Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
503/08.9TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP00043439
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: DIVÓRCIO
SEPARAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP20100112503/08.9TJVNF.P1
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 345 - FLS 42.
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito do regime do divórcio anterior à vigência da Lei n.° 61/2008, de 31 de Outubro, a separação de facto por mais de um ano e menos de três anos só pode constituir fundamento de divórcio se não tiver a oposição do cônjuge demandado, como dispõe a ai. b) do art. 1781.° do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.° 47/98, de 10/08.
II - Considera-se satisfeito esse requisito quando o cônjuge demandado, não obstante contestar a pretensão do cônjuge demandante, ele próprio também requer o divórcio, situando-se a divergência dos cônjuges apenas na questão da culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 503/08.9TJVNF.P1
Recurso de Apelação
Distribuído em 27-11-2009

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.

I – RELATÓRIO
1. B………., residente na freguesia ………., concelho de Vila Nova de Famalicão, instaurou, no Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Famalicão, acção especial de divórcio litigioso, segundo o regime estabelecido nos arts. 1779.º e 1781.º, al. b), do Código Civil e 1407.º e 1408.º do Código de Processo Civil, na vigência anterior à Lei n.º 61/2008, de 31-10, contra a sua esposa C………., residente na freguesia de ………., do mesmo concelho.
Imputando à ré a prática de diversas condutas que qualifica de violações reiteradas, graves e culposas dos deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência, que levaram à ruptura irremediável da vida em comum entre os cônjuges e à sua total separação a partir de 23-01-2007, formulou a seguinte pretensão: a) que seja decretada a dissolução, por divórcio, do casamento celebrado entre autor e ré em 19 de Maio de 2001, com culpa exclusiva da ré; b) que seja fixado na sentença que a coabitação entre os cônjuges cessou no dia 23 de Janeiro de 2007.
Realizada a tentativa de conciliação entre os cônjuges, que se frustrou (fls. 25), a ré contestou a acção, impugnando a versão dos factos alegados pelo autor e negando a prática de qualquer violação aos deveres conjugais que este lhe imputa. Concluindo pela improcedência da acção.
Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, nos termos do despacho a fls. 135-137, foi proferida sentença, a fls.140-144, que, julgando a acção procedente, decidiu: a) Decretar o divórcio entre o autor e a ré; b) Declarar a culpa exclusiva da ré pelo divórcio; c) Declarar que os efeitos do divórcio retroagem à data de 24-01-2007.

2. A ré não se conformou com tal decisão e apelou da sentença para esta Relação, extraindo das suas alegações as conclusões seguintes:
1.º - No presentes autos, o fundamento usado para decretar o divórcio foi a separação de facto há mais de um ano, à data da propositura da acção, sem oposição do outro, ao abrigo do artigo 1781.º n.º 1 alínea b) – (vigência da Lei n.º 47/98, de 10-08).
2.º - Os pressupostos para que o divórcio seja decretado ao abrigo desta norma são: a) separação de facto por mais de um ano; b) consentimento do outro cônjuge contra o qual se intentou a acção.
3.º - A matéria de facto dada como provada não permite concluir que a Ré expressa ou tacitamente aceitou ou concordou com o divórcio.
4.º - Não é suficiente para concluir da inexistência de oposição constante do alínea b) do artigo 1781.º do Código Civil, o facto de a Ré demandada manifestar vontade de anular o casamento e ter intentado processo no tribunal eclesiástico com esse objectivo.
5.º - Os fundamentos e efeitos da dissolução do casamento por divórcio são distintos dos fundamentos e efeitos da anulação do casamento católico num tribunal eclesiástico.
6.º - Na presente acção, a Ré tudo fez para evitar que o casamento fosse dissolvido por divórcio: apresentou contestação, rol, foi realizada audiência de discussão e julgamento informou o tribunal e comprovou que havia sido instaurado no tribunal eclesiástico bracarense acção destinada a anular o casamento.
