Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
612/19.9T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA
Nº do Documento: RP20190509612/19.9T8PRD.P1
Data do Acordão: 05/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º173, FLS.129-142)
Área Temática: .
Sumário: I - Há esbulho, para efeito de aplicação do referido art.º 377º do Código de Processo Civil, sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar.
II - A violência exigível pode ser física ou moral; é esbulho violento o que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; é também violento o esbulho obtido por coação moral, proveniente da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública, com constrangimento moral ou perturbação da liberdade de determinação e tranquilidade do possuidor.
III - A presença da força policial e de agentes judiciais sob pretexto do cumprimento de uma determinação judicial é suscetível de perturbar a liberdade de ação de uma pessoa que, assim, se vê constrangida a aceitar tudo o que for praticado por um terceiro na aparência da proteção daqueles agentes, sob pena de alguma sanção, para mais quando é visada uma pessoa fragilizada por doença psiquiátrica.
IV - O art.º 379º do Código de Processo Civil estabelece especificamente a possibilidade de defesa da posse mediante providência não especificada, dispensando o requisito da violência e bastando-se com a existência de esbulho ou simples turbação da posse, desde que estejam verificados os requisitos do procedimento cautelar comum, quais sejam, a séria probabilidade de existência de posse (ou situação jurídica equiparada) e o receio de lesão grave e dificilmente reparável que venha a ocorrer na esfera do requerente (periculum in mora).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 612/19.9T8PRD.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes – J2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
B…, viúva, titular do cartão de cidadão nº ………….., válido até 19.08.2020, residente na Avenida …, …, …. – … Paredes, instaurou, ao abrigo do disposto nos artigos 377.º e 378.º Código de Processo Civil, procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra C…, solteiro, NIF ……….., residente na Travessa …, …, …. – … …, Lousada, pedindo que seja ordenada “a restituição da posse do (…) imóvel sito na Avenida …, …, …. - … Paredes inscrito na matriz predial da Freguesia de …, sob o artigo n.º 2398-CA e descrito na conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número 1509-CA, identificado como Fração Autónoma “CA”.
O tribunal indeferiu liminarmente a providência requerida, considerando não estarem reunidos os necessários pressupostos processuais, sendo ela manifestamente infundada.
Inconformada, a Requerente recorreu daquela decisão, tendo apresentado alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).

Importa apreciar as seguintes questões:
1. Nulidade da decisão, por falta de fundamentação, por omissão de pronúncia e por obscuridade;
2. A alegação dos requisitos do esbulho e da violência;
3. A convolação legal da providência prevista no art.º 379º do Código de Processo Civil e a nulidade da decisão que a nega.
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III.
Para a decisão de indeferimento liminar, o tribunal considerou relevantes os factos alegados no requerimento inicial, tendo-os exposto como se segue:
Começa por referir que toda a factualidade que fundamenta o presente procedimento já foi explanada pela requerente, em queixa-crime que apresentou contra o filho e outros e em outra providência de arrolamento pendente em juízo. Para o efeito, alega que o seu agregado familiar inicialmente formado pelo falecido D…, o requerido C… e a Requerente sempre teve como morada de família o apartamento localizado na Avenida …, nº …, …. - … Paredes.
Essa fração havia sido comprada na vigência do casamento da requerente e seu falecido marido que era técnico oficial de contas, na sociedade “E…, Ldª.”, onde também a requerente trabalhava. O marido da requerente veio a falecer em 29.04.2014, após, doença prolongada, facto que conjugado com outros eventos familiares traumáticos originou que a requerente tivesse que iniciar acompanhamento psiquiátrico, em 11.04.2016, com internamento diário durante pelo menos 3 meses.
Por sua vez, o sucedido também afetou o requerido que descarregou na ora requerente a sua ira e raiva, por esta lhe ter ocultado a gravidade da doença do pai, para não comprometer a possibilidade que se veio a concretizar daquele ser convocado para a seleção nacional de hóquei em patins. Desde então, passou a procurar o apoio e o conforto junto da irmã mais velha da requerente F….
Seguindo os conselhos da irmã e, posteriormente, do filho e ora requerido, a requerente colocou em nome de uma terceira pessoa o apartamento que constituía a cada de morada de família.
Por escritura pública celebrada em 02.06.2016, a requerente e o requerido, entretanto de maioridade, declararam vender, pelo preço de €130.000,00, a casa de morada de família, o apartamento acima identificado, à sociedade comercial G…, S.A. de que são, respetivamente, a Presidente e Vice-Presidente do Conselho de Administração, a mulher e a filha de H….
Para os devidos efeitos, alega que o negócio de compra e venda do apartamento foi simulado e a finalidade do mesmo era salvaguardar a sua posição e que, depois de assinado, seria imediatamente assinado um contrato promessa de compra e venda de sentido inverso, ou seja, um contrato promessa pelo qual, a G…, S.A. prometia vender de volta à requerente e ao filho, o mesmo imóvel.
