Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2376/14.3TDPRT-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: ARRESTO
PERDA ALARGADA
PATRIMÓNIO INCONGRUENTE
Nº do Documento: RP201603162376/14.3TDPRT-D.P1
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 672, FLS.236-243)
Área Temática: .
Sumário: I - O arresto para efeitos de perda alargada constitui uma garantia processual cautelar da efectivação do confisco, decretado pelo juiz independentemente da verificação dos pressupostos do nº1 do artº 227º CPP, exigindo-se apenas a existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artº 1º da Lei nº 5/2002 e da desconformidade do património do arguido.
II – O decretamento do arresto pode ter lugar a todo o tempo, e ser reduzido ou ampliado posteriormente e mantém-se até que seja proferida decisão final absolutória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2376/14.3TDPRT-D.P1
Instância Central do Porto - 1ª Secção (J1) de Instrução Criminal da Comarca do Porto

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Na Instância Central do Porto - 1ª Secção (J1) de Instrução Criminal da Comarca do Porto, no processo nº 2376/14.3TDPRT-D, em 20.10.2015, o Sr. Juiz de Instrução proferiu o seguinte despacho (fls. 586 a 588):

“Fl.s 335/364, 509/511 e 519/547: visto; fiquem nos autos.
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Nos presentes autos veio o arguido B…, com os sinais dos autos, deduzir oposição ao arresto preventivo decretado nestes autos, referente às contas bancárias, montantes pecuniários e restantes objectos aprendidos no âmbito do presente inquérito, incluindo viaturas e demais bens, tudo conforme decisão de 11.JUN.15 (fl.s 209/222).
Para o efeito, o arguido alega que o património que evidencia e que foi objeto do arresto se encontra justificado pelo desenvolvimento de actividades profissionais que exerceu, quer como trabalhador subordinado, quer como empresário em nome individual; em particular, o opoente refere que no âmbito da compra e venda de veículos automóveis realizou inúmeros negócios, dos quais lhe advierem rendimentos que justificam o património que tem e que foi objecto de arresto.
Juntou documentos através dos quais pretende justificar o património, mobiliário e imobiliário, que detém.
*
Dispõe o art.º 372.º do C. Pr. Civil, que “…o juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada…”, sempre que o visado pela providência cautelar “…alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução…”.
No caso em apreço, o requerente juntou aos autos documentos e requereu a junção de outros que, prima facie, comprovam o seu direito de propriedade sobre muitos dos bens que foram arrestados.
Não obstante, a demonstração da propriedade dele sobre esses bens não tem a virtualidade de enfraquecer ou abalar a razão pela qual foi determinado o arresto desses bens: a discrepância entre o património do arguido e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito.
Na verdade, dos documentos em que o arguido respalda a origem lícita desse seu património não resulta – directa ou indirectamente – que aqueles bens móveis e imóveis lhe tenham advindo por via legal; apenas demonstram que o arguido – e nalguns casos, os seus familiares - são deles proprietários.
Porém, insiste-se: daquele acervo documental não resulta provado que os meios financeiros que possibilitaram ao arguido adquirir esse património tenham origem lícita.
Aliás, no que concerne às quantias em numerário que foram encontradas na residência do arguido, a justificação por ele adiantada, não sendo inverosímil, é altamente improvável: guardar em casa cerca de 34 mil euros em dinheiro não é de modo nenhum comum…
Por isso se entende que se não encontram reunidas as condições para que a presente oposição tenha êxito: os meios de prova apresentados pelo arguido não têm a virtualidade de afastar os fundamentos do arresto decretado nem determina a sua redução.
Vai, por isso, indeferida a presente oposição”.
***
Inconformado, o arguido B… interpôs recurso deste despacho, terminando a sua motivação com as conclusões seguintes (transcrição):
1.
Através do douto despacho recorrido, foi indeferida a oposição ao arresto apresentada pelo ora Rec.te, por se haver ali entendido, duma forma tabelar e conclusiva, que “os meios de prova apresentados pelo arguido não têm a virtualidade de afastar os fundamentos do arresto decretado nem determinar a sua redução”, porquanto não resultaria dos mesmos “direta ou indiretamente””que os meios financeiros que possibilitaram ao arguido adquirir esse património tenham origem lícita”.
