crimes de injúrias, por não ter havido, quanto a estes, acusação particular.
Tendo em linha de conta o teor da sentença recorrida, da motivação do recurso e do parecer do Exº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, estão em confronto três posições:
(i) a posição da sentença recorrida, absolvendo o arguido da prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152ºA, 1, a), do CP de que era acusado e absolvendo-o ainda da “instância penal” relativamente à prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1 do CP, julgando-a extinta por falta de legitimidade processual.
(ii) - a posição da assistente/recorrente, defendendo que a sentença enferma de nulidade, localizada na falta de notificação da assistente para deduzir acusação e que, a seu ver, configura uma nulidade insanável, prevista no art. 119º, b) CPP.
(iii) - a posição do Exº Procurador-geral Adjunto nesta Relação, considerando que - perante a divergência jurisprudencial de que dá nota e seguindo a que lhe parece mais justa - o arguido deve ser condenado pela prática dos crimes de injúria, com remessa dos autos ao Tribunal “a quo”, para que não se frustre o duplo grau de jurisdição.
Vejamos.
Relativamente à posição defendida pela assistente em recurso, pensamos que a mesma não pode ser acolhida. Como vimos, a mesma entende que a falta de notificação do assistente, nos termos do art. 285º, 1 do CPP, isto é, para que este deduza, querendo, acusação particular, traduz a nulidade insanável prevista no art. 119, b) do CPP e pede, em consequência, a declaração de tal nulidade (a qual afecta todos os actos processuais posteriores à referida omissão) e a revogação da sentença, ordenando-se a baixa dos autos ao tribunal a quo, para que seja cumprida a referida notificação.
Julgamos que este entendimento não pode ser acolhido, por uma razão essencial: as nulidades processuais ocorrem perante os pressupostos de facto e de direito existentes na data em que os actos são praticados. Com efeito, de acordo com o art. 118º, 1 do CPP, as nulidades emergem da violação ou da inobservância das disposições da lei do processo. Ou seja, a nulidade é um vício que afecta a génese do acto e, portanto, só ocorre quando, no momento da prática do acto, a lei não foi cumprida.
A lei processual - art. 285º, 1 do CPP -dispõe que, “findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular.
No presente caso, quando findou o inquérito, o MP acusou o arguido pela prática de um crime de maus-tratos, previsto e punido nos termos do art. 152º-A do CP. Tal crime tem (e tinha) natureza pública e, portanto, o MP não tinha o dever de cumprir o art. 285º do CPP (não tinha que ordenar a notificação do assistente para, querendo deduzir acusação, porque o procedimento não dependia de acusação particular). Não tendo, nessa altura, o dever de cumprir o disposto no art. 285º, 1 do CPP, não podia obviamente ter violado esse dever (inexistente).
Resta-nos, assim, o confronto entre a tese da sentença e a tese defendida pelo Exº Procurador-geral Adjunto, procurando a melhor solução para a questão de saber qual o reflexo de não se terem provado todos os factos da acusação por crime público e, face a essa falta de prova, resultar provado um crime cujo procedimento depende de acusação particular.
Como acima referimos, a questão jurídica ora em causa não é nova e tem tido respostas divergentes.
A razão da divergência radica na circunstância de ocorrer uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, transformando um crime público num crime particular. Nesse caso, (i) a queixa, (ii) a constituição de assistente e (iii) a acusação particular, actos que até à ocorrida alteração da qualificação jurídica não eram necessários/legalmente exigíveis, passaram a sê-lo. O regime legal nada nos diz sobre esta eventualidade, ou seja, é totalmente omisso quanto às consequências jurídicas da alteração da qualificação do crime, quando daí decorra também uma alteração dos pressupostos processuais/condições de procedibilidade.
A divergência jurisprudencial emerge, segundo cremos, do silêncio do legislador sobre os efeitos da referida alteração da qualificação jurídica, silencio este que exige, segundo alguns, a necessidade de intervenção do legislador - cfr. neste sentido ANDRÉ LAMAS LEITE: “A falta de condições de procedibilidade para a acção penal e verdadeiras “decisões-surpresa”: interrogações e proposta de iure condendo”, in Revista do Ministério Público 155; Julho-Setembro 2018. Este autor propõe, para solução do problema, o aditamento de uma norma sobre a sanação da falta de legitimidade do MP - «Artigo 50.º-A (Sanação de falta de legitimidade do Ministério Público) :1 – Quando, em virtude do previsto nos artigos 303.º, 358.º e 359.º, resultar falta de legitimidade do Ministério Público para a acção penal, o ofendido é notificado para, em cinco dias, querendo, apresentar queixa e/ou constituir-se assistente, conforme os casos, sendo no acto advertido das consequências processuais daí decorrentes. 2 – Cumpridas as formalidades indicadas no número anterior, a falta de legitimidade considera-se sanada.»
