Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
693/24.3T9VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: LEGITIMIDADE PARA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
OFENDIDO MENOR
Nº do Documento: RP20251212693/24.3T9VNG-A.P1
Data do Acordão: 12/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O requerimento aqui em causa, deveria, nos termos do artigo 68.º, n.º 1, d), do Código de Processo Penal, ter sido redigido como apresentado por …, na qualidade de progenitores da menor …, e não redigido como apresentado por esta representada por aqueles; mas estamos perante um lapso que nenhuma razão substancial (ou seja, relativa aos interesses e valores em causa, onde se inclui o de tutela judicial efetiva) ou de disciplina processual (designadamente, a relativa à necessária imparcialidade) impede que seja corrigido; não se afigura substancialmente relevante a diferença entre a designação dos pais da menor como assistentes enquanto seus representantes e a designação da menor como assistente representada pelos seus pais.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 693/24.3T9VNG-A.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I –
AA e BB, na qualidade de progenitores da menor CC vieram interpor recurso do despacho que do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que indeferiu o requerimento de constituição de assistente que apresentaram nessa mesma qualidade.
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1.ª A decisão que indeferiu a constituição de assistente foi tomada sem audição prévia da ofendida representada, por se ter entendido dispensável o contraditório, quando o art. 32.º, n.º 5, da CRP e o art. 97.º, n.º 5, do CPP impõem a sua garantia e a fundamentação adequada; deveria, por isso, ter sido assegurado contraditório efetivo e motivação de facto e de direito (também à luz do art. 205.º, n.º 1, da CRP).
2.ª A ofendida não foi notificada com todos os elementos indispensáveis, vício que o tribunal desvalorizou; ao invés entendem os Recorrentes deveria tê-lo qualificado como nulidade ou irregularidade relevante e ordenado a renovação da notificação, nos termos dos arts. 113.º, 121.º, n.ºs 2–3, e 123.º do CPP, recorrendo apenas supletivamente ao art. 219.º, n.º 3, do CPC por via do art. 4.º do CPP.
3.ª O tribunal a quo entendeu inexistir legitimidade para a constituição de assistente, quando o art. 68.º, n.º 1, al. d), do CPP a reconhece expressamente aos progenitores da menor ofendida, com os poderes de intervenção previstos no art. 69.º, n.º 2, pelo que a leitura correta da Lei, salvo o devido respeito, impõe a admissão do estatuto.
4.ª Os prazos do art. 68.º, n.º 3, als. a) –c), foram tratados como perentórios e preclusivos do direito, quando a interpretação conforme à jurisprudência (v.g., Ac. STJ n.º 12/2016) é pro actione: tais prazos delimitam momentos de adesão, mas não extinguem o direito de constituição para fases subsequentes, incluindo dentro do prazo de recurso.
5.ª Ao recusar a constituição, o tribunal inviabilizou o exercício do direito da ofendida a requerer a abertura de instrução quando o MP não acusou, poder conferido pelo art. 287.º, n.º 1, al. b), do CPP; sob a perspetiva dos Recorrentes a decisão correta era admitir o estatuto para permitir o uso desse mecanismo.
6.ª A nulidade (ilegalidade decisória) foi arguida tempestivamente e ficou por decidir, tendo o tribunal prosseguido – os autos transitaram para a fase de instrução - como se estivesse sanada; porém, nos termos do art. 121.º, n.ºs 2–3, do CPP, a sanação não ocorre quando a parte comparece apenas para a arguir, impondo-se o seu conhecimento antes de quaisquer atos subsequentes.
7.ª Ainda revertendo ao 1.º Requerimento de Constituição de Assistente, merece censura o Douto Despacho em mérito, posto que perante vícios formais supríveis, o tribunal a quo optou pelo indeferimento liminar em vez de cooperar com as partes; quando deveria ter convidado ao aperfeiçoamento, aplicando o art. 123.º do CPP e, supletivamente, os arts.6.º e 590.º do CPC ex vi do art. 4.º do CPP.
8.ª Persistiu o défice de fundamentação e de pronúncia sobre requerimentos essenciais, com fórmulas conclusivas sem indicação de motivos de facto e de direito; tal infringe o art. 97.º, n.º 5, do CPP e o art. 205.º, n.º 1, da CRP, impondo a revogação e a prolação de decisão fundamentada.
