Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3137/04.3TBVFR-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÁLVARO MONTEIRO
Descritores: CRÉDITO DE ALIMENTOS
INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR
PENHORABILIDADE DO RENDIMENTO DO EXONERADO
Nº do Documento: RP202511273137/04.3TBVFR-F.P1
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crédito por alimentos devido a filho menor, é insuscetível de penhora e apreensão (artº 2008º do CC e 736º, nº 1, do CPC).
II - Vencido esse antes da declaração de insolvência do devedor e tendo sido fixado a este o rendimento indisponível de 1,2 salários, sendo o valor a salvaguardar do devedor insolvente de €255,25 (18.º, nº 1, da Portaria n.º 372-B/2024/1, de 31 de Dezembro - atualização das pensões do regime não contributivo e artº 738º, nº 4, do CPC), apenas não é penhorável o valor acima referido de €255,25.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo Nº 3137/04.3TBVFR-F.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Família e Menores de ...

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Relator: Juiz Desembargador Álvaro Monteiro
1º Adjunto: Juiz Desembargador Carlos Cunha Carvalho
2º Adjunto: Juiz Desembargador Paulo Dias da Silva

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Sumário:
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I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de Incumprimento das Responsabilidades Parentais, tendo como Requerente AA, na qualidade de progenitora em representação do seu filho menor de idade, BB, e Requerido CC, vem este recorrer do despacho prolatado 16.06.2025.

