Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5496/09.2TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO MARTINS
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGES
SEPARAÇÃO DE FACTO
FUNDAMENTOS
PROPOSITURA DA ACÇÃO
Nº do Documento: RP201103155496/09.2TBVFR.P1
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 1781º, AL. A) DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O requisito objectivo, fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previsto no art° 1781° al. a), a separação de facto por um ano consecutivo, deve verificar-se reportado ao momento em que a acção é proposta, o que, não ocorrendo no caso em análise, não permite considerar que ocorra fundamento para decretar o divórcio entre as partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 5496/09.2TBVFR
Apelação
A: B…
R: C…
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Acordam os Juizes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
1. O A. instaurou, em 02.11.2009, contra a R. a presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge[1], pedindo que se decrete o divórcio entre ele e a R.
Alega, em resumo, que ao longo dos anos do casamento foi alvo de maus tratos, por parte da R., a qual, a partir de Maio de 2009 lhe faz escândalos e humilhações na via pública, comportamento que inviabilizou a vida em comum do casal e o obrigou a sair de casa, em Julho de 2009, ocorrendo assim uma ruptura definitiva do casamento.
Conclui que a R. violou, reiteradamente, os deveres conjugais de modo irreversível e irremediável constituindo os factos em causa fundamento de divórcio nos termos da al. d) do artº 1781º do Código Civil[2], na redacção dada a este preceito pela Lei 61/2008 de 31.10.
Contestou a R. pedindo a improcedência da acção.
Estriba a sua defesa negando ter violado qualquer dos seus deveres conjugais, imputando antes ao A. comportamentos violadores dos deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência.
Foi elaborado o despacho saneador, aí se concluindo pela competência do tribunal e verificação dos restantes pressupostos processuais, pela inexistência de nulidades, excepções dilatórias ou peremptórias, bem como questões prévias de conhecimento oficioso.
Procedeu-se à selecção dos factos assentes e à elaboração da base instrutória, sem reclamação.
2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção procedente e decretou o divórcio entre o A e a R., assim declarando dissolvido o casamento celebrado entre eles.
3. É desta decisão que, inconformada, a R. vem apelar, pretendendo a revogação da decisão recorrida.
Alegando, conclui:
1ª) O Autor, aqui Apelado, intentou acção de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge, contra a Ré, ora Apelante, pedindo que se decretasse o divórcio entre ambos, alegando, resumidamente, que esta violou reiteradamente deveres conjugais, comprometendo irremediavelmente a possibilidade de vida em comum.
2ª) Conforme resulta do elenco dos factos dados como provados, o Apelado/Autor não logrou fazer prova dos argumentos por si invocados, bem pelo contrário, dali se depreende claramente que foi o Apelado/Autor quem violou os deveres conjugais.
3ª) E, portanto, face ao acabado de expor, em nossa humilde opinião, a acção intentada pelo Apelado/Autor contra a Apelante/Ré teria, necessariamente, de ser julgada improcedente.
4ª) Não obstante, porque dos aludidos factos provados, mormente, dos pontos 4. e 5. resulta que o Autor abandonou o lar conjugal em Julho de 2009 e desde então encontra-se separado de facto da Ré, o douto Tribunal “a quo” entendeu que estava preenchido o requisito exigido pela alínea a) do artigo 1781.º e pelo n.º 1 do artigo 1782.º do C. Civil, decretando, consequentemente, o divórcio entre Autor e Ré.
5ª) Salvo o mui devido respeito, pelas razões que ao diante exporemos, é desta douta decisão que discordamos em absoluto e da qual apelamos.
Vejamos porquê:
6ª) Em primeira linha, porque não foi este argumento que o Apelado/Autor aduziu para fundamentar a sua pretensão. 7ª) Em segunda linha, porque, conf. consta dos autos a fls., o Autor intentou a acção de divórcio em 2 de Novembro de 2009.
8ª) Nos termos dos pontos 4. e 5. dos factos provados, a separação de facto entre Autor e Ré ocorreu em Julho de 2009.