9.ª A recusa restringiu de modo desproporcionado o direito de participação processual da vítima e comprometeu a tutela jurisdicional efetiva, em violação do art. 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, e do art. 69.º, n.º 2, do CPP; a solução devida era a admissão da constituição (pro actione).
10.ª O segundo requerimento de constituição de assistente tem de ser admitido, quando, à luz do art. 68.º, n.º 3, do CPP e da orientação pro actione, devéns ser admitido, tanto mais estando em causa o superior interesse de menor (art. 69.º da CRP), e antes da prática de quaisquer atos suscetíveis de condicionar o exercício dos poderes do assistente.
11.ª A ordem correta de atuação processual impunha: primeiro, decidir a nulidade arguida e sanar as irregularidades (arts. 121.º e 123.º CPP); segundo, renovar as notificações em termos regulares (art. 113.º CPP); terceiro, decidir a constituição de assistente; só depois prosseguir, sob pena de contaminação processual.
12.ª A admissão do assistente não belisca os direitos de defesa dos arguidos previstos no art. 61.º do CPP, antes reforça a descoberta da verdade e o equilíbrio das posições processuais; a interpretação que vê na constituição um obstáculo aos direitos do arguido é inadequada e deve ser afastada.
13.ª Na determinação da norma aplicável aos alegados lapsos formais, não era de convocar os arts. 236.º e 249.º do CC como regime principal; a disciplina correta é a do art. 123.º do CPP (irregularidades e aperfeiçoamento), com aplicação supletiva dos arts. 6.º e 590.º do CPC via art. 4.º do CPP.
14.ª Em consequência das violações identificadas (arts. 32.º, n.º 5, 20.º, n.ºs 1 e 4, e 205.º, n.º 1, da CRP; arts. 68.º, n.º 1, al. d), 68.º, n.º 3, 69.º, n.º 2, 97.º, n.º 5, 113.º, 121.º e 123.º, e 287.º, n.º 1, al. b), do CPP), deve o despacho ser revogado, renovadas as notificações em falta, conhecida a nulidade arguida e admitida a constituição de assistente, com reposição dos atos que se mostrem afetados.
15.ª Subsidiariamente, para a hipótese de se entender circunstâncias impeditivas, deve o Despacho ser substituído por outro que admita o recorrente a intervir nos autos na qualidade de assistente;
16.ª A Título subsidiário: o segundo requerimento de constituição de assistente apresentado por AA e BB, na qualidade de progenitores da menor CC, nos termos e para os efeitos do art. 68.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, deverá ser sempre e em todo o caso admitido.
17.ª Não correram os prazos processuais impeditivos — ou, quanto a isso, a natureza e gravidade dos factos descritos na acusação, bem como a condição de ofendida menor, impõem interpretação favorável à admissão da constituição de assistente, porquanto o regime do assistente é de natureza pro-actione e destina-se a assegurar o efectivo direito de participação do ofendido/assistente nas fases subsequentes do processo.
18.ª O que a não ocorrer representaria uma desconsideração da legitimidade do art. 68.º, n.º 1, al. d), CPP;
19.ª devendo reconhecer-se a legitimidade dos progenitores e admitir-se a constituição de assistente, sob pena de violação do direito de participação do art. 69.º, n.º 2, CPP e da tutela jurisdicional efetiva do art. 20.º CRP.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou reposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II -
A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deve, ou não, ser deferido o requerimento de constituição de assistente em apreço.

III –
É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«Nos presentes autos, por requerimento de 29.5.2025, veio CC, nascida a ../../2021, requerer a sua constituição como assistente.
O Ministério Público nada tem a opor à constituição de assistente.
Cumprido o artigo 68.º, n.º 4 do CPP, as arguidas DD E EE, por requerimento de 16.6.2025, vieram opor-se à constituição de assistente pela ofendida por inadmissibilidade legal.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no art. 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.
Por sua vez, estabelece a alínea d) do mesmo preceito legal que “No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;”.
No caso dos autos, não há qualquer dúvida que a ofendida tem idade inferior a 16 anos.
Sobre esta questão, veja-se na jurisprudência o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2023, processo n.º 727/20.0JAFUN.L1-9, disponível em www.dgsi.pt: “1–
Por força do disposto no artigo 68º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, no caso do ofendido ser menor de 16 anos de idade, têm legitimidade para se constituir assistentes em representação do mesmo ambos os progenitores, seus legais representantes, a quem está confiado o exercício comum das responsabilidades parentais relativas a questões de particular importância para a vida do filho.”; ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.6.2022, processo n.º 176/21.3GASRE -A.C1, disponível em www.dgsi.pt: “II -
No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, a legitimidade para se constituir como assistente pertence ao seu representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas na alínea d) do art.º 68.º do CPP, segundo a ordem aí referida, ou na ausência dos demais, entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado á sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime.”; ou ainda Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3.4.2003, processo n.º 0030189, disponível em www.dgsi.pt: “I- A constituição de assistente em processo penal, tem de ser requerida, sendo interessado um menor, pelo seu legal representante até 5 dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento.”
Também na doutrina se segue este entendimento, a título de exemplo Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, pp. 793 e 794, onde se afirma que: “Tal como sucede com a alínea c), a legitimidade material para constituição como assistente gravita em torno da figura do ofendido: ali, porque já não pode intervir como tal; aqui porque não pode ainda, ou não pode de todo, assumir tal estatuto. Em rigor, a previsão da al. d) consagra, pois, um mecanismo de suprimento da incapacidade do ofendido para estar em juízo (criminal).”
Por tudo o exposto, por falta de legitimidade, indefiro o pedido de constituição de assistente formulado por CC.
Notifique.»

IV –
Cumpre decidir.
Nos termos do artigo 68.º, n.º 1, d), do Código de Processo Penal, no caso de o ofendido ser menor de dezasseis anos (como sucede no caso em apreço), a legitimidade para se constituir assistente pertence aos seus representantes legais (neste caso, os seus progenitores).
É certo que, em bom rigor, o requerimento aqui em causa deveria ter sido redigido como apresentado por AA e BB, na qualidade de progenitores da menor CC, e não redigido como apresentado por esta representada por aqueles.
Estamos perante um lapso que nenhuma razão substancial (ou seja, relativa aos interesses e valores em causa, onde se inclui o de tutela judicial efetiva) ou de disciplina processual (designadamente, a relativa à necessária imparcialidade) impede que seja corrigido. Não se nos afigura substancialmente relevante a diferença entre a designação dos pais da menor como assistentes enquanto seus representantes e a designação da menor como assistente representada pelos seus pais. Dar relevo a essa diferença reflete um formalismo incompreensível e injustificável à luz dos princípios que regem o processo penal.
Afigura-se-nos, assim, que AA e BB poderão ser admitidos a intervir nos autos como assistentes na qualidade de progenitores da menor CC, por terem legitimidade nos termos do referido artigo 68.º, n.º 1, d), do Código de Processo Penal e por estarem representados por advogado (artigo 70.º do mesmo Código).
No entanto, a taxa de justiça a que se reporta o artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais deverá ser paga por cada um dos dois, sendo que só foi paga a correspondente a um deles. Para que ambos sejam admitidos a intervir nos autos como assistentes, deverão ser notificados para pagar outra taxa de justiça, nos termos do n.º 4 desse artigo 8.º
Deverá ser dado provimento parcial ao recurso, devendo os recorrentes ser notificados para pagar outra taxa de justiça, nos termos do artigo 8.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, sendo tal pagamento condição da sua admissão a intervir nos autos como assistentes.
Fica, assim, prejudicada a análise de todas as outras questões suscitadas pelos recorrentes.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal)

V –
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento parcial ao recurso, revogando o despacho recorrido e admitindo AA e BB a intervir nos autos como assistentes enquanto progenitores da menor CC, sendo, porém, condição dessa admissão o pagamento de outra taxa de justiça (para além da que já foi paga), sendo esta nos termos do n.º 4 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique

Porto, 12 de dezembro de 2025
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Maria Luísa Arantes
Pedro M. Menezes