Por conseguinte, outorgaram um contrato promessa datado de 09.06.2016 pelo qual foi prometido vender o mesmo apartamento à requerente e filho, mediante a entrega de uma declaração de quitação pela qual, a promitente vendedora G… declarava ter recebido da requerente e do requerido C… a quantia de €135.000,00, ou seja, a totalidade do preço ajustado no contrato promessa que na mesma data assinaram.
Para justificar a permanência da requerente e do requerido no imóvel, combinaram assinar um contrato de arrendamento que ficaria em nome do filho, tendo sido ajustada uma renda fictícia e totalmente desajustada da realidade do mercado, de €1.200,00/ano, uma renda mensal de €100,00, quando o valor de mercado para um apartamento T3 de cobertura, com mais de 150 m2 de área útil, duas garagens e arrumos, em pleno centro de Paredes, como é o da requerente, nunca seria inferior a €500,00/mensais; montante de renda que alega nunca ter pago apesar de sempre ter continuado a viver no apartamento, sendo que o seu filho, o requerido, também não pagou.
Refere que nunca quis vender o imóvel de que era proprietária e apenas aceitou fazer o que lhe foi sugerido e preparado pela irmã F…. Para conferir credibilidade, no acto de celebração da escritura pública foram entregues ao requerido C… quatro cheques não à ordem, no valor de €32.500,00 cada, sacados sobre a conta ……….. de que a “G…, S.A.” era titular junto do Banco I…, cheques estes com os números ………., ………., ……… e ……., todos emitidos a favor do C…, pelo que apenas este, como seu beneficiário, poderia proceder ao seu depósito ou levantamento, não podendo ser endossado a terceiros. Aliás, foi dito à requerente que tais cheques serviam apenas para simular pagamento perante a notária, que jamais seriam movimentados pelo que, nesse mesmo dia, em 02.06.2016, a requerente foi entregá-los com o requerido à irmã F…, para o que se deslocaram ao balcão de … do I…, no qual esta trabalhava. A requerente não recebeu qualquer montante por conta da venda do apartamento, o que não estranhou, convencida que estava de que se tratava de uma venda simulada, na qual até já tinha contrato promessa de sentido inverso e com recibo de total quitação que lhe permitiria, supostamente, reverter a situação e voltar a registar a propriedade em seu nome.
Alega ainda que após a venda simulada da casa, se apercebeu de uma substancial melhoria na qualidade de vida do requerido C… e da sua irmã F… e companheiro, J…, tendo os últimos realizado pelo menos 3 viagens de férias em 2017, o que nunca haviam feito antes, trocaram o seu modesto Renault … a gasolina, em janeiro de 2011 de matrícula .. – LG - .., por um moderno FIAT … comprado novo, em abril de 2017.
Por sua vez, o requerido C… deixou de exigir insistentemente dinheiro à requerente, não obstante fazer muitas refeições fora, comprar roupas novas e caras, como calças e casacos, de realizar deslocações a concertos de música, aquisição de consolas de jogos, etc.
Assim, a requerente decidiu que, no processo de refazer a sua vida, era de dar cumprimento ao estabelecido no contrato promessa e procedeu ao envio à G…, S.A., de carta registada, convocando-a para a escritura, como ajustado no contrato promessa, informando o vendedor do dia e hora para a realização do contrato definitivo. Inclusivamente, dirigiu-se às instalações da G…, S.A. na tentativa de comunicar a nova data e garantir que nada faltaria para se poder outorgar a escritura pública na data previamente agendada no cartório notarial identificado, tendo-lhe sido dito pelo H… que faria a escritura pública de venda mas apenas se o requerido C… e a sua irmã lhe devolvessem os €130.000,00 que haviam sido pagos através dos cheques emitidos, entregues ao requerido e que foram efetivamente pagos.
No dia 27.12.2018, a legal representante da G…, S.A. não compareceu na outorga da escritura, não tendo procedido à entrega de qualquer dos documentos necessários à preparação e realização da escritura.
Inclusivamente, o requerido instaurou um procedimento cautelar de arrolamento contra a requerente que corre termos como processo nº. 2955/18.0T8PRT, crendo-se ser evidente que, com tal arrolamento, não pretendeu, nem pretende o aqui requerido acautelar minimamente o acervo hereditário ou quaisquer bens pessoais que haja deixado na casa de morada de família, antes pretendendo tirar a requerente de sua casa, de modo a que a G…, S.A. proceda à sua venda.
De facto, como se não bastasse, no passado dia 11 de fevereiro de 2019, a requerente foi surpreendida naquela habitação pelas 10h00, por uma agente de execução que, no âmbito do aludido procedimento cautelar, fez constar em auto que lhe substituíram as fechaduras de casa. Se bem que fez constar no auto de arrolamento que “os bens não foram removidos, uma vez que o requerido voluntariamente entregou a chave do imóvel e desocupou o mesmo”, a verdade é que a requerente foi pura e simplesmente expulsa de sua casa, tendo-lhe sido ordenado que fizesse um saco onde levasse as suas roupas.
