Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
42896/18.8YIPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
ORDEM DOS ADVOGADOS
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RP2019050642896/18.8YIPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONHECIMENTO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º695, FLS.118-120)
Área Temática: .
Sumário: A quebra do segredo profissional do advogado, incidente a processar de acordo com o disposto no art. 135.º CPP (ex vi arts. 497.º, n.º 3 e 417.º, n.º 4 CPC), é necessariamente precedida da audição da Ordem dos Advogados como expressamente impõe o n.º 4 daquele normativo. Não obstante, a posição que a Ordem dos Advogados veicular a esse respeito não é vinculativa para o tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 42.986/18.8YIPRT-A.P1
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Acordam os juízes que compõem esta terceira secção cível:
RELATÓRIO
Na ação de honorários instaurada por B…, advogado, com domicílio na …, …, piso …, fração …, Viseu, contra C…, SA, com domicílio na …, Vale de Cambra, foi arrolado como testemunha pelo A., o advogado da Ré, Dr. D…, o qual, por requerimento de 30.10.2018, se escusou a depôr, invocando sigilo profissional.
Por despacho de 7.12.2018, foi suscitado incidente de dispensa de sigilo, invocando-se as regras dos arts. 497.º, n.º 3 e 417.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Civil e artigo 135.º do Código de Processo Penal, com os seguintes fundamentos:
O Autor arrolou como testemunha o Ilustre Mandatário da Ré em virtude de, segundo alega, este ter prestado colaboração no escritório do Autor, inclusivamente ter tratado directamente os processos cujos honorários estão aqui a ser solicitados no período de prestação dos serviços em causa.
O Ilustre Mandatário da Ré recusou prestar depoimento, invocando sigilo profissional.
Face a tal recusa, ao Tribunal cumpre, antes de mais, aferir da legitimidade da recusa.
Na situação dos nossos autos e sem necessidade de audição da Ordem dos Advogados, entendemos que a recusa é legítima, já que os factos em causa chegaram ao conhecimento da testemunha e ocorreram com a intervenção deste no âmbito da referida atividade profissional de advogado.
No entanto, afigura-se-nos igualmente que o depoimento em causa é essencial para a descoberta da verdade e, como tal, serão superiores os valores de segurança e certeza jurídica em relação aos que o sigilo visa proteger.
Foram colhidos vistos.
Objeto do processo: dispensa de segredo profissional.
FUNDAMENTAÇÃO
De facto
Os factos relevantes para decisão são os acima expostos.
De Direito
Ao incidente sobre levantamento de segredo profissional, em processo civil, aplica-se o regime previsto no art. 135.º CPP, por força das normas remessivas do CPC que acima ficaram referidas.
De acordo com o n.º 4 do art. 135.º CPP, a decisão sobre o levantamento do sigilo é precedida da audição do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa.
Tratando-se da profissão de advogado, o regime do segredo profissional encontra-se disciplinado no Estatuto da Ordem dos Advogados, regulado pela Lei 145/2015, de 9.9.
Sobre o sigilo profissional dispõe o art. 92.º daquele Estatuto, delimitando de forma rígida quer o seu âmbito, quer as condições de dispensa. Nestas últimas, a par de um apertado critério substancial (desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes), não deixa de se fazer alusão à competência da Ordem dos Advogados para conceder, ela mesma, aquela dispensa.
Não faz qualquer fé em juízo o depoimento prestado sem salvaguarda dos requisitos materiais e formais da dispensa do segredo (n.º 5).
Do iter proposto pelo legislador – quer no CPP quer no mencionado Estatuto – resulta que o incidente de quebra de sigilo, no caso de advogado, não dispensa a audição prévia da respectiva Ordem.
Com efeito, por um lado, a Ordem dos Advogados poderá dispensar do sigilo profissional o advogado que lho solicite, se entender reunidas condições para tanto, mas, por outro, deverá também ser ouvida pelo Tribunal antes de se decidir pelo levantamento, em incidente processual, daquele sigilo.
A obrigatoriedade de prévia audição da Ordem dos Advogado resulta da natureza pública do interesse prosseguido pelo sigilo do advogado o qual se relaciona com a conservação e desenvolvimento da sociedade política e da satisfação das suas necessidades[1] e não está condicionada à existência de dúvidas sobre a legitimidade da recusa. É isso que resulta da remessa do n.º 4 para as situações do n.º 3 do art. 135.º.
A recolha da posição prévia da agremiação profissional da pessoa cujo depoimento se pretende é de primacial importância, não para aquilatar se é legítima ou ilegítima a recusa em depôr – já se disse nos autos que o é – mas para saber, da perspetiva de tal ordem profissional, qual a interpretação que ao caso faz do disposto no art. 92.º, n.º4, daquele Estatuto.
Cabendo ao tribunal decidir se a violação do segredo profissional é, in casu, absolutamente necessári[a] para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, justifica-se a consulta prévia da instituição que, em primeira linha, não só tem por missão decidir estes temas, como se encontra em situação privilegiada para verificar os interesses daqueles que tem por função representar, concorrendo na definição concreta do princípio da prevalência do interesse preponderante[2], embora a sua posição não seja vinculativa[3].
Afastamos, assim, o entendimento plasmado no ac. RG, de 18.2.2016, Proc. 2068/10.2TJVNF-A.G1, segundo o qual se não impõe a audição prévia desta Ordem.