7.º - Adoptou sempre uma conduta processual transparente, verdadeira e legal, nunca simulada.
8.º - Os motivos da Ré em não querer a dissolução do casamento por divórcio são de foro íntimo e cariz essencialmente religioso, que nunca a poderão prejudicar, atento o direito de liberdade religiosa garantido constitucionalmente no artigo 41.º da CRP.
9.º - Não estão reunidos todos os pressupostos legais para que seja decretado o divórcio com o fundamento previsto no artigo 1781.º alínea b) do Código Civil.
10.º - A Sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente da norma contida na alínea b) do artigo 1781.º do Código Civil, ao concluir que, pelo facto da Ré demandada ter instaurado no tribunal eclesiástico processo com vista à anulação do casamento, está a consentir no divórcio.
11.º - A Sentença Recorrida fez igualmente uma errada aplicação do artigo 665.º do Código Processo Civil, dado toda a conduta processual da Ré ter sido verdadeira, transparente e legal.
12.º - Deve pois a Douta Sentença se revogada e a acção ser julgada não provada e improcedente.
13.º - Mesmo que assim não se entenda:
14.º - Da matéria dada como provada não resulta qualquer violação grave, culposa e reiterada que permita concluir que a Ré seja única e exclusivamente culpada da ruptura conjugal.
15.º - A factualidade provada refere-se a um momento temporal muito curto – de 23-01-2007 a 01-02-2007 – e reporta-se a factos isolados que não permitem retirar a conclusão de que a Ré é a culpada na ruptura do matrimónio.
16.º - A declaração de cônjuge como principal culpado pressupõe um juízo de censura sobre a crise matrimonial na sua globalidade, de modo a poder concluir-se quais as condutas reprováveis que deveram origem ao divórcio
17.º - Nada se apurou sobre a causa – ou a ausência de causa – da atitude da Ré, nomeadamente não foi apurado se a conduta da Ré se deveu a uma atitude unilateral e injustificada ou a causa atendível e justificável decorrente de possível conduta censurável do A.
18.º - Donde se conclui que a factualidade provada não permitir extrair um juízo global sobre a crise matrimonial.
19.º - Não é pois aceitável concluir-se pela culpa exclusiva da Ré.
20.º - Fez pois a sentença uma errada interpretação dos artigos 1787.º do Código Civil, devendo ser revogada na parte, em que declara a Ré como exclusiva culpada.
O autor contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.

3. À tramitação e julgamento do presente recurso é aplicável o novo regime processual introduzido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, porquanto respeita a acção instaurada após 01-01-2008 (cfr. art. 12.º do mesmo decreto-lei).
De harmonia com as disposições contidas nos arts. 676.º, n.º 1, 684.º, n.ºs 2 e 3, e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que o apelante extrai das suas alegações, desde que reportadas à decisão recorrida, sem prejuízo das questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente (art. 660.º, n.º 2, in fine, do CPC). Pelo que, dentro desse âmbito, deve o tribunal resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, exceptuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outras (art. 660.º, n.º 2, do CPC). Com a ressalva de que o dever de resolver todas as questões suscitadas pelas partes, a que alude o n.º 2 do art. 660.º do Código de Processo Civil, não se confunde nem compreende o dever de responder a todos os “argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes”, os quais, por muito respeitáveis que sejam, nenhum vínculo comportam para o tribunal, como flui do disposto no art. 664.º do Código de Processo Civil (cfr., entre outros, ANTUNES VARELA, em Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 677-688; Ac. do Tribunal Constitucional n.º 371/2008, em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/; acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2001 e 10-04-2008 em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. n.º 01A2507 e 08B877; e ac. desta Relação de 15-12-2005, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0535648).
