Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
84/20.5GAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
NULIDADE
ESPECIFICAÇÃO
FACTOS PROVADOS
FACTOS NÃO PROVADOS
Nº do Documento: RP2021092284/20.5GAVNG.P1
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ocorre nulidade (ou irregularidade) do despacho de não pronúncia que não proceda a tal descrição e especificação de factos suficientemente indiciados ou não.
II - O despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre os factos a que é relativo. Para se definir o alcance desse caso julgado, é óbvio que deverão ser descritos os factos que não se consideram suficientemente indiciados (porque é em relação a eles que não poderá ser reaberta tal discussão).Neste sentido, e de forma aprofundada, pode ver-se o acórdão desta Relação de 1 de julho de 2015, proc. n.º 3321/12.6TDPRT.P1, relatado por Neto Moura (acessível in www.dgsi.pt e também publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2015, vol. III, pg. 340 e segs.), assim como a abundante jurisprudência aí mencionada.
III - Na doutrina, pronunciam-se neste sentido, e como também se refere nesse acórdão, Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pg, 779), Eduardo Maia Costa (in Código de Processo Penal Comentado Almedina, 3ª ed. pg.988) e Frederico Lacerda da Costa Pinto, (in Direito Processual Penal, edição AAFDL, 1998, pg. 164). É minoritário o acolhimento jurisprudencial da tese de Germano Marques da Silva (ver Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed. Verbo, pgs. 182 e segs), segundo a qual o despacho de não pronúncia tem simples força de caso julgado formal, não impedindo a reabertura noutro inquérito da discussão sobre os factos considerados não suficientemente indiciados (tese menos conforme aos valores da certeza e paz jurídicas subjacentes ao instituto do caso julgado).
IV - Como também se indica desenvolvidamente no citado acórdão, a jurisprudência divide-se quanto à qualificação do vício em questão: irregularidade ou nulidade, nulidade sanável ou insanável, de conhecimento oficioso ou não. Será de aplicar ao despacho de pronúncia, como sustenta o recorrente no caso em apreço, a nulidade (não simples irregularidade) decorrente do artigo 283.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal (para que remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo Código). Não vemos motivo para aplicar tal regime de nulidade ao despacho de pronúncia e já não ao despacho de não pronúncia. Por outro lado, a relevância sistémica do princípio do caso julgado material impõe que se considere tal nulidade insanável e de conhecimento oficioso. Uma tão relevante consequência como é a da força de caso julgado material não poderá ficar dependente de arguição.
V - Deveria o despacho recorrido especificar os factos que considera, ou não, suficientemente indiciados (questão sobre a qual terá tal despacho força de caso julgado material), independentemente da questão (a analisar de seguida) de saber se eles configuram, ou não, o crime de violência doméstica por que vem o arguido acusado. Essa especificação será necessária para suprir a nulidade de que padece o despacho recorrido
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 84/20.5GAVNG.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do despacho do Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que não pronunciou B… pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), e n.º 2, do Código Penal, que lhe era imputado na acusação pública contra ele deduzida.

Da motivação deste recurso constam as seguintes conclusões:
«1. Nos termos do preceituado no art° 308°, n° 2, e 283°, n° 3, al. b), do C.P.P, o despacho de pronúncia ou não pronúncia contém (deve conter), sob pena de nulidade, a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança;
2. Sucede que, como flui do despacho recorrido, o Mm. Juiz de Instrução apenas fez constar da decisão ora posta em crise breves considerações genéricas de discordância com a acusação pública, tendo omitido completamente a decisão fáctica, não se descrevendo nem especificando quais os factos que se consideram suficientemente indiciados, nem os que como tal se não consideram;
3. Em consequência, deve o despacho de não pronúncia recorrido ser revogado, o qual deverá ser substituído por outro que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao despacho de acusação pública;
4. Sem prescindir, discordamos frontalmente da posição assumida pelo Mm. JIC, afigurando-se-nos que existem indícios suficientes da prática dos factos vertidos na acusação, pelo que o arguido deveria ter sido pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.°l alínea b) e n.°2 do C.P.