Na ausência de uma norma legal (como a proposta pelo referido autor), temos que analisar o problema à luz do direito vigente.
As principais linhas jurisprudenciais, referidas pelo Exº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, podem reconduzir-se a duas: (i) o MP perde legitimidade para prosseguir a acção penal, ou (ii) a falta de acusação, encarada como mera irregularidade formal, degrada-se e o arguido pode ser condenado, nos casos em que decorrer dos autos a vontade do assistente de acusar o arguido.
No sentido de que o MP perde legitimidade pode ver-se, nomeadamente, a seguinte jurisprudência:
I - A mera supressão de factos da acusação, que leva apenas, na sentença, a um enquadramento jurídico diverso, integra-se na previsão do art. 358º, nº 3 do CPP e deve ser tratada como alteração não substancial de factos. II - Tendo sido o arguido inicialmente acusado por crime de violência doméstica, mas provando-se factos integrantes de crimes de ameaça agravada e de injúria, não havendo assistente nem acusação particular, o Ministério Público carece de legitimidade para prosseguir na acção penal relativamente ao crime de natureza particular – Acórdão do TRE, de 30-9-2014, proferido no recurso 556/12.0PBSTB.E1;
I - A degradação da acusação por crime de violência doméstica cometido por meio de ofensas à integridade física, em crime de ofensa à integridade física, não carece de prévia comunicação ao arguido nos termos do artº 358º1 e 3 CP. II – Nestas circunstâncias há que apurar se se verificam quanto a esses crimes as necessárias condições objectivas de procedibilidade, nomeadamente quanto ao exercício tempestivo do direito de queixa” – acórdão do TRP de 24-2-2016, proferido no processo n.º 1190/14.0GAMAI.
No sentido que admite a degradação da falta de acusação particular e aceita a condenação do arguido, podem ver-se, designadamente, os seguintes acórdãos:
I - Os pressupostos processuais, em geral, de que os atinentes à procedibilidade são um mero espécimen, só podem estar ao serviço da Justiça (do caso concreto) e não ao invés. Se assim não for, é a própria verdade que se não atinge. II - O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal de ausência de acusação particular, não mais se pode continuar com o processo.” - Acórdão da Relação do Porto 383/18.6GAVNG.P1, in DGSI, que cita acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015: «A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima. Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão. Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular»
Concordamos com a jurisprudência que defende a primeira posição.
Com efeito, a condenação do arguido por um crime particular, sem que o assistente tenha deduzido acusação (particular) (i) não tem base legal; (ii) assenta na degradação de uma formalidade essencial e (iii) contraria o regime do artigo 50º do CPP.
Vejamos porquê, com mais detalhe.
As teses que mantêm a regularidade processual e, portanto, defendem a legitimidade do MP para prosseguir o exercício da acção penal (do procedimento criminal) relativamente a um crime particular, sem acusação particular, sublinham a injustiça traduzida na não condenação, por razões formais, de um culpado, mas não indicam qual a norma legal expressa em que fundamentam a possibilidade da condenação. Procuram afastar aquilo a que chamam de “decisão surpresa”, mas não indicam qual a norma legal que impede, em direito processual penal, uma decisão surpresa a favor do arguido. Este aspecto é, a nosso ver, especialmente relevante. O arguido está a defender-se de um crime público (neste caso, maus-tratos); a sua defesa pode ser dirigida aos factos que transformam os vários actos singulares (consumidos no crime de maus-tratos, como a injúria, por exemplo) em maus-tratos, procurando, desse modo, afastar a intensidade ou gravidade desses actos, sem ter qualquer preocupação em alegar, por exemplo, as situações que, nos termos do art. 180º, 2, do CP, afastavam a punibilidade, como injúria, desses factos isolados. Estranho seria que, nesse caso, a sua defesa se voltasse inesperadamente contra si. Não é assim estranho que o CPP tenha soluções para evitar “decisões surpresa” relativamente à defesa do arguido (arts 303º, 258º e 259º do CPP), mas não as tenha relativamente à acusação do Assistente.