À luz destes parâmetros e tendo em conta o teor das conclusões formuladas, as questões que a apelante opõe à sentença recorrida e de que cabe conhecer são as seguintes:
1) se os factos provados preenchem todos os requisitos legais para o divórcio litigioso fundado na separação de facto dos cônjuges, a que alude a al. b) do art. 1781.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 47/98, de 10 de Agosto;
2) a entender-se que há fundamento legal para decretar o divorcio dos cônjuges, se os factos provados permitem imputar à ré a culpa exclusiva pelo divórcio.

II – FACTOS PORVADOS
4. Na 1.ª instância foram julgados provados os factos seguintes:
1) Autor e Ré contraíram casamento, sem convenção antenupcial, em 19-05-2001.
2) No dia 24 de Janeiro de 2007, quando regressava a casa onde habitava com a Ré, o Autor foi surpreendido com a respectiva porta de entrada fechada, porque aquela (Ré) tinha mudado a respectiva fechadura.
3) No dia 24 de Janeiro de 2007 a Ré levantou todo o dinheiro que o casal tinha na D……… (Agência de Vila Nova de Famalicão), não dando qualquer satisfação ao Autor.
4) No dia 25 de Janeiro de 2007, face ao comportamento da Ré em impedir o Autor de entrar em casa, este foi lá para levantar a sua roupa, mas a esposa recusou-se a entregar-lha, sem a presença de uma "testemunha civil".
5) No dia 1 de Fevereiro de 2007, o Autor foi a casa do casal e a Ré, só nessa altura, lhe entregou alguns objectos de uso pessoal, dizendo-lhe: ''leva tudo e desaparece da minha vista", "não te quero ver mais".
6) Desde 24 de Janeiro de 2007 Autor e Ré vivem em lares distintos, não comem juntos, não dormem juntos, nem têm relações sexuais.
7) O Autor, em 23/01/2007, voluntariamente saiu da casa onde morava com a Ré com propósito e por razões não concretamente apuradas.

III – AS QUESTÕES DO RECURSO
5. Como atrás se enunciou, a recorrente opõe à sentença recorrida duas questões, em alternativa: 1) a primeira refere-se à decisão que considerou estarem verificados os requisitos legais da separação de facto, previstos na al. b) do art. 1781.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 47/98, de 10 de Agosto e, com esse fundamento, decretou o divórcio litigioso dos cônjuges; 2) a segunda refere-se à declaração de culpa exclusiva da ré pelo divórcio.
Podemos acrescentar desde já, sem a menor hesitação, que assiste à ré inteira razão relativamente a qualquer das decisões impugnadas, pois, tanto no aspecto da análise à matéria de facto provada como no aspecto da sua integração no âmbito dos normas legais aplicadas, a sentença recorrida revela equívocos primários inaceitáveis. O que se irá demonstrar.
Previamente, porém, importa fazer dois esclarecimentos, que relevam para delimitar e contextualizar as questões que cabe apreciar.
O primeiro esclarecimento é para dizer que o autor alegou, como fundamento da sua pretensão ao divórcio, duas causas de pedir em alternativa: em primeiro lugar e a título principal, invocou a ruptura irremediável da vida em comum entre os cônjuges resultante da violação reiterada, grave e culposa pela ré dos deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação e assistência, assim optando pelo fundamento do divórcio litigioso previsto no art. 1779.º do Código Civil; em segundo lugar e a título subsidiário, invocou a separação de facto dos cônjuges a partir de 23-01-2007, com fundamento na al. b) do art. 1781.º do Código Civil. O tribunal recorrido considerou não provado o primeiro fundamento invocado pelo autor e decretou o divórcio apenas com fundamento na separação de facto dos cônjuges desde 24-01-2007. Incidindo o objecto do recurso apenas sobre a decisão que julgou verificado o fundamento da al. b) do art. 1781.º do Código Civil.