5. O Mm. Juiz a quo, após um excurso teórico sobre o tipo legal de crime de violência doméstica, debruçou-se sobre a prova testemunhal produzida na fase de inquérito, por um lado, e sobre as declarações prestadas pelo arguido, pelo outro, dando, manifestamente e sem qualquer pejo, prevalência a estas últimas, menosprezando, por completo, a restante prova produzida.
6. Fazendo tábua-rasa da prova coligida em sede de inquérito, diga-se, abundante, credível, consistente e coerente entre si, o Mm. Juiz a quo concluiu pela inexistência de indícios suficientes da prática de tal factualidade pelo arguido, decisão da qual discordamos em toda a medida;
7. É notório que o Mm. JIC olvidou que as condutas típicas imputadas ao arguido são habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, longe dos olhares alheios, pelo que é difícil existir outras testemunhas com conhecimento dos factos para além da ofendida e eventualmente, de outros familiares que com eles residem, como sucede no caso das testemunhas C… e D…;
8. Não é pelo simples facto das testemunhas C… e D… serem pais da assistente que as suas declarações não devem ser devidamente sopesadas em termos indiciários, sendo certo que mais nenhuma outra prova foi realizada em sede de instrução que refutasse ou pusesse em causa a credibilidade das suas declarações;
9. Ademais, não se compreende em que medida o Mm. Juiz a quo desabonou as declarações prestadas pela assistente e pelas testemunhas C… e D… uma vez que, ao contrário do arguido, estão vinculados a um dever de falar com verdade nos termos preceituados nos artigos 132.°, n.°l alínea d) e 145.°, n.°2 ambos do C.P.P.;
10. Quanto às demais testemunhas – E…, F…, G… - ainda que não tenham presenciado, in loco, os factos relatados pela assistente em sede de inquérito, fizeram referência ao seu estado de espírito - diga-se, de permanente receio - sempre que aquela era contatada ou abordada pelo arguido, o que é compatível com a situação de maus tratos ora em apreço;
11. Ademais, o Mm. Juiz de Instrução, ressalvando a hipótese contrária, concluiu pela não verificação do elemento subjetivo do tipo legal do referido crime, proferindo o competente despacho de não pronúncia;
12. Ora, dos elementos de prova recolhidos no inquérito, ou seja, as declarações da assistente H…, das testemunhas C…, D…, E…, F…, G…, alicerçados pelas mensagens transcritas e juntas em apenso, resultam, além do mais, de forma clara e inequívoca o seguinte: «A ofendida H… e o arguido B… viveram em comunhão de cama, mesa e habitação entre os anos de 2013 e 2016, na Rua …, …, no concelho da Maia. Da união, nasceu uma filha, I… no dia 02.04.2013.
Durante a relação amorosa que manteve com a ofendida, o arguido demonstrou sempre ser uma pessoa controladora, ciumenta, manipulando-a no sentido de a afastar-se dos seus amigos, acedendo ao seu telemóvel a fim de visualizar as chamadas e mensagens que ela recebia e efetuava.
Por vezes, o arguido disse à ofendida para ela não ir a casa dos seus pais aos fins de semana, com a intenção de a afastar da sua familia. Também, durante a relação, com frequência mensal, no interior da residência, o arguido e a ofendida travaram discussões devido a problemas financeiros potenciados pelo hábito do jogo mantido pelo arguido, tendo nesses momentos o arguido insultado H… com as seguintes palavras "cabra", "puta", "oferecida" e "vaca". Tais insultos eram proferidos, por vezes, na presença da filha menor. Nalgumas dessas discussões, em datas não concretamente apuradas, o arguido chegou a agarrar H… pelos braços e a colocar-se à sua frente, barrando-lhe o caminho, para poder continuar a discutir com ela.
No ano de 2016 a ofendida saiu de casa ao descobrir que o arguido mantinha uma relação extraconjugal, mas, passado um ano, reconciliou-se com o arguido, tendo ido morar juntos na casa dos pais daquela até finais de Dezembro de 2019.
Com efeito, no período compreendido entre 2017 e finais de 2019, a ofendida e o arguido reataram algumas vezes a relação, tendo o arguido chegado a coabitar na residência dos pais de H…, sita na Travessa …, ../.., r/c dt.º, …, …, Vila Nova de Gaia.
