Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
411/10.3TBLSD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: M. PINTO DOS SANTOS
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
PROCURAÇÃO
FORMA DE OBRIGAR A SOCIEDADE
Nº do Documento: RP20110705411/10.3TBLSD-A.P1
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Uma sociedade por quotas está devidamente representada em juízo quando a procuração que confere poderes forenses ao respectivo advogado foi emitida por um dos seus sócios gerentes, apesar do contrato constitutivo da sociedade estabelecer que a forma de esta se obrigar é através da assinatura conjunta de dois gerentes quando do contrato/pacto nada consta acerca desta última representação.
II - A referência à «forma de obrigar» tem a ver com a constituição de obrigações perante terceiros e com a responsabilidade da sociedade perante esses terceiros, decorrente daquelas, e não já com a sua representação em juízo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pc. 411/10.3TBLSD-A.P1 – 2ª S.
(apelação em separado)
_____________________________
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Ramos Lopes
Des. Henrique Araújo
* * *
Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

Nesta acção declarativa de condenação, com processo comum sumário, instaurada por “B…, Lda.” contra a “Companhia de Seguros C…, SA”, na sequência de requerimento(s) apresentado(s) por esta (já na fase de julgamento), foi proferido, em 11/03/2011, o seguinte despacho (que se transcreve na parte que aqui releva):
“Veio a ré Companhia de Seguros C…, SA novamente arguir a questão da irregularidade da procuração junta aos autos, por a mesma se encontrar subscrita por pessoa que não consta como sócio e gerente da sociedade comercial autora, estando ainda subscrita por um único sócio, quando a sociedade deverá ser representada por dois sócios, vinculando-se pelas respectivas assinaturas. Requer por isso seja a mesma considerada ineficaz e de nenhum efeito.
(…)
De todo o modo, há que esclarecer a situação presente.
Com efeito, a procuração mostra-se outorgada por pessoa que não integra a sociedade comercial autora e que não é seu gerente, estando ainda assinada por um dos seus sócios, e gerente, sendo certo que a sociedade deverá ser representada por dois gerentes perante terceiros, carecendo a sua vinculação da assinatura de ambos.
Resulta também dos elementos dos autos, mormente da cópia da certidão do registo comercial junta, que a segunda gerente que vincularia a sociedade comercial renunciou à gerência, o que significa que, sendo a gerência plural, atribuída aos dois únicos sócios, após renúncia de um deles à gerência, esse órgão teria ficado esvaziado do poder para funcionar como tal e para representar a sociedade.
Todavia, e salvo o devido respeito por diferente e superior opinião, entendemos que, após a cessação de funções de gerência por um deles, o outro gerente de uma sociedade por quotas pode praticar os actos necessários ao funcionamento normal da gerência, nomeadamente representando a sociedade em juízo e, consequentemente, outorgando procuração forense.
A sociedade não pode ficar totalmente privada de gerência, enquanto apenas há um gerente e não é indicado um novo, nem pode ficar totalmente impedida de se vincular perante terceiros, sob pena de se prejudicar o exercício de direitos da sociedade, inclusive em juízo.
Julgamos que tem aqui aplicação o disposto no art. 985º, nºs 1 e 5, do Código Civil, por remissão do art. 996º, nº 1, do mesmo Código, podendo, num caso como o vertente, qualquer sócio outorgar uma procuração a advogado.
Se a procuração ora junta padece de irregularidade é por nela constar a outorga por pessoa que nenhuma ligação tem à sociedade, não sendo sócio nem gerente, lado a lado com quem efectivamente é sócio e gerente.
Contudo, tal circunstância em nada abala a validade e regularidade do mandato conferido pelo outro outorgante, este sócio e gerente da sociedade, nos termos descritos e palas razões apontadas. Ou seja, na parte em que vem outorgada por legal representante da sociedade autora, a procuração é válida e regular, podendo a mesma ser aproveitada, sem qualquer afectação da representação da sociedade neste pleito, pelo patrocínio judiciário conferido.