O segundo esclarecimento que se impõe fazer é que ao divórcio requerido neste processo não é aplicável o novo regime introduzido pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, cuja vigência se iniciou em 30 de Novembro de 2008 (cfr. art. 10.º), porquanto, nos termos do disposto no seu art. 9.º, o novo regime não é aplicável aos processos pendentes em tribunal, como era o caso deste. De que resulta que a pretensão do divórcio formulada nesta acção deve ser apreciada e julgada segundo o regime legal que vigorava à data da propositura da acção. O que significa que o conceito e requisitos da separação de facto dos cônjuges, como fundamento do divórcio litigioso, têm de ser apreciados no âmbito das disposições contidas nas als. a) e b) do art. 1781.º e no n.º 1 do art. 1782.º do Código Civil, o primeiro na redacção dada pela Lei n.º 47/98, de 10/08, e o segundo na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25/11, que eram as que, então, estavam em vigor; e a declaração de culpa dos cônjuges tem de ser apreciada no âmbito do disposto no art. 1782.º, n.º 2, do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25/11.
Feitos estes esclarecimentos prévios, cumpre apreciar cada uma das questões enunciadas.

6. No que respeita ao divórcio baseado na separação de facto dos cônjuges, o art. 1781.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 47/98, de 10/08, dispõe, sob as als. a) e b), que são fundamento do divórcio litigioso "a separação de facto por três anos consecutivos" ou "a separação de facto por um ano se o divórcio for requerido por um dos cônjuges sem oposição do outro".
Sobre o conceito de separação de facto que releva para efeitos de divórcio, à luz do dispositivo do n.º 1 do art. 1782.º do Código Civil entende-se que só há separação de facto "quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer".
Da conjugação das normas anteriormente transcritas deve inferir-se que o conceito normativo de separação de facto, susceptível de fundamentar o divórcio litigioso, caracteriza-se pela concorrência dos seguintes três requisitos: 1) um requisito objectivo, materializado na inexistência de vida em comum entre os cônjuges, em todas as suas vertentes: familiar, doméstica, social, económica, afectiva e sexual; 2) um requisito temporal, que exige que a inexistência de vida em comum perdure, de forma contínua e ininterrupta, por 3 anos consecutivos, podendo este período ser reduzido para um ano se o cônjuge contra quem é requerido o divórcio não deduzir oposição; 3) um requisito subjectivo, que decorre do propósito, de algum ou de ambos os cônjuges, de não mais restabelecer a vida em comum, e, portanto, que exige que a separação traduza a ruptura definitiva da vida conjugal. É neste sentido e com este âmbito que se pronunciam PEREIRA COELHO, em Reforma do Código Civil, 1981, p. 36-37; ANTUNES VARELA, em Direito da Família, 1982, p. 411-412; FRANÇA PITÃO, em Sobre o Divórcio, 1986, p. 114/ss.; e a generalidade da jurisprudência, de que são exemplo, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14-03-79, 02-10-79 e 28-02-80, todos no BMJ n.º 285/335, 290/406 e 294/356, respectivamente, e de 03-11-2005, 24-10-2006 e 06-03-2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. n.º 05B2266, 06B2898 e 07A297, respectivamente. Foi também neste sentido que nos pronunciámos em acórdão por nós relatado em 15-01-2008, no recurso n.º 6339/07-2, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ sob o n.º 0726339.
No tocante à redução do período da separação de facto para um ano, a que alude a al. b) do art. 1781.º do Código Civil, a lei exige que, para poder constituir fundamento de divórcio, tenha o acordo, expresso ou tácito, do cônjuge demandado. Considerando-se como acordo tácito a não dedução de oposição ao divórcio. E também se considera satisfeito este requisito quando o cônjuge demandado, não obstante contestar a pretensão do cônjuge demandante, ele próprio também requer o divórcio, situando-se a divergência dos cônjuges apenas na questão da imputação da culpa (cfr. neste sentido o ac. do STJ de 06-03-2007, antes citado).
Obviamente que o preenchimento de todos estes requisitos há-de resultar da matéria de facto provada. Porquanto, em face do disposto nos arts. 264.º, n.º 2, 664.º e 659.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o juiz só pode fundar a decisão sobre o mérito da causa nos factos alegados pelas partes e provados. Não lhe sendo lícito fazer interpretações e tomar decisões que não tenham expressão efectiva na matéria de facto provada.