Com efeito, são eloquentes e justificadas as razões apontadas pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados quando crítica este aresto: »a pronúncia da Ordem dos Advogados ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 135.º do C.P. Penal não pode ser reduzida à condição de um mero parecer, destinado a auxiliar o julgador na percepção e apreciação da realidade fáctica difícil de captar mediante os conhecimentos de que normalmente o juiz está apetrechado, como expressamente é declarado no acórdão em apreço. O segredo profissional é um dever imposto ao advogado por uma lei da república (Lei n.º 145/2015 de 9 de Setembro de 2015), sendo que o n.º 5 do art. 92.º dessa lei comina claramente que “os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”. Desse dever decorre o direito do advogado se remeter ao silêncio sempre que interpelado no sentido da revelação de factos advindos ao conhecimento por via do exercício da sua profissão. Subjacente à imposição legal desse dever está a garantia de um valor fundamental, transversal ao complexo das relações que o advogado estabelece no exercício da sua profissão: o valor da confiança! Confiança daquele que depositando no conhecimento do advogado determinado facto, o faz na legítima expectativa de o mesmo ser mantido sob sigilo, ressalvadas as hipóteses legais em que a sua quebra pode ocorrer. À Ordem dos Advogados, no âmbito das suas atribuições, compete (i) defender os direitos e as garantias dos cidadãos, (ii) promover o respeito pelos valores e princípios deontológicos, (iii) defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros - vd artº 3º do EOA. O incidente de quebra do segredo profissional, ao abrigo do disposto no art. 135.º do C.P. Penal, visa a obtenção de um meio de prova que contende, ou pode contender, com valores, deveres, direitos e garantias que, no âmbito das suas atribuições, compete à Ordem dos Advogados zelar e defender. Tem assim a Ordem dos Advogados uma legitimidade própria para se pronunciar quando em causa possam estar os deveres cujo cumprimento deve zelar, direitos e garantias cujo respeito deve defender. O legislador consignou-a obrigatoriamente no nº 4 do art. 135.º do C.P. Penal. Nesta pronúncia, marcará a Ordem dos Advogados a sua posição, não com considerações de ordem técnica, mas com considerações de ordem valorativa, com as quais dirá (i) se os valores, direitos e interesses que se pretendem defender com a quebra do sigilo justificam o sacrifício daqueles que se pretendem salvaguardar com a imposição legal do dever de o guardar; (ii) se o facto sigiloso é essencial para a descoberta da verdade material na defesa de interesses preponderantes, (iii) se o depoimento do advogado ou o documento em seu poder, é imprescindível para a comprovação do facto. Não sendo a Ordem dos Advogados chamada a pronunciar-se, é preterida uma formalidade legal que forçosamente inquina a validade do meio de prova que por via do incidente do levantamento de sigilo foi obtido. A Ordem dos Advogados tem interesse na preservação do segredo profissional do advogado, como interesse tem qualquer cidadão. Mas por ter esse interesse e um dever especial na sua preservação, não significa (nem é verdade) que, nas pronúncias que tem proferido ao abrigo da citada norma de direito processual, manifeste sempre a sua oposição no sentido da manutenção do sigilo. Mas, quando a manifesta, fá-lo com fundamento»[4].
Na situação que nos ocupa, em primeira instância não foi observado o itinerário processualmente previsto para o incidente aqui em apreço.
Designadamente, não foi ouvida a Ordem dos Advogados sobre a pretensão de quebra de segredo profissional do advogado dos autos cujo depoimento como testemunha se pretende seja recolhido.
Assim sendo, não pode este tribunal decidir sobre tal incidente, sob pena de, a ser procedente, se vir a colocar de futuro a questão da validade e eficácia da prova que viesse a ser produzida nesta sequência.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os juízes que compõem este tribunal não conhecer do incidente de quebra de sigilo, ordenando a remessa dos autos à primeira instância a fim de, cumpridas as formalidades legais, nomeadamente audição prévia da Ordem dos Advogados, e se assim continuar a ser entendido, ser suscitado novo incidente.
Sem custas.

Porto, 6.5.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões
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[1] Paulo Otero, Direito Administrativo - relatório de uma disciplina apresentado no concurso para professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 381, apud Catarina Pires, O ADVOGADO ENQUANTO CONFIDENTE NECESSÁRIO: ENTRE O DEVER DE SIGILO E O “DEVER DE JUSTIÇA”, p. 5. No mesmo sentido ac. STJ, de 23.2.2017, Proc. 1130/14.7TVLSB.L1.S1: Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral. Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.
[2] Ac. RC, de 4.3.2015, Proc. 60/10.6TAMGR-A.C1: O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer.
[3] Ac. RL, de 7.7.11, Proc. 342/05.9TVLSB-A.L1-8:
I - O parecer da Ordem dos Advogados não pode ser vinculativo pela simples razão de tal vinculação ori­ginar uma decisão judicial sem qualquer sentido: a decisão judicial, limitando-se a confirmar o parecer, seria meramente redundante e, como tal, um acto inútil. II- A própria função e substância da advocacia fazem com que as normas que regulam o segredo profissional tenham de ser consideradas como de interesse e ordem pública. Por outras palavras, o dever de guardar segredo, apesar de estabelecido fundamentalmente no interesse do próprio cliente, também visa a protecção do interesse geral. III- Autorizar um advogado que esteja ou tenha estado constituído num determinado pleito a depor nesse mesmo pleito seria a completa subversão do sistema processual e altamente desprestigiante para a advocacia.
[4] Ipso Iure, n.º 88, 2016, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7Bd3d3bd19-c7e5-433e-84f1-3f04476bfcd5%7D.pdf.