Entre finais de 2019 e inícios de 2020, quando a ofendida decidiu separar-se definitivamente do arguido, este enviou-lhe centenas de mensagens pela app "Whatsapp", através do seu n.°………., algumas de teor ameaçador e injurioso, nas quais fez constar, a titulo de exemplo, "vai tratar mal a puta que te pariu", "falar torto para os caralho que queres andar a dar a cona" , "és uma porca que não me respeita e ainda me fala mal", "vai brincar com que andas com a passarinha aos saltos", "tas avisada", "e a partir de agora tu és uma merda que para ai andas", não te estou a ameaçar caralho" "tou te a avisar estúpida de merda", "ridícula és tu sua triste do caralho", conforme apenso junto aos autos e que ora reproduzimos na integra para todos os efeitos legais.
No dia 05.01.2020, o arguido saiu de casa dos pais de H… e foi viver para casa dos seus pais.
No dia 01.02.2020, ao final da tarde, a ofendida efetuou o levantamento do ordenado do arguido que costumava ser depositado na sua conta, mas ao invés de lhe entregar todo esse montante, entregou uma parte, retendo outra parte relativa à pensão de alimentos da sua filha menor e a sua parte das despesas de educação que estavam em divida. Depois, a ofendida dispôs tal montante num envelope que, de seguida, colocou na mochila da sua filha menor a fim desta o entregar ao arguido que nesse dia a ia buscar a casa daquela.
Passados uns minutos, quando se apercebeu que a ofendida H… não lhe tinha entregue a totalidade do seu ordenado, o arguido bateu à porta da sua residência e dos seus pais e, de imediato, acusou-a de querer usar esse dinheiro com os seus amantes e que não iria mantê-la, apelidando- ade "puta do caralho", "vaca" e "chula".
Quando se apercebeu-se que H… estava a ligar para as autoridades policiais, o arguido entrou no seu veiculo e abandonou aquele local, levando consigo a sua filha menor.
No dia 10.02.2020, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da ofendida, a empresa "J…", sita na Rua …, …, …, durante toda a manhã, mandando-lhe dezenas de mensagens escritas pelo "Whatsapp"
Nesse dia, o arguido permaneceu junto ao seu local de trabalho pelo menos até ás 15h00 e ameaçou que voltaria no dia seguinte, sendo que acabou por não o fazer.
O arguido quis maltratar física e psicologicamente a sua companheira e mãe da sua filha menor, sabendo que com tal conduta lhe causava dor, em particular angústia e tristeza, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada e humilhada, o que assim logrou, bem sabendo que a afetava na sua saúde psíquica, querendo, ainda, atingi-la na sua dignidade pessoal, o que também conseguiu.
O arguido atuou livre, deliberada e consciente, no interior da casa de morada de família e por vezes na presença da filha em comum, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.»
13. O Juiz a quo não apreciou corretamente a prova produzida na fase de Inquérito, nem retirou as conclusões lógicas que se impunha, decorrente da análise da prova produzida, testemunhal e documental constante dos autos, que não deixa persistir quaisquer dúvidas sobre o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido na acusação pública;
14. Os factos vertidos na acusação pública são suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152° do C.P. por parte do arguido;
15. Atento o exposto, e salvo melhor opinião, o Mm. Juiz de Instrução deveria ter concluído pela verificação de indícios suficientes, consubstanciados na factualidade alegada, quanto aos elementos objetivo e subjetivo do tipo legal do crime em causa, e, em consequência proferir a competente decisão de pronúncia em relação ao arguido B… - cf artigo 308.° n.° 1, 1.ª parte do Código Processo Penal;
16. Deste modo, a douta decisão em mérito, também violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto, entre outros, no citado art° 152.° do C.P, e no art°308°, n° 1, Ia parte, do C.P.P.
17. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho de pronúncia nos moldes supra assinalados, submetendo o arguido B…, a julgamento pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.°l alínea b) e n.°2 alínea a) do C.P.»

O arguido apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o despacho recorrido padece de nulidade;
caso tal não se entenda:
- saber se da prova produzida em inquérito e instrução resultam indícios suficientes da prática, pelo arguido, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), e n.º 2, do Código Penal, que lhe é imputado na acusação pública contra ele deduzida, devendo ser ele pronunciado pela prática de tal crime.