Ora, neste âmbito, o tribunal recorrido justificou a decisão sobre a procedência do divórcio litigioso requerido pelo autor na separação de facto dos cônjuges desde 24-01-2007, ou seja, "há mais de um ano" com referência à data da propositura da acção.
Sucede que os únicos factos provados que permitem inferir a separação de facto dos cônjuges são os descritos sob os itens 6) e 7), com o seguinte teor: "6) Desde 24 de Janeiro de 2007, Autor e Ré vivem em lares distintos, não comem juntos, não dormem juntos, nem têm relações sexuais"; e "7) O Autor, em 23/01/2007, voluntariamente saiu da casa onde morava com a Ré com propósito e por razões não concretamente apuradas".
O que estes factos dizem é tão só que o autor saiu voluntariamente da residência conjugal em 23-01-2007 e, na sequência desse facto, os cônjuges deixaram de viver em comum um com o outro. O que apenas preenche o requisito objectivo acima enunciado. Quanto ao requisito subjectivo, os factos não esclarecem se ambos os cônjuges ou algum deles não pretende restabelecer a vida em comum. Deixando, portanto, em aberto a possibilidade de se tratar de uma mera situação transitória, e não de ruptura definitiva da vida em comum.
E esta dúvida não pode considerar-se aqui resolvida no sentido de que o autor, ao requerer o divórcio, manifestou o propósito de não mais restabelecer a vida em comum com a ré. Pela razão de que este facto constava do n.º 10 da base instrutória, com a seguinte redacção: "10 – O Autor, em 23/01/2007, sem qualquer razão e voluntariamente, saiu da casa onde morava com a Ré, com o propósito de a ela não regressar". Pretendendo assim significar que o autor, quando saiu de casa, fê-lo com o propósito de por termo à vida em comum com a ré. Pois o mesmo julgador que, na sentença, julgou verificada a separação de facto, respondeu àquele facto nos termos que consta descrito sob o item 7) dos factos provados. Considerando não provado que o autor, quando saiu de casa, tivesse o propósito de não mais regressar para junto da esposa. E sendo assim não pode presumir-se que a separação dos cônjuges tenha o significado de ruptura definitiva da vida em comum que se comprometeram reciprocamente pelo casamento.
Mas, ainda que, (com muita tolerância pelo disposto nos preceitos legais acima citados), se possa condescender que a ruptura da vida em comum do casal se poderá inferir da sua própria conduta nesta acção, um outro problema se coloca com o requisito temporal. É que, como dissemos supra, a separação de facto por mais de um ano só constitui fundamento do divórcio litigioso se não houver oposição do cônjuge demandado. E, neste caso, a ré não só impugnou todos os fundamentos alegados pelo autor como declarou a sua oposição expressa à pretensão do divórcio requerida pelo marido.
Como é que, então, o tribunal recorrido ultrapassou a falta deste requisito? Presumindo-o, simplesmente, com o argumento de que "a ré, apesar de contestar esse pedido, alega no seu articulado que pretende anular o mesmo casamento em acção que já intentou em Tribunal eclesiástico". Para daí concluir que "percebe(ndo)-se assim que o que (a ré) nega, somente, é que a dissolução seja imposta por um Tribunal comum, pelas razões invocadas pelo marido!". Acrescentando ainda que esta posição da ré constitui um "acto simulado" que representa "uma vontade que é contrária à que declarou no seu articulado".
Ora, esta fundamentação, mais do que erro ou equívoco, parece-nos configurar grave e ilegítima punição da ré pelo simples facto de se arrogar no legítimo direito de intentar uma acção de anulação do seu casamento católico nos tribunais eclesiásticos. Admitindo que o fez.