A requerente não autorizou quem quer que fosse a mudar as fechaduras da sua casa, o que o requerido efetuou deixando a sua própria mãe na rua, apenas com um saco, na qual teve apenas tempo de amontoar alguma roupa.
No dia 11 de fevereiro após a requerente ter sido expulsa da sua casa, surgiu uma placa afixada na sua habitação, visível da rua e com os dizeres vende-se e com a indicação de um número de telemóvel.
A requerente alega, assim, estar privada da sua casa e que o requerido está a permitir que a G…, S.A. proceda à sua venda a terceiros, nos termos e para os demais efeitos alegados.

Sem prejuízo da recolha de outros elementos alegados na petição inicial que, para nós, se mostrem relevantes para a decisão, esta síntese do requerimento inicial, efetuada na sentença, foi assumida pela recorrente nas conclusões da apelação (conclusão 10), tendo referido: “Esta factualidade demonstra à evidência que a Rte. está a ser vítima de esbulho, pois foi privada da sua posse continuada, pública e pacífica que, como proprietária que efectivamente é, vinha fazendo da dita habitação identificada nos autos.
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IV.
Apreciação das questões do recurso
1. Nulidade da decisão por falta de fundamentação, por omissão de pronúncia e por obscuridade
A falta de fundamentação
Escreve a recorrente nas suas alegações:
«(…)
Todavia, como que acabando o seu truncado raciocínio acaba por afirmar posteriormente, que a matéria de facto que a Rte. alegou, designadamente, em 63º a 66º do seu requerimento inicial, não obstante a ressalva que consta da nota de citação, se trata de matéria que apenas em sede de oposição na providência cautelar de arresto contra a Rte. decretada (Proc. 2955/18.0T8PRD – Juiz 1 deste Juízo Local Cível de Paredes.
Ou seja, a Mma. Juiz a quo faz uma afirmação perfeitamente gratuita, no sentido de dizer que não conhece de determinada matéria porque a mesma deve ser conhecida noutro procedimento, sem justificar minimamente por que razão assim seja ou deva ser.
Não invoca uma razão de facto e, muito menos, um preceito legal que sustentem a sua afirmação/decisão.
E, com isso, faz tábua rasa de factualidade expressamente alegada pela Rte., essencial para fundamentar a sua pretensão, e da qual resulta até mais que consubstanciada uma arguição de falsidade do auto de arrolamento.
(…)
Ora, perante este quadro, não se vislumbra como possa um Tribunal alhear-se em absoluto da situação concreta que lhe foi colocada, esquecer o que se exarou na nota de citação em que foi dada cópia do auto, já totalmente exarado e esquecer ainda toda a factualidade invocada no presente procedimento pela Rte. para o sustentar.
(…)».
O art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil determina que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Esta norma decorre do comando constitucional que o art.º 205º da Constituição da República prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida, gere a sua nulidade. Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, que a decisão é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Porém, este vício penaliza a falta absoluta de fundamentação da decisão, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada. Este é o entendimento tendencialmente uniforme na doutrina e na jurisprudência[1].
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira uma certa questão.
Como também escreveu o Professor Alberto dos Reis[2], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou impercetível. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão[3]. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões de facto e de direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
Pois bem…
A questão de que tratou em primeiro lugar o despacho recorrido foi da verificação dos pressupostos legais da providência cautelar da restituição provisória de posse, previstos no art.º 277º do Código de Processo Civil. O tribunal concluiu pela manifesta falta deles sem que se possa dizer que o fez com absoluta falta de fundamentação.
É a própria recorrente que escreve que “o tribunal acabou o seu truncado raciocínio” afirmando “que se trata de matéria que apenas em sede de oposição na providência cautelar de arresto contra a Rte. decretada (Proc. 2955/18.0T8PRD – Juiz 1 deste Juízo Local Cível de Paredes”.
A este propósito, o que se escreveu na decisão recorrida foi o seguinte:
«Aliás, o acto visado pela presente providência cautelar instaurada pela requerente é o resultante da prolação de uma decisão cautelar proferida pelo Tribunal e, por isso, não é admissível, nem tolerável que no ordenamento jurídico se questione uma decisão cuja finalidade é acautelar o efeito útil de uma acção, sem que seja por via da dedução da competente oposição ou interposição do recurso, sendo admissível.
Senão, vejamos.»
Esta afirmação não corresponde nem ao início nem ao termo da fundamentação da decisão. É intermédia. O que se escreveu para trás e o que se escreveu depois dela não tem diretamente que ver com o dito excerto que não passa de mais um argumento no conjunto da justificação da decisão.