2.
E em pouco mais do que esta mera conclusão se alicerçou a douta decisão recorrida, que, em apenas uma (!) singela página, e repetindo aquela mesma ideia (conclusiva) fundamentou a decisão de indeferir os argumentos e os factos reais e verídicos expendidos pelo arguido ao longo dos 115 artigos da oposição ao arresto, acompanhados da junção de 33 documentos de conteúdo inquestionável e que suportavam os factos que ali alegava!
3.
Isto, para além do mais, sem que se fizesse um exame minimamente crítico, uma apreciação valorativa de tudo o que foi alegado naquela oposição, e dos próprios documentos juntos, nem se pronuncia-se sobre questões suscitadas que devia apreciar, numa atitude de desrespeito total pelo direito do Arguido em ver analisados e apreciados os fundamentos da sua oposição, como o impõe, entre outros normativos, o disposto nos nº3 e 4 do Art.607º, e 608º nº2, 1ª parte, ambos do CPC, direito esse, aliás, com assento Constitucional, (Vide Art. 205º nº1 da CRP).
4.
O douto despacho não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão nele contida, ao mesmo tempo que também deixa de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.
5
Não são discriminados os factos da Oposição que são considerados provados e os não provados, nem é feito um exame crítico das provas que lhe competia conhecer.
6
Também não se pronuncia sobre a alegada e inequivocamente justificada congruência do património do Opon.te com o seu rendimento lícito obtido, e demonstrado na Oposição com recurso a declarações de IRS relativas a 11 anos, no valor de mais de 400 mil euros.
7.
O que tudo integra as nulidades previstas nas alíneas b) e d) do nº 1 do Art. 615º do CPC, que aqui expressamente se vêm arguir.
Paralelamente e sem prescindir,
8.
Embora não considerado no despacho recorrido, ficou demonstrado na Oposição que o valor da totalidade do património do Opon.te é congruente e plenamente justificado pelo seu rendimento lícito obtido, não se podendo por isso, falar em qualquer vantagem de uma qualquer hipotética atividade criminosa, assim não se verificando, pelo menos um dos pressupostos do decretamento do arrento para garantia da perda alargada de bens a favor do Estado, nos termos da Lei 5/2002.
9.
Aliás, o Rec.te provou também que dois dos imóveis arrestados foram adquiridos por si e pela sua esposa há mais de cinco anos em relação à data da sua constituição como Arguido, concretamente em 2009 o imóvel que é a casa de morada da família, inscrito à matriz sob o Art. 12740 de …, e em 2007 o imóvel do Algarve, inscrito à matriz sob o Art. 2947 de …, bem como as viaturas referidas nos Arts. 87º a 89º da Oposição, adquiridas em 1995, 2001 e 2007, respetivamente.
10.
Assim se mostrando claramente ilidida a presunção estabelecida no nº1 do Art. 7º da Lei 5/2002 uma vez que, e conforme resulta do Art. 9º nº3 da mesma Lei, foi feita prova inequívoca de que os bens arrestados “resultam de rendimentos de atividade licita”, de que muitos deles já se encontravam, aliás, na sua titularidade, há cinco ou mais anos no momento da sua constituição como arguido, tendo sido “adquiridos pelo Arguido com rendimentos obtidos no período referido”.
11.
Assim, e só com base na ausência do referido pressuposto, não poderia o presente arresto ter sido decretado, ou, pelo menos, no seguimento da oposição deduzida, dever ter sido ordenado o respetivo levantamento, por ser manifesta a sua falta de sustentação legal.
12.
O douto despacho recorrido violou o disposto nos Arts. 607º, nº3 e 4, 608º, nº2 (1ª parte), 372º nº1 alinea b), 615º, nº1 alineas b) e d), todos do CPC, bem como o Art. 205º nº1 da CRP, além dos Arts. 7º a 10º da Lei 5/2002, os quais impunham, a nosso ver, que se julgassem afastados os fundamentos da providência decretada, ordenando-se, em conformidade, o levantamento do arresto.