1 - Em 29.04.2025 foi prolatada sentença com o seguinte teor decisório:
“1. Declaro que o requerido pai incumpriu de forma culposa a obrigação de pagar a pensão de alimentos devida ao seu filho BB, estando em dívida o valor total de € 4.469,12 (quatro mil quatrocentos e sessenta e nove euros e doze cêntimos), referente ao valor devido e não pago a título de pensão de alimentos desde maio de 2022 até abril de 2025, tendo em conta a data da prolação desta sentença e o disposto no artigo 557º, n.º 1, do Código de Processo Civil (tomando-se como referência o valor em dívida alegado no requerimento inicial); sem prejuízo do disposto no artigo 557º/1 do Código de Processo Civil quanto às demais prestações vincendas.
2. Condeno o requerido no pagamento da quantia referida em 1).
3. Condeno o requerido no pagamento das custas do incidente.
4. Fixo o valor do incidente em €3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros).
5. Nos termos do disposto no artigo 48º/1/b) e 2 do RGPTC, notifique a entidade empregadora do requerido para:
a) Proceder à dedução, nas prestações que vierem a ser pagas ou creditadas ao requerido a título de vencimento do montante mensal de € 179,78 (cento e setenta e nove euros e setenta e oito cêntimos), a remeter diretamente à requerente, para satisfação das prestações alimentícias vincendas relativamente ao BB – cfr. artigo 48º/2 do RGPTC; tal prestação será atualizada, anualmente, em função da taxa oficial da inflação.
b) Proceder à dedução, nas prestações que vierem a ser pagas ou creditadas ao requerido a título de vencimento, do montante mensal de €120,00 (cento e vinte euros), até perfazer o valor em dívida de € 4.469,12 (quatro mil quatrocentos e sessenta e nove euros e doze cêntimos), fixado nos termos desta sentença.
c) Mais informe a entidade empregadora que, nos termos do artigo 738º/4 do Código de Processo Civil, quando o crédito, como é o caso dos autos, for de alimentos, só é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo - ou seja, atualmente, € 255,25 - artigo 18º, n.º 1, da Portaria n.º 372-B/2024, de 31 de dezembro -, não se aplicando, pois, a regra da impenhorabilidade 2/3 (dois terços) da parte líquida do salário, nem a salvaguarda do montante equivalente a um salário mínimo nacional.
a) Advirta que a entidade empregadora de que fica na situação de fiel depositário de tais quantias – cfr. artigo 48º/1/b) do RGPTC.”
2 – Em 20.05.2025 veio o Requerido requerer:
“Conforme decorre da Douta Sentença proferida nos autos, o Requerido foi condenado a pagar:
a) 179,78€ (cento e setenta e nove euros e setenta e oito cêntimos) mensais a título de pensão de alimentos vincendos (correspondente ao valor atualizado), valor este que irá ser deduzido pela sua entidade empregadora no seu vencimento mensal;
b) 120,00€ (cento e vinte euros) mensais para pagamento das prestações de alimentos vencidas desde Maio de 2022 até Abril de 2025, até perfazer o valor em dívida de €4.469,12, valor este que irá ser deduzido pela sua entidade empregadora no seu vencimento mensal.
Sucede que, conforme decorre do Apenso D, o Requerido, atualmente, também tem um desconto legal de 136,60€ (cento e trinta e seis euros e sessenta cêntimos) mensais para pagamento das prestações de alimentos vencidas até Outubro de 2016, até perfazer o montante de 10 550,24 €, valor este que se encontra a ser descontado na sua pensão de reforma.
Tudo o que perfaz a quantia total mensal de 436,38€ (quatrocentos e trinta e seis euros e trinta e oito euros) que o Requerido é descontado a título de pensões de alimentos vencidas e vincendas.
Ora, atendendo aos rendimentos por si auferidos mensalmente, já comprovados nos autos, não tem o Requerido condições para proceder ao pagamento de uma prestação mensal tão elevada a título de pensões de alimentos, sem colocar em causa a sua própria sobrevivência.
Nestes termos e nos demais de Direito, requer a V. Exa. se digne proceder à redução do valor mensal a descontar a título de pensão de alimentos, para um valor proporcional aos seus rendimentos, que não coloque em causa a sua própria sobrevivência.”
3 – Em 11.06.2025 o M. Público promoveu o indeferimento da pretensão do requerido.
4 – Em 16.06.2025 foi prolatada a seguinte decisão:
“Tendo em conta a natureza da prestação alimentícia em causa nos autos, não determino a cessação dos descontos ordenados no vencimento do requerido por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência.”
5 – Em 14.07.2025, não se conformando com esta decisão veio o Requerido recorrer, deduzindo alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
1) Ao presente Recurso deve ser determinada a atribuição ao presente Recurso de Apelação do efeito suspensivo.
2) Por força de Decisão proferida nos presentes autos, irão ser descontados ao Requerido, ora Recorrente, os seguintes valores: 179,78€ (cento e setenta e nove euros e setenta e oito cêntimos) mensais a título de pensão de alimentos vincendos (correspondente ao valor atualizado), valor este que irá ser deduzido pela sua entidade empregadora no seu vencimento mensal; 120,00€ (cento e vinte euros) mensais para pagamento das prestações de alimentos vencidas desde Maio de 2022 até Abril de 2025, até perfazer o valor em dívida de €4.469,12, valor este que irá ser deduzido pela sua entidade empregadora no seu vencimento mensal; e 136,60 € (cento e trinta e seis euros e sessenta cêntimos) mensais para pagamento das prestações de alimentos vencidas até Outubro de 2016, até perfazer o montante de 10.550,24 €, valor este que já se encontra a ser descontado na sua pensão de reforma, tudo o que perfaz a quantia total mensal de 436,38€ (quatrocentos e trinta e seis euros e trinta e oito euros) que o Recorrente, ali Insolvente, será descontado a título de pensões de alimentos vencidas e vincendas.
3) O Douto Tribunal do processo de insolvência (processo n.º 4839/24.3T8OAZ que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis – Juiz 2), atenta a declaração de insolvência do mesmo e ao facto de se encontrar em curso o período de três anos de cessão de rendimentos, solicitou aos presentes autos, que fosse determinada a cessação dos descontos ordenados, por referência às prestações de alimentos vencidas antes da declaração de insolvência.
4) Acontece que, por Douto Despacho do passado dia 21/06/2025, o Douto Tribunal ad quo proferiu decisão (de que ora se recorre) contrária ao determinado pelo Tribunal de insolvência, decidindo não determinar a cessação dos descontos ordenados no vencimento do Insolvente, por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência.
5) A Sentença de que ora se recorre, além de violar de forma frontal a Lei, padecendo de manifesto erro de Direito (ao manter os descontos ordenados por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência), é manifestamente injusta e desproporcional, pois a manter-se a decisão proferida, tal implicará que, durante o período de três anos de cessão de rendimentos, ao Recorrente será descontada a quantia total mensal de 436,38€ (quatrocentos e trinta e seis euros e trinta e oito euros), a título de prestação de alimentos vincendos e a título de alimentos vencidos antes da declaração de insolvência, o que comprometeria, de forma desproporcional e inigualitária, a sobrevivência do mesmo, e a quantia que lhe foi fixada a título de rendimento indisponível durante o período de cessão (de 1,15 salários mínimos nacionais), já que para fixação desse rendimento indisponível, o Tribunal apenas teve em conta / acautelou o pagamento dos alimentos vincendos (mas já não dos alimentos vencidos).
6) A decisão recorrida padece de erro de Direito, ao admitir a manutenção do desconto no vencimento do Recorrente, por referência a créditos de alimentos vencidos antes da declaração de insolvência, violando os artigos 239.º, n.º 1 e 2, e 242.º do CIRE – violação essa que ora se invoca para todos os devidos efeitos legais –.
7) Do disposto nos artigos 242.º e 88.º, n.º 1 do CIRE que se dão aqui por reproduzidos, decorre que não poderão ser penhoradas quaisquer quantias ao Insolvente, ora Recorrente, por referência aos créditos de alimentos vencidos antes da declaração de insolvência, não se prevendo aí qualquer exclusão dos créditos por alimentos.
8) A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 233.º, n.º 1 e 3, al. d), do CIRE e 239.º, n.º 1 e 2 do CIRE, bem como os princípios subjacentes à exoneração do passivo restante, pois os créditos de alimentos vencidos antes da declaração de insolvência não podem ser objeto de execução individual, nem de penhora durante o período de cessão do rendimento disponível.
9) Atento o disposto nos artigos 239.º, n.º 1 e 233.º, n.º 3, al. d) do CIRE que se dão aqui por integralmente reproduzidos, estabelece que o rendimento disponível do devedor não pode ser afetado por execuções individuais, salvo nos casos expressamente excluídos, como alimentos vincendos (futuros), mas já não vencidos antes da insolvência, como ocorre in casu.
10) Os créditos de alimentos vencidos antes da insolvência constituem créditos sobre a insolvência, mas tais créditos são exoneráveis, e como tal não podem dar lugar a execução individual durante o período de cessão do rendimento disponível do devedor, aqui Recorrente, como ocorre in casu (cfr. Neste sentido, vide Acórdão do TRP de 13.06.2019 - Proc. 1351/13.3TBBCL-A.G1).
11) A este propósito, e no sentido de não ser possível, nem admissível o desconto, durante o período de exoneração, dos créditos por alimentos vencidos antes da declaração de insolvência, cumpre ainda citar a seguinte doutrina e jurisprudência: Catarina Serra, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 5.ª ed., 2022, p. 463, Miguel Teixeira de Sousa, in Comentário ao CIRE, Acórdão do TRG de 13.06.2019 – Proc. 1351/13.3TBBCL-A.G1, Acórdão do TRL de 14.12.2017 – Proc. 11869/16.4T8LSB-A.L1-6 e Acórdão do TRP de 09.05.2013, Proc. 3505/10.1TJPRT-B.P1, supra mencionados e cujo teor se dão aqui por integralmente reproduzidos.
12) Os créditos de alimentos vencidos antes da declaração de insolvência são exoneráveis na fase de exoneração do passivo restante, pelo que não poderão ser ordenados descontos, nem penhoras sobre o vencimento do Insolvente, ora aqui Recorrente, para esses créditos, durante o período de cessão de rendimentos, carecendo, assim, a Decisão proferida e que ora se recorre, de manifesto fundamento fático e de direito.
Conclui revogação da decisão recorrida, determinando-se a cessação dos descontos ordenados por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência (isto é, os descontos de 120,00€ e 136,60 € mensais).

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O M. Público apresentou contra-alegações, apresentado as seguintes CONCLUSÕES:
1) Não concordamos com a posição do Recorrente, não nos merecendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo qualquer censura ou reparo, por ser, manifestamente, a que melhor salvaguarda o superior interesse do BB, nascido a ../../2003;
2) Cabe aos Tribunais de Família e Crianças, em cada momento, interpretando e aplicando a Lei de forma que encontre ainda sustentação no sistema jurídico de normas, encontrar as soluções mais justas e equilibradas, para salvaguarda desse superior interesse;
3) O Tribunal a quo entendeu, quanto a nós bem, que, apesar do disposto no art. 88.º, n.º 1, do CIRE, estando em causa créditos por alimentos, deve apenas ser salvaguardada a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo (ou seja, atualmente, €255,25 - art. 18.º, n.º 1, da Portaria n.º 372-B/2024, de 31 de dezembro);
4) Não se aplicando nem a regra da impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida do salário, nem a salvaguarda do montante equivalente a um salário mínimo nacional - cfr. art. 738.º, n.º 4, do CPC;
5) Os descontos ordenados relativamente aos alimentos vencidos antes da declaração da insolvência do devedor não atingem bens integrantes da massa insolvente, a que se refere o art. 88.º, n.º 1, do CIRE;
6) Acresce que o art. 245.º, n.º 2, al. a), do CIRE estabelece expressamente que a exoneração não abrange os créditos por alimentos;
7) Assim se concluindo, em termos que encontram sustentação legal e no sistema de normas e salvaguardam o superior interesse do BB, que, tendo em conta a natureza dos créditos a ser descontados no vencimento do obrigado a alimentos e o valor do rendimento indisponível, não deveria ser determinada a cessação dos descontos ordenados por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência;
8) A decisão de que se recorre não é ilegal, nem injusta, pois o Recorrente não demostra que com a sua execução ficaria em causa a sua sobrevivência;
9) A totalidade dos descontos ordenados perfazem apenas cerca de meio salário mínimo nacional, ficando ainda o Recorrente com um rendimento disponível que lhe permite, condignamente, a sobrevivência;
10) Os descontos ordenados, quer os relativos às pensões vincendas, quer os que se referem às pensões de alimentos vencidas, são essenciais à sobrevivência do BB e para a conclusão do seu percurso académico, frequentando a Universidade, tanto mais que a sua mãe apenas aufere rendimentos inferiores ao salário mínimo nacional;
11) As pensões vencidas cuja penhora foi ordenada são relativas a alimentos devidos desde 2011 até 2016 e de Maio de 2022 até Abril de 2025, o que significa que durante vários anos o agora Recorrente não pagou a pensão de alimentos devida ao BB, pretendendo agora ser exonerado desse pagamento, invocando que ficaria em causa a sua sobrevivência;
12) E a sobrevivência do BB durante todos esses anos? Em que, sendo ainda menor, estava legalmente impossibilitado sequer de prover pelo seu sustento através de trabalho remunerado;
13) A decisão sob recurso é a mais justa e equilibrada ao caso concreto, permitindo ao BB um rendimento mensal suficiente para prover às suas necessidades e à conclusão do seu percurso académico, ao mesmo tempo que deixa ainda ao Recorrente um rendimento que lhe permitirá, com dignidade, prover às suas necessidades;
14) Trata-se, por outro lado, não de uma decisão ilegal, mas sim de uma decisão justa e equilibrada, que encontra plena sustentação numa interpretação sistemática das normas;
15) Se o nosso sistema jurídico quis que, estando em causa créditos por alimentos apenas deve ser salvaguardada a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, não se aplicando, portanto, nem a regra da impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida do salário, nem a salvaguarda do montante equivalente a um salário mínimo nacional, não se compreenderia que, no caso da declaração de insolvência, este imite não fosse aplicado, colocando-se, assim, o insolvente em posição mais favorecida do que um normal credor, cujos rendimentos podem ser penhorados até ao referido limite;
16) O douto despacho proferido pelo Tribunal a quo é não só justo e equilibrado, como encontra sustentação legal, com base numa interpretação sistemática das normas jurídicas, sendo, ademais, o que melhor serve o superior interesse do BB;
17) Devendo, assim, o douto despacho recorrido ser mantido nos seus precisos termos, por não incorrer em qualquer erro, nem violar qualquer norma jurídica ou princípio do Direito, designadamente não viola os arts. 233, n.ºs 1 e 3, al. d), 239.º, n.ºs 1 e 2 e 242.º do CIRE;