É certo que aquele argumento, de que a defesa num processo se faz pelo exercício do contraditório nesse mesmo processo, e não noutro, poderia ter sido desenvolvido, com referência à lei, a doutrina e a jurisprudência. Mas não é menos exato que não é mais do que um entre vários outros argumentos utilizados na decisão para motivar o indeferimento da providência a que se refere o art.º 377º do Código de Processo Civil, sendo que os demais - certos ou errados (não releva, como afirmámos, para efeito da nulidade) - estão ali desenvolvidos ao longo de cerca de três páginas de explicação da ausência de esbulho e de violência enquanto requisitos indispensáveis ao sucesso do pedido cautelar. Basta uma leitura perfunctória da decisão para que não se possa negar que está fundamentada e de uma forma compreensível, inteligível.
Não ocorre nulidade da decisão por falta de fundamentação, na parte em que afasta os requisitos da restituição provisória da posse nos termos do art.º 377º do Código de Processo Civil.
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A omissão de pronúncia
Referindo-se ainda à dita passagem da decisão, alega também a apelante que «a Mma. Juiz faz uma afirmação perfeitamente gratuita, no sentido de dizer que não conhece de determinada matéria porque a mesma deve ser conhecida noutro procedimento, sem justificar minimamente por que razão assim seja ou deva ser.
Não invoca uma razão de facto e, muito menos, um preceito legal que sustentem a sua afirmação/decisão.
E, com isso, faz tábua rasa de factualidade expressamente alegada pela Rte., essencial para fundamentar a sua pretensão, e da qual resulta até mais que consubstanciada uma arguição de falsidade do auto de arrolamento».
A norma da al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil - segundo a qual é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento - está em correlação com o art.º 608º, nº 2, do mesmo código. O juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita (ex officio).
A nulidade invocada há de resultar da violação do referido dever.
Não confundamos questões com factos, argumentos, considerações ou mesmo observação pura da causa de pedir. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência em correlação com a respetiva causa de pedir[4]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[5] O facto material é um elemento para a solução da questão; não é a própria questão.
Já Alberto dos Reis ensinava[6] que “uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”.
Os factos não constituem, pois, a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam com vista a obter a sua procedência.
Mais uma vez, não interessa aqui se o tribunal decidiu bem ou mal, mas apenas se a questão que o tribunal conheceu foi ou não foi suscitada pelo demandante na petição inicial, com causa de pedir e pedido.
Com toda a evidência, o tribunal conheceu de uma pretensão do A., com base em factos por ele também alegados, indeferindo-a liminarmente por alegada manifesta falta de fundamentos.
Entendeu o tribunal que não foram alegados factos suscetíveis de preencher aqueles pressupostos da providência requerida. Portanto, conheceu e decidiu a questão inerente à causa de pedir do procedimento cautelar. Se, para a decisão, deixou de considerar factos que, tendo sido alegados pela Requerente, eram verdadeiramente indispensáveis e poderiam motivar a necessidade de prossecução do processo, é matéria que não tem a ver com a validade da sentença, qua tale.
Não ocorre nulidade por omissão de pronúncia.
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A obscuridade da decisão
Escreveu a recorrente:
«Desde logo padece a decisão proferida de uma obscuridade que torna ininteligível ou mesmo inexistente a sua fundamentação, ao dizer no 2º parágrafo da sua página nº 5 que “Não obstante, a versão factual ora exposta pela requerente na presente providência cautelar especificada de restituição provisória da posse, entendemos que tendo em conta o exarado no auto de arrolamento que, salvo melhor opinião em sentido contrário, nos oferece a máxima credibilidade, atendendo a que os agentes de execução estão sujeitos ao dever de legalidade, ou seja, não lhes sendo permitido usar de expedientes ilegais. “- nada concluindo a Mma. Juiz, ou seja, não dizendo afinal aquilo que entende!!»
Vejamos.
É verdade que Sr.ª Juiz escreveu aquele parágrafo. Mas não o fez de modo desgarrado. Imediatamente antes dele, escreveu: “Igualmente, se consultou o auto de arrolamento lavrado em 2019.02.11, pela agente de execução nomeada, tendo resultado, em concreto, do consignado nas observações (18) daquele documento que a ora requerente voluntariamente abriu a porta da identificada habitação, permitindo a realização da diligência cautelar judicialmente decretada. Referindo-se expressamente que os bens móveis arrolados não foram removidos porque de modo voluntário a ora requerente entregou a chave do imóvel, desocupando-o que se mostra regular e devidamente assinado pela própria B….» E logo depois dele, escreveu também: «Para além do que assume especial relevância e gravidade a alegação da requerente efectuada nos pontos 63 a 66, principalmente, por estar atribuir a uma agente de execução factos contrários ao exarado no auto de arrolamento que a própria requerente de modo voluntário subscreveu e assinou, pese embora, o teor da certidão de citação junta a fls. 43 que foi subscrita no dia 12.02.2019 e cuja prova apenas pode ser discutida ou atendida na providência cautelar ou no processo principal que vier a resultar da mesma».
