Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
614/21.5PIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
ANIMAL DE COMPANHIA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
DIREITO INTERNACIONAL
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RP20230517614/21.5PIPRT.P1
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime de “Morte e maus tratos de animal de companhia” (artigo 387º, números 3 e 4, do Código Penal) são o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais de companhia.
II – A garantia do bem-estar animal não foi, ainda, objeto de ponderação expressa por parte do legislador constitucional português.
III – O princípio da dignidade da pessoa humana e o propósito de construção de uma sociedade solidária consagrado no artigo 1º da CRP não podem servir de suporte constitucional à incriminação dos maus tratos a animais de companhia, na medida em que tal entendimento viabilizaria a criminalização de praticamente qualquer conduta que o legislador ordinário considerasse relevante sancionar, de modo a assegurar ou mesmo forçar a implementação de certas conceções morais ou políticas – mesmo as mais controversas -, potenciando a aprovação irrestrita de leis penais, por exemplo, em resposta à pressão mediática e social gerada por determinados casos mediáticos, em nome de uma pretensa preocupação de proteção da dignidade da pessoa humana, sem que os bens jurídicos em causa estivessem relacionados com qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado
IV - O direito internacional e o direito da União Europeia (UE), recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, também não oferecem tutela suplementar ao bem-estar animal relativamente aos decorrentes da própria Constituição
V – Não existindo suporte constitucional bastante para criminalizar as condutas (ou omissões) tipificadas no artigo 387º, 3 e 4, do Código Penal, esta norma é materialmente inconstitucional, por violação do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, não podendo ser aplicada.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 614/21.5PIPRT.P1
Data do acórdão: 17 de Maio de 2023
Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Deolinda Dionísio
Desembargadora 2ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Origem:
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Criminal do Porto

Acordam em conferência, por maioria, os juízes acima identificados
do Tribunal da Relação do Porto

nos presentes autos, em que figura como recorrente o Ministério Público.
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal coletivo foi proferido o acórdão parcialmente absolutório datado e depositado em 30 de Novembro de 2022, decidiu-se:
a) Absolver o arguido AA da prática de 2 (dois) crimes de ameaça, previstos e puníveis pelos arts. 153º e 155º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal e de 1 (um) crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punível pelo art. 387º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Penal, este por se reconhecer que a referida norma jurídica é materialmente inconstitucional, por violação do n.º 2, do art. 18º, da Constituição da República Portuguesa;
b) Condenar o mesmo arguido na pena única de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova, em resultado do cúmulo jurídico das penas parcelares de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal e de 3 (três) meses de prisão por cada um de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e puníveis pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal.

2. Inconformado com a absolvição pelo crime de maus tratos a animais de companhia, o Ministério Público interpôs recurso do acórdão, culminando a respetiva motivação com a formulação das seguintes conclusões:
“1. O douto acórdão recorrido, tendo dado como provada a imputada conduta do arguido - que se traduziu no deliberado pontapear do cão que vivia na companhia das ofendidas - afirmou ser materialmente inconstitucional por violação do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 387º do C. Penal e, assim concluindo não poder a mesma ser aplicada, absolveu-o do crime de maus tratos a animais de companhia;
2. Objecto idóneo do presente recurso é a norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 387.º (maus tratos a animais de companhia) do Código Penal, sendo que a questão a dirimir consiste pois em apurar como poderá ser constitucionalmente justificado o exercício da competência do legislador para decretar a norma jurídica penal ali expressa;
3. Reconhecendo-se que a decisão ora em recurso, assentando primordialmente na «doutrina do bem jurídico», se apresenta clara e profusamente fundamentada, estamos todavia em crer que contra os argumentos e raciocínio ali expendidos podem ser alinhadas sólidas e fundadas objecções;
Senão, vejamos:
4. É consabido que os bens elegíveis pelo legislador penal terão de ser reflectidos num «valor jurídico-constitucionalmente reconhecido», isto é, terão que possuir «dignidade constitucional»;
5. Reconhecendo-se não consagrar o texto da lei fundamental um direito constitucional dos animais (de companhia), admite-se ainda que não será de nenhuma das plúrimas incumbências do Estado em matéria de ambiente ou a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (e/ou de qualquer direito não escrito identificável a partir dele) que resultará um fundamento constitucional que legitime constitucionalmente a incriminação em causa;
6. Fundamental será todavia reter que a afirmação da dignidade constitucional dos bens jurídico-penais não se encontra necessariamente limitada àqueles que são directamente dedutíveis do texto da Constituição, através dos preceitos que integram o catálogo dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos;
7. Com efeito, igualmente merecedores de tutela penal serão aqueles bens jurídicos que, apesar de não se encontrarem positivados na Constituição, são todavia discerníveis a partir das normas que integram o texto fundamental;
8. Na verdade, a decisão político-criminal subjacente à introdução no Código Penal da incriminação aqui em causa encontra na Constituição a base legitimadora necessária a poder ter-se por observado o princípio do direito penal do bem jurídico;
9. É de assinalar que tem vindo a ser reconhecida, ao lado dos bens jurídicos individuais (ou dotados de referente individual), a existência de «autênticos bens jurídicos sociais, comunitários, universais [ou] coletivos», sendo que enquanto os primeiros se ligam com a ordem axiológica jurídico-constitucional pela sua inclusão no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, já os segundos tem a sua dignidade jurídico-penal fundada na ordem relativa aos direitos sociais, económicos, culturais e ecológicos;
10. Deve aceitar-se a atribuição de relevância penal a bens jurídicos que, apesar de não se limitarem a dimensões existenciais individuais e colectivas da pessoa, integram ainda assim, expressa ou implicitamente, a ordem axiológica jurídico-constitucional;
11. A justificação da protecção penal do bem-estar dos animais de companhia radica no tipo de relação que os humanos com eles estabeleceram, relação de dependência existencial essa que, retirando-lhes autonomia, os tornou acrescidamente vulneráveis, razão pela qual se deverá reconhecer um dever de garante perante o bem-estar dos animais que o Homem converteu em animais de entretenimento e companhia;
12. É precisamente nesta especial relação que os humanos estabeleceram com aquela categoria de animais - relação de cuidado-de-perigo em que o Homem ficou investido perante aqueles - que se evidencia a conexão da incriminação do artigo 387.º do Código Penal com a ordem axiológica jurídico-constitucional -existindo total congruência ou analogia material entre aquela e o bem jurídico ali reconhecido pelo legislador penal;
13. O artigo 1º da CRP vincula o Estado a empenhar-se na «construção de uma sociedade [...] solidária», sendo que é hoje comummente entendido que tal solidariedade (e co-responsabilidade de todos os membros da comunidade uns com os outros) se estende também para com os animais de companhia;
14. À luz do princípio do direito penal do bem jurídico, aqui reside a legitimidade da criminalização dos maus tratos a animais de companhia: na solidariedade pressuposta pelo modelo de sociedade cuja promoção cabe ao Estado;
15. Tal solidariedade e co-responsabilidade justifica a limitação dos poderes absolutos de disposição sobre aqueles e a imposição de um dever de abstenção da prática de actos causadores de dor ou sofrimento graves e desnecessários a quem com animais de companhia interage;
16. Uma suma, o processo de criminalização dos maus tratos a animais de companhia está positivamente legitimado à face do princípio do direito penal do bem jurídico, pois que a tutela penal tem por objecto um bem jurídico que é dedutível do (pré-existente) dever do Estado de promover a construção de uma sociedade solidária;
17. Face à apurada factualidade, e não sendo a respectiva norma incriminadora inconstitucional, deve pois o arguido ser condenado pela prática do crime que lhe estava imputado;
18. Consigna-se que o douto acórdão recorrido violou o artigo 387º do Código Penal.”

2. O recurso foi liminarmente admitido na primeira instância, com efeito não suspensivo e subida imediata nos próprios autos.