Com efeito, em primeiro lugar, não consta dos factos provados que a ré tenha intentado qualquer acção de anulação do seu casamento nos tribunais eclesiásticos. E se o fez, essa acção visa o casamento católico (cfr. art. 1625.º do Código Civil), não visa o casamento civil, sem prejuízo dos efeitos que, depois, venham a ser reconhecidos à decisão proferida por aqueles tribunais eclesiásticos, com projecção no casamento civil. Mas se o julgador reputava de relevante esse facto para a decisão da causa, deveria exigir a respectiva prova documental e só então poderia extrair dele consequências para a decisão. Não tendo considerado provado esse facto, não pode utilizá-lo na decisão.
Em segundo lugar, mesmo admitindo como verdadeiro que a ré intentou a dita acção de anulação do seu casamento católico nos tribunais eclesiásticos, jamais é possível equiparar os seus efeitos jurídicos ao divórcio.
O divórcio é uma causa de dissolução do casamento civil, enquanto contrato celebrado validamente (cfr. arts. 1577.º, 1587.º, n.º 1, e 1788.º do Código Civil). Os seus efeitos produzem-se "para o futuro", em regra a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, salvo quanto às relações patrimoniais, que retrotraem à data da propositura da acção ou, quando requerido e provado, à data em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro cônjuge (cfr. art. 1789.º do Código Civil). Mas não se projectam na perpetuidade do casamento católico.
A declaração de nulidade do casamento católico (cfr. art. 1625.º do Código Civil), como a anulação do casamento civil, nos casos em que é admitida, incide sobre um vício que afecta ab initio a sua validade (cfr. arts. 1267.º, 1631.º, 1635.º e 1638.º do Código Civil). E, por isso, os seus efeitos retrotraem ao momento da sua celebração, tudo se passando como se o casamento nunca tivesse existido (art. 289.º, n.º 1, do Código Civil).
Diferenciando aquelas duas situações, o PROF. ANTUNES VARELA (ob. cit., p. 389), escreve que: "Tanto a nulidade, como a anulação do casamento, fundadas em vícios originários do casamento, implicam a destruição retroactiva do vínculo conjugal. Se os cônjuges eram solteiros, à data em que casaram, a declaração de nulidade ou a anulação do casamento farão com que retornem à condição de solteiros. A dissolução do casamento (por divórcio), porque baseada em facto posterior à celebração dele, apenas provoca a extinção da relação matrimonial, respeitando integralmente a sua vigência no pretérito. Os cônjuges, após a dissolução, não retornam à condição de solteiros, ingressando antes no novo estado de divorciados".
Donde se conclui que, juridicamente, não é possível equiparar, quanto aos seus efeitos, a acção de anulação do casamento católico com a acção de divórcio para dissolução do casamento civil. E por isso, também não é possível equiparar, para efeitos do disposto na al. b) do art. 1781.º do art. 1781.º do Código Civil, a propositura de acção de anulação do casamento católico formulado em tribunal eclesiástico com o pedido de divórcio formulado em acção cível, porque qualquer dessas acções visam finalidades diferentes e as respectivas decisões produzem efeitos diferentes.
Caracterizar aquela conduta da ré como "acto simulado", sob a justificação de que representa "uma vontade que é contrária à que declarou no seu articulado", é erro grosseiro, porque não tem em conta as especificidades próprias de cada acção e, pior do que isso, porque não se baseia na existência de acordo simulatório entre as partes, que é requisito essencial da simulação, incluindo a simulação processual, como decorre do disposto nos arts. 240.º, n.º 1, do Código Civil e 665.º do Código de Processo Civil. Com efeito, o art. 665.º do Código de Processo Civil, ao referir-se a «acto simulado», fá-lo por referência a "conduta das partes … (que) produza(m) a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei". O que exige acordo das partes em relação à simulação do litígio. Como anota LEBRE DE FREITAS (em Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 695), "tem lugar a simulação processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiro, mas não entre si". Neste caso, não só não existe o menor indício de que autor e ré estejam conluiados entre si quanto a algum efeito relacionado com esta acção, como é manifesto que estão em total divergência entre si quanto à obtenção do divórcio. O autor quere-o, a ré opõe-se. E, significativamente, a sentença dá nota clara da autenticidade dessa divergência das partes. Daí que a invocação do art. 665.º do Código de Processo Civil seja um disparate jurídico, porque nenhuma conexão tem com os requisitos legais da separação de facto dos cônjuges.