Termos em que, Excelentíssimos Desembargadores, deve o presente Recurso ser julgado procedente, decidindo-se pela nulidade ou revogação do despacho recorrido e, em qualquer caso, substituir-se o mesmo por outro que ordene o levantamento do arresto decretado, assim se fazendo, como sempre, sã e inteira JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito não suspensivo (despacho de fls. 642).
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Em resposta ao recurso, o Ministério Público pugnou que lhe seja negado provimento e confirmado o despacho recorrido.
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Nesta Relação o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “o recurso do arguido deverá ser julgado como parcialmente provido, anulando-se a decisão sob recurso e substituindo-se a mesma por outra em que se determine indeferir a oposição ao arresto porque o fundamento invocado não pode constituir fundamento de oposição, mantendo-se o arresto preventivo decretado nos autos”.
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Foi cumprido do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo sido apresentada resposta pelo recorrente em que pugan pelo provimento do recurso interposto.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões que importa decidir radicam em saber:
- se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação;
- se deveria ter sido ordenado o levantamento do arresto preventivo decretado nos autos de fls. 241 a 254, relativamente aos bens aí identificados como pertencentes ao arguido/recorrente B….
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Com interesse para a decisão importa ter em consideração as seguintes ocorrências processuais:
a) No âmbito do inquérito n° 2376/14.3TDPRT-D, do DIAP do Porto, por requerimento de 26 de maio de 2015, o Ministério Público promoveu o arresto dos bens do arguido B… (bem como os de outros arguidos), designadamente os ali descritos, “nos termos do artigo 10°, da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro” (cfr. fls. 222 a 234);
b) Por despacho de 11 de junho de 2016, o Sr. Juiz de Instrução “nos termos dos artigos 392º, 393º, 755º, 768º e 780º do Código de Processo Civil, 228º, nº 1 do Código de Processo Penal, 10°, por referência aos artigos 7°, nº 1 e 1°, nº 1, al. i), da Lei nº 5/2001, de 11 de Janeiro” decidiu decretar “o arresto preventivo das contas bancárias dos arguidos, discriminadas a fls. 115, 179, 180, dos montantes pecuniários e restantes objetos apreendidos no inquérito, dos veículos discriminados no presente apenso NAI, se ainda na posse dos arguidos, companheiras ou familiares, de quaisquer viaturas ou bens, pertencentes aos arguidos…” (cfr. fls. 241/254);
c) O arguido foi notificado deste despacho em 29 de junho de 2015.
d) Em 20 de julho de 2015 o arguido veio deduzir oposição ao arresto, alegando o que de melhor consta de fls. 366 a 395;
e) Em 20 de outubro foi proferido o despacho recorrido, tendo o arguido sido notificado do mesmo em 26 de outubro de 2015;
f) Em 25 de novembro o arguido veio interpor o presente recurso.
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Considerando os factos e ocorrências processuais supra elencados, importa decidir as questões supra elencadas.
Nos termos do disposto no artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Por sua vez, dispõe o artigo 97º do Código de Processo Penal que:
1 - Os actos decisórios dos juízes tomam a forma de:
a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo;
b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior.
2 - Os actos decisórios previstos no número anterior tomam a forma de acórdãos quando forem proferidos por um tribunal colegial.
3 - Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos.
4 - Os actos decisórios referidos nos números anteriores revestem os requisitos formais dos actos escritos ou orais, consoante o caso.
5 - Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
As exigências do cumprimento do dever de fundamentação e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os atos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Código de Processo Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coação (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
Este último acrescenta que a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de garantia patrimonial contém, sob pena de nulidade (nº 4), a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo, a qualificação jurídica dos mesmos, a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados e a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida.
O regime geral das invalidades em processo penal é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
A decisão em causa, que manteve o arresto, não é uma sentença (definida no artigo 97.º do Código de Processo Penal como o ato decisório que conhece a final do objeto do processo) nem o arresto é uma medida de coação (como decorre do artigo 228.º do Código de Processo Penal, trata-se de uma medida de garantia patrimonial), sendo que o despacho recorrido não aplicou qualquer medida.
Assim, considerando que nenhuma disposição legal comina a nulidade para a falta de fundamentação, aquela decisão, a padecer da invocada falta, estaria afetada de mera irregularidade.
