Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3378/15.8T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI PENHA
Descritores: MÉDICOS
TRABALHO POR TURNOS CONSECUTIVOS
REGIME JURÍDICO DA FUNÇÃO PÚBLICA
CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RP201802053378/15.8T8AVR.P1
Data do Acordão: 02/05/2018
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 269, FLS 193-200)
Área Temática: .
Sumário: I - O regime especial previsto no art. 13º, nº 1, do Dec. Lei nº 62/79 aplica-se apenas aos médicos vinculados ao regime jurídico da função pública e não aos vinculados por contrato individual de trabalho.
II - Não existe lacuna jurídica relativamente a estes, sendo-lhes aplicável o regime resultante do Código do Trabalho ou das convenções colectivas.
III - Tal entendimento não viola o princípio constitucional da igualdade de tratamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3378/15.8T8AVR.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
O B...., com sede na Rua ..., .., Coimbra, com patrocínio judiciário, veio intentar a presente acção declarativa de simples apreciação, com processo comum, contra o C..., EPE , com sede na avenida ..., Aveiro.
Formula os seguintes pedidos:
A) Ser reconhecido, aos médicos e médicas associados do B... Autor, o direito ao descanso compensatório emergente do trabalho noturno prestado nos serviços de urgência hospitalar e nas unidades de cuidados intensivos e intermédios, a que se reporta o nº 4 da cláusula 42ª do ACCE:
- Nos exatos termos e condições definidas na deliberação da Comissão Paritária, de 16 de novembro de 2011, prevista na cláusula 52ª do ACT;
- Tal regime jurídico de descanso compensatório deixou de vigorar no período compreendido entre 1 de janeiro de 2013 e 31 de dezembro de 2014, durante o qual vigorou o regime consagrado no nº 2 do artigo 22º-B do ESNS;
- O regime de descanso compensatório previsto no nº 4 da cláusula 42ª do ACT, com o conteúdo material acima assinalado, recuperou a sua plena vigência a partir de 1 de janeiro de 2015;
- Tal regime abrange, no âmbito dos serviços de urgência hospitalar e nas unidades de cuidados intensivos e intermédios, todo o trabalho médico, normal ou extraordinário, prestado no período compreendido entre as vinte horas de um dia e as oito horas do dia seguinte, desde que o período diário de trabalho seguinte, de acordo com o horário de trabalho do médico hospitalar, tenha lugar nas vinte e quatro horas subsequentes ao termo do período de trabalho noturno prestado;
- O trabalhador médico hospitalar que goze, nos termos acima referidos, o descanso compensatório a que tem direito, não está obrigado a repor, no seu horário semanal de trabalho, as horas de descanso compensatórias gozadas;
- A elaboração, organização e programação do horário individual de cada médico deve ter em conta o direito ao mencionado descanso compensatório;
B) Ser reconhecido, aos médicos e médicas associados do B... Autor, o direito ao descanso compensatório emergente do trabalho prestado, em dias de descanso semanal e em dias feriados, nos serviços de urgência hospitalar e nas unidades de cuidados intensivos e intermédios, a que se reporta o nº 1 do artigo 13º do DL 62/79, nos seguintes termos e condições:
- O referido regime jurídico visa compensar todo o trabalho médico, normal ou extraordinário, diurno ou noturno, qualquer que seja a sua duração, prestado em dias feriados e em dias de descanso semanal, obrigatório ou complementar, independentemente de tais dias de descanso semanal coincidirem ou não, respetivamente, com o domingo e o sábado;
- O direito ao gozo de tal descanso compensatório, tratando-se de trabalho prestado em dias de descanso semanal, pressupõe que, na semana de trabalho em causa, o trabalhador médico já tenha assegurado, previamente, cinco dias de trabalho;
- Mas, tratando-se de trabalho prestado em dia feriado, o direito ao gozo do referido descanso compensatório é independente do número de dias de trabalho prestados, na semana de trabalho em causa, pelo trabalhador médico;
- O gozo do dia de descanso compensatório em causa implica, por natureza, o não cumprimento, na respetiva semana, de um dia de trabalho, pelo que o trabalhador médico apenas está obrigado a prestar, nessa semana, quatro dias de trabalho, em compensação do dia de trabalho a mais que assegurou na semana anterior;
- Este regime jurídico nunca deixou de vigorar, incluindo nos anos de 2013 e de 2014, já que a sua plena aplicação nunca foi prejudicada ou condicionada pela norma constante do nº 2 do artigo 22º-B do ESNS, cujo objeto, diverso, tem a ver com imposição de um intervalo mínimo de descanso garantido, de onze horas, entre jornadas diárias consecutivas de trabalho;
C) Ser o C... condenado a respeitar e a aplicar, na íntegra, aos trabalhadores médicos ao seu serviço, os regimes jurídicos de descanso compensatório médico acima referidos, nos seus exatos termos, e a absterem-se de, por qualquer via, os contrariarem e desrespeitarem.
Alega, em síntese: que a ré não cumpre regimes jurídicos consagrados no artigo 13º, nº 1, do DL 62/79 e na cláusula 42ª, nº 4, do ACT para os médicos com contrato individual de trabalho.
Realizou-se diligência de audiência das partes, saindo frustrada a conciliação.
A ré veio contestar, alegando que cumpre a legislação em vigor, de acordo com as orientações da ACSS.
Foi proferido saneador, que transitou em julgado, e dispensada a realização da audiência prévia e a enunciação dos temas da prova.
Fixou-se à acção o valor de € 30.000,01.
O B... autor apresentou requerimento informando que “relativamente à primeira questão – descanso compensatório por trabalho noturno – já houve acordo entre os sindicatos médicos e o Ministério da Saúde, acordo esse que conduziu à alteração do nº 4 do art. 42º do CCT, publicada no Boletim de Trabalho e Emprego nº 30 de 15/08/16. (…) Face ao exposto, considera-se prejudicada a discussão da primeira questão”.
Foi proferido despacho no qual se decidiu: “declara-se extinta, por inutilidade superveniente, a instância dos presentes autos relativamente ao pedido formulado sob a alínea A) da petição inicial.”
Procedeu-se a julgamento, com gravação da prova pessoal produzida, tendo sido fixada a matéria de facto provada e não provada, conforme consta da acta de julgamento.
Foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré no pedido.
Inconformado interpôs o B... autor o presente recurso de apelação, concluindo:
1. A sentença recorrida julgou improcedente apelação com o fundamento de que o DL nº 62/79 de 30 de Março só é aplicável aos médicos com vínculo laboral público, ficando, assim, automaticamente prejudicada, em sede de Tribunal de Trabalho apreciação das condições em que é concedido o direito ao dia de descanso conferido pelo nº 1 do seu art. 13º;
2. Ao contrário do acórdão recorrido, o nosso entendimento é de que o DL 62/79 se aplica a todo o pessoal hospitalar, e necessariamente aos médicos, independentemente do seu vínculo laboral;
3. São dois os argumentos em que assenta a decisão recorrida:
a) “O DL 62/79 tinha como destinatário o pessoal hospitalar, todo ele, na altura, vinculado à função pública, ao qual se aplicava o regime de trabalho desta, com as especificações aí previstas”; e
b) A transformação do regime jurídico da gestão hospitalar ocorrida a partir da Lei nº 27/2002 de 8/11 e a transformação posterior da natureza jurídica dos hospitais em entidades públicas empresariais, permitiu que a partir desse ano passassem a co-existir, no serviço hospitalar, médicos com vinculo á função pública e outros com contrato individual de trabalho, tendo sido ao longo destes anos distinto o regime jurídico aplicável em função do vínculo laboral.
4. Apesar da veracidade destes argumentos, eles assentam num manifesto equívoco.
5. Um primeiro equívoco reside no facto de sendo diferentes a maioria dos diplomas que regulam o trabalho médico em CIT e em CTFP, tal não significa necessariamente dualidade de regimes, até porque são substancialmente idênticos.
6. O facto de a maioria dos diplomas que regulam trabalho médico serem diferentes em função do vínculo decorre apenas e necessariamente de um aspecto formal, a natureza do vínculo laboral.
7. O DL 62/79 pretende regular apenas situações específicas decorrentes da realidade hospitalar (funcionar 24 horas de segunda-feira a domingo) e, por isso, se refere na redacção do nº 1 do art. 1º: “...com as especificações estabelecidas no presente diploma”;
8. Ou seja, uma coisa é o regime de trabalho que vigorava à época para a função pública aplicável a todo o pessoal hospitalar; outra, bem diferente, um diploma para regulamentar as especificidades, instituído pelo próprio DL 62/79, que nada tinha a ver com o regime laboral então aplicável;
9. O outro equívoco decorre de não se poder analisar da mesma forma um diploma (DL 62/79) que visa regular uma realidade específica hospitalar, que abrange diferentes profissionais hospitalares e o regime jurídico-laboral dos médicos.
10. Tendo havido alterações ao longo do tempo na natureza jurídica dos hospitais, nos dias de hoje o vínculo laboral do pessoal hospitalar tanto pode ser privado como público, mas as especificidades – trabalho noturno, ao domingo, feriado e dias de descanso – continuam a existir tal como sempre existiram;
11. Sendo substancialmente idêntica toda a regulamentação aplicável ao trabalho médico, seja em CIT seja em CTFP, (Ex: Código do Trabalho, acordos colectivos de trabalho, DL nº 266-D/12) não há qualquer justificação objectiva para que a única excepção seja o DL 62/79;
12. Ou o legislador fez uma interpretação da redacção do nº 1 do art. 13º do DL 62/79 em que a regulamentação das especificidades por ele reguladas é autónoma do regime de trabalho dos médicos, e, nesse caso, não há razões para os médicos com CIT ficarem excluídos da aplicação desta norma, assegurando-se também nesta matéria tratamento igual, tal como na restante regulamentação do trabalho médico, entre os médicos com CIT e CTFP; ou
13. Estamos perante uma omissão do legislador que sentindo a necessidade de regulamentar certas especificidades do trabalho hospitalar (trabalho noturno, aos domingos, feriados e dias de descanso semanal) as regulamentou para os médicos com vínculo público, esquecendo-se de o fazer relativamente aos médicos entretanto contratados através de um CIT, sendo certo que estes cumprem trabalho hospitalar nas mesmíssimas circunstâncias específicas daqueles;
14. Na primeira hipótese, está encontrada a resposta, o art. 13º, nº 1 do DL 62/79 aplica-se a todos os médicos independentemente do vínculo laboral;
15. Na segunda hipótese, o princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da Constituição, pode caracterizar-se como proibição de arbítrio, exigindo “positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diferente de situações de facto diferentes” e, por outro lado, como proibição de discriminação, impondo que “as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas”;
16. Estamos perante duas situações materialmente idênticas: prestação de trabalho noturno, ao domingo, feriado e dia de descanso semanal quer por médicos com CTFP quer por médicos com CIT;
17. O facto de não haver nenhuma norma que mande aplicar aos médicos com CIT o art. 13º, nº 1 do DL 62/79, tal não significa necessariamente que esta norma apenas seja aplicável aos médicos com CTFP.
18. Não encontramos fundamento material bastante – um motivo razoável, que surja da própria natureza das coisas ou que, de alguma forma seja concretamente compreensível – que justifique essa diferença de tratamento entre médicos com CIT e CTFP.
19. A não ser aplicado o art. 13º, nº 1 do DL 62/79 aos médicos com CIT, sempre que prestassem trabalho aos domingos, feriados e dias de descanso semanal, estaríamos perante um caso de omissão do legislador.
20. Conforme dispõe o art. 10º do CC, os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos (nº 1); há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (nº 2).
21. O recurso à analogia justifica-se por razões de “coerência normativa” e de “justiça relativa”, sendo imposta pelo princípio da igualdade (“casos semelhantes ou conflitos de interesses semelhantes devem ter um tratamento semelhante”).
22. Tratando-se de uma omissão do legislador, também o art. 13º, nº 1 do DL 62/79 não pode deixar de ser aplicável aos médicos com CIT.
23. Face ao acima exposto, falecem os dois argumentos que sustentam a decisão recorrida no sentido de que o DL 62/79 se aplica apenas aos trabalhadores com vínculo público, entendimento que a ser sufragado constituiria, na prática, até uma clara violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP.
24. A decisão recorrida violou o disposto no nº 1 do art. 13º nº 1 do DL 62/79, o art. 10º do CC e o art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
O réu não alegou.
O Ministério Público teve vista nos autos, pronunciando-se pela improcedência da apelação.
As partes não responderam ao parecer.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A única questão a decidir consiste em saber se o regime do nº 1 do art. 13º nº 1 do Dec. Lei nº 62/79, se aplica ou não aos médicos contratos mediante contrato individual de trabalho.

II. Fundamentação de facto
Na primeira instância foi considerada provada a seguinte factualidade:
1. Ao longo dos anos o art. 13º, nº 1 do D.L. 62/79 de 30.3, tem suscitado interpretações dissonantes, o que impediu a sua aplicação uniforme no âmbito dos vários serviços e estabelecimentos hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o Ministério da Saúde e a Administração Central do Sistema de Saúde têm emitido orientações e instruções sobre a sua aplicação destinadas aos estabelecimentos do SNS.
2. No âmbito da discussão mantida, com os B..., em sede da designada “Comissão Tripartida”, a ACSS enviou em 30.1.2015, aos presidentes dos conselhos diretivos de todas as Administrações Regionais de Saúde (ARS) o ofício circular nº 1068/2015/CD-Vogal RH/ACSS, cuja cópia se mostra inserta a fls. 20, no qual estabeleceu orientações em matéria de descanso compensatório aplicável ao pessoal médico, a partir de 1.1.2015, dando-se aqui por reproduzido o respetivo teor.
3. Em 24.2.2015, a ACSS dirigiu um novo ofício circular às ARS com a referência 2264/2015/URJ/ACSS, cuja cópia se mostra junta a fls. 35v e 36, retificando a alínea b) do nº 2 e acrescentando o nº 3 a esclarecer dúvidas que entretanto tinham sido colocadas por diferentes serviços de saúde.
4. A ACSS enviou ainda às ARS o ofício nº 3840/2015-CD-VogalRH/ACSS, cuja inserto a fls. 21v e 22, complementando o ofício circular nº 1068/2015 de 31.1.
5. O R. rececionou o ofício nº 1068/2015/CD-Vogal RH/ACSS, em 20.2.2015, na pessoa do seu, então, presidente do Conselho de Administração, Dr. José Abrantes Afonso, o qual, por despacho de 23.2.2015, determinou a sua divulgação na intranet do Centro Hospitalar, por forma a que todos os colaboradores tivessem conhecimento do mesmo.
6. O R. autorizou a aplicação do “descanso compensatório” nos termos estabelecidos nos ofícios circulares da ACSS desde o dia 1.1.2015.
7. O serviço de gestão de recursos humanos recebeu ordens para “carregar” os descansos devidos pelo trabalho prestado nos turnos da noite sábado/domingo, domingos e feriados, desde o dia 1.1.2015.
8. Cabe a cada serviço, mais propriamente ao respetivo Diretor de Serviço, a implementação e gestão dos procedimentos para ao cumprimento do disposto nos referidos ofícios/circulares da ACSS.
9. Face à multiplicidade de situações práticas, nomeadamente as diferentes realidades e especificidades dos hospitais e suas áreas de intervenção continuam a verificar-se várias interpretações sobre a aplicação do regime de descanso compensatório do pessoal médico emergente do trabalho prestado em dias de descanso semanal e em dias feriados em serviços de urgência.

III. O Direito
Consta da sentença sob recurso:
Face à natureza da presente ação declarativa de simples apreciação e ao pedido formulado o objeto do processo consiste em definir o sentido e alcance do normativo constante do nº 1 do art. 13º do Decreto Lei nº 62/79 de 30.3, na relação laboral existente entre o R. e os médicos ao seu serviço vinculados por contrato individual de trabalho associados do B... autor, pois da factualidade apurada resulta que a sua interpretação e aplicação não têm sido inequívocas, suscitando dúvidas. E tais dúvidas bastam, à partida, para tornar legítimo o recurso a esta ação, não sendo necessária a verificação de situações de incumprimento por parte do R. que, de facto, o A. não concretizou.
Vejamos, pois, o teor do preceito legal em apreço.
O referido art. 13º, nº 1 do D.L. 62/79 de 30.3, estabelece o seguinte: “A prestação de trabalho em domingos, dias de feriado e descanso semanal dá direito a um dia de descanso dentro dos oito dias seguintes.”
Trata-se de um normativo inserido num diploma que como consta no respetivo preâmbulo visou estabelecer diretrizes claras, gerais e uniformes para o trabalho dos diversos grupos profissionais envolvidos no trabalho dos estabelecimentos hospitalares, atenta a sua especificidade.
Assim, o art. 1º, preceitua:
1. O regime de trabalho do pessoal hospitalar é o que vigora para a função pública, com as especificações estabelecidas no presente diploma.
2. Às modalidades específicas de regime de trabalho do pessoal hospitalar estabelecidas nas disposições deste diploma são atribuídas as remunerações nelas fixadas e constantes da tabela anexa.
E nos seus demais artigos regula diversos aspetos relativos à duração, organização e remuneração do trabalho prestado nos estabelecimentos hospitalares, nomeadamente o funcionamento dos serviços de urgência e o regime de trabalho do pessoal médico e de enfermagem nesses serviços.
À data da sua entrada em vigor todo o pessoal hospital estava integrado na função pública, por isso, estava sujeito ao respetivo regime, tendo as normas deste diploma carácter especial em relação a tal regime.
Sucede que, foram inúmeras desde 1979 as alterações legislativas no domínio da administração hospitalar.
Como é sabido, não existe hoje um regime jurídico único para a prestação do trabalho médico nos hospitais que integram o sistema nacional de saúde.
Destarte, a primeira questão que se coloca é a de saber se a norma em apreço é aplicável às relações de trabalho dos médicos vinculados por contrato individual de trabalho ao Centro Hospitalar aqui demandado.
E, resolvida positivamente esta questão, apreciaremos se tal norma deve ser interpretada e aplicada anos termos indicados pelo B... A.
Na verdade, o regime jurídico da gestão hospital criado pela Lei 27/2002 de 8.11 veio possibilitar a gestão em moldes empresariais de hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde. Passaram a coexistir, a par dos estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira, com ou sem autonomia patrimonial (hospitais do sector público administrativo) estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e patrimonial e natureza empresarial (Hospitais EPE) e Sociedades Anónimas de Capitais Exclusivamente Públicos (Hospitais, S.A) – cfr. art. 2º.
O R. anteriormente designado Hospital D... – Aveiro foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos através do Decreto-Lei (DL) nº 272/2002, de 09.12, passando a designar-se Hospital D..., S.A..
Posteriormente, por força do DL nº 93/2005, de 07.06, foi transformado em entidade pública empresarial, passando a denominar-se, com a entrada em vigor dos respetivos Estatutos (anexos ao DL nº 233/2005, de 29.12), Hospital D..., E.P.E..
Com o DL nº 30/2011, de 02.03, veio a fundir-se com o Hospital E... e com o Hospital F..., dando origem ao aqui R., C..., E.P.E..
E pelo D.L. 18/2017 de 10.2 que estabelece o regime jurídico e os estatutos aplicáveis às unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde foi integrado nas entidades públicas empresariais, constando no mapa I, anexo ao diploma.
Assim, desde 2002 passaram a existir ao serviço do R. médicos com vínculo à função pública, e outros – como é o caso dos representados pelo aqui A. – com contratos individuais de trabalho.
E é distinto o regime jurídico aplicável ao longo dos anos aos médicos com vínculo à função pública e aos vinculados por contrato individual de trabalho.
Na verdade, quanto a estes últimos, dispunha o art. 14º do DL nº 272/2002, de 09.12, sob a epígrafe “Recursos humanos”, que “1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 15.º e seguintes, os trabalhadores do Hospital estão sujeitos às normas do regime jurídico do contrato individual de trabalho. 2. O Hospital pode celebrar convenções colectivas de trabalho, nos termos da lei geral. 3. As habilitações e qualificações para admissão no Hospital correspondem às do Serviço Nacional de Saúde.”. Acrescentando o art. 22º nº 1 dos Estatutos, publicados em Anexo ao citado diploma, que “Incumbe ao Conselho de Administração definir a política de pessoal, após audição dos representantes ou estruturas representativas dos profissionais do Hospital, com respeito pelo disposto na lei geral sobre negociação colectiva.
No que respeita aos trabalhadores com uma relação de emprego público, dispunha o art. 15º do DL n.º 272/2002, de 09.12, sob a epígrafe “Regime laboral público e transição”, com relevo para o caso, que “1 - O pessoal com relação jurídica de emprego público que se encontre a exercer funções no Hospital D... transita para o Hospital, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico, sem prejuízo do disposto nos números seguintes. 2. O pessoal a que se refere o número anterior pode optar pelo regime de contrato individual de trabalho, no prazo de um ano a contar da data da entrada em vigor do presente diploma, implicando a celebração do contrato de trabalho a exoneração do lugar de origem e a cessação do vínculo à função pública. (…) 4. Os funcionários que não optem pela aplicação do regime do contrato individual de trabalho mantêm-se integrados nos lugares do quadro de pessoal existente à data da entrada em vigor do presente diploma, vigorando o referido quadro exclusivamente para esse efeito, incluindo a promoção e a progressão nas respectivas carreiras, através de concursos limitados aos funcionários do Hospital.
Mais tarde, na passagem do Hospital de sociedade anónima, para entidade pública empresarial, o art. 4º nº 2 do DL nº 93/2005, de 07/06 estabeleceu, em traços gerais, que: “O pessoal em exercício de funções nas sociedades anónimas transformadas em entidades públicas empresariais mantém o respectivo estatuto jurídico.”.
Princípio esse reiterado no art. 15º nº 1 do DL nº 233/2005, de 29.12, que sob a epígrafe “Regime transitório do pessoal com relação jurídica de emprego público”, estabeleceu que “O pessoal com relação jurídica de emprego público que, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, esteja provido em lugares dos quadros das unidades de saúde abrangidas pelo artigo 1º, bem como o respectivo pessoal com contrato administrativo de provimento, transita para os hospitais E.P.E. que lhes sucedem, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico (…)”.
E no seu art. 14º nº 1, dispunha que: “Os trabalhadores dos hospitais EPE estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos. (…)”.
O D.L. 233/2005 foi revogado pelo D.L. 18/2017 de 10.2, mas este novo diploma manteve a dualidade de regimes laborais. O art. 27º, nº1 reproduz o teor do anterior art. 14º, nº 1 e o art. 29º, nº 1 continua a prever o regime transitório dos trabalhadores com vínculo de emprego público, estabelecendo que tais trabalhadores mantêm integralmente o seu estatuto jurídico, sem prejuízo do disposto na Lei 35/2014, possibilitando-lhes no art. 30º a opção definitiva pelo regime do contrato de trabalho mediante acordo escrito com o concelho de administração.
Por outro lado, o D.L. 176/2009 de 4.8, que veio estabelecer o regime da carreira dos médicos nas entidades públicas empresariais e nas parcerias em saúde, bem como os respetivos requisitos de habilitação profissional e percurso de progressão profissional e de diferenciação técnico-científica, no seu art. 2º, nº 1 , determina: “que se aplica aos médicos em regime de contrato individual de trabalho, nos termos do Código do Trabalho, nas entidades públicas empresariais e nas parcerias em saúde, em regime de gestão e financiamento privados, integrados no Serviço Nacional de Saúde, nos termos dos diplomas legais que definem o regime jurídico dos trabalhadores dessas entidades, sem prejuízo da manutenção do mesmo regime laboral e do disposto em instrumento de regulamentação coletiva do trabalho”.
Com esta breve análise dos sucessivos diplomas legais nesta matéria, concluímos que a relação laboral entre o R. e os trabalhadores médicos vinculados por contrato individual de contrato é atualmente regulada pelo estipulado no contrato, no Código do Trabalho, no D.L. 176/2009 de 4.8, que estabeleceu o regime da carreira dos médicos nas entidades públicas empresariais e no disposto nos instrumentos de regulamentação coletiva que, entretanto, foram outorgados designadamente o Acordo Coletivo de Trabalho, publicado no BTE nº 41 de 8.11.2019, que foi objeto de alterações publicadas no BTE nº 1 de 8.1.213 (cujo anexo relativo às posições remuneratórias foi retificado no BTE nº 23 de 22.62013) no BTE nº 43 de 23.11.2015, que contém o texto consolidado, e no BTE nº 30 de 15.8.2016, que alterou o nº 4 da cláusula 42ª relativa ao trabalho noturno.
Assim, aos trabalhadores médicos vinculados por contrato individual de trabalho não se aplicam os normativos que regem a relação de emprego público.
Ora, o DL nº 62/79 de 30.3, tinha como destinatário o pessoal hospitalar, todo ele, na altura, vinculado à função pública, ao qual se aplicava o regime de trabalho desta, com as especificações aí previstas.
Face à dualidade de regimes entretanto instituídos, este diploma legal continua a aplicar-se aos trabalhadores médicos com contrato de trabalho em funções públicas que mantiveram o respetivo estatuto. Mas, aplicar-se-á diretamente aos trabalhadores médicos ao serviço de Centros Hospitalares, EPE, vinculados por contrato individual de trabalho?
Salvo o devido respeito por diferente entendimento, cremos que não. Como vimos, o regime laboral destes é o que resulta dos normativos que acabamos de enunciar e não podemos ignorar a dualidade de regimes criados pelo legislador.
Por outro lado, os outorgantes do referido ACT, onde estão representados os aqui A. e R., com texto consolidado publicado no BTE nº 43 de 22.11.2015, que certamente conheciam o teor do D.L. 62/79 de 30.3, quando negociaram o ACT regularam neste, nomeadamente no Capítulo V, a generalidade das matérias que eram disciplinadas naquele diploma legal, para o qual apenas remeteram, através da cláusula 47ª, a definição dos suplementos remuneratórios devidos pela prestação de trabalho nas modalidades aí mencionadas, pois é este D.L. a legislação especial aí mencionada.
Destarte, regulando o ACT a generalidade das matérias que eram disciplinadas no D.L. 62/79 e verificando-se que, apesar de não estabelecer qualquer norma sobre descanso pelo trabalho prestado em domingos, dias feriados e dias de descanso semanal, remete na cláusula 32ª a matéria dos regimes de descanso compensatórios para acordo de empresa a celebrar no âmbito de cada entidade pública empresarial, em nosso modesto ver, cremos que o referido D.L. 62/79 apenas se aplica aos médicos ao serviço dos estabelecimentos hospitalares, EPE, vinculados por contrato individual de trabalho, mercê da cláusula 47ª, na parte relativa à fixação dos suplementos remuneratórios constantes na tabela anexa que têm sido sujeita a várias alterações, designadamente através dos arts. 74º, nº 1 da Lei 66-B/2012, de 31.12 (LOE/2013) e 72º, nº 2 da Lei 83-C/2013 de 31.12 (LOE/2014), nos quais se refere que tais alterações se aplicam a todos os profissionais de saúde no âmbito do SNS independentemente da natureza da relação jurídica de emprego.
Por tudo o exposto, inexistindo qualquer normativo que determine a aplicação do conjunto das normas do D.L. 62/79 aos trabalhadores médicos vinculados por contrato individual de trabalho, temos que o preceito legal aqui em apreço, o art. 13º, nº 1 não é aplicável a tais trabalhadores que são os representados pelo A. na presente ação e aos quais se reporta o pedido formulado, ficando assim prejudicada a apreciação da 2ª questão enunciada que no essencial se traduzia em saber se o dia de descanso concedido pelo art. 13º, nº 1 devia ser gozado com ou sem prejuízo do cumprimento do período normal de trabalho.
Neste sentido decidiu a Relação de Coimbra em acórdão proferido no processo nº 3342/15.7T8LRA.C1, datado 2.6.2017, no qual era formulado o mesmo pedido contra o Centro Hospitalar ....
É certo que a inaplicabilidade do normativo em apreço à relação laboral dos médicos vinculados por contrato individual de trabalho, enquanto a questão não for regulada na contratação coletiva, como o foi a do descanso pelo trabalho noturno também previsto no nº 2 do art. 13º do D.L. 62/79, pode na prática conduzir a procedimentos distintos relativamente a trabalhadores médicos que exercem funções idênticas no mesmo estabelecimento hospitalar, que podem contender com o princípio da igualdade. E, talvez por isso, a ACSS emita orientações genéricas sobre a questão independentemente da natureza do vínculo contratual dos médicos, orientações essas que o aqui R. tem cumprido, não tendo levantado sequer a questão da inaplicabilidade da norma.
No entanto, nesta ação de simples apreciação, não se apreciam situações concretas de cumprimento/incumprimento e suas implicações que, aliás, não foram alegadas, e o tribunal não podia deixar de conhecer da questão prévia da aplicabilidade da norma invocada às relações laborais em causa, ignorando a dualidade de regimes legais instituídos pelo legislador.
Como assim, concluindo-se pela inaplicabilidade da norma invocada às relações laborais do R. com os médicos vinculados por contrato individual de trabalho aos quais se reporta o pedido formulado, a pretensão do A. mostra-se prejudicada, impondo-se a improcedência da ação.
Insurge-se o recorrente, alegando:
2.2. O primeiro dos argumentos em que se sustenta a decisão recorrida reside no facto de o DL 62/79 ter como destinatário o pessoal hospitalar, todo ele, na altura, vinculado à função pública, ao qual se aplicava o regime de trabalho desta, com as especificações aí previstas.
Tendo este decreto-lei entrado em vigor numa altura (1979) em que todo o pessoal hospitalar, incluindo médicos, eram funcionários públicos, será que hoje, em que a natureza do vínculo laboral tanto pode ser pública como privada, o mesmo não se aplica também ao pessoal hospitalar com CIT?
Ao contrário da decisão recorrida, o nosso entendimento é de que o DL 62/79 se aplica a todo o pessoal hospitalar, e necessariamente aos médicos, independentemente do seu vínculo laboral, pelo que de seguida iremos elencar as razões da nossa discordância para com aquela.
2.2.1. A nossa primeira discordância decorre da leitura diferente que fazemos da redacção do nº 1 do art. 1º do DL 62/79.
Este decreto pretende regular apenas situações específicas decorrentes da realidade hospitalar (funcionar 24 horas de segunda-feira a domingo) e, por isso, se refere na redacção do nº 1 do art. 1º: “...com as especificações estabelecidas no presente diploma”. (Sublinhado nosso)
Ou seja, uma coisa é o regime de trabalho que vigorava à época para a função pública aplicável a todo o pessoal hospitalar; outra, bem diferente, um regime próprio para as especificidades, instituído pelo próprio DL 62/79, que nada tinha a ver com o regime laboral dos funcionário hospitalares então aplicável.
Hoje a realidade é diferente, o vínculo laboral do pessoal hospitalar tanto pode ser privado como público, mas as especificidades – trabalho noturno, ao domingo, feriado e dias de descanso semanal – continuam a existir tal como então existiam.
Se a própria redacção do nº 1 do art. 1 do DL. 62/79 trata de forma autónoma o regime de trabalho do pessoal hospitalar e a regulamentação das especificidades próprias deste, não nos parece legítimo, ao contrário do que se fez na decisão recorrida, misturar tudo no mesmo saco, como se estas (especificidades) estivessem indelevelmente ligadas ao vínculo público e ao seu regime de trabalho.
Ora, a realidade de hoje, em que as mesmas especificidades co-existem com pessoal hospitalar de diferentes vínculos laborais, evidencia que não se pode misturar o diploma das especificidades com o regime de trabalho, seja público ou não.
2.2.2. Mas há ainda uma outra discordância. Vejamos
(...) o regime de trabalho é igual, sejam médicos com vínculo público ou com contrato individual de trabalho, a saber:
a) As regras mais gerais do Código do Trabalho aplicáveis aos médicos com CIT são igualmente aplicáveis aos médicos com CTFP;
b) As regras mais específicas do trabalho médico são reguladas de forma igual nos acordos colectivos dos médicos com CIT e dos com vínculo público;
c) O DL 266-D/2012 aplica-se indiferentemente quer aos trabalhadores com vínculo público quer com CIT;
Não considerando o DL 62/79, toda a outra regulamentação do trabalho médico é idêntica, independentemente do vínculo laboral, sendo que, por força do disposto na cláusula 47ª do ACT até a remuneração constante da tabela do anexo deste decreto se aplica a todos os médicos independentemente do vínculo.
Será que o legislador quis discriminar negativamente os médicos com CIT relativamente aos com CTFP apenas na situação concreta regulada pelo art. 13º, nº 1 do DL 62/79? Não há razões nem objectivas nem subjectivas para pensar que o legislador quis fazer essa discriminação, antes pelo contrário.
Como erradamente se faz na decisão recorrida, não se pode confundir diplomas diferentes com regimes laborais diferentes.
Não assiste razão ao recorrente, subscrevendo-se integralmente a sentença recorrida.
Não está em causa que o Dec. Lei nº 62/79, aquando da sua promulgação, pretendeu regular as situações específicas decorrentes da realidade hospitalar (funcionar 24 horas de segunda-feira a domingo), como afirma o recorrente.
A questão está em saber se este regime especial tem que ser aplicado aos médicos vinculados à recorrida mediante contrato individual de trabalho. Efectivamente, a situação do trabalho por turnos consecutivos encontra-se regulada na legislação laboral, nomeadamente no art. 221º, nº 5, do Código do Trabalho, além das disposições provenientes da contratação colectiva.
Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Junho de 2017, processo 3342/15.7T8LRA.C1, aparentemente não publicado e citado na decisão recorrida, “o Decreto-Lei nº 62/79, de 30 de Março, foi criado e existe para regular relações jurídicas de trabalho na esfera do direito público.
“É, aliás, o seu artigo 1º/1 que o determina: “O regime de trabalho do pessoal hospitalar é o que vigora para a função pública, com as especificações estabelecidas no presente diploma.”
“Estamos, portanto, salvo melhor opinião, perante diploma que regula em especial, e dentro do universo das relações de emprego público, relações específicas do pessoal hospitalar, com vínculo de emprego público, que continuam a subsistir mesmo depois das transformações jurídicas operadas pelos diplomas atrás citados.
“Acresce que, como também alega o recorrido, vieram os artigos 74º/1 da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (LOE/2013) e 72º/2 da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro (LOE/2014) alterar a tabela anexa ao Decreto-Lei nº 62/79, que fixa as remunerações do trabalho diurno, nocturno, prestado em dias úteis e aos sábados depois das 13 horas, domingos, feriados e dias de descanso semanal, estendendo-a, com necessidade de referência expressa, a todos os profissionais de saúde no âmbito do SNS. “…independentemente da natureza jurídica da relação de emprego.”
“Ora se o DL 62/79 fosse aplicável aos trabalhadores vinculados através de contrato individual não havia necessidade da lei fazer referência a natureza jurídica da relação de emprego.
“Não há, ou pelo menos ninguém referiu, existir qualquer norma que estenda outras disposições do Decreto-Lei nº 62/79, nomeadamente a do seu artigo 13º, à aplicação aos trabalhadores em contrato individual de trabalho.
“Por isso, perfilhamos o entendimento do recorrido no sentido de que o âmbito do DL 62/79 se cinge aos trabalhadores vinculados através de uma relação de emprego público, não se estendendo aos trabalhadores vinculados por contrato individual de trabalho.”
Mais refere a ilustre Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal no seu parecer: “Acrescentaríamos que tal dualidade de regimes é também mencionada no Parecer da PGR nº 12/2015, publicado no DR nº 95/2017, Série II, de 17/05/2017, onde se escreve: ‘11.3.2 A LGTFP aplica-se aos trabalhadores em funções públicas nos serviços de saúde, incluindo os profissionais médicos, sem prejuízo da subsistência de regimes especiais aplicáveis apenas a esses trabalhadores, como é o caso do Decreto-Lei nº 62/79, de 30 de março que estabeleceu um regime especial de duração e organização do trabalho para o pessoal hospitalar que, como se destacou na 1ª conclusão do parecer nº 33/2015 (ainda não publicado), se apresenta em correspondência com as especificidades da prestação de cuidados de saúde hospitalares, nomeadamente a continuidade ininterrupta a atender e tratar doentes internados ou em ambulatório e, ao mesmo tempo, assegurar serviços de urgência, de cuidados intensivos ou intermédios, a reclamarem, por sistema, a prestação de trabalho nocturno, de trabalho extraordinário e de trabalho (normal ou extraordinário) nos feriados e em dias de descanso semanal (obrigatório ou complementar).”