Pelos motivos expostos, não pode aceitar-se o argumento de que a ré não se opôs ao divórcio, para efeitos do disposto na al. b) do art. 1781.º do Código Civil, na redacção aplicável. E ocorrendo essa oposição, a separação de facto dos cônjuges por mais de um ano e menos de três anos não constitui fundamento do divórcio litigioso. O qual, por isso, tem que improceder.

7. A questão da culpa dos cônjuges pela separação de facto perde relevância perante a conclusão alcançada anteriormente quanto à falta de fundamento legal para o divórcio.
Deve, todavia, acrescentar-se uma breve nota para dizer que, também neste âmbito, o tribunal requerido se equivocou, ao confundir as causas da separação dos cônjuges com as consequências do abandono do lar conjugal por parte do autor.
Com efeito, dispõe o n.º 2 do art. 1782.º do Código Civil, na redacção aqui aplicável, que "na acção de divórcio com fundamento em separação de facto, o juiz deve declarar a culpa dos cônjuges, quando a haja, nos termos do artigo 1787º". Como se infere do preceito, a culpa a declarar neste caso é a que se reporta à causa da separação de facto dos cônjuges. Constituindo, portanto, o juízo de censura que recai sobre a conduta de algum ou de ambos os cônjuges que foi causal da sua separação.
Ora, o que os factos provados dizem a este respeito é tão só que "o autor, em 23-01-2007, saiu voluntariamente da casa onde morava com a ré" [cfr. item 7) dos factos provados]. A partir daí, autor e ré passaram a viver em casas separadas e a fazer vida totalmente autónoma e separada um do outro [cfr. item 6) dos factos provados]. E foi na sequência dessa separação originada pela saída voluntária do autor do lar conjugal que a ré praticou as condutas descritas nos itens 2), 3), 4) e 5) dos factos provados. O que quer dizer que estas condutas da ré, mesmo que, objectivamente, possam considerar-se infracções conjugais, não foram a causa da separação dos cônjuges nem, tão-pouco, contribuíram para essa separação, porque esta já se tinha concretizado no dia anterior, com a saída do lar conjugal por parte do autor. E, deste modo, mesmo que houvesse fundamento para o divórcio, a ré não podia ser declarada culpada, fosse a título exclusivo, fosse a título principal.

9. Sumário:
i) No âmbito do regime do divórcio anterior à vigência da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, a separação de facto por mais de um ano e menos de três anos só pode constituir fundamento de divórcio se não tiver a oposição do cônjuge demandado, como dispõe a al. b) do art. 1781.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 47/98, de 10/08.
ii) Considera-se satisfeito esse requisito quando o cônjuge demandado, não obstante contestar a pretensão do cônjuge demandante, ele próprio também requer o divórcio, situando-se a divergência dos cônjuges apenas na questão da culpa.
iii) Tendo o cônjuge demandado contestado e deduzido oposição expressa ao pedido de divórcio formulado pelo demandante e tendo também alegado que havia instaurado, no tribunal eclesiástico competente, acção de anulação do casamento católico, não pode considerar-se que esta conduta é em si contraditória, com o fundamento de que a instauração desta acção visa obter o mesmo efeito do divórcio, e fazê-la equivaler à falta de oposição ao divórcio.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência:
1) Revoga-se a sentença recorrida.
2) Julga-se improcedente a acção e absolve-se a ré do pedido.
3) Custas da acção e do recurso pelo autor (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Relação do Porto, 12-01-2010
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Sílvia Maria Pereira Pires