3. Notificado do teor da motivação do recurso, o arguido não apresentou qualquer resposta.
4. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer[1] no sentido do provimento do recurso e revogação da decisão recorrida, louvando-se nos fundamentos da motivação daquele.
5. Notificado do teor do parecer, o recorrido voltou a não apresentar qualquer resposta.
6. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questões a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de segunda instância perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a única questão suscitada, que é de natureza substancial: a da constitucionalidade material da norma legal que tipifica o crime de maus tratos a animais de companhia (artigo 387º, números 3 e 4, do Código Penal).
II – DA FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta as questões substanciais que constituem, pacificamente, o objeto deste recurso, importa ter presentes, primeiramente, os factos pacificamente provados com interesse para a decisão da questão controvertida, bem como a fundamentação jurídica do acórdão recorrido:

A - Os factos provados:
(…)
3. No dia 5 de maio de 2021, o arguido deu início a uma discussão com a ofendida, acusando-a indevidamente de a mesma não ter limpo os dejetos deixados pelo cão, na marquise, fazendo-o num tom autoritário e de superioridade.
4. No dia 7 de maio de 2021, e após 45 minutos de conversa telefónica entre ambos, a chamada desligou-se por motivos alheios à ofendida. Deste modo, o arguido dirigiu-se para a residência da BB, onde – de imediato e em tom rude – começou a questioná-la do porquê de ter desligado tal comunicação.
5. E, não obstante a ofendida ter chamado à cozinha (onde se encontrava) a sua filha CC e o namorado desta (de nome DD) para confirmarem a sua versão, o arguido exaltou-se e apodou-os de «mentirosos», ao mesmo tempo que afirmava que se ia embora.
6. Mas porque acedeu ao telemóvel da BB, o arguido pôs-se a consultar o registo de chamadas e o teor das mensagens existentes no mesmo, e isto pese embora a oposição da ofendida, que tentou reaver o seu aparelho.
7. Nessas circunstâncias, o arguido apelidou a ofendida de «porca» e «vadia» e acabou por lhe desferir um encontrão e uma forte bofetada na face.
8. Mas porque a CC (com 16 anos de idade) e a EE (com 17 anos de idade) acorreram em auxílio da mãe, o arguido desferiu, nesta última, um forte murro na face.
9. Mercê da força imprimida pelo arguido, a EE caiu desamparada no chão, sofrendo uma escoriação com 2cm de diâmetro na face posterior do terço inferior do braço direito, lesão que demandou para a respetiva cura cinco dias de doença sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
10. E porque o arguido começou a berrar, apelidando as três ofendidas de «filhas da puta», «porcas» e «vacas» e a declarar-lhes que as ia matar, as mesmas fugiram e refugiaram-se num quarto.
11. Não obstante, o arguido desferiu um número indeterminado de murros e pontapés na respetiva porta, logrando parti-la e assim aceder ao respetivo compartimento, empurrando as ofendidas que caíram sobre a cama.
12. Nesse momento, o arguido declarou-lhes – uma vez mais em tom sério, convincente e intimidatório – «daqui vocês não saem, vou-vos matar», ao mesmo tempo que desferiu um forte pontapé no cão, animal de estimação das ofendidas e acolhido pelas mesmas na citada habitação.
(…)
20. Acresce que o arguido também atuou com o propósito de magoar, infligindo dor, ao cão acolhido na residência das ofendidas, do qual tratavam, alimentando-o e limpando-o e com o qual brincavam.
21. O arguido não desconhecia o caráter ilícito e criminalmente censurável das suas condutas.
(…)
Mais se provou que:
22. O arguido apresenta episódios de auto e heteroagressividade associados a ingestão excessiva de álcool, perturbação do sono e úlceras na perna por autoagressividade. Aguarda consulta de psiquiatria no CHSJoão e está a ser acompanhado e medicado pela sua médica de família.
23. O arguido confessou integralmente a sua apurada conduta.
24. O arguido já foi condenado:
a) por decisão transitada em julgada em 05.03.2001, proferida no processo n.º 732/99.4PBVLG, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em 22.08.1999, de um crime de abuso sexual de criança. Tal pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 03.09.2007;
b) por decisão transitada em julgada em 30.01.2018, proferida no processo n.º 274/17.8GDSTS, na pena de 180 dias de multa, pela prática, em 23.08.2017, de três crimes de injúria agravada. Tal pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 11.07.2018.
25. Decorre do relatório social do arguido que:
- à data dos factos em causa nos autos, o arguido mantinha alternância entre a habitação da mãe e dos 12 irmãos (designadamente da irmã FF), a maioria a habitar na área limítrofe do concelho de Valongo, uma vez que não dispunha na altura, tal como agora, de enquadramento habitacional próprio.
- ao nível laboral, o arguido mantinha ocupação laboral incipiente na área da construção civil, auferindo rendimentos apenas simbólicos, sem que beneficiasse ou fosse abrangido por qualquer prestação social, sendo através do apoio do grupo familiar de origem que era assegurada a sua subsistência em géneros alimentares e em despesas com a medicação que tomava regularmente;
- o arguido mantinha quotidiano maioritariamente centrado na relação com os seus familiares, reforçando como atividade de lazer a presença assídua nos jogos de futebol do Clube ..., do qual se avalia como adepto fervoroso e sócio, tendo em tempos praticado esta modalidade;
- as condições atuais de vida do arguido não sofreram alterações significativas, seja pela continuidade de acolhimento na maioria do seu tempo no agregado familiar de origem, junto da mãe, cuja morada corresponde a uma habitação pela qual pagam 150€ de renda, estando dotada das infraestruturas necessárias à permanência do arguido na mesma, sempre que se torna necessário; as condições económicas assentam na reforma da mãe no valor aproximado de 400€ mensais, mais o apoio disponibilizado pelas irmãs, suficientes para o pagamento dos encargos e despesas de manutenção do grupo familiar;
- o processo de socialização do arguido decorreu em agregado familiar composto pelos pais e pelo número alargado de irmãos, em contexto de aparente disfuncionalidade familiar, tendo apenas concluído o 3º ano de escolaridade por dificuldades na aprendizagem, inadaptação ao contexto educativo e instabilidade emocional; nunca iniciou o exercício de uma atividade laboral suscetível de viabilizar um quotidiano profissional estruturado, permanecendo na maioria do seu tempo economicamente dependente dos seus familiares, realizando apenas atividades com carácter pontual e indiferenciadas, designadamente como armador de ferro, atividade que exerce inopinadamente na atualidade e lhe permitirá subsidiar alguns dos seus gastos pessoais;
- apresenta confrontos com o sistema da administração penal, tendo já cumprido pena efetiva de prisão; foi-lhe aplicado o instituto de suspensão provisória do processo pelo período de 10 meses, tendo-lhe sido fixada uma injunção de prestação de 80 horas de trabalho comunitário, com acompanhamento pelos serviços de reinserção social da DGRSP, tendo ainda outro processo pendente;
- apresenta alguma dificuldade para, em abstrato, se posicionar criticamente quanto à ilicitude dos factos e suas potenciais consequências; ainda assim, vem cumprindo a presente execução de modo globalmente normativo;
- como perspetiva futura, o arguido manifesta algumas indeterminações, atendendo quer à sua atual situação processual, mas também a algumas problemáticas de saúde, estando a ser acompanhado pela sua médica de família, Dr.ª GG, no Centro de Saúde ..., designadamente com toma de medicação regular, atendendo a uma alegada problemática de alcoolismo, com a qual parece debater-se desde há já vários anos.