O que se escreveu na decisão é perfeitamente claro e inteligível. O tribunal entendeu que, havendo um procedimento cautelar de arrolamento, com auto lavrado muito recentemente, de onde resulta que a Requerente entregou a chave do imóvel, desocupando-o, estando esse auto lavrado por um agente de execução e também assinado pela Requerente, não há motivos para por em causa a veracidade do seu teor. Assim, porque “os agentes de execução estão sujeitos ao dever de legalidade, ou seja, não lhes sendo permitido usar de expedientes ilegais”.
Afastou o tribunal, com a referida argumentação, a falsidade do conteúdo do auto, falsidade essa que a recorrente invocara no requerimento inicial da presente providência. E acrescentou que a atribuição de factos contrários aos exarados no auto de arrolamento só pode ser discutida ou atendida na providência cautelar ou no processo principal que vier a resultar da mesma.
Aquela fundamentação é compreensível e racional. Não vemos onde possa estar a obscuridade deste raciocínio ou a sua ininteligibilidade por qualquer outro motivo. Está inserida no texto da motivação de modo que permite às partes percecionar o trilho seguido pelo tribunal para atingir a decisão.
Também não se verifica este vício.
Diferente é saber se a decisão está correta do ponto de vista da aplicação do Direito; isto é, se há fundamento válido para indeferir liminarmente o requerimento inicial de restituição provisória da posse. É a questão que se segue.
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2. A alegação dos requisitos do esbulho e da violência
Não estão aqui em causa factos provados, mas factos alegados, dada a fase liminar em que o procedimento se encontra.
Importa saber se a Requerente alegou os factos suficientes e necessários ao sucesso da providência, ou seja, a sua causa de pedir (art.ºs 377º e 552º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil).
O tribunal a quo entendeu negativamente, por ausência de factos suscetíveis de preencher os conceitos de esbulho e de violência e ainda por entender que o fundamento da presente providência não a justifica, porque deveria ser (ou ter sido) invocado, no exercício da defesa e do contraditório, no procedimento de arrolamento que corre termos no proc. nº 2955/18.0T8PRT, do mesmo tribunal.
Vejamos.
Dispõe o art.º 377º do Código de Processo Civil, no âmbito dos procedimentos cautelares especificados, que «no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».
De acordo com o subsequente art.º 378º, «se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador».
Dispõe o art.º 1276º do Código Civil que, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.
Todavia, para as simples ameaças de intromissão na esfera de atuação do possuidor ou por atos configurados como mera turbação da posse, já não será a restituição provisória a providência idónea, antes aquela que, enquadrada no procedimento cautelar comum abarque a situação sujeita a perigo de lesão grave e dificilmente reparável.
Nos termos do art.º 1279º do mesmo código, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
A restituição provisória da posse, com características antecipatórias, apreciada e decidida de forma acelerada e sem prévia audição do requerido, foi reservada para situações em que a ilicitude da conduta é mais grave. Visa conferir tutela provisória ao possuidor que, por seu intermédio, alcança a reconstituição da situação possessória anterior ao esbulho violento.
Assim, são pressupostos da restituição provisória da posse:
- A existência de posse (na conceção objetiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção).
- Seguida de esbulho;
- Com violência.[7]

O esbulho corresponde a um ato pelo qual alguém priva outrem da posse de uma coisa determinada. Há esbulho, para efeito de aplicação do referido art.º 377º, sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar.[8] No esbulho, o terceiro não permite que o possuidor atue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando o último desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.

Quanto à violência, já Alberto dos Reis[9] defendia que «tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor». Acrescentou ali que «a violência pode ser física ou moral; é esbulho violento o que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; é também violento o esbulho obtido por coacção moral, proveniente da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública».
A violência sobre a coisa é relevante, para efeitos de restituição provisória, quando a coisa violada pela atuação do esbulhador era em si um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido[10] ou quando esteja ligada de algum modo à pessoa do esbulhado ou ainda quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral. Neste caso a violência contra as coisas há de constituir um meio de coação, de constrangimento físico ou moral sobre as pessoas, designadamente, intimidando o possuidor e limitando a sua liberdade de determinação. Esta doutrina tem vindo a ser seguida pela jurisprudência maioritária.[11]
O benefício concedido ao possuidor de ser restituído à posse imediatamente, isto é, antes de julgada procedente a ação, tem a sua justificação precisamente na violência cometida pelo esbulhador: é, por assim dizer, o castigo da violência. É a violência que compensa o facto da falta da característica típica das providências cautelares: o periculum in mora. Por isso Alberto dos Reis defendia que a restituição provisória da posse não constitui uma verdadeira providência cautelar.
Embora a violência possa dispensar até a presença física do esbulhado na ocasião do esbulho, devendo ponderar-se as circunstâncias concretas em que se verificou, ela só será relevante se os atos que a integram, designadamente, ameaças, tiverem sobre o esbulhado qualquer influência psicológica que afete a sua liberdade, segurança e tranquilidade[12].