III – É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«DECISÃO INSTRUTÓRIA
O Tribunal é competente em razão da matéria e do território.
O M. Público tem legitimidade para acusar.
Não há nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer.
*
Foi requerida a abertura da instrução pelo arguido B… (fl.s 157/164), relativamente à acusação, contra ele deduzida pelo M. Público (a fl.s 136 V.º/138), pela alegada comissão de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 152.º, n.ºs 1, al. b) e n.º do C. Penal, por entender o requerente que não resultam dos autos indícios suficientes em como praticou tal crime.
Conclui, assim, pela sua não pronúncia, com o consequente arquivamento dos autos, tendo requerido a inquirição de testemunhas.
*
Realizou-se apenas o debate instrutório, no decurso do qual o M. Público e a assistente concluíram no sentido da pronúncia do arguido, por entenderem que os indícios recolhidos no inquérito são suficientes para assegurar uma mais provável condenação daquele pelo crime por que foi acusado; o arguido continuou a pugnar pela sua não pronúncia.
*
O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento“.
Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se – apenas e só –a verificar (a comprovar) se o arquivamento do inquérito pelo M. Público é congruente com os indícios probatórios recolhidos em inquérito ou se, pelo contrário, tais indícios permitem sustentar a sujeição a julgamento do arguido, pelo imputado crime de violência doméstica.
Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C.Pr. Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
Conforme se refere no acórdão de 02.JUN.15 da Relação de Évora (pr. 1083/13.9GDSTB) “A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. Em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J nº 428, pág. 706.
Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade e futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”.
Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
*
Conforme refere o art.º 152.º, n.º 1, do C. Penal,
“1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Por outro lado, o nº 2, do mesmo preceito legal estatui que “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
O crime de violência doméstica – que, sublinhe-se, está integrado no lugar sistemático dos crimes contra a integridade física – resultou do desdobramento dos crimes de homicídio (art.º 132.º, n.º 2, al. a) do C. Penal) e de ofensas corporais qualificadas (art.º 145.º do C. Penal), operado pelas alterações de 2007 ao C. Penal.
A criminalização em apreço visa a protecção “…da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal, ou enquanto participante de uma realidade familiar ou análoga.” (Código Penal, Parte Geral e Especial, com notas e comentários, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Almedina, 2015, pg. 647, em comentário ao art.º 152.º do C. Penal).
Pese embora esse referido lugar sistemático, a doutrina e a jurisprudência têm colocado o acento tónico na protecção conferida por este tipo de crime ao bem jurídico da saúde, enquanto elemento valioso complexo, compreendendo a saúde física e mental (Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., t. I, pg. 512), sendo essencial que esse ataque ocorra no âmbito de contexto familiar ou análogo.
Ou seja, ainda que o crime em causa se possa decompor em condutas típicas de outros tipos legais de crime (tais como a ofensa à integridade física, a ameaça ou a injúria), o que o distingue relativamente a essas outras condutas criminalmente tipificadas é o resultado ou consequência da conduta do agente: a vítima é colocada em um estado de sujeição ou subordinação relativamente ao agressor, que condiciona a sua autonomia da vontade.
A degradação da saúde da vítima (entendida como um todo, física, psíquica e psicológica), mercê da agressão por parte do agente, deve assim resultar de modo permanente ou, pelo menos, prolongada no tempo, em termos tais que a vítima fica incapaz de reagir, ou de o fazer em termos relevantes, pelo que a sua dignidade, enquanto pessoa humana, fica seriamente afectada.
Daí que uma ofensa corporal, uma ameaça ou uma injúria se distingam da violência doméstica, pois que pese embora dessas condutas do agente possa resultar igualmente uma diminuição da autonomia da vontade da vítima ou a degradação da sua dignidade, esses efeitos não têm carácter duradouro, permanente ou prolongado no tempo, ao contrário do que sucede na violência doméstica.
Ponto é que a agressão ocorra no âmbito de uma relação conjugal, familiar ou equiparada.
“O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.
Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.”, refere-se no ac. Da Rel. De Coimbra, de 17.JAN.18 (204/10.8GASRE.C1).
Porém, nem todos os factos que ocorrem em contexto familiar, numa relação ou por causa dela, preenchem o tipo objectivo de ilícito de violência doméstica.