B – A fundamentação jurídica do acórdão recorrido:
(…)
CRIME DE MAUS TRATOS DE ANIMAL DE COMPANHIA:
Dispõe o artigo 387.º, nºs 3 e 4 do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, que:
1 – (…)
2 – (…)
3- Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

São já várias as decisões dos nossos tribunais superiores que, na esteira do douto acórdão do Tribunal Constitucional n.º 867/2021, de 10.11.2021, têm considerado inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição.
Nesse sentido, foi também proferida pelo Tribunal Constitucional a Decisão Sumária n.º 344/2022, de 05.05.2022, que entendeu não haver motivo para divergir da jurisprudência do mencionado acórdão, pelo que a reafirmou.
Tal jurisprudência foi recentemente seguida e mantida pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Ac. de 26.09.2022) e pelo Tribunal da Relação do Porto, no douto acórdão proferido no Processo n.º 10/20.1GEVFR.P1, datado de 19.10.2022, relatado por Jorge Langweg (in www.dgsi.pt), cuja fundamentação, por uma questão de brevidade, aqui transcrevemos, por a ela aderirmos:
«O legislador parlamentar incumbe a «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos» (artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP).
No entanto, o legislador não tem uma liberdade absoluta para criminalizar condutas (ou omissões), por força da limitação prevista no número 2 do artigo 18.º da CRP[6], devendo os tipos legais de crime “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses[7] constitucionalmente protegidos” [8] [9].
Por conseguinte, os bens jurídicos protegidos por tipos legais de crime não podem ser protegidos apenas pelo legislador ordinário devendo, antes, emergir de um valor jurídico previamente reconhecido pelo legislador constitucional. A acuidade desta limitação compreende-se, particularmente, em períodos de avanços civilizacionais, em que a sensibilidade da comunidade – leia-se a cultura dominante - evolui mais rapidamente do que o ritmo das revisões constitucionais, podendo gerar potenciais tensões, senão mesmo conflitos, entre as alterações das leis penais e o texto constitucional, devendo ser sempre assegurada a prevalência deste último, em resultado de uma saudável hermenêutica jurídica, de modo a respeitar o Estado de Direito Democrático tal como o mesmo se encontra configurado na Constituição da República Portuguesa.
Dito isto compreende-se, assim, o interesse em determinar o bem jurídico protegido pela norma incriminatória ao abrigo da qual o arguido foi condenado e proceder ao seu confronto com os direitos e interesses constitucionalmente protegidos, de modo a decidir a primeira questão controvertida no recurso. Não se ignoram a este respeito as divergências doutrinárias já anteriormente assinaladas, quer na fundamentação jurídica da sentença recorrida, como do acórdão do Tribunal Constitucional também já citado.
Para a identificação do bem jurídico, interessa proceder a um saudável exercício de hermenêutica jurídica que não se limite à letra da lei – considerando o significado literal mais próximo da norma penal - mas proceda à uma interpretação sistemática, histórica e teleológica, revelando a intenção do legislador – e este plano é extremamente importante para a devida solução do caso concreto, uma vez que se tem de concluir que a letra da lei não é suficientemente clara, uma vez que deu azo a diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais -.
Os elementos objetivos do tipo legal de crime (letra da lei) sugerem que os bens jurídicos protegidos sejam a integridade e o bem-estar físico de um animal de companhia (nº 3 do artigo 387º, 3, do CP) e a sua vida ou integridade física (nº 4 do mesmo artigo).
Para se perceber a intenção do legislador em toda a sua extensão, importa concretizar o conceito legal de “animal de companhia” prevista no artigo 389.º do Código Penal, que informa, inclusivamente, a caracterização sistemática do tipo legal de crime, por estar incluído no Título VI da Parte Especial do Código Penal, relativo aos «crimes contra os animais de companhia».
Artigo 389.º
Conceito de animal de companhia
1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.
Numa aproximação de análise teleológica desse conceito articulado com o tipo legal de crime em discussão nos autos, percebe-se que o legislador ordinário revela uma conceção marcadamente antropocêntrica da regulação da proteção dos animais neste âmbito penal: apenas protege a integridade e o bem-estar físico e a vida dos animais, desde que os mesmos sejam detidos por pessoas, ou sejam destinados a serem detidos por pessoas, no seu lar, para seu entretenimento e companhia. Contrariamente ao que muitas pessoas intuem, os animais de companhia não apresentam, forçosamente, os mais elevados níveis de senciência – logo, com uma estrutura neurológica mais desenvolvida - do que a de outras espécies, nem serão mais importantes para a conservação e desenvolvimento sustentável do ambiente – contrariamente ao que sucede em relação aos insetos polinizadores (abelhas, borboletas, vespas, moscas, escaravelhos e formigas), as espécies que dispersam as sementes, controlam pragas, regulam as populações das suas presas (aves) e aquelas que, por exemplo, fertilizam os solos, diminuem a carga combustível nos pastos (borregos, cabras e gado bovino), que desempenham um papel importante para a preservação e desenvolvimento dos ecossistemas -.
Por outro lado, também se reconhece que o legislador ordinário se preocupou em defender de forma acrescida o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais mais dependentes dos seres humanos e com os quais estes estabelecem fortes laços de afetividade - e que não sejam afetos a atividades económicas como, por exemplo, os da pecuária, que são objeto de outros instrumentos de regulação, por opção do legislador -, tendo estes, assim, um especial dever de proteção e de assistência em relação aos animais de companhia, pelo seu papel de garante – o que legitima, à partida, a responsabilidade penal por crimes de resultado cometidos por omissão ao abrigo de normas penais que estejam em conformidade com a Constituição da República Portuguesa -.
Depreende e compreende-se assim, de forma bastante impressiva, que os bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime em causa sejam o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais de companhia.
Quanto aos animais em geral, o legislador ordinário já tinha estabelecido no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, um conjunto de “princípios básicos para o bem-estar dos animais”:
“1 - As condições de detenção e de alojamento para reprodução, criação, manutenção e acomodação dos animais de companhia devem salvaguardar os seus parâmetros de bem-estar animal, nomeadamente nos termos dos artigos seguintes.
2 - Nenhum animal deve ser detido como animal de companhia se não estiverem asseguradas as condições referidas no número anterior ou se não se adaptar ao cativeiro.
3 - São proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal.
4 - É proibido utilizar animais para fins didáticos e lúdicos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou atividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade e justificada nos termos da lei.”
No entanto, tais preocupações pelo bem-estar animal não foram, ainda, objeto de ponderação expressa por parte do legislador constitucional português, contrariamente ao sucedido noutros países, não sendo os bens jurídicos associados a tais interesses garantidos pela Constituição.
O artigo 1º da CRP consagra Portugal enquanto “República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
O princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º da CRP e o direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º do mesmo texto legal não podem servir de suporte constitucional à incriminação dos maus tratos a animais de companhia, na medida em que tal entendimento viabilizaria a criminalização de praticamente qualquer conduta que o legislador ordinário considerasse relevante sancionar, de modo a assegurar ou mesmo forçar a implementação de certas conceções morais ou políticas – mesmo as mais controversas -, potenciando a aprovação irrestrita de leis penais, por exemplo, em resposta à pressão mediática e social gerada por determinados casos mediáticos, em nome de uma pretensa preocupação de proteção da dignidade da pessoa humana, sem que os bens jurídicos em causa estivessem relacionados com qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado. Certas correntes da criminologia, também suportadas por estudos científicos, associam as condutas integradoras do tipo legal de crime de maus tratos contra animais de companhia como um possível sintoma de perigosidade e desumanidade do agente do crime[15] (perfil psicológico e de personalidade), reconhecendo nessas condutas a revelação de uma personalidade com propensão para gerar também um perigo abstrato de ofensa à vida ou à integridade de seres humanos. No entanto, os crimes de perigo abstrato têm particulares exigências de tipicidade, impondo que a conduta típica seja descrita de modo especialmente preciso[16] existindo um nexo causal de perigosidade entre a conduta que é proibida e a lesão do bem jurídico que sustenta a proibição – o que não é manifestamente o caso do tipo legal de crime em discussão -, o que afasta essa referência constitucional – o direito à vida humana e à integridade física (artigos 24º, 1 e 25º, 1, da CRP) - enquanto suporte da incriminação em discussão neste recurso.
Além das teses acima expostas, alguns autores[17] - além da própria decisão recorrida e do Ministério Público nos presentes autos - reconhecem no artigo 66º da CRP o suporte constitucional para o tipo legal de crime em discussão nos presentes autos, por prever um direito fundamental ao ambiente, cuja proteção ativa é também imposta ao Estado como sua tarefa fundamental pelo artigo 9.º, e), do mesmo texto legal.
Porém, resulta claro pela configuração ontológica das realidades em discussão, que o direito fundamental ao ambiente não protege diretamente os animais “qua tale”, enquanto seres individuais, mas apenas na medida da sua relevância para o ambiente como um todo[18], o que retira fundamento legal à tese propugnada pelo Ministério Público, uma vez que o ser que é a vítima do crime de maus tratos de animal doméstico é um animal doméstico concreto, individual: neste sentido, tal como também reconhecido no acórdão nº 867/2021 do Tribunal Constitucional[19], “um mesmo animal beneficiará ou não da proteção decorrente de um crime como o de dano consoante seja ou não propriedade de alguém. Já se houver lugar a proteção por razões de ordem ambiental, o animal será protegido independentemente de qualquer outro laço de natureza jurídica que o ligue diretamente a um ser humano.”
Do mesmo modo, o direito internacional e o direito da União Europeia (UE), recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, também não oferecem tutela suplementar ao bem-estar animal relativamente aos decorrentes da própria Constituição: seguindo também neste ponto a fundamentação do citado aresto do Tribunal Constitucional, “(…) A principal possibilidade seria o artigo 13.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que atualmente reconhece os animais enquanto «seres sensíveis» e impõe o respeito pelo seu «bem-estar». Contudo, essa norma, conquanto constitua mais um relevante sinal de aprofundamento da tutela do bem-estar dos animais, tem um âmbito de aplicação claramente circunscrito às políticas da UE «nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço». (…) Isto mesmo fora já sustentado pelo Tribunal de Justiça da UE em Jippes e Outros. c. Minister van Landbouw, Natuurbeheer em Visserij (C-189/01) (cf. sobretudo os parágrafos 71 ss.), onde o Tribunal «concluiu, de modo restritivo, que estas exigências não constituem um objetivo geral nem um princípio geral de Direito Comunitário» (…).”.
Nestes termos, não existindo suporte constitucional bastante para criminalizar as condutas (ou omissões) tipificadas no artigo 387º, 3 e 4, do Código Penal, esta norma é materialmente inconstitucional, por violação do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, não podendo ser aplicada.»
Ora, sendo tal norma inconstitucional, não pode a mesma ser aplicada, o que nos leva a concluir que a apurada conduta do arguido consistente no pontapear do cão que vivia na companhia das ofendidas não integra a prática de crime, pelo que se impõe a sua absolvição.”
*
Concretizado o objeto do processo, cumpre apreciar o mérito do recurso, mediante o devido enquadramento jurídico da questão controvertida.
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A - Da competência do Tribunal da Relação:
O Ministério Público recorrente motiva o seu recurso numa questão jurídica – apreciação da constitucionalidade material de uma norma jurídica vertida numa Lei - cuja decisão compete a este tribunal nos termos do disposto nos artigos 204º da CRP, 412º, 2, a) e b), 427º e 428º, estes do Código de Processo Penal (CPP).
Importa ainda acrescentar que, independentemente da procedência ou improcedência do recurso, o presente acórdão é suscetível de ser objeto de recurso para o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, à luz do estatuído no artigo 280º, 1, a) e b), da CRP.

B - Do bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime e da sua relevância constitucional:
O entendimento jurídico que prevaleceu, por maioria, na deliberação do presente acórdão, corresponde àquele que foi citado e transcrito na decisão recorrida, proferido no acórdão relatado pelo ora signatário no processo nº 10/20.1GEVFR.P1, datado de 19.10.2022, também subscrito pela, então primeira adjunta, Desembargadora Dra. Maria Dolores da Silva e Sousa, com a seguinte fundamentação:
“O tipo legal de crime pelo qual o arguido recorrente foi condenado encontra-se previsto no artigo 387 nº 3 e 4 do CP na redação dada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto:
TÍTULO VI
Dos crimes contra animais de companhia
Artigo 387.º
Morte e maus tratos de animal de companhia
1 – (…)
2 – (…)
3- Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Ao legislador parlamentar incumbe a «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos» (artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP).
No entanto, o legislador não tem uma liberdade absoluta para criminalizar condutas (ou omissões), por força da limitação prevista no número 2 do artigo 18.º da CRP[4], devendo os tipos legais de crime “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses[5] constitucionalmente protegidos” [6] [7].
Por conseguinte, os bens jurídicos protegidos por tipos legais de crime não podem ser protegidos apenas pelo legislador ordinário devendo, antes, emergir de um valor jurídico previamente reconhecido pelo legislador constitucional. A acuidade desta limitação compreende-se, particularmente, em períodos de avanços civilizacionais, em que a sensibilidade da comunidade – leia-se a cultura dominante - evolui mais rapidamente do que o ritmo das revisões constitucionais, podendo gerar potenciais tensões, senão mesmo conflitos, entre as alterações das leis penais e o texto constitucional, devendo ser sempre assegurada a prevalência deste último, em resultado de uma saudável hermenêutica jurídica, de modo a respeitar o Estado de Direito Democrático tal como o mesmo se encontra configurado na Constituição da República Portuguesa.
Dito isto compreende-se, assim, o interesse em determinar o bem jurídico protegido pela norma incriminatória (…) e proceder ao seu confronto com os direitos e interesses constitucionalmente protegidos, de modo a decidir a primeira questão controvertida no recurso. (…).
Para a identificação do bem jurídico, interessa proceder a um saudável exercício de hermenêutica jurídica que não se limite à letra da lei – considerando o significado literal mais próximo da norma penal - mas proceda à uma interpretação sistemática, histórica e teleológica, revelando a intenção do legislador – e este plano é extremamente importante para a devida solução do caso concreto, uma vez que se tem de concluir que a letra da lei não é suficientemente clara, uma vez que deu azo a diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais -.
Os elementos objetivos do tipo legal de crime (letra da lei) sugerem que os bens jurídicos protegidos sejam a integridade e o bem-estar físico de um animal de companhia (nº 3 do artigo 387º, 3, do CP) e a sua vida ou integridade física (nº 4 do mesmo artigo).
Para se perceber a intenção do legislador em toda a sua extensão, importa concretizar o conceito legal de “animal de companhia” prevista no artigo 389.º do Código Penal, que informa, inclusivamente, a caracterização sistemática do tipo legal de crime, por estar incluído no Título VI da Parte Especial do Código Penal, relativo aos «crimes contra os animais de companhia».
Artigo 389.º
Conceito de animal de companhia
1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.
Numa aproximação de análise teleológica desse conceito articulado com o tipo legal de crime em discussão nos autos, percebe-se que o legislador ordinário revela uma conceção marcadamente antropocêntrica[8] da regulação da proteção dos animais neste âmbito penal: apenas protege a integridade e o bem-estar físico e a vida dos animais, desde que os mesmos sejam detidos por pessoas, ou sejam destinados a serem detidos por pessoas, no seu lar, para seu entretenimento e companhia. Contrariamente ao que muitas pessoas intuem, os animais de companhia não apresentam, forçosamente, os mais elevados níveis de senciência – logo, com uma estrutura neurológica mais desenvolvida - do que a de outras espécies[9], nem serão mais importantes para a conservação e desenvolvimento sustentável do ambiente – contrariamente ao que sucede em relação aos insetos polinizadores (abelhas, borboletas, vespas, moscas, escaravelhos e formigas), as espécies que dispersam as sementes, controlam pragas, regulam as populações das suas presas (aves) e aquelas que, por exemplo, fertilizam os solos, diminuem a carga combustível nos pastos (borregos, cabras e gado bovino), que desempenham um papel importante para a preservação e desenvolvimento dos ecossistemas -.
Por outro lado, também se reconhece que o legislador ordinário se preocupou em defender de forma acrescida o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais mais dependentes dos seres humanos e com os quais estes estabelecem fortes laços de afetividade[10] - e que não sejam afetos a atividades económicas como, por exemplo, os da pecuária, que são objeto de outros instrumentos de regulação, por opção do legislador -, tendo estes, assim, um especial dever de proteção e de assistência em relação aos animais de companhia, pelo seu papel de garante – o que legitima, à partida, a responsabilidade penal por crimes de resultado cometidos por omissão ao abrigo de normas penais que estejam em conformidade com a Constituição da República Portuguesa -.
Depreende e compreende-se assim, de forma bastante impressiva, que os bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime em causa sejam o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais de companhia[11].
Quanto aos animais em geral, o legislador ordinário já tinha estabelecido no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, um conjunto de “princípios básicos para o bem-estar dos animais”:
“1 - As condições de detenção e de alojamento para reprodução, criação, manutenção e acomodação dos animais de companhia devem salvaguardar os seus parâmetros de bem-estar animal, nomeadamente nos termos dos artigos seguintes.
2 - Nenhum animal deve ser detido como animal de companhia se não estiverem asseguradas as condições referidas no número anterior ou se não se adaptar ao cativeiro.
3 - São proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal.
4 - É proibido utilizar animais para fins didáticos e lúdicos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou atividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade e justificada nos termos da lei.”

No entanto, tais preocupações pelo bem-estar animal não foram, ainda, objeto de ponderação expressa por parte do legislador constitucional português[12], contrariamente ao sucedido noutros países, não sendo os bens jurídicos associados a tais interesses contemplados no conjunto de interesses garantidos pela Constituição.
O artigo 1º da CRP consagra Portugal enquanto “República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
O princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º da CRP e o direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º do mesmo texto legal não podem servir de suporte constitucional à incriminação dos maus tratos a animais de companhia, na medida em que tal entendimento viabilizaria a criminalização de praticamente qualquer conduta que o legislador ordinário considerasse relevante sancionar, de modo a assegurar ou mesmo forçar a implementação de certas conceções morais ou políticas – mesmo as mais controversas -, potenciando a aprovação irrestrita de leis penais, por exemplo, em resposta à pressão mediática e social gerada por determinados casos mediáticos, em nome de uma pretensa preocupação de proteção da dignidade da pessoa humana, sem que os bens jurídicos em causa estivessem relacionados com qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado. Certas correntes da criminologia, também suportadas por estudos científicos, associam as condutas integradoras do tipo legal de crime de maus tratos contra animais de companhia como um possível sintoma de perigosidade e desumanidade do agente do crime[13] (perfil psicológico e de personalidade), reconhecendo nessas condutas a revelação de uma personalidade com propensão para gerar também um perigo abstrato de ofensa à vida ou à integridade de seres humanos. No entanto, os crimes de perigo abstrato têm particulares exigências de tipicidade, impondo que a conduta típica seja descrita de modo especialmente preciso[14] existindo um nexo causal de perigosidade entre a conduta que é proibida e a lesão do bem jurídico que sustenta a proibição – o que não é manifestamente o caso do tipo legal de crime em discussão -, o que afasta essa referência constitucional – o direito à vida humana e à integridade física (artigos 24º, 1 e 25º, 1, da CRP) - enquanto suporte da incriminação em discussão neste recurso.
Além das teses acima expostas, alguns autores[15] reconhecem no artigo 66º da CRP o suporte constitucional para o tipo legal de crime em discussão nos presentes autos, por prever um direito fundamental ao ambiente, cuja proteção ativa é também imposta ao Estado como sua tarefa fundamental pelo artigo 9.º, e), do mesmo texto legal.
Porém, resulta claro pela configuração ontológica das realidades em discussão, que o direito fundamental ao ambiente não protege diretamente os animais “qua tale”, enquanto seres individuais, mas apenas na medida da sua relevância para o ambiente como um todo[16], o que retira fundamento legal à tese propugnada pelo Ministério Público, uma vez que o ser que é a vítima do crime de maus tratos de animal doméstico é um animal doméstico concreto, individual: neste sentido, tal como também reconhecido no acórdão nº 867/2021 do Tribunal Constitucional[17], “um mesmo animal beneficiará ou não da proteção decorrente de um crime como o de dano consoante seja ou não propriedade de alguém. Já se houver lugar a proteção por razões de ordem ambiental, o animal será protegido independentemente de qualquer outro laço de natureza jurídica que o ligue diretamente a um ser humano.”
Do mesmo modo, o direito internacional e o direito da União Europeia (UE), recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, também não oferecem tutela suplementar ao bem-estar animal relativamente aos decorrentes da própria Constituição: seguindo também neste ponto a fundamentação do citado aresto do Tribunal Constitucional, “(…) A principal possibilidade seria o artigo 13.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que atualmente reconhece os animais enquanto «seres sensíveis» e impõe o respeito pelo seu «bem-estar». Contudo, essa norma, conquanto constitua mais um relevante sinal de aprofundamento da tutela do bem-estar dos animais, tem um âmbito de aplicação claramente circunscrito às políticas da UE «nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço». (…) Isto mesmo fora já sustentado pelo Tribunal de Justiça da UE em Jippes e Outros. c. Minister van Landbouw, Natuurbeheer em Visserij (C-189/01) (cf. sobretudo os parágrafos 71 ss.), onde o Tribunal «concluiu, de modo restritivo, que estas exigências não constituem um objetivo geral nem um princípio geral de Direito Comunitário» (…).”.”
*
Importa ainda abordar, expressamente, a tese jurídica defendida na motivação de recurso.
No entender do recorrente, a dignidade constitucional dos bens jurídico-penais não se encontra necessariamente limitada àqueles que são diretamente dedutíveis do texto da Constituição, através dos preceitos que integram o catálogo dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos, sendo igualmente merecedores de tutela penal aqueles bens jurídicos que, apesar de não se encontrarem positivados na Constituição, são todavia discerníveis a partir das normas que integram o texto fundamental;
Justifica, assim, a proteção penal do bem-estar dos animais de companhia no tipo de relação que os humanos com eles estabeleceram, relação de dependência existencial essa que, retirando-lhes autonomia, os tornou acrescidamente vulneráveis, razão pela qual se deverá reconhecer um dever de garante perante o bem-estar dos animais que o Homem converteu em animais de entretenimento e companhia e se compreende a incriminação controvertida nos autos à luz do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa, que vincula o Estado a empenhar-se na «construção de uma sociedade [...] solidária», uma vez que tal solidariedade se estende também aos animais de companhia.

Apreciando.
De jure
Ao legislador parlamentar incumbe a «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos» (artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP) – e foi ele quem aprovou o tipo legal de crime tipificado no artigo 387º do Código Penal -.
No entanto, o legislador ordinário não tem uma liberdade absoluta para criminalizar condutas (ou omissões), por força da limitação prevista no número 2 do artigo 18.º da CRP, devendo os tipos legais de crime “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Por conseguinte, os bens jurídicos protegidos por tipos legais de crime não podem ser protegidos apenas pelo legislador ordinário devendo, antes, emergir de um valor jurídico previamente reconhecido pelo legislador constitucional.
Como referido anteriormente, o princípio da dignidade da pessoa humana e o propósito de construção de uma sociedade solidária consagrado no artigo 1º da CRP não podem servir de suporte constitucional à incriminação dos maus tratos a animais de companhia, na medida em que tal entendimento viabilizaria a criminalização de praticamente qualquer conduta que o legislador ordinário considerasse relevante sancionar, de modo a assegurar ou mesmo forçar a implementação de certas conceções morais ou políticas – mesmo as mais controversas -, potenciando a aprovação irrestrita de leis penais, por exemplo, em resposta à pressão mediática e social gerada por determinados casos mediáticos, em nome de uma pretensa preocupação de proteção da dignidade da pessoa humana, sem que os bens jurídicos em causa estivessem relacionados com qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado[18] (por exemplo, criminalizar os aumentos de renda para inquilinos idosos, ou a cobrança de propinas a alunos economicamente carenciados no ensino superior, ou utilizar veículo automóvel particular sem ocupar toda a sua lotação, a obtenção de mais-valias financeiras acima de determinada percentagem por parte de agentes económicos, o matar de moscas ou baratas domésticas, ou o comer carne de animais, ou a castração dos gatos…).
O artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa constitui, assim, uma garantia dos cidadãos no sentido de não permitir a criminalização de condutas que não protejam bens jurídicos expressamente protegidos na lei fundamental. Se a sensibilidade maioritária existente no povo português reconheça a necessidade de tutela penal de algum bem jurídico ainda não expressamente protegido pela lei fundamental, a mesma terá de merecer o reconhecimento do legislador constitucional para incorporá-lo no texto constitucional – obviamente no âmbito de uma revisão constitucional -, de modo a permitir ao legislador ordinário a aprovação de um novo tipo legal de crime.
Esse percurso legislativo ainda não foi concretizado pelo nosso legislador relativamente à tutela penal do bem-estar dos animais de companhia, apesar de, provavelmente, a sensibilidade maioritária da população a defenda por motivos de decência e de respeito pelo bem-estar dos animais de companhia – especialmente dependentes dos seres humanos e com quem desenvolvem uma relação que é percecionada como gratificante.

Nestes termos, não existindo suporte constitucional bastante para criminalizar as condutas (ou omissões) tipificadas no artigo 387º, 3 e 4, do Código Penal, esta norma é materialmente inconstitucional, por violação do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, não podendo ser aplicada.

Impõe-se, por conseguinte, confirmar a decisão recorrida, julgando não provido o recurso do Ministério Público.

Das custas
Não há lugar ao pagamento de custas, tendo em consideração a isenção subjetiva de que o recorrente beneficia (artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal).
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por maioria os juízes ora subscritores, do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso do Ministério Público.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 17 de Maio de 2023.
Jorge Langweg
Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio [DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDA:
Pese embora a exaustiva e profusamente sustentada argumentação do douto acórdão que antecede, estou vencida quanto ao sentido da decisão e mantenho o entendimento que subscrevi como relatora inicial do recurso, no sentido da constitucionalidade do crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punível pelo art. 387º, do Cód. Penal, pelas razões que, sumariamente, passo a enunciar:
É consabido que o Tribunal Constitucional se pronunciou já, pelo menos, por três vezes no sentido da inconstitucionalidade do referido preceito legal o que determinou mesmo o pedido de declaração da sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pelo Ministério Público, o qual se encontra pendente de apreciação. Todavia, os fundamentos de inconstitucionalidade invocados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 867/21 (Proc. n.º 867/19) - 3ª Secção, de 10/11/2021, 781/22 (Proc. n.º 399/22) - 3ª Secção, de 17/11/2022 e 843/22 (Proc. n.º 1283/21) – 1ª Secção, de 20/12/2022, não são unânimes nem inteiramente coincidentes.
Com efeito, enquanto os dois primeiros julgaram inconstitucional a norma incriminatória contida no art. 387º, do Cód. Penal, por violação, conjugadamente, dos artigos 27º e 18º, n.º 2, da Constituição - com declaração de voto dos Ex.mos Conselheiros Joana Fernandes Costa e Gonçalo de Almeida Ribeiro considerando que a inconstitucionalidade derivaria da violação da exigência de lei certa ou do princípio da tipicidade em matéria penal que se extrai do n.º 1 do art. 29.º da Constituição e já não da inexistência de bem jurídico tutelado, sendo a protecção admitida pela ordem axiológica jurídico-constitucional globalmente considerada (Conselheira Joana Fernandes Costa) ou em virtude das responsabilidades dos seres humanos (Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro) -, o último deles abandonou a inconstitucionalidade da norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no art. 387º, n.º 3, em conjugação com o art. 389º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08, fundada na previsão do citado art. 18º, n.º 2, reconduzindo-a antes à violação do princípio da legalidade resultante do art. 29º, n.º 1, da Const. Rep. Portuguesa, aí figurando voto de vencido do Ex.mo Conselheiro José António Teles Pereira firmando convicção no sentido da total constitucionalidade do preceito.
Assim sendo, as questões de constitucionalidade suscitadas nesta matéria reconduzem-se a duas vertentes distintas:
a) A (in) existência de bem jurídico constitucionalmente protegido; e,
b) A violação do princípio da legalidade por referência ao princípio da tipicidade da lei penal, previsto no art. 29º, n.º 1, da Const. Rep. Portuguesa,
Sendo que apenas a primeira delas foi invocada na decisão recorrida.
Reconhecendo-se as dificuldades interpretativas da matéria, aliás abundantemente explanadas no acórdão antecedente e doutrina e jurisprudência aí citadas, repugna-nos profundamente sufragar o entendimento de que, na actualidade, a nossa Lei Fundamental se possa conformar com a emissão de um juízo de neutralidade ético-jurídica no tocante a condutas relativas a maus tratos contra animais de companhia.
Na verdade, sem prejuízo da eventual modificação das leis constitucional e ordinária, com vista a melhor densificar o bem jurídico protegido e os elementos típicos incriminadores de tal infracção, crê-se que o suporte normativo vigente permite resposta diversa daquela que foi propugnada pelo tribunal a quo e agora confirmada por este tribunal ad quem, como evidenciam quer o citado Acórdão n.º 843/22 quer as declarações de voto que constam dos demais acórdãos mencionados que se pronunciaram pelas aludidas inconstitucionalidades.
Assim, quanto à questão do bem jurídico tutelado, para além de todos os demais contributos identificados e abundantemente tratados na declaração de voto da Ex.ma Conselheira Joana Fernandes Costa, revemo-nos especialmente no que foi destacado na declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Pedro Machete no mesmo Acórdão n.º 843/22, no sentido de que a inconstitucionalidade não ocorre quando “em causa estiver apenas a proteção penal do bem-estar dos animais de companhia, uma vez que os momentos de solidariedade pressupostos pelo tipo de sociedade que a Constituição encarrega o Estado de promover, nos termos do respetivo artigo 1.º, não excluem, antes acomodam, «a valorização pela ordem jurídico-penal da relação de cuidado-de-perigo em que o homem ficou investido perante os animais que colocou na sua dependência, legitimando assim a limitação por via penal do chamado «anything goes» - expressão usada por R. G. Frey para designar a posição que defende a possibilidade de “fazermos o que quisermos” com os animais (“Animals”, The Oxford Handbook of Practical Ethics, ed. Hugh La Follette, 2003, reedição de 2009, p. 167 e ss.); ou, numa formulação mais próxima, a limitação dos poderes absolutos de disposição sobre animais de companhia, por via da imposição a quem com eles interage de um dever de abstenção da prática de atos causadores de dor ou sofrimento graves e desnecessários e/ou de forma impiedosa ou cruel»”, pois que, “se assim for, o processo de criminalização dos maus tratos a animais de companhia não apenas se achará positivamente legitimado à face do princípio do direito penal do bem jurídico - na medida em que tutela penal terá por objeto um bem jurídico dedutível (e dedutível com suficiente tangibilidade), do dever (pré-existente) do Estado promover a construção de uma sociedade solidária -, como não enfrentará o risco de se debater, nem com os limites traçados pela função negativa que aquele princípio igualmente desempenha - ao proscrever a incriminação de puras violações morais, proposições meramente ideológicas e/ou valores de mera ordenação (v. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 141 e ss.) -, nem com os limites que decorrem da natureza fragmentária e subsidiária que a Constituição, ainda por força do n.º 2 do seu artigo 18.º, fixa ao direito penal”[19].
Entendimento este reforçado nesse mesmo Acórdão pelo Ex.mo Conselheiro José António Teles Pereira em cuja declaração de voto se conclui que: “A questão constitucional da punição dos maus tratos a animais de companhia não deixa de se reconduzir, assim, a um problema de âmbito mais geral: a existência do que poderíamos qualificar como domínios centrais e periféricos da punição, expressando quadros diferenciados de relacionamento do legislador com a (opção pela) tutela penal de determinados comportamentos. Assim, nos domínios que poderíamos qualificar como centrais – centralidade aferida por uma forte ligação identitária a valores fundamentais (a arquétipos) no plano constitucional –, o legislador está obrigado a ou proibido de construir tipos penais: o legislador está obrigado a punir o homicídio (referimo-nos à existência do tipo geral do artigo 131.º do CP); ao legislador está vedado criminalizar, por exemplo, a apostasia (para seguir o expressivo exemplo dado por Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, p. 4: “[…] to coerce apostasy for the benefit of a person’s imortal soul”). De todo o modo, a obrigação de criminalização “[…] não poderá abranger a totalidade dos valores constitucionais, nem se poderá confundir com o âmbito de uma legítima tutela penal. Ela só se poderá reconduzir a condutas de inequívoca e elevada dignidade penal (onde se inclui uma elevada danosidade social) e carecidas de intervenção penal, de tal modo que se possa considerar controlável constitucionalmente uma não intervenção” (Maria da Conceição Ferreira da Cunha, «Constituição e crime», cit., p. 307). Num plano distinto, que poderíamos qualificar de criminalização periférica, não está o legislador proibido ou obrigado a atuar através do Direito Penal, por estarem em causa valores constitucionalmente relevantes, mas que não exigem nem vedam intrinsecamente a tutela penal. Em tais casos – e é o que sucede com a norma sub judice – a construção de tipos penais é perfeitamente justificada e possível, num quadro de escolhas de política legislativa que apresentam, para o legislador, apreciáveis margens de liberdade.
As críticas dirigidas às normas penais, ilustradas por exemplos de casos de fronteira, não dizem respeito a problemas jurídico-constitucionais – eles resolvem-se interpretando o direito infraconstitucional no respeito pelo princípio da proporcionalidade e fazendo atuar os mecanismos típicos de direito criminal relativos à culpa, à justificação das condutas, ao designado risco permitido e à adequação social, entre outros.
Assim, ao contrário do entendimento maioritário desta 1.ª Secção, não vejo que a inserção da incriminação em causa no quadro jurídico-constitucional atual se faça “a custo”. Essa inserção faz-se sem grande dificuldade – embora não tão facilmente como seria perante uma previsão objetivamente expressa no texto da Lei Fundamental –, desde que a Constituição se interprete nos moldes supra apontados, que nada têm de incerto ou arbitrário.”
> Ademais, considera-se também, na esteira da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro José António Teles Pereira, no referido Acórdão n.º 843/22, que as dúvidas invocadas em tal decisão que determinaram a conclusão da violação do princípio da legalidade, são apenas dúvidas interpretativas «a que, em maior ou menor grau, se abre a interpretação de qualquer tipo legal e resolvem-se com as “válvulas de escape” já conhecidas do direito penal (seja pelas particulares regras de interpretação da lei penal, seja pelas ideias de necessidade, não danosidade, adequação social, entre outras). No essencial, a conduta típica, seja quanto à ação, seja quanto ao respetivo objeto, é determinável sem dificuldade», sendo, pois, de afastar o juízo de inconstitucionalidade proferido nessa sede.
Quer dizer:
A circunstância de a previsão legal não ser isenta de dúvida em casos situados na periferia da hipótese não torna a norma indeterminada. As dúvidas interpretativas sobre os limites da conduta penalmente relevantes podem existir em qualquer crime, sem que a previsão típica passe a ter-se como indeterminada, por esse motivo. Em situações de fronteira, é discutível e discutido o exato momento da morte, relevante nos crimes contra a vida, o limiar de dor ou desconforto físico penalmente relevante nos crimes contra a integridade física, a justificação de certas condutas típicas nesta última categoria de crimes ao abrigo do poder-dever de correção, o engano socialmente aceitável para o crime de burla, a fronteira entre o mero incumprimento contratual e certos crimes contra o património, para citar apenas alguns exemplos. Assim, à semelhança do que antes se referiu, também aqui se dirá que as críticas dirigidas às normas penais, ilustradas por exemplos de casos de fronteira, por vezes caricaturais (aludindo a insetos, répteis, animais raros, animais de trabalho ou a atos de duvidosa dignidade penal), se resolvem interpretando o direito infraconstitucional no respeito pelo princípio da proporcionalidade e fazendo atuar os mecanismos típicos de direito criminal relativos à culpa, à justificação das condutas e à adequação social, entre outros. Designadamente, a dúvida sobre se certos animais entram ou não no círculo da proteção penal não significa a indeterminabilidade da norma, desde que a incerteza interpretativa deixe salvaguardado, como é o caso, um núcleo claro e distinguível de conduta proibida. Nesse plano se resolverão, ainda, outras dúvidas interpretativas não descaracterizadoras dos traços fundamentais da conduta proibida [por exemplo, até que ponto os conceitos de “lar” e de “residência” são equivalentes (v., a propósito, o artigo 3.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, o artigo 1.º, n.º 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, supra citada, e o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro) ou se a norma penal protege animais detidos por quem não tem uma residência fixada].
Considerações semelhantes valem, mutatis mutandis, para o conceito de “animal de companhia” como sendo aquele que é “detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, e ainda qualquer animal sujeito a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC – o registo obrigatório abrange, atualmente, cães, gatos e furões – v. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho), com exclusão dos animais cuja detenção seja proibida (v., por exemplo, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e os artigos 13.º e ss. do Decreto-Lei n.º 121/2017, de 20 de setembro). Não há nada de essencialmente indeterminado neste conceito, que é de fácil apreensão aos destinatários das normas, sendo as dúvidas, uma vez mais, passíveis de solução nos termos gerais da interpretação de normas no plano infraconstitucional. Difícil de entender e de justificar seria uma especiosa imposição ao legislador, no sentido de mais fina concretização, em busca da qual, provavelmente, seria maior o risco de contradição e incoerência do que, propriamente, a possibilidade de alcançar maior clareza ou precisão do referido conceito»[20].
> Consequentemente, concluindo pela constitucionalidade da previsão legal constante do art. 387º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Penal, daríamos provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e, face à matéria de facto provada, designadamente o contexto da ocorrência e concreto acto praticado - [o arguido, na residência de BB e suas filhas CC e EE, para além do mais, depois de agredir a murro esta última, de proferir insultos contra todas elas e de ter partido a murro e pontapés a porta do quarto onde todas se haviam refugiado, ao mesmo tempo que lhes dizia “daqui vocês não saem, vou-vos matar”, desferiu um forte pontapé no cão, animal de estimação das ofendidas e por estas acolhido na referida habitação, actuando com o propósito de o magoar, infligindo-lhe dor] -, sendo manifesto que o arguido agiu em estado de grande exaltação – ainda que infundada e unicamente a si imputável – afastar-se-ia a qualificação jurídica pelo crime agravado [até porque idêntica qualificação já fora definitivamente (visto que não impugnada) afastada pelo tribunal a quo no tocante aos imputados crimes de ofensa à integridade física qualificada, convolados para ofensa à integridade física simples)], condenando-se o arguido pela prática de um crime de maus tratos de animal de companhia, previsto e punível pelo art. 387º, n.º 3, do Cód. Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, devidamente ponderados os critérios, princípios e parâmetros que regem nesta sede e bem assim todas as circunstâncias apuradas, muito especialmente os antecedentes criminais do arguido e o número e diversidade de infracções perpetradas e fixando-se a pena única, após reformulação do cúmulo jurídico, em 3 (três) anos de prisão, com execução suspensa por igual período, mediante regime de prova nos moldes e com os fundamentos exarados na decisão recorrida.
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[Por mim elaborado e revisto – art. 94º, n.º 2, do CPP[21]]
Maria Dolores da Silva e Sousa
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[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. João Rato.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” (artigo 18º, 2, da CRP).
[5] A circunstância da Constituição admitir tipos legais para salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos afasta a necessidade dos animais serem titulares de direitos para poderem beneficiar de tutela penal.
[6] Esta matéria foi objeto pelo Plenário do Tribunal Constitucional, dando origem ao acórdão n.º 72/2021, cuja fundamentação reiterou a premissa fundamental de que, em face do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a criminalização de condutas pressupõe a proteção de bens jurídicos com dignidade constitucional, respeitando ainda os princípios da necessidade e da proporcionalidade do nível de proteção de tais bens jurídicos.
[7] Admitindo o tipo legal de crime a aplicação de pena de prisão, com a consequente restrição do direito à liberdade consagrado no artigo 27.º da CRP, compreende-se que não se poderá desenhar um tipo legal de crime que proteja um bem jurídico não contemplado na Constituição, por tal violar, seguramente, o princípio da proporcionalidade garantido pelo texto fundamental. A constitucionalidade desse tipo legal de crime depende, assim, da existência de efetiva necessidade de proteção de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados.
[8] Em Portugal, o direito penal do bem jurídico constitui um elemento de interpretação fortíssimo na jurisprudência do Tribunal Constitucional – veja-se, a título de exemplo, os acórdãos números 25/84, 85/88, 426/91, 527/95, 288/98, 604/99, 312/2000, 516/2000, 99/2002, 337/2002, 617/2006, 75/2010e 377/2015, citados nesse sentido no acórdão nº 134/2020.
Contrariamente à realidade jurisprudencial e doutrinária portuguesa, onde a teoria geral do crime está fortemente baseada no direito penal do bem jurídico, legitimadora da sanção penal, de acordo também com a Constituição e o Código Penal [as penas têm a finalidade de proteção de bens jurídicos (artigo 40º, 1, do CP)], a maior parte da doutrina penal alemã já não se baseia nessa conceção. Stratenwerth, fortemente crítico do direito penal do bem jurídico, procura integrar no âmbito de atuação do direito penal a proteção de animais – além da proteção da sobrevivência das futuras gerações -, mostrando vontade em ultrapassar definitivamente o antropocentrismo que marca o direito penal.
[9] A respeito da caracterização das diversas espécies animais no plano neurológico, veja-se a Declaração de Cambridge sobre a Consciência, de 2012, disponível na rede digital global no endereço https://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf.
[10] Imagens impressivas foram mostradas, a esse respeito, na cobertura televisiva das colunas de refugiados saídos do teatro de guerra, na Ucrânia, com um grande número de migrantes a transportarem ao colo, pacificamente, os seus animais domésticos, muitos ao longo de centenas de quilómetros.
[11] Tal como identificado na doutrina, com assertividade, por Maria da Conceição Valdágua, na sua palestra publicada na rede digital global no endereço https://blook.pt/publications/fulltext/cddb197a4b61/, onde consta o texto respetivo publicado na R.J.L.B. Ano 3 (2017), nº 6, pág. 194, cuja doutrina também suporta a decisão recorrida.
[12] Na Alemanha houve lugar à introdução do artigo 20.º-A na sua Lei Fundamental (https://www.bundestag.de/parlament/aufgaben/rechtsgrundlagen/grundgesetz/gg_02-245124), com o seguinte teor: «Der Staat schützt auch in Verantwortung für die künftigen Generationen die natürlichen Lebensgrundlagen und die Tiere im Rahmen der verfassungsmäßigen Ordnung durch die Gesetzgebung und nach Maßgabe von Gesetz und Recht durch die vollziehende Gewalt und die Rechtsprechung.», reconhecendo que o Estado tem uma responsabilidade com as gerações futuras, devendo proteger as condições de subsistência da vida e os animais no quadro legal constitucional, da lei e de jurisdição.
[13] Frank R. Ascione e Phil Arkow,, Child Abuse, Domestic Violence and Animal Abuse, Linking the Circles of Compassion for Prevention and Intervention, Indiana, Purdue University Press, 1999, págs. XV e XVI.
[14] Neste sentido, os acórdãos nº 426/91 e 134/2020, do Tribunal Constitucional.
[15] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., U.C.E., 2021, págs. 1321 e seguintes.
[16] Na expressão de Teresa Quintela de Brito, o artigo 387.º do Código Penal não protege «a função ecológica do animal em dado ecossistema» (“Os crimes de maus tratos e de abandono de animais de companhia: Direito Penal Simbólico?”, Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, n.º 19 (2016), pág. 12.
[17] Segundo noticiado pelo jornal diário Público na rede digital global no endereço https://www.publico.pt/2022/05/24/sociedade/notícia/lei-maus-tratos-animais-companhia-declarada inconstitucional-terceira-2007378, o Tribunal Constitucional já declarou o crime de maus tratos a animais domésticos em causa, por três vezes, materialmente inconstitucional, constando da página do Tribunal Constitucional, além do acórdão já citado, a decisão sumária nº 344/2022, de 5 de Maio (https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20220344.html).
[18] Num plano distinto, que poderíamos qualificar de criminalização periférica, não está o legislador proibido ou obrigado a atuar através do Direito Penal, por estarem em causa valores constitucionalmente relevantes, mas que não exigem nem vedam intrinsecamente a tutela penal. Em tais casos – e é o que sucede com a norma sub judice – a construção de tipos penais é perfeitamente justificada e possível, num quadro de escolhas de política legislativa que apresentam, para o legislador, apreciáveis margens de liberdade.
As críticas dirigidas às normas penais, ilustradas por exemplos de casos de fronteira, não dizem respeito a problemas jurídico-constitucionais – eles resolvem-se interpretando o direito infraconstitucional no respeito pelo princípio da proporcionalidade e fazendo atuar os mecanismos típicos de direito criminal relativos à culpa, à justificação das condutas, ao designado risco permitido e à adequação social, entre outros.
[19] Declaração de voto da Ex.ma Conselheira Joana Fernandes Costa nos dois primeiros acórdãos citados.
[20] V., declaração de voto mencionada.
[21] Por opção pessoal, o texto da declaração não observa as regras do acordo ortográfico, excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original.