9ª) E, portanto, o Apelado/Autor apresentou o pedido de divórcio, volvidos apenas quatro meses da separação referida em 4. e 5. dos factos provados.
10ª) Tal significa que o prazo de um ano exigido pela alínea a) do artigo 1781.º do C.Civil ainda não tinha decorrido aquando da entrada do pedido de divórcio.
11ª) Como tal, embora admitindo, como entendeu o douto Tribunal “ a quo” que se encontra preenchido o elemento subjectivo, isto é, o propósito de pelo menos um dos cônjuges, “in casu”, o Apelado/Autor, de não restabelecer a vida em comum, em nossa humilde opinião, falta o elemento objectivo, ou seja, o decurso do prazo exigido no n.º 1 do supra citado preceito legal, aquando da propositura da acção, o que aqui, de todo, não se verifica. 12ª) Porque assim é, entendemos que tal requisito reveste natureza substantiva e, nessa medida, tem de estar verificado à data do pedido de divórcio (neste sentido, vide Ac. do S.T.J. de 24-10-2006 e Ac.T.R.P. de 14-06-2010).
13ª) Assim sendo, salvo melhor opinião, o douto Tribunal “a quo” não poderia ter julgado a acção provada e procedente com fundamento na separação de facto por um ano consecutivo.
14ª) Ao julgar a supra citada acção procedente, entendemos e, estamos crentes, assim doutamente se entenderá, que a douta decisão recorrida foi proferida em violação do disposto na alínea a) do artigo 1781.º do C.Civil e bem assim do artigo 264.º do C.P.C.
4. Não foram apresentadas contra-alegações
5. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto
Da factualidade assente e do despacho de fls. 55/8, que decidiu a matéria de facto, e do qual não houve reclamações, é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:
1. A. e R. contraíram casamento católico em 23 de Novembro de 1978 (cfr. documento de fls. 9 e 10 cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
2. D… nasceu no dia 24 de Julho de 2009 e é filha de B… e de E… (cfr. documento de fls. 30 e 31 cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
3. F… nasceu no dia 7 de Janeiro de 2010 e é filho de B… e de G… (cfr. documento de fls. 52 a 54 cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
4. Em Julho de 2009 o A. saiu da casa que partilhava com a Ré (cfr. artigos 3.º e 9.º da B.I.)
5. Desde Julho de 2009 que A. e R. não vivem na mesma casa, não comem na mesma mesa, não andam juntos nem dormem na mesma cama (cfr. artigo 6.º da B.I.).
6. Em Abril/Maio de 2009 a Ré descobriu que o A. mantinha uma relação extra-conjugal com uma mulher de nome G… (cfr. artigo 7.º da B.I.).
7. Após A. e R. terem deixado de viver na mesma casa o A. continuou a procurar a Ré, visitando-a na casa de morada de família (cfr. artigo 14.º da B.I.).
8. A R. teve conhecimento de que o A., para além da relação referida em 6., havia mantido uma outra relação com E…, da qual resultou o nascimento da menor D… indicada em 2. (cfr. artigo 15.º da B.I.).
9. Após a saída do lar conjugar por parte do A. a R. emagreceu cerca de 20 kg. e sofreu uma depressão (cfr. artigos 16.º e 17.º da B.I.).
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2. De direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil[3].
Decorre do exposto que a única questão que importa dilucidar e resolver é a de saber se o requisito objectivo, fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previsto no artº 1781º al. a), a separação de facto por um ano consecutivo, deve verificar-se reportado ao momento em que a acção é proposta ou pode considerar-se para tal o tempo decorrido entre a propositura da acção e a decisão.
Vejamos pois.
A decisão recorrida julgou a acção procedente por concluir que não era obstáculo à sua procedência o facto de, à data da propositura da acção, ainda não ter decorrido o período de um ano exigido pelo preceito citado, invocando para tanto o principio da actualidade, consagrado no artº 663º do CPC.