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O recurso foi admitido como de apelação, com efeito suspensivo e subida em separado.

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No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recur-so.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do C. P. Civil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, importa apreciar e decidir:
- Se é de revogar o despacho recorrido o qual considerou que “Tendo em conta a natureza da prestação alimentícia em causa nos autos, não determino a cessação dos descontos ordenados no vencimento do requerido por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência.”

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III. FUNDAMENTAÇÃO

1. OS FACTOS
É o que consta do relatório

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2. OS FACTOS E O DIREITO

2.1. – Saber se é de determinar a cessação dos descontos ordenados no vencimento por referência às prestações alimentícias vencidas antes da declaração de insolvência.
Conhecendo.
Desde logo cabe dizer que na essência do direito a alimentos encontra-se o princípio da dignidade humana expressamente consagrado nos artigos 1º, da Constituição da República Portuguesa e artº 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com vista a assegurar a sobrevivência e condições minimamente dignas, das pessoas unidas por uma especial relação de família.
Os alimentos correspondem à “prestação destinada a satisfazer as necessidades primárias da pessoa que não tem condições para viver e que a lei impõe à pessoa que a deva realizar, por virtude dos laços familiares que as unem”. Vide Pires de Lima e Antunes Varela In Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, nota 2, p. 573.
O Artigo 2008.º do CC estatui a indisponibilidade e impenhorabilidade do direito a alimentos
1. O direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido, bem que estes possam deixar de ser pedidos e possam renunciar-se as prestações vencidas.
2. O crédito de alimentos não é penhorável, e o obrigado não pode livrar-se por meio de compensação, ainda que se trate de prestações já vencidas.