Com efeito, a nossa doutrina e a jurisprudência têm entendido que, no crime de violência doméstica, a acção típica, tanto se pode revestir de maus-tratos físicos –como sejam as ofensas corporais como de maus-tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros tipos de agressões, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima (ac. Da Relação do Porto, de 26.MAI.10, 28.09.2011 e 29.FEV.12, por ex.).
Conforme se refere neste último aresto, “Os maus-tratos previstos pelo crime de violência doméstica do art. 152.º do Cód. Penal, têm subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição e dignidade humanas. Com a Reforma de 1995, os maus-tratos psíquicos passaram a estar contemplados com um leque mais alargado de condutas, como humilhações, provocações, ameaças (de natureza física ou verbal), insultos, privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, ou seja, condutas que revelam desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou de fraqueza mas não, necessariamente, um sofrimento psicológico. O relevante é que os maus-tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.”.
Assim, o crime de violência doméstica tutela a dignidade humana da pessoa individual e abrange qualquer tipo de agressão à vítima, quer física como verbal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., t. I, pg. 512; ac. Da Relação de Lisboa, de 05.JUL.16, pr. 247/16.8PAVNG-A.P1: “O crime de violência doméstica protege a dignidade humana, tutelando a integridade física da pessoa individual e a sua integridade psíquica, sendo decisivo à sua imputação que a conduta em causa tenha carácter violento ou que assuma uma configuração global de desrespeito à dignidade da pessoa da vítima, de desejo de prevalência, dominação e controlo sobre a vítima.”).
Pressupõe a existência de um relacionamento entre agente do crime e vítima dele (relação conjugal ou análoga, actual ou passada, ainda que sem coabitação: Comentário…, cit., pg. 513) e pode ser praticado de modo omissivo (Comentário…, cit., pg. 517).
O resultado da conduta pode traduzir-se em uma mera actividade e pode consistir em um dano efectivo como no perigo desse mesmo dano (Comentário…, pg. 520).
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que originou a Revisão do Código Penal introduzida pela Lei nº 59/07, de 04.SET, menciona-se que, entre as principais orientações se destacam, “…o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação.”, salientando-se o seguinte: “Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido.
Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.
No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges.
Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente.
À proibição de contacto com a vítima, cujos limites são agravados e pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho com fiscalização por meios de controlo à distância, acrescentam-se as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência de programas contra a violência doméstica e inibição do exercício paternal, da tutela ou da curatela.».
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus-tratos a que alude o art.º 152.º-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.
Este parece ser também o entendimento de Plácido Conde Fernandes ao escrever que “…não se vê razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral.
A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal.
O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.”.
Enquanto nos maus-tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus-tratos psíquicos com preendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos.
Na vigência do crime de maus-tratos, na redacção dada ao art.º 152.º do C. Penal, pelo DL 48/95, de 15.MAR, esclarecia já o Supremo Tribunal de Justiça que não são todas as ofensas entre cônjuges que cabem na previsão legal, «...mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que fundamentalmente traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente.”.
Acresce agora que, do texto do art.º 152.º, n.º 1 do C. Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/07, de 04.SET, resulta que o crime de violência doméstica pode ser praticado “…de modo reiterado ou não…”.
Finalmente, importa sublinhar que o crime em causa exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude.
Como se exarou no ac. Da Rel. Do Porto de 30.SET.15 (pr.), “… a própria finalidade da previsão normativa – protecção do bem jurídico – tutelando em geral a dignidade da pessoa humana – (em toda a sua plenitude: física e mental, numa relação próxima do ambiente familiar ou análogo, onde existem sentimentos de afectividade, de convivência, confiança, conhecimento mútuo, e ocorram actos de intimidade e de partilha da vida em comum, numa relação viva de cooperação mútua) –que permite e justifica a relação de especialidade com outras normas punitivas, que protegem o mesmo bem (geral: a dignidade da pessoa humana).
Está em causa a protecção da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal (…), constituindo o tipo de crime em apreço, um dos vectores de tutela especial reforçada, que se pode apreciar nos seus desenvolvimentos gradativos,
Face ao mais ligeiro ou mais grave grau de violência exercida sobre certas pessoas vinculadas ao agente (…) que vão da ofensa à integridade física simples qualificada, aos crimes de maus tratos, à ofensa à integridade física grave qualificada e no limite, ao homicídio qualificado”.