Pese embora a decisão recorrida se tenha estribado nos Acórdãos do STJ de 03.11.2005[4] (relator Conselheiro Lucas Coelho) e 06.03.2007[5] (relator Conselheiro Sebastião Povoas), não cremos que esta seja a melhor jurisprudência sobre a questão.
Subscrevemos antes a jurisprudência que foi consagrada no Ac. do STJ de 24.10.2006[6] (relator Conselheiro Ferreira Girão) e nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25.05.2006[7] (relator Desembargador Trajano Menezes e Melo) de 14.06.2010[8] (relatora Desembargadora Maria de Deus Correia) e do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.11.2010[9] (relatora Desembargadora Teresa Pardal)
Porém, antes de nos debruçarmos sobre a interpretação do artº 1781º citado, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 61/2008 de 31.10, convém tornar claro que o A não fundou a causa de pedir da presente acção nessa ruptura do casamento que consiste na separação de facto, por um ano consecutivo, sem comunhão de vida entre os cônjuges e não havendo o propósito, por parte de ambos ou de um deles, de a restabelecer.
A causa de pedir, ou seja, os factos que serviram de fundamento à acção – v. artº 467º nº 1 al. d) e 498º nº 4, ambos do CPC – foram outros e consistiam, no essencial, como resulta do relatório supra, em factos que integravam a violação dos deveres conjugais por parte da R., os quais terão levado à ruptura definitiva do casamento. Tanto assim que o A. invocava, como fundamento de direito, a al. d) do nº 1 do artº 1781º.
Assim, não tendo havido alteração da causa de pedir, nos termos permitidos pelo artº 273º do CPC, não podia o tribunal a quo fundar a sua decisão naqueles factos, sob pena de violação do principio do dispositivo consagrado no artº 264º, ainda do CPC. Salienta-se que o que o tribunal fez não foi apenas qualificar de forma diversa os factos alegados e, portanto, não estar sujeito às alegações das partes quanto à aplicação das regras de direito, o que lhe era possível, nos termos do artº 664º do CPC. Foi mais do que isso, foi usar fundamentos de facto, “a separação de facto por um ano consecutivo”, que não vinham alegados como causa de pedir.
Consequentemente, não podendo servir-se daqueles factos e não tendo o A. logrado fazer prova dos factos em que fundava a acção, esta não podia proceder com base na al. d) do nº 1 do artº 1781º, como aliás se reconhece na decisão recorrida.
Quanto ao prazo de um ano do preceito em causa, não haverá grandes dúvidas que estamos perante um prazo de natureza substantiva, ou seja, perante um pressuposto ou requisito do direito potestativo do A a requerer ao tribunal que decrete o divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
A razão de ser deste prazo, um ano, é a de ter sido considerado pelo legislador actual como o adequado para, com alguma segurança, se poder formular um juízo de ruptura da vida em comum. As opções anteriores do legislador neste domínio (e basta referir o legislador pós 25 de Abril), já foram mais exigentes e começaram em seis anos (na redacção dada ao artº 1781º pelo DL 496/77 de 25.11), tendo passado pelos três anos, na redacção conferida ao preceito pela Lei 47/98 de 10.08.
Estamos perante aquilo que a doutrina vem designando como “divórcio-remédio” em que o divórcio é encarado como a solução natural para os casos em que o casamento fracassou definitivamente. Mas para que o A possa invocar que ocorreu esse fracasso, definitivo, a lei exige que decorra um período mínimo de separação de facto, actualmente de um ano.
Assim, compreende-se que este período de tempo, de um ano, já deva ter decorrido quando da propositura da acção pois, se assim não for, o direito potestativo ainda não se constituiu na esfera jurídica do cônjuge que o pretende invocar.
O argumento do artº 663º do CPC, usado na decisão recorrida, na sequência aliás do Ac. do STJ de 03.11.2005, supra citado, não nos convence.