Importa ainda referir o seguinte: o que resulta da análise das sucessivas alterações legislativas enunciadas na sentença sob recurso é que o legislador privilegia hoje o regime jurídico privado nos hospitais públicos, apenas mantendo os médicos que já tinham vínculo público nesse regime jurídico, por não poder alterar o mesmo.
Daí que se possibilite, senão mesmo se incentive, os médicos com vínculo público a passarem para o regime de contrato individual de trabalho. Ou seja, o que o legislador parece pretender é que o diploma em causa deixe de ter aplicação, por deixar de haver médicos com vínculo público nos hospitais, e não a sua perpetuação por aplicação aos médicos com contrato individual de trabalho.
Assim, improcede este argumento do recorrente.
Alega ainda o recorrente:
É inimaginável e inaceitável uma situação em que todas as semanas os médicos com CIT tem de trabalhar nessas situações específicas e que este seu trabalho não fosse objecto de regulamentação própria, tal como o foi já no ido ano de 1979 para todo o pessoal hospitalar.
Não encontramos fundamento material bastante - um motivo razoável, que surja da própria natureza das coisas ou que, de alguma forma seja concretamente compreensível – que justifique essa diferença de tratamento entre médicos com CIT e CTFP que, assim, assume um carácter arbitrário.
A não ser aplicado o art. 13º, nº 1 aos médicos com CIT, então estamos perante um caso omisso.
Conforme dispõe o art. 10º do CC, os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos (n.º 1); há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (nº 2).
O recurso à analogia justifica-se por razões de “coerência normativa” e de “justiça relativa”, sendo imposta pelo princípio da igualdade (“casos semelhantes ou conflitos de interesses semelhantes devem ter um tratamento semelhante”).
Face ao exposto, a ser um caso de omissão do legislador, também o art. 13º, nº 1 do DL 62/79 não pode deixar de ser aplicável aos médicos com CIT.
Sem razão, mais uma vez.
Conforme refere a ilustre Procuradora Geral Adjunta, “não há lugar, segundo cremos, à invocação do suprimento da omissão legislativa através do recurso à analogia, nem pode falar-se de violação do princípio da igualdade, uma vez que os IRC os próprios contratos individuais de trabalho são susceptíveis de colmatar eventual lacuna legislativa no que se refere descanso compensatório por trabalho aos domingos, feriados dias de descanso semanal e, por outro lado, tal suprimento pode até concretizar-se numa discriminação positiva, relativamente aos médicos sujeitos ao regime da função pública.”
A existência de uma lacuna de lei pressupõe que haja falta de previsão e, consequentemente, de regulação de um caso concreto que deva ser juridicamente regulado. Ora, como já se referiu, não estamos perante nenhum caso omisso, uma vez que a situação se encontra devidamente regulamentada na lei geral, nomeadamente no art. 221º, nº 5, do Código do Trabalho.
Não faz, pois, sentido, invocar o argumento da omissão de regulamentação, pretendendo a aplicação de um regime especial, quando existe regime geral que cobre a situação.
Mais lega a recorrente:
O princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da Constituição, pode caracterizar-se como proibição de arbítrio, exigindo “positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diferente de situações de facto diferentes” e, por outro lado, como proibição de discriminação, impondo que “as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas”.
Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente que o princípio da igualdade “obriga a que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante”.
Estamos perante duas situações materialmente idênticas: prestação de trabalho noturno, ao domingo, feriado e dia de descanso semanal prestado quer por médicos com CTFP quer por médicos com CIT.
Consta da sentença, a este propósito: “nesta ação de simples apreciação, não se apreciam situações concretas de cumprimento/incumprimento e suas implicações que, aliás, não foram alegadas, e o tribunal não podia deixar de conhecer da questão prévia da aplicabilidade da norma invocada às relações laborais em causa, ignorando a dualidade de regimes legais instituídos pelo legislador.”
Nos termos do art. 13º, nº 1, da Constituição, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Porém, como já se deixou expresso, não se verifica violação do princípio da igualdade, porquanto estamos perante situações essencialmente diferentes.
O princípio da igualdade analisa-se numa proibição do arbítrio e da discriminação e numa obrigação de diferenciação, pois a proibição de discriminação não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento, pois o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, págs. 127-128).
No caso vertente, o recorrente não logrou demonstrar que a não aplicação do regime especial referido implicasse um tratamento discriminatório ou “desigual”, em violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
Efectivamente, estando os trabalhadores médicos da recorrida sujeitos a regimes jurídicos diferentes, não se pode falar em discriminação ou arbítrio uma vez que o regime teria que ser analisado na sua globalidade e não em face de um aspecto particular da sua regulamentação.
Assim, não se apresenta inconstitucional o entendimento perfilhado na sentença sob recurso, pelo que improcede a apelação.

IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

Porto, 5-2-2018
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes – (com a seguinte declaração de voto