Conforme referem M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio (cit., pg. 647, em comentário ao art.º 152.º do C. Penal) no Ac. Da Rel. De Évora, de 18.MAR.13 (pr. 78/12.4GDVCT.G1) se exarou que “A simples prática de crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, ou injúria, não configura um crime de violência doméstica só por a vítima ser cônjuge, ou ex-cônjuge; é necessário que se verifiquem «maus-tratos físicos ou psíquicos.”.
Segundo os citados autores, os maus-tratos físicos ou psíquicos devem traduzir-se em actos que revelem sentimentos de crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima (cit., pg. 650).
Na mesma senda, se exarou no referido ac. Da Rel. Do Porto de 30.SET.15 que o resultado da actuação do agente na violência doméstica tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa, pois o mau trato traduz uma ofensa à dignidade humana, bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a protecção legal, o que tem que ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais), citando o ac. Da Rel. De Guimarães, de 10.JUL.14, o qual enunciou que “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente as ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar…”, e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal), não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade físicaou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir num crime familiar), ou seja, é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.
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No caso em apreço, a prova indiciária colhida no inquérito resultou quer das declarações da assistente H… (a fl.s 53/55); as testemunhas inquiridas em inquérito ou são familiares ou são colegas de trabalho da assistente.
Convergiram tais depoimentos no sentido da existência de discussões entre o arguido e a assistente, no decurso das quais se registaram agressões verbais dele à então companheira; de igual modo constam nos autos cópia de inúmeras mensagens trocadas entre ambos, sendo que em algumas delas o arguido insultou a assistente.
O arguido, por seu turno, quando interrogado nessa qualidade, tendo adiantado as razões para as discussões que tinha com a assistente, alvitra que as queixas da assistente visam prejudica-lo relativamente à regulação das responsabilidades parentais relativas à filha menor de ambos.
Aqui chegados importa desde já sublinhar os seguintes pontos:
- os depoimentos, quer da assistente como dos pais e irmão dela, por um lado, bem como as declarações do arguido oferecem a garantia de isenção, objectividade e imparcialidade que habitualmente têm as declarações provenientes de testemunhas fora do respectivo círculo familiar; vale dizer –tanto por apelo às regras da experiência comum como da experiência já acumulada neste Juízo de Instrução Criminal em situações de acusada violência doméstica–que esses depoimentos não podem deixar de ser apreciados à luz da ideia segundo a qual os familiares de casais desavindos tomam naturalmente partido pela suposta vítima, circunstância susceptível de influenciar num sentido ou noutro as respectivas declarações;- depois –e recordando o que supra se referiu quanto ao critério distintivo do crime de violência doméstica relativamente aos crimes de ofensas à integridade física, de ameaça, de injúria, etc. –mesmo aceitando como boas aquelas declarações, não se perscruta que a assistente, mercê das agressões verbais que foi vítima por banda do arguido, tenha visto a sua saúde mental e física abalada de maneira de tal modo grave e profundo que se possa afirmar –para lá de dúvida razoável –que foi vítima, não de vários crimes de ofensa à integridade física, de ameaça e de injúria, mas de um verdadeiro crime de violência doméstica.
Ora “O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças.
O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus-tratos”.
A conduta do arguido, embora penalmente relevante, surge no contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestava, não espelha uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja susceptível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.”, como decidiu o ac. Da Rel. De Coimbra, de 07.FEV.18 (pr. 663/16.5PBCTB.C1).
Por isso, analisando globalmente os indícios recolhidos em inquérito, importa sublinhar que não se indicia de modo claro e inequívoco a verificação do supra referido resultado ou consequência da conduta do agente do crime de violência doméstica: a colocação da vítima em um estado de sujeição ou subordinação tais relativamente ao agressor, que fique condicionada de modo relevante, significativo e duradouro a sua autonomia da vontade (“O verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.” –ac. Da Rel. De Guimarães, de 04.JUN.18, pr. 121/15.5GAVFL.G1).