Desde logo porque, como se estabelece neste preceito, não é possível atender aos factos jurídicos supervenientes se isso contender com outras disposições legais que fixam restrições, nomeadamente as relativas às condições em que pode ser alterada a causa de pedir. Ora, como acima já salientamos, não foi nestes autos alterada a causa de pedir pelo que nunca seria possível atender a estes eventuais novos factos[10].
Já quanto ao argumento invocado no Ac. do STJ de 06.03.2007, supra citado, embora aparentemente impressivo[11], até porque lhe subjaz a razão do preceito, que é o da economia processual, afigura-se-nos que não é totalmente assertivo.
Pelo menos não tem aplicação ao caso sub judicio. Com efeito, no caso de que nos ocupamos, não só a R. não está de acordo em querer divorciar-se, tanto assim que contestou e pediu a improcedência da acção, como não é adequado que se lhe impute agora as custas do processo que contestou, fundadamente (conclusão linear em face dos factos provados) não sendo da sua responsabilidade que, entretanto, no decurso do processo, tenha perfeito o ano de separação do casal.
Bem mais impressivo se nos afigura o argumento esgrimido no Ac. do TRPorto de 14.06.2010, também atrás citado, de que o sentido do artº 1781º nº 1 al. a) seria desvirtuado permitindo que o prazo de um ano fosse completado no decurso da acção. Isso abriria “a possibilidade de qualquer dos cônjuges propôr a acção de divórcio, com fundamento na separação de facto, no dia seguinte à ocorrência da separação, contando com a demora do processo, para perfazer o ano exigido na lei. Nem a letra nem o espírito da lei consentem tal interpretação”.
Conclui-se assim, como resposta à questão supra equacionada, que o requisito objectivo, fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previsto no artº 1781º al. a), a separação de facto por um ano consecutivo, deve verificar-se reportado ao momento em que a acção é proposta, o que, não ocorrendo no caso em análise, não permite considerar que ocorra fundamento para decretar o divórcio entre as partes.
À luz deste enquadramento normativo e respectiva teleologia, não pode subsistir o entendimento sustentado pelo tribunal "a quo", procedendo pois as razões que enformam a reacção da recorrente.
Assim sendo a acção tem necessariamente de improceder, impondo-se revogar a decisão recorrida.
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III- DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram esta 1ª Secção Cível em julgar procedente a apelação e, consequentemente revogam a decisão recorrida e julgam a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.
Custas a cargo do A.
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Porto, 15.03.2011
António Francisco Martins
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
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[1] Proc. nº 5496/09.2TBVFR d 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira
[2] Diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[3] Adiante designado abreviadamente de CPC.
[4] Acessível em www.dgsi.pt
[5] Idem
[6] Idem
[7] Idem
[8] Acessível em www.jusnet.pt sob o doc. nº Jusnet 3492/2010
[9] Idem sob o doc. nº Jusnet 6560/2010
[10] Com as devidas adaptações o caso em análise tem semelhanças com o exemplo transcrito por José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 83:
“Propôs-se acção de divórcio fundada em adultério do marido; não se provou o facto, mas apurou-se que, já na pendência da lide, o réu contraiu doença contagiosa e incurável. Poderá o tribunal, ao abrigo do artº 663º, julgar procedente a acção?
Silva e Sousa responde: Não, porque o facto superveniente constitui causa de pedir diversa da que foi invocada como base da acção; se o juiz tomasse em consideração esse facto (doença contagiosa e incurável), julgaria não a acção intentada (nº 2 do artº 4º do Dec de 3.11.1910) mas acção diversa (nº 10 do artº do dec. Citado)”.
[11] Diz-se neste aresto:
“Não faria sentido, seria penoso para as partes e revelaria um notório desajustamento social e um excessivo apego a literalismos, vir agora dizer a um casal separado de facto há mais de quatro anos, ambos a quererem divorciar-se, pondo termo a relação irremediavelmente comprometida, que deveriam intentar nova acção, com custas e desgaste inerentes para demonstrar o que, aqui, está exuberantemente patente”.