O circunstancialismo apontado não afecta a referida procuração forense, nomeadamente porque se discutem nestes autos direitos da sociedade, reclamando-se indemnização devida àquela.
Nestes termos, e atento o teor do despacho antecedente, nenhum óbice existe ao prosseguimento da acção, no que à representação judiciária da autora diz respeito.
Notifique”.

Inconformada com este despacho, dele interpôs a ré “C…, SA” o recurso de apelação em apreço (que subiu imediatamente a esta Relação, em separado e com efeito meramente devolutivo), cuja motivação culminou com as seguintes conclusões:
“1ª. A autora, B…, Lda., sociedade por quotas, não juntou procuração em favor da sua ilustre mandatária, com a petição inicial, quando interpôs a acção, a 10/03/1010.
2ª. A acção judicial correu termos na forma de processo sumário até à fase de discussão e julgamento.
3ª. Em consulta efectuada aos autos em 24/01/2011, a ré Companhia de Seguros C…, SA, constatou que em momento algum a autora juntou procuração à sua ilustre mandatária.
4ª. Face à situação em questão, a falta de procuração forense em favor da ilustre mandatária, foi arguida pela ré, expressamente, junto do Tribunal, nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 40º do Código de Processo Civil.
5ª. Face à arguição da falta de procuração, a ilustre mandatária da autora fez junção aos autos de procuração forense, com data de 10/03/2010, e outorgada por D….
6ª. Não sendo sócia, nem gerente, da autora, desde 06/04/2005, D… não tinha poderes para assinar a procuração à data de 10/03/2010.
7ª. Tal nulidade foi arguida junto do Tribunal, para ser sanada pela autora, através de requerimento apresentado em 31/01/2011.
8ª. A ilustre mandatária da autora fez a junção aos autos de nova procuração forense, com data de 04/02/2011, ratificando todo o processado, mas, assinada pelo sócio gerente E…, e pelo sócio (que não é gerente) F….
9ª. Nunca tendo F… assumido o cargo de gerente da firma B…, Lda., não podia assinar a procuração nessa qualidade.
10ª. A ré arguiu, mais uma vez, a invalidade da procuração apresentada pela autora, através de requerimento enviado ao Tribunal em 21/02/2011, em que se concluía que “… deve a procuração agora junta aos autos ser considerada irregular e de nenhum efeito”.
11ª. A ré foi notificada pelo Tribunal (via CITIUS, em 14/03/2011), de douto despacho em que concluía pela validade da procuração e inexistência de óbice ao prosseguimento da acção, no que à representação judiciária da autora diz respeito.
12ª. No douto despacho proferido é feita uma aplicação errada do disposto no art. 985, nºs 1 e 5 do Código Civil, por remissão do art. 996º, nº 1, do mesmo Código, à situação em questão.
13ª. A decisão contida no douto despacho viola, também, os nºs 2, 3 e 5 do art. 252º e o nº 4 do art. 260º e nº 1 do art. 261º, todos do Código das Sociedades Comerciais e o nº 1 do art. 32º do CPC, com a cominação prevista no art. 33º do mesmo CPC.
Nestes termos, (deve ser dado) provimento ao presente recurso (…), alterando o douto despacho recorrido no sentido de ser declarada a extinção da instância (…)”.

Não decorre destes autos que a autora tenha apresentado contra-alegações.
* * *
II. Questão a apreciar e decidir:

Sabendo-se que o objecto («thema decidendi») do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (e não pelo corpo da respectiva motivação – cfr. arts. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 2 do C.Proc.Civ., na redacção dada pelo DL 303/2007, de 24/08, que é a aqui aplicável por a acção a que este apenso diz respeito ter sido instaurada depois de 01/01/2008) e que este Tribunal não pode conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, a única questão que importa apreciar e decidir consiste em saber se o despacho recorrido é merecedor de censura por ter considerado válida a procuração forense passada pela autora, com data de 04/02/2011.
* * *
III. O circunstancialismo fáctico e o direito:

1. Os factos:
O circunstancialismo fáctico a ter em conta é o seguinte:
a) A sociedade autora (B…, Lda.) encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Felgueiras desde 08/08/2002, com um capital de 10.000,00€.
b) Dela foram sócios iniciais:
- E…, com uma quota de 5.000,00€
- e D…, com uma quota de 5.000,00€.
c) Estes sócios foram nomeados também gerentes da autora.
d) A forma de obrigar a sociedade demanda a “assinatura conjunta de dois gerentes”.
e) Sob o averbamento nº 1, ap. 3/…….., encontra-se registada, a cessação da função de gerente de D…, por renúncia.
f) Tal averbamento foi rectificado, pelo averbamento nº 2, no sentido de que é provisório por dúvidas.
g) Sob a inscrição nº 2, ap. 3/…….., com a menção “provisório por natureza”, encontra-se registada a transmissão da quota de 5.000,00€, de D…, a favor de F…, por cessão onerosa.
h) Com data de 10/03/2010, foi junta aos autos (de que este apenso é dependência) uma procuração em nome da autora “B…” e a favor da Sra. Dra. G…, advogada, na qual aquela se diz “representada pela sócia gerente D…”.
i) Com data de 04/02/2011, foi junta aos mesmos autos uma procuração em nome da autora e a favor da mesma ilustre advogada, na qual aquela se diz “representada pelos sócios gerentes F… (…) e E…”.
[Os factos descritos nas als. a) a g) decorrem do teor da certidão da C R Comercial de Felgueiras, emitida a 14/02/2011 e junta a fls. 38-41 deste apenso; os das als. h) e i) resultam, respectivamente, das cópias das procurações constantes de fls. 25 e 37, igualmente deste apenso].
*
*
III.2. O direito:
O que aqui está em causa é saber se a(s) procuração(ões) que a autora juntou aos autos, a favor da sua ilustre causídica, é (são) válida(s) ou se, pelo contrário, sofre(m) da irregularidade que a apelante lhe(s) aponta.
Por estarmos perante acção declarativa de condenação que segue a forma do processo comum sumário e que, como tal, admite recurso ordinário, não há dúvida que, «ex vi» do estabelecido na al. a) do nº 1 do art. 32º do CPC, é obrigatória a constituição de advogado. Consequentemente, tinha a autora (o mesmo acontece com a ré, mas não é o mandato forense conferido por esta que está aqui em questão) que constituir mandatário para a «representar» na acção.
A demandante é uma sociedade por quotas, o que significa que é representada por quem a lei, os estatutos ou o contrato social determinam, em conformidade com o preceituado no art. 21º nº 1 do CPC.
De acordo com o seu contrato constitutivo - e respectivo registo -, aquela vincula-se/obriga-se mediante a assinatura conjunta de dois gerentes, o que observa o disposto no art. 252º do CSocCom. Como gerentes foram nomeados, naquele contrato, os dois únicos sócios da mesma – E… e D….
Acontece, porém, que a sócia gerente D… renunciou à gerência [a renúncia é um acto unilateral, praticado pelo gerente e pelo qual ele põe termo à situação jurídica de gerência – cfr. Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito das Sociedades”, vol. II, 2006, pg. 422 e Raúl Ventura, in “Sociedades por Quotas”, vol. III, 1996, pg. 122], tendo esse acto sido registado em 28/06/2005. É verdade que este registo foi feito a título provisório, por dúvidas, pelo que poderia suscitar-se a questão de saber se já caducou ou não, na medida em que os nºs 2, 3 e 4 do art. 18º do CRegCom estabelecem que o prazo de vigência daquela espécie de registo é de seis meses (prazo que já há muito tinha decorrido quando a acção foi instaurada) - findos os quais caduca, devendo essa caducidade ser anotada ao registo logo que verificada –, mas, no caso, não consta qualquer anotação da caducidade do mesmo no registo atinente à sociedade demandante.
Contudo, tal questão é para aqui inócua, pois nas relações internas, ou seja, entre aquela gerente e a sociedade - e o que está aqui em causa tem que ver com o foro interno da autora, mais concretamente com o problema de saber quem a representa e como ela se vincula (estamos aqui a falar em vinculação em termos genéricos; mais adiante distinguiremos a problemática da representação obrigacional da da representação em juízo) -, a dita renúncia tornou-se eficaz oito dias depois de recebida pela autora a respectiva comunicação, tal como prescreve o nº 1 do art. 258º do CSocCom; comunicação e decurso do prazo que necessariamente tiveram lugar antes do registo, por averbamento, daquele acto de renúncia (conclusão que se extrai por presunção judicial em função daquela inscrição registral) [cfr. Autores e obras citados, pgs. 422-423 e 122-125, respectivamente].
Face à indicada renúncia, passou a faltar definitivamente um gerente na representação da autora, na medida em que esta era constituída apenas por dois sócios, simultaneamente gerentes, que representavam a totalidade do seu capital social [Raúl Ventura, obr. e vol. cit., pg. 48, dá como exemplos de «faltas temporárias» de algum dos gerentes, os casos de férias, de doença, de ausência e de impedimento legal do mesmo; embora não defina o que deve entender-se por «falta definitiva», não pode haver dúvida que no caso «sub judice», por contraposição àqueles exemplos de «faltas temporárias», estamos nitidamente diante de uma «falta definitiva» da gerente que renunciou à gerência].
Para estas situações, reza o nº 3 do art. 253º do CSocCom que “faltando definitivamente um gerente cuja intervenção seja necessária por força do contrato para a representação da sociedade, considera-se caduca a cláusula do contrato, caso a exigência tenha sido nominal; no caso contrário, não tendo a vaga sido preenchida no prazo de 30 dias, pode qualquer sócio ou gerente requerer ao tribunal a nomeação de um gerente até a situação ser regularizada, nos termos do contrato ou da lei”.
De acordo com um dos Autores citados [Raúl Ventura, obr. e vol. cit., pg. 50]:
“Faltando definitivamente um gerente cuja intervenção seja necessária por força do contrato para a representação da sociedade, há que distinguir duas espécies de cláusulas contratuais. A primeira espécie consiste na indicação nominal do gerente cuja intervenção é necessária; são cláusulas frequentes na prática, que fazem sobressair a importância de um gerente, geralmente sócio, o qual, embora sozinho não represente a sociedade é indispensável para que a sociedade seja representada. Nesse caso, a falta definitiva do gerente acarreta a caducidade da cláusula do contrato. (…)
Na outra espécie de cláusulas previstas neste nº 3, é exigido apenas certo número de gerentes para representação da sociedade, número esse que pode ser reconstituído ou pelos sócios ou pelo tribunal, sem necessidade de fazer caducar a cláusula. A lei concede aos sócios um prazo – 30 dias – para preencherem a vaga, pelo meio normal, que é a eleição de mais um gerente; passado esse prazo, sem ter sido eleito outro gerente, qualquer sócio ou gerente pode requerer ao tribunal a nomeação de um gerente (mas não credores sociais, ao contrário do que sucede, por exemplo, na Alemanha)”.
Num primeiro olhar sobre o caso em apreço poderíamos pensar que se estaria perante situação enquadrável na segunda hipótese acabada de indicar e que a falta definitiva da gerente que renunciou ao cargo não acarretaria a caducidade da cláusula que exige a assinatura conjunta dos dois gerentes para vinculação da sociedade autora – e que, por isso, haveria lugar à aplicação do disposto na 2ª parte do nº 3 do referido art. 253º. Mas analisando melhor a especificidade da situação, propendemos antes para a sua subsunção à primeira hipótese. Vejamos porquê.
A sociedade autora, quando foi criada, era constituída apenas por dois sócios e ambos foram designados gerentes e seus únicos representantes (conjuntamente). Por via disso, a cláusula do pacto social em que se estabeleceu a forma de obrigar a sociedade acaba por fazer, indirectamente, uma indicação nominal dos gerentes cuja intervenção é necessária para tal, conferindo a cada um deles e a ambos a importância decorrente da indispensabilidade da sua assinatura para representação daquela. A ser assim, como pensamos que é, a falta definitiva da gerente que renunciou ao cargo determina, por si só, automaticamente (desde o momento em que a renúncia se tornou eficaz), a caducidade da cláusula que fixou a assinatura conjunta de ambos os gerentes como forma de obrigar a autora, nos termos da 1ª parte do nº 3 do indicado art. 253º, a qual, a partir da referida renúncia (melhor, do momento em que esta se tornou eficaz na relação sociedade – gerente renunciante) passou a ser apenas representada pelo outro gerente nomeado no pacto social, E…, bastando desde então a assinatura deste para a plena vinculação daquela.
Ora, tendo a procuração datada de 04/02/2011 sido passada e assinada pelo único gerente que se mantém em funções (o dito E…), é manifesto que a mesma é válida e não sofre da irregularidade que a apelante lhe aponta [mesmo considerando que nela também interveio outra pessoa – F… – que foi quem adquiriu, por cessão onerosa, a quota da sócia D…, o que significaria (caso o registo provisório dessa transmissão de quota tivesse sido convertido em definitivo – o que não consta da certidão da CRComercial junta aos autos, dela não constando, igualmente, qualquer anotação da caducidade daquele registo provisório) que a procuração, além da assinatura daquele gerente, também contém a assinatura do outro sócio (actual) da autora - a qualidade de sócio também se adquire por via de transmissão da quota, o que não acontece com a qualidade de gerente, pois “a gerência não é transmissível por acto entre vivos ou por morte”, como proclama o nº 4 do art. 252º do CSocCom].

Mas mesmo que não se aceite que a renúncia da gerente D… determinou a caducidade da cláusula que estabelece como forma de obrigação da autora a assinatura conjunta de dois gerentes (nos termos previstos na 1ª parte do nº 3 do aludido art. 253º), daí não decorre, ainda assim, que a dita procuração seja irregular e insuficiente, como defende a apelante.
É que uma coisa é a representação de uma sociedade comercial para a constituição/assunção de obrigações perante terceiros e sua responsabilidade perante estes, decorrente daquelas, e outra, bem diferente, é a sua representação em juízo. Ali estão, as mais das vezes, em causa actos de disposição; aqui estão, normalmente, em questão actos de mera administração; principalmente, como acontece no caso «sub judice», quando o que a sociedade pretende, ao instaurar a acção, é ser indemnizada por um dano que sofreu (ou diz ter sofrido) ou obter a cobrança de uma dívida de um seu devedor [no caso, como refere a própria apelante nas suas alegações, “a autora intentou a presente acção contra a ré … pedindo a condenação desta no pagamento das quantias indemnizatórias de €18.240,00 pelo furto do veículo … ..-..-XD, €500,00 pelo desaparecimento dos documentos que se encontravam no interior da viatura furtada, mais a quantia que resultar dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 12%, desde 27/11/2009”, não tendo sido deduzido qualquer pedido reconvencional contra a demandante – pelo menos a apelante não dá notícia disso no recurso, nem tal resulta deste apenso].
E, «in casu», apenas sabemos que o contrato constitutivo da sociedade autora estabelece a obrigatoriedade da assinatura conjunta de dois gerentes como forma de ela se obrigar; o que tem a ver com a constituição de obrigações perante terceiros e com a sua responsabilidade perante eles, decorrente dessas obrigações, e não já com a sua representação em juízo. Quanto a esta, aquele contrato (pacto social) nada prevê [pelo menos naquilo que foi levado ao registo; e a apelante não alega coisa diversa, nem prova documentalmente que o pacto social preveja a forma da autora ser representada em juízo]. Estamos, pois, perante uma omissão quanto a tal representação.
Sobre este assunto já se pronunciou o STJ [no Acórdão de 12/07/2007, proc. 07A1874, disponível in www.dgsi.pt/jstj] nos seguintes termos (que perfilhamos integralmente e que passamos a transcrever, com a devida vénia):
“(…) o pacto de constituição da sociedade autora prevê que esta se obriga com a assinatura conjunta dos dois únicos gerentes, AA e BB.
Mas é omisso quanto à representação da autora em juízo.
Daí que tenha aplicação ao caso a norma supletiva do art. 985º do CC, aplicável por força do art. 996º do mesmo diploma.
Resulta de tais preceitos que gozam de poderes de representação da sociedade em juízo, na falta de convenção em contrário, as pessoas que têm poderes de administração.
Poderes de administração e poderes de representação são dois aspectos da mesma posição jurídica, reflectindo-se nos poderes de representação todo o conteúdo dos poderes de administração atribuídos a cada sócio.
Todos os sócios têm igual poder para administrar, na falta de convenção em contrário.
A administração pertence disjuntivamente a todos os sócios, salvo se a estes ou a algum deles tiver sido atribuída em conjunto a administração, nos termos do nº 3 daquele art. 985º do CC.
Fora deste caso, qualquer sócio gerente pode praticar actos de mera administração, sem necessidade de intervenção dos restantes.
Tal significa dizer que há necessidade de distinguir os actos de administração corrente, em geral, dos actos que obrigam específica e directamente a sociedade autora, onde esta só se vincula com a assinatura conjunta de dois sócios gerentes, como consta do pacto social.
A propositura da presente acção constitui um acto de mera administração, pois através dela não se pretende obrigar a sociedade autora, mas apenas proceder à cobrança de uma dívida, que é um acto de gestão corrente ou normal, para o qual qualquer gerente tem poderes.
A exigência da assinatura conjunta de ambos os gerentes só respeita à obrigação ou vinculação da sociedade em actos ou negócios escritos.
Daí que seja lícito ao sócio gerente AA subscrever a ajuizada procuração, para efeitos da representação da autora em juízo, no âmbito desta acção de cobrança de dívida, sem intervenção da outra sócia gerente BB (…)”.
Este douto ensinamento vale, nitidamente, para o caso «sub judice» face ao que já atrás deixámos enunciado (dele diverge apenas por não se tratar de uma acção de dívida, mas sim de uma acção indemnizatória fundada em responsabilidade civil).
Como a procuração datada de 04/02/2011 foi emitida pelo actual único gerente da autora, é manifesto que a mesma é válida e suficiente para a finalidade a que se destina, por ter sido emitida/passada (e assinada) por quem, para tal, tinha poderes.

Improcede, consequentemente, a douta apelação.
*
*
Sumário do que ficou exposto:
● Uma sociedade por quotas está devidamente representada em juízo quando a procuração que confere poderes forenses ao respectivo advogado foi emitida por um dos seus sócios gerentes, apesar do contrato constitutivo da sociedade estabelecer que a forma de esta se obrigar é através da assinatura conjunta de dois gerentes.
● Isto porque a referência à «forma de obrigar» tem a ver com a constituição de obrigações perante terceiros e com a responsabilidade da sociedade perante esses terceiros, decorrente daquelas, e não já com a sua representação em juízo e porque daquele contrato/pacto nada consta acerca desta última representação.
* * *
IV. Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar improcedente a apelação e confirmar/manter a douta decisão recorrida.
2º) Condenar a apelante nas custas deste recurso.
* * *
Porto, 2011/07/05
Manuel Pinto dos Santos
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Henrique Luís de Brito Araújo