Para além disso, tais teses consideram ainda a acusação como um acto puramente formal (“um acto puramente formal de acusação”) para, desse modo, justificarem a degradação da sua inexistência, enquanto pressuposto processual. Ora, no nosso direito, a acusação é a peça fundamental do processo penal; não só é através dela que se introduz o feito em juízo, como se delimita o tema do processo (e, daí, o princípio da vinculação temática à acusação). Nos crimes particulares, a acusação do assistente é dominante e o MP só pode acusar “pelos mesmos factos, por parte deles, ou outros que não importem uma alteração substancial dos factos” (art. 285º, 3 do CPP). Quer isto dizer que, não tendo havido acusação particular, os elementos subjectivos do tipo relativos ao crime de injúria nem sequer podem ser tomados em conta na sentença, precisamente por se reportarem a crimes particulares e não ter havido acusação do assistente quanto a eles, ainda que constassem da acusação pública.
Note-se ainda que, quanto a este aspecto, a falta dos elementos subjectivos do tipo não pode ser superada através do regime previsto no art. 358º do CPP – neste sentido cfr. o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 1/2015:
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.» Deste modo, sem acusação particular relativamente aos elementos subjectivos dos crimes de injúria, nunca os mesmos poderiam ser levados em conta, mesmo que constassem de acusação do MP, pois esta, quanto a tais crimes, estaria subordinada aos factos da acusação dominante (art. 285º, n.º 4 do CPP).
Por outro lado, decorre das normas legais vigentes, relativamente aos crimes particulares, ser necessário que o ofendido (i) se queixe, (ii) se constitua assistente e (iii) deduza acusação particular (art. 50º, 1 do CPP). A falta da prática de qualquer destes factos, nos prazos estabelecidos na lei (mesmo que o MP tenha acusado), gera a ilegitimidade do MP para promover o processo (art. 48º do CPP). E a falta de legitimidade do MP implica, necessariamente, a absolvição do arguido da instância penal.
É certo que não estão expressamente previstos na lei os reflexos retroativos da alteração da qualificação jurídica (do crime) que implique alteração dos respectivos pressupostos processuais/condições de procedibilidade. Na verdade, nem o art. 358º, nem o art. 359º do CPP dizem alguma coisa sobre as consequências da alteração dos factos ou da qualificação jurídica, quando daí resulte uma alteração da natureza do crime, que deixa de ser público e passa a semipúblico ou particular. Assim, nada dizendo a lei - artigos 358º e 359º CPP - que especialmente regule esta situação, não se vê como afastar a aplicação do regime geral constante do artigo 50º, 1, do CPP, impondo que, nos crimes particulares, os ofendidos cumpram os apontados três requisitos: queixa, constituição de assistente e acusação particular.
Finalmente, não é, a nosso ver, decisivo, dizer que existe deslealdade do Estado para com o ofendido: «O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal de ausência de acusação particular, não mais se pode continuar com o processo».
E não é decisivo por duas razões: (i) primeiro, porque o argumento não vem escorado em qualquer preceito legal; (ii) segundo, porque nem sequer é exacto que o assistente tenha sido privado da possibilidade der acusar.
- Não tem, efectivamente, apoio legal ou doutrinal a tese segundo a qual o arguido deva ser condenado por ter praticado factos ilícitos e culposos, se estiver em falta uma condição de procedibilidade. O sistema processual penal pretende evitar (sim) que o arguido seja surpreendido com uma condenação cujos pressupostos - todos eles, incluindo os processuais - não estejam verificados. O regime dos artigos 358º e 359º do CPP existe para garantir a “lealdade” do Estado no exercício do “jus puniendi”, mas não existe no direito processual penal português um regime semelhante para garantir a posição do assistente no processo.
- Por outro lado, e esta é a segunda razão, nos casos em que o MP acusa por factos que, no momento da acusação, integram um crime público, o assistente tem o prazo de dez dias para também deduzir acusação pelos factos acusados pelo MP – art. 284º, 1, do CPP; ou seja, se a ofendida não deduziu acusação, nem declarou acompanhar a do MP, foi porque, dentro do respectivo prazo, entendeu não o fazer.
Nestes termos, entendemos que, no presente caso (em que não houve acusação da assistente), não era possível a condenação do arguido pela prática dos crimes de injúria, tal como se decidiu na sentença recorrida e, consequentemente, deve negar-se provimento ao recurso.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela assistente, fixando a taxa de justiça em 4 UC, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Porto, 27/04/2022
Élia São Pedro
Donas Botto
Francisco Marcolino