No presente caso estamos a falar de crédito por alimentos devidos a filho menor, porquanto, pese o filho do Recorrente ter 22 anos de idade (data da sentença que declarou os créditos) prossegue o seu percurso formativo na faculdade, dispondo o artigo 1880º do Código Civil “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
O artigo 1905º/2 do Código Civil estabelece que “para efeitos do disposto no artigo 1880º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da exigência.”

Dispõe o artigo 88º, n.º 1, do CIRE, que “a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes”.
Por sua vez o artº 242º, n.º 1, do CIRE estatui que “não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão”.
No caso sub iudicio constata-se que as prestações fixadas são relativas a crédito por alimentos devidas a filho menor existentes antes da declaração de insolvência do Recorrente, o que constitui um crédito sobre os bens da a insolvência, bem diferente do crédito sobre a massa insolvente.
A propósito, atente-se que o Recorrente aquando da declaração de insolvência estava obrigado ao pagamento de prestação e alimentos ao filho menor, valor que não seria susceptível de ser objecto de apreensão/penhora pelo administrador da insolvência (artº 150º do CIRE) por decorrência do artº 2008º, nº 2, do CC, ou seja, caso o recorrente estivesse a pagar a obrigação que sobre o mesmo incidia, o valor correspondente a tal prestação sempre constituiria património do insolvente insusceptível de apreensão/penhora, porquanto, nos termos do artº 736º, nº 1, do CPC, são absolutamente impenhoráveis os bens abrangidos por disposição especial, neste caso artº 2008º, nº 2, do CC.
Com efeito, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária, mas tão só os que forem penhoráveis, e não excluídos por disposição especial em contrário, assim, mesmo que o devedor/recorrente voluntariamente oferecesse tal valor de alimentos que se encontrava obrigado a pagar ao filho, tal acto de entrega voluntária à massa insolvente constituiria um acto inválido, por força do disposto no artº 2008º, nº 2, do CC. e 736º, nº 1, do CPC.
Acresce o disposto no artigo 245º, n.º 1, do CIRE, que “a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217”.
Por sua vez o n.º 2, alínea a), estatui que a exoneração não abrange os créditos por alimentos.
Deste preceito resulta, inequivocamente, que a exoneração não opera relativamente aos créditos tipificados neste artigo 245.º, n.º 2 do CIRE, concretamente os créditos por alimentos, dado que se referem a direitos indisponíveis, justificando-se esta exclusão pelos interesses subjacentes, designadamente pelo princípio da dignidade da pessoa humana, colocando em risco a sobrevivência e crescimento da pessoa alimentada (artigo 245.º, n.º 2, a) do CIRE).
Com efeito, o legislador ao estatuir expressamente que a exoneração não abrange os créditos referidos no artº 245º, nº 2, entre os quais os alimentos, visou excluir os créditos de alimentos da regra de exoneração, mantendo-se a obrigação e a possibilidade de execução dos alimentos vencidos antes da declaração de insolvência e devidos ao filho.
Sobre o montante não penhorável ao Recorrente, há ainda que conjugar as normas acima referidas com o disposto no artº 738º, nº 3 e 4, do CPC:
3 - A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
4 - O disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.
E sobre a pensão social estatui o artigo 18.º, nº 1, da Portaria n.º 372-B/2024/1, de 31 de dezembro (Actualização das pensões do regime não contributivo) que o quantitativo mensal das pensões de velhice do regime não contributivo é fixado em €255,25.
Ou seja, o valor a salvaguardar no crédito por alimentos é o de €255,25.
O valor do rendimento indisponível foi fixado em 1,20 salários mínimos mensais.

Assim, considerando que nos encontramos perante um crédito por alimentos devido a filho menor, o qual se encontrava vencido antes da declaração de insolvência, o qual é insuceptível de penhora e apreensão (artº 2008 do CC e 736º, nº 1, do CPC), tendo sido fixado rendimento indisponível 1,20 salários, sendo o valor a salvaguardar de €255,25, ter-se-á de entender, como bem fez o tribunal recorrido, não assistir razão ao Recorrente, sendo de manter os descontos ordenados, por referência às prestações de alimentos vencidas antes da declaração da insolvência.
Em suma, é de improceder o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

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V. Decisão

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta 3ª Secção, acordam em negar provimento ao recurso.
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Custas pelo apelante artº 527º do CPC.












Porto, 27 de Novembro de 2025

Álvaro Monteiro
Carlos Cunha Carvalho
Paulo Dias da Silva