Não resulta com efeito do inquérito que tenha ocorrido a também referida degradação da saúde da ofendida, mercê das agressões verbais do arguido, em termos tais que se possa afirmar para lá de dúvida razoável que ela tenha ficado incapaz de reagir, ou de o fazer em termos relevantes, pelo que não se pode sustentar que a sua dignidade, enquanto pessoa humana, tenha ficado seriamente afectada como resultado da conduta do arguido.
Assim, os factos que ocorreram no contexto familiar da ofendida e do arguido não preenchem o tipo objectivo de ilícito de violência doméstica que a ofendida pretende ter existido.
É indubitável que a terem ocorrido as agressões descritas na acusação a ofendida foi menoscabada e apoucada pelas palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido; já é muito menos evidente, porém, que dessas condutas dele tenha resultado o efeito que se pretende punir com a incriminação prevista no art.º 152.º do C. Penal.
O que resulta dos autos é existência de uma relação conflituosa e tumultuosa entre ambos, com agressões verbais mútuas, certamente causadoras de tristeza, angústia, desmoralização e revolta da ofendida, mas que não permitem afirmar ser mais provável uma condenação que uma absolvição do arguido pelo imputado crime de violência doméstica.
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O juiz de instrução criminal, em sede da fase processual facultativa da instrução, analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
Assim sendo, face à prova indiciária existente, é lícito concluir que os indícios recolhidos em inquérito não têm força persuasiva suficiente para se prognosticar que –efectuado o julgamento –será mais provável a condenação do arguido pela comissão do crime de violência doméstica que a sua absolvição.
Importa sublinhar que apesar da actuação do arguido poder constituir a comissão de crimes de injúria, de ofensa à integridade física e de ameaça, não é possível proceder, nestes autos, à convolação da acusação de violência doméstica para os referidos crimes, uma vez que tal constituiria alteração substancial – não permitida nesta fase processual art.ºs 1.º, al. f) e 303.º, n.ºs 3 e 4 do C. Proc. Penal) –pois que se trata de crimes diversos, nomeadamente no que respeita ao bens jurídicos protegidos por uns e outros e à vertente subjectiva desses crimes relativamente à acusada violência doméstica.
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Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos da primeira parte do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIA o arguido B…, com os sinais dos autos, pelos factos e imputação vertidos na acusação contra ele dirigida pelo M. Público, a fl.s 136 v.º/138.
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Nos termos do art.º 214.º, n.º 1, al. b) do C. Proc. Penal, extinguem-se de imediato as medidas de coacção impostas ao arguido.
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Nos termos do art.º 8.º, n.º 9 do Reg. Das Custas Processuais (DL 34/2008, de 26.FEV) e respectiva tabela anexa, fixa-se em 2 (duas) unidades de conta a taxa de justiça devida pela assistente pela realização da instrução.»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o recorrente, Ministério Público, alegar que o despacho recorrido padece de nulidade (invocando o disposto nos artigos 308.º, n.º 2, e 283.º, n,º 3, b), do Código de Processo Penal), por se limitar a tecer considerações genéricas de discordância em relação à acusação pública, sem descrever e especificar quais os factos considerados, ou não considerados, suficientemente indiciados.
Vejamos.
Na verdade, o artigo 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal estatui que ao despacho referido no número anterior (o despacho de pronúncia ou não pronúncia) é aplicável o disposto no artigo 283.º do mesmo Código, artigo relativo ao despacho de acusação. Por seu turno, o n.º 3, alínea b), desse artigo 283.º estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
No entanto, poder-se-ia entender que esta exigência, relativa à acusação, seria aplicável ao despacho de pronúncia, que lhe é equiparável, mas já não ao despacho de não pronúncia. Sobre esta questão, há alguma divergência na jurisprudência.
Há quem considere que no despacho de não pronúncia não é necessário especificar os factos que se consideram suficientemente indiciados, ou não; embora essa seja a melhor técnica, a inobservância desse método não inquina tal despacho de “invalidade”, nem de nulidade, nem de mera irregularidade (assim, entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 17 de dezembro de 2013, in Colectânea de Jurisprudência, 2013, tomo V, pg. 306).
No entanto, vai-se afirmando, maioritariamente, uma orientação contrária, que afirma a nulidade (ou irregularidade) do despacho de não pronúncia que não proceda a tal descrição e especificação de factos suficientemente indiciados ou não.