As irregularidades, para serem conhecidas, têm de ser arguidas pelo interessado, no prazo a que alude o artigo 123º, nº 1 do Código de Processo Penal (no próprio ato, estando o interessado e/ou o seu advogado presentes; quando o interessado ou o seu advogado não assistam ao ato pretensamente irregular, no prazo de três dias a contar daquele em que um ou outro tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou tiverem intervindo em algum ato nele praticado).
Ora, no caso sub judice, o recorrente não arguiu, em prazo, a irregularidade do despacho em crise, pelo que o vício, a existir, ficou sanado.
Igual desfecho, a entender-se que estamos perante uma nulidade, necessariamente sanável.
Na verdade, tal nulidade deveria ter sido arguida pelo interessado, no prazo de 10 dias, subsequentes à notificação do despacho em causa e, perante quem a cometeu (cabendo eventual recurso para o tribunal superior do despacho que delas conhecesse) (cfr. artigos 120º e 121º do Código de Processo Penal).
Mas não foi, pelo que, a existir, tal nulidade, ficou sanada.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
Passemos a analisar a segunda questão.
Comecemos por dizer que o arresto em causa foi decretado nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10°, da Lei nº 5/2001, de 11 de Janeiro, por referência ao artigo 7°, nº 1 e 1°, nº 1, al. i), da mesma Lei.
O legislador português, ao lado da perda dos instrumentos e produtos do crime (art. 109.º do Código Penal) e da perda das suas vantagens (art. 111.º do mesmo diploma legal), criou um forte regime de perda ampliada ou alargada (arts. 7.º e seguintes da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro), que abrange bens que o Ministério Público não consegue relacionar com um qualquer crime concreto.
Como se refere no Acórdão desta Relação, de 11 de Junho de 2014, proferido no processo 1653/12.2JAPRT-A.Pl, relatado pelo Exmo Desembargador, Dr. Neto de Moura, disponível em www.dgsi.pt, “Em bom rigor, não se trata de uma perda de bens como a prevista no Código Penal (artigos 109.º a 112.º). Apesar de ser essa a denominação utilizada na Lei n.º 5/2002, do que se trata é da perda de um valor: o valor correspondente à diferença entre o valor do património total do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. É esse valor do património incongruente que se presume constituir vantagem de actividade criminosa e que, em caso de condenação pela prática de algum ou alguns dos crimes catalogados no artigo 1.º daquele diploma legal, será declarado perdido a favor do Estado”.
Nos argumentos do próprio legislador: «pode acontecer … que tratando-se de uma actividade continuada, não se prove no processo a conexão entre os factos criminosos e a totalidade dos respectivos proventos», justificando-se a aplicação de um regime probatório menos exigente, construído com base na presunção da ilicitude do património desconforme. O que está em causa já não são apenas as vantagens diretamente resultantes da prática do crime, mas a existência de um património incongruente com os rendimentos lícitos e que o arguido não consegue, de qualquer forma lícita, justificar.
A diferença entre a perda clássica e a perda alargada manifesta-se ainda ao nível das garantias processuais. Na verdade, as garantias processuais penais da perda clássica consistem na apreensão (arts. 178.º e ss. do Código de Processo Penal), na caução económica (art. 227.º do CPP) e no arresto preventivo (art. 228.º do mesmo diploma legal); enquanto as garantias da perda alargada consistem no arresto (art. 10.º da Lei n.º 5/2002), que cessa se for prestada caução económica (art. 11.º da referida lei) [Sobre todas estas garantias, cfr. CORREIA, João Conde, Da proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM, 2012, p. 151 e ss].
Com efeito, na referida Lei nº 5/2002, o legislador assumiu a preocupação de garantir a efetividade das decisões de perda, e nesse sentido, introduziu um regime especial de arresto. Cumpre ainda ter presente a possibilidade de, no âmbito do regime prescrito nessa mesma Lei, se aplicar a medida cautelar prevista no artigo 10º, com a única e exclusiva finalidade de garantir a futura decisão de perda, independentemente de os bens arrestados possuírem algum relevo probatório.
O artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 estabelece um “catálogo” de crimes que se caracterizam, não só pelo grau de sofisticação e organização com que são praticados, mas também, e sobretudo, pela sua capacidade de gerar avultados proventos para os seus agentes. Daí a instituição de mecanismos especiais que visam facilitar a investigação e a recolha de prova e de um mecanismo sancionatório, repressivo que garanta a perda das vantagens obtidas com a atividade criminosa, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através dessa atividade.
Refere o artigo 10º da citada Lei que:
“1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2 - A todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.
3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.”
Do que resulta que e, acompanhando João Conde Correia, in Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM, 2012, pgs. 186 e segs., o arresto para efeitos de perda alargada se constitui como uma garantia processual cautelar da efetivação do confisco, que é decretada pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227°, do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1 ° da Lei nº 5/2002 (artigo 10°, nº 2, da Lei).
O arresto para garantia da perda alargada pode ter lugar a todo o tempo, podendo ser reduzido ou ampliado posteriormente, e mantém-se até que seja proferida decisão final absolutória (artigos 10°, nº 2, e 11°, nºs 2 e 3, da Lei).
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade (cfr. sobre toda esta matéria, João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, pág.186 e segs.).
É-lhe aplicável, supletivamente, o regime geral das medidas de garantia patrimonial, por via da remissão para o regime arresto preventivo (artigo 228°, do Código de Processo Penal) prevista no nº 4 do artigo 10° da Lei.
Por sua vez, refere o artigo 7º da mesma Lei:
1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por património do arguido o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.
E, perante tal disposição, comungamos o entendimento expendido por Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, in Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, SMMP, 2013, pg. 93, quando referem que “entendemos que o arresto não irá incidir, neste domínio, sobre os bens que integram o tradicional direito de propriedade, mas sim sobre os bens que compõe o património do arguido tal como definido no artigo 7º, nº 2 da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro”.
A expressão “titular” é idónea a compreender não apenas o direito de propriedade mas também outras formas jurídicas.
Efetivamente, todos os bens de que o arguido tenha o domínio e o benefício, ou tenham sido por este transferidos para terceiro a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória nos cinco anos anteriores à sua constituição como arguido continuam, quer para efeitos de perda quer para efeitos de arresto, a ser “bens do arguido”.
Como diz João Conde Correia, ob. cit. pg. 106: "Com esta formulação ampla, escolhida no intuito de alargar o conceito de património confiscável e de evitar obstáculos jurídicos à sua perda alargada, o legislador português consagrou uma noção meramente económica. Para este efeito, o património não é constituído apenas pelo conjunto dos direitos e obrigações civis com caráter pecuniário de um determinado sujeito, abrangendo todas as posições ou situações economicamente valiosas tituladas pelo condenado, mesmo que desprotegidas, não tuteladas ou até contrárias ao direito civil: inclui tudo aquilo que materialmente ainda possa ser imputado ao condenado, mesmo que, do ponto de vista formal, não lhe pertença".
Nesta mesma linha de entendimento, Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, ob. e loc. cit. observam que “.... a remissão estabelecida pelo n° 4 do artigo 10° da mencionada lei para o regime do arresto preventivo estabelecido no Código de Processo Penal não abarca o disposto no n° 4 do artigo 228º (que refere que, em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado) uma vez que para efeitos de aplicação desta lei nunca poderá existir controvérsia acerca da propriedade dos bens arrestados. Tal conclusão resulta da circunstância de este conceito de «propriedade» eminentemente civilístico adoptado pelo Código Civil não encontrar qualquer reflexo na noção de património fixada como critério do regime de perda. Assim, qualquer controvérsia sobre o facto de determinado bem pertencer ou não ao património do arguido deverá ser decidida no tribunal penal, à luz dos critérios definidos na lei (. . .)".
E como se refere no já citado Acórdão desta Relação, de 11 de Junho de 2014 “A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no artigo 7.º numa perspectiva omnicompreensiva [Cfr. Hélio R. Rodrigues, “Perda de bens no crime de tráfico de estupefacientes”, in Revista do Ministério Público, 134.º, Abril/Junho de 2013, p. 233], de forma a abranger, não só os bens de que ele seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.