Na verdade, não basta para integrar o conceito de violência que a atuação do esbulhador seja feita sem o consentimento ou contra a vontade do possuidor ou que este tenha ficado prejudicado com a atuação daquele. É necessário alegar e provar a existência de coação física ou moral, sendo certo que, nos termos do art.º 255.º, n.º 1, do Código Civil, se diz feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. Esse mal pode ter vários conteúdos, no que não deve o interprete ser especialmente exigente.
Refere-se no citado acórdão da Relação de Guimarães: “E segundo o Prof. Lebre de Freitas, in Cod. Proc. Civil Anotado, 2ª ed.., vol. 2º, pág. 78, “ é, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador.
Como refere o mesmo autor (…), a coação tem de ser sempre, em última análise exercida sobre uma pessoa, mas a destruição (ou a construção) duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos actos de exercício do direito correspondente.
Também como se frisou no Ac. do STJ de 19.3.96 (Proc. 96 A110, sumariado em www.dgsi.pt): “Na restituição provisória de posse há esbulho se o possuidor fica em condições de não poder exercer a sua posse ou os direitos que anteriormente tinha, e violência se o possuidor é impedido de aceder ao objecto da posse.”
Assim, será de considerar “violento o esbulho, quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios (ou à natureza dos meios) usados pelo esbulhador” (Ac. RE de 12.3.98, CJ Ano XXIII, T. II, pág. 269). “A colocação pelos agravantes de pilares de madeira unidos por cadeado impedindo a passagem de carro que os requerentes vinham fazendo, por si e antepossuidores, há mais de 30/40 anos (...), integra o conceito de esbulho violento, para os efeitos dos artigos 1279 C.C. e 393 do C.P.C.” (Ac. RC de 28.11.98, CJ Ano XXIII, T. V, pág. 30). “É de concluir pela existência de esbulho violento sempre que haja necessidade de vencer um obstáculo, como seja o resultante da substituição de fechaduras de instalações” (Ac. RL de 23.4.02, CJ Ano XXVII, T. II, pág. 120).

Volvendo ao caso sub judice, no que respeita ao esbulho, verifica-se que o arrolamento decretado no proc. nº 2955/18.0T8PRD, no dia 19.12.2018, se reportou apenas ao recheio da casa de habitação sita na Avenida …, nº …, …, …. - … Paredes, nomeadamente mobílias, instrumentos musicais, objetos de adorno, livros e eletrodomésticos.
O arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens (art.º 406º do Código de Processo Civil) e nada se pediu ou ordenou naquele processo (decisão de 19.12.2018) quanto a qualquer entrega da chave ou da casa de habitação da Requerente.
Sobre a diferença dos campos de aplicação da restituição provisória da posse e do arrolamento, A. Geraldes[13] refere que esta última providência está condicionada ao “simples perigo de extravio, ocultação ou dissipação de bens (…), circunstancialismo que não tem paralelo nos meios de defesa da posse”. Acrescenta: “Mesmo que, numa visão finalista, ambas as providências possam produzir, ao menos em parte, efeitos semelhantes, isso não autoriza a que se recorra indiscriminadamente a um ou outro dos procedimentos cujos requisitos de ordem material e processual não são coincidentes.
Com efeito, se é verdade que a restituição provisória da posse, com a entrega da coisa ao requerente, pode também proteger o interessado do perigo de dissipação de bens, não foi este que, situado no horizonte da previsão legislativa, serviu de justificação à instituição de tal medida cautelar.
Noutra perspectiva, o efeito cautelar do arrolamento não é conseguido através da entrega do bem ao requerente, como sucede na restituição provisória da posse, antes a um fiel depositário que fica com as funções de administração, ainda que tal encargo possa ser atribuído ao próprio requerente ou ao requerido (art. 426.°, n.° 2[14])”.
É correto afirmar que a presente providência de restituição provisória de posse não contende com o arrolamento decretado, por nem sequer se reportar aos bens arrolados naquele processo. Acaso a decisão do arrolamento tivesse determinado que a aqui Requerente entregasse a chave do apartamento à Sr.ª agente de execução, só naquele processo ou na ação principal de que será dependente seria permitido defender a sua posse e o direito a que alega ter sobre a fração, desde logo face à regra da preclusão inerente à contestação (art.º 573º, nº. 1, do Código de Processo Civil). O tribunal não esbulha, nem o Requerido estaria esbulhar se a sua ação estivesse sob a proteção de uma decisão judicial.
Alegadamente, não foi isso que aconteceu.
Diz-nos a Requerente na petição inicial:
- O que o aqui Rdo., em tal arrolamento Rte., pretendeu e conseguiu foi antes tirar a ora Rte. de sua casa, de modo a que a G… proceda à sua venda.
- A Requerente foi surpreendida na sua habitação, pelas 10.00 h., por uma agente de execução, a qual, acompanhada de 2 guardas da GNR, do seu filho C…, da sua Mandatária Judicial bem como pelo Sr. J…, companheiro da irmã F…, no âmbito do dito procedimento cautelar de arrolamento, lhe substituíram as fechaduras de casa, … fechando a porta na cara da Rte. e não mais a deixando entrar no seu apartamento.
- Se bem que a AE tenha feito constar no auto de arrolamento que “os bens não foram removidos, uma vez que o requerido voluntariamente entregou a chave do imóvel e desocupou o mesmo” – sic – a verdade é que a Rte. foi pura e simplesmente expulsa de sua casa, tendo-lhe sido ordenado que fizesse um saco - e levasse as suas roupas.
- A Rte. não autorizou quem quer que seja a mudar as fechaduras de sua casa.
- O que o ora requerido efectuou, deixando a sua própria mãe na rua, apenas com uma saca, na qual teve apenas tempo de amontoar alguma roupa.
- Nesse mesmo dia 11 de Fevereiro, após a Rte. ter sido expulsa de sua casa, surgiu afixada na sua habitação uma placa, visível da rua, com os dizeres “vende-se” e o telemóvel nº “……….”.
- A Requerente, encontra-se privada da sua casa, a qual se apresta o Rdo. a permitir que a G… venda a terceiros.
Trazendo à liça as considerações que tecemos sobre a definição de esbulho, não podemos deixar de admitir que a eventual demonstração destes factos - essencialmente, a expulsão e a mudança da fechadura - é suscetível de preencher aquele conceito e de contribuir para a verificação dos pressupostos legais da providência em causa. Tais factos traduzem a privação atual da Requerente, contra a sua vontade, de um determinado bem que era a sua casa de habitação, mais a impedindo da possibilidade física de a continuar ou voltar a utilizar, designadamente como seu domicílio, onde ficou também privada de usar parte dos seus pertences móveis ali existentes.
É certo que se fez constar do auto de arrolamento que a aqui Requerente entregou voluntariamente a chave do apartamento, desocupando-o, auto esse que se mostra regulamente assinado por ela.
Porém, quando um dia após a realização do arrolamento (12.2.2019), a Requerente foi citada naquele procedimento, logo se fez constar da respetiva certidão (ponto 10): «Relativamente ao auto de arrolamento efectuado, em concreto, ponto 18 a requerida B… vem manifestar inteiro desacordo quando se refere “… A requerida voluntariamente entregou a chave do imóvel e desocupou o mesmo” - tais afirmações são falsas e não correspondem à verdade.»
Ao contrário do que afirma a Exma. Juiz na decisão recorrida, o teor de um auto elaborado e subscrito por um agente de execução pode ser sindicável. Não seria aceitável, como não é, que nem a sua falsidade pudesse ser arguida, tal como acontece com outros documentos a que a lei atribui fé pública (escrituras públicas, atas de diligências judiciais, etc. - art.ºs 369º a 372º do Código Civil).
À Requerente não pode deixar de ser facultada a possibilidade de provar que não entregou a chave da sua casa de habitação voluntariamente e que foi expulsa dali pelo Requerido, deste modo tendo perdido a possibilidade de a usar contra a sua vontade.
Com efeito, está preenchido o requisito do esbulho, em matéria de alegação.

Relativamente ao pressuposto da violência, a Requerente alegou que, “dado o aparato de tal operação, e pela presença de duas profissionais da justiça acompanhadas pelas forças da autoridade, a Requerente assustada pensou que não poderia impedir as suas pretensões sob pena de ser sancionada, e acabou por anuir a entrada de todos eles no imóvel”. Acrescentou que “durante todo esse processo, e enquanto a Requerida se encontrava longe da porta de entrada da habitação, o seu filho, aqui requerido, ordenou que se procedesse à substituição da fechadura do imóvel” e ainda que, “perante um batalhão de gente a executar o arrolamento dos bens que constituem o recheio da sua casa, a ora Rte., doente psiquiátrica por depressão, foi um alvo fácil para a ordem que lhe foi dada – que juntasse as roupas que pudesse e que abandonasse imediatamente o imóvel porque já não poderia permanecer no mesmo”.
Não vamos repetir o que atrás já expusemos quanto à caraterização da violência exigível para efeito da restituição provisória da posse. Deixamos apenas expresso que os factos alegados são suscetível de enquadrar coação física sobre o apartamento e coação moral sobre a Requerente B… e que a prática de ações assim qualificadas é suscetível de preencher o conceito de violência, ou melhor, de esbulho com violência. A presença da força policial e de agentes judiciais sob pretexto do cumprimento de uma determinação judicial é suscetível de perturbar a liberdade de ação de uma pessoa que, assim, se vê constrangida a aceitar tudo o que for praticado por um terceiro na aparência da proteção daqueles agentes, sob pena de alguma sanção, para mais quando é visada uma pessoa fragilizada por doença psiquiátrica.
Deste modo, ao menos na tese doutrinária e jurisprudencial mais ampla - de entre as várias posições admissíveis em Direito (todas ela relevam neste momento) - os factos alegados são suscetíveis de preencher o conceito de esbulho com violência, e conduzir à verificação dos pressupostos da providência requerida.
Passemos à última questão da apelação.
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3. A convolação legal da providência prevista no art.º 379º do Código de Processo Civil e a nulidade da decisão que a nega
Se, nos termos gerais, o tribunal não está adstrito à providência cautelar concretamente requerida (art.º 376º, nº 3, 1ª parte do Código de Processo Civil), o art.º 379º estabelece especificamente a possibilidade de defesa da posse mediante providência não especificada, dispensando o requisito da violência e bastando-se com a existência de esbulho ou simples turbação da posse, desde que estejam verificados os requisitos do procedimento cautelar comum, quais sejam, a séria probabilidade de existência de posse (ou situação jurídica equiparada) e o receio de lesão grave e dificilmente reparável que venha a ocorrer na esfera do requerente (periculum in mora).
Dado este mecanismo, não será pela eventual falta de prova dos atos que pudessem ser tidos como caraterizadores da violência, ou por uma sua qualificação jurídica que a afaste, que a Requerente deixará de poder beneficiar da defesa da sua posse, desde que se verifiquem aqueloutros requisitos legais próprios do procedimento cautelar comum.
Quanto a esta questão, a Sr.ª Juiz limita-se a afirmar: «Também, entendo que inexistem elementos nos autos para ponderar da convolação legal prevista no artigo 379º o CPC.»
Alega a apelante que, também nesta parte, a decisão é nula, por absoluta falta de fundamentação. E que se impunha que, “caso se entendesse acertada e fundamentadamente (o que não foi o caso) não estarem verificados os pressupostos para aplicação do procedimento cautelar especificado da restituição provisória de posse deveria ter-se operado a convolação do presente procedimento num procedimento cautelar comum tal qual previsto no Art. 379° CPCiv.” (conclusões 30 e 32 do recurso).
Não podia a decisão limitar-se àquela afirmação. Está em causa o preenchimento dos fundamentos de uma forma de ação cautelar (art.º 379º) diferente da prevista no art.º 364º, com pressupostos próprios, ainda que parcialmente coincidentes. A instância recorrida não podia, de forma tão restrita e seca, afastar a o preenchimento dos requisitos daquela providência sem explicitar a insuficiência relevante dos factos que integram a sua causa de pedir.
Aquela afirmação é absolutamente conclusiva e infundada. Por isso é nula a decisão, nesta parte, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, valendo aqui os considerandos que desenvolvemos já no tratamento da primeira questão do recurso.
Por desnecessidade, não se supre esta nulidade pelo conhecimento da questão, dado que foram já encontradas razões indispensáveis e suficientes à admissão liminar do procedimento pela via cautelar especificada da restituição provisória da posse (art.ºs 377º e 278º do Código de Processo Civil).
A ponderação da aplicação da providência prevista art.º 379º do mesmo código é subsidiária do funcionamento dos fundamentos previstos no art.º 377º, ambos do Código de Processo Civil.
A apelação procede.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que, admitida a procedimento, os autos sigam a sua normal tramitação.
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Taxa de justiça da apelação pela recorrente sem prejuízo da sua atendibilidade na ação respetiva (art.ºs 527º, nº 2 e 539º, nº 1, do Código de Processo Civil) e do apoio judiciário de que beneficie.
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Porto, 9 de maio de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Cf. entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, in www.dgsi.pt.
[2] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[3] Cf., entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58.
[5] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[6] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 145.
[7] Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, 1979, vol. II, pág. 833.
[8] Na definição de Manuel Rodrigues, A Posse, Edição de 1981, pág. 363, seguida por Moitinho de Almeida, Restituição da Posse e Ocupações de Imóveis, 2ª ed., pág. 100, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, pág.s 70 e 71 e A. Abrantes Geraldes, ob. cit., Vol. IV, pág.s 46 e 47; acórdão da Relação de Coimbra de 16.5.2006, proc. 1240/06, in www.dgsi.pt.
[9] Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 670.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.1999, in BMJ, 489/338.
[11] Cf. A. S. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV, pág.s 42 a 45, e acórdãos desta Relação de 8.1.2008, de 26.2.2008 e de 19.10.2009, e da Relação de Guimarães de 3.11.2011, proc. 69/11.2TBGMR-B.G1, in www.dgsi.pt).
[12] Acórdão da Relação de Coimbra de 3.12.1998, Colectânea de Jurisprudência, T. V, pág. 37 e acórdão da Relação do Porto de 18.9.2006, in www.dgsi.pt.
[13] Ob. cit., pág. 31.
[14] Terá querido referir-se o nº 1, em vez do nº 2 daquele artigo. Atualmente o at.º 408º, nº 1, do Código de Processo Civil em vigor, que aqui releva.