A razão decisiva para que assim seja será a seguinte:
O despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre os factos a que é relativo. Para se definir o alcance desse caso julgado, é óbvio que deverão ser descritos os factos que não se consideram suficientemente indiciados (porque é em relação a eles que não poderá ser reaberta tal discussão).
Neste sentido, e de forma aprofundada, pode ver-se o acórdão desta Relação de 1 de julho de 2015, proc. n.º 3321/12.6TDPRT.P1, relatado por Neto Moura (acessível in www.dgsi.pt e também publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2015, vol. III, pg. 340 e segs.), assim como a abundante jurisprudência aí mencionada.
Na doutrina, pronunciam-se neste sentido, e como também se refere nesse acórdão, Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pg, 779), Eduardo Maia Costa (in Código de Processo Penal Comentado Almedina, 3ª ed. pg.988) e Frederico Lacerda da Costa Pinto, (in Direito Processual Penal, edição AAFDL, 1998, pg. 164). É minoritário o acolhimento jurisprudencial da tese de Germano Marques da Silva (ver Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed. Verbo, pgs. 182 e segs), segundo a qual o despacho de não pronúncia tem simples força de caso julgado formal, não impedindo a reabertura noutro inquérito da discussão sobre os factos considerados não suficientemente indiciados (tese menos conforme aos valores da certeza e paz jurídicas subjacentes ao instituto do caso julgado).
Como também se indica desenvolvidamente no citado acórdão, a jurisprudência divide-se quanto à qualificação do vício em questão: irregularidade ou nulidade, nulidade sanável ou insanável, de conhecimento oficioso ou não.
Afigura-se-nos que será de aplicar ao despacho de pronúncia, como sustenta o recorrente no caso em apreço, a nulidade (não simples irregularidade) decorrente do artigo 283.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal (para que remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo Código). Não vemos motivo para aplicar tal regime de nulidade ao despacho de pronúncia e já não ao despacho de não pronúncia.
Por outro lado, a relevância sistémica do princípio do caso julgado material impõe que se considere tal nulidade insanável e de conhecimento oficioso. Uma tão relevante consequência como é a da força de caso julgado material não poderá ficar dependente de arguição.
A esta luz, há que analisar o despacho recorrido.
Na verdade, e como alega o recorrente, nesse despacho são tecidas considerações genéricas sobre o crime de violência doméstica, por que vem o arguido acusado, e sustenta-se que os factos por que o arguido vem acusado não integram a prática de tal crime, podendo integrar outros que representariam uma alteração de qualificação jurídica em relação à acusação. Mas não se toma posição clara sobre se a prática de tais factos está ou não suficientemente indiciada.
Sucede, por vezes, que do teor do despacho de não pronúncia resulta, implícita, mas claramente, que não se consideram suficientemente indiciados nenhum dos factos imputados ao arguido na acusação ou no requerimento de abertura de instrução. Nesse caso, poderá ser desnecessária a especificação desses factos. Mas não é isso que se verifica no despacho em apreço, onde não se afirma uma posição clara sobre os factos que se consideram, ou não, suficientemente indiciados.
Assim, deveria o despacho recorrido especificar os factos que considera, ou não, suficientemente indiciados (questão sobre a qual terá tal despacho força de caso julgado material), independentemente da questão (a analisar de seguida) de saber se eles configuram, ou não, o crime de violência doméstica por que vem o arguido acusado. Essa especificação será necessária para suprir a nulidade de que padece o despacho recorrido
Deve, pois, ser dado provimento ao recurso.

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, declarando nulo o despacho recorrido, pelas razões acima indicadas e determinando que seja suprida tal nulidade, nos termos também acima indicados.

Notifique.

Porto, 22/9/2021
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo (Voto a decisão, pois como já defendi no Ac. de 14.06.2017 (publicado na dgsi.pt) a omissão dos factos indiciados só constitui nulidade insanável se for proferida decisão instrutória de pronúncia. Se a decisão for de não pronúncia, tal omissão apenas constitui irregularidades embora de conhecimento oficioso, conduzindo neste caso à remessa do processo à 1ª instância para que seja sugerida tal irregularidades efeito esse a que conduziu a posição do Exmo Colega relator nestes autos.)