Esta amplitude com que a lei define o património do arguido para este efeito tem um fito: o de minimizar a possibilidade de ocorrência de fraude, de ocultação do seu verdadeiro titular. Por isso, como assinala Jorge Godinho [“Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova”, inLiber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, p. 1345], “visam-se aqui os bens detidos formalmente por outra pessoa, singular ou colectiva, tratando-se de provar que em todo o caso os bens pertencem à esfera jurídica do arguido”, cabendo ao Ministério Público a prova de que “apesar de a titularidade pertencer a outrem, o respectivo domínio e benefício – conceitos claramente usados em sentido económico-factual, com vista a expandir o âmbito de aplicação do confisco e a evitar o que seriam fáceis fugas ao mesmo – pertencem ao arguido”.
Para este efeito, incluem-se, ainda, no património do arguido os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.
Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita auferidos pelo arguido naquele período.
Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado, uma vez que, condenado o arguido, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime do catálogo, opera a presunção (juris tantum) de origem ilícita desse valor.
E extraindo-se do respetivo sumário que: "(…) A perda de bens determinada pelo art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento licito.
(…) O arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro.
(…) O titular de direitos afetados pela decisão pode, tal como o arguido, ilidir a presunção do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de atividade lícita."
Revertendo para o caso dos autos, o arresto em causa foi decretado nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10°, da Lei nº 5/2001, de 11 de Janeiro, por referência ao artigo 7°, nº 1 e 1°, nº 1, al. i), da mesma Lei.
Conforme já referimos, nos termos do artigo 10º, nº 3 o arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo. Portanto, não é necessário haver fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento das quantias em que vier a ser condenado.
Quer dizer, o que se exige é a existência de fortes indícios da prática de crime do catálogo. Sem escamotear a existência de fortes indícios da desconformidade de património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito (necessidade de formular um juízo de incongruência ou desconformidade sobre o património do arguido) – nas situações em que a liquidação ainda não foi deduzida.
O arresto preventivo foi decretado nestes autos, a requerimento do Ministério Público, por se entender existirem fortes indícios da prática de um crime de associação criminosa, previsto e punível pelo artigo 299º do Código de Processo Penal, entre outros crimes, formulando-se um juízo de incongruência ou desconformidade sobre o património do arguido.
Neste contexto, reiterando o que já se disse acerca do significado dos conceitos de propriedade e de património para efeitos da Lei 5/2002 em causa, afigura-se que bem andou o tribunal a quo ao entender que a demonstração da propriedade sobre muitos dos bens que foram arrestados não tem a virtualidade de enfraquecer ou abalar a razão pela qual o arresto foi decretado.
Com efeito, dos documentos juntos pelo arguido não resulta a origem lícita do respetivo património, quando muito, pode resultar que os bens em causa estão em nome do arguido, ou dos seus familiares – que estes são os seus proprietários, mas daí não se pode concluir que esses bens lhe tenham advindo por via legal (no sentido de lícita). Ao contrário do que pretende o recorrente, tais documentos não têm a virtualidade afastar de o juízo de incongruência ou desconformidade sobre o património do arguido, demonstrando que os meios financeiros que possibilitaram ao arguido adquirir esse património têm natureza lícita.
Acresce que, não se vislumbra que o recorrente tenha apresentado/declarado rendimentos referentes aos anos de 2012 e 2013 que afastem o referido juízo de incongruência ou desconformidade sobre o seu património, sendo que, tal como o tribunal a quo entendeu, não é comum e até altamente improvável, guardar em casa cerca de 34.000€.
Por outro lado, no incidente de confisco alargado, que se inicia com a apresentação da liquidação pelo Ministério Público, nos termos do artigo 8º do Lei 5/2002, o arguido poderá apresentar defesa, nos termos do artigo 9º da mesma Lei, nomeadamente prova tendente a ilidir a presunção de origem ilícita dos bens em causa.
Assim, face a todo o exposto, no relatado contexto e, atentas as apontadas especificidades do arresto preventivo em causa, mantendo-se os fundamentos do arresto decretado, impõe-se manter a decisão recorrida.
Improcede, pois, o recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente B…, mantendo integralmente o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Dê conhecimento de imediato à primeira instância.
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Porto, 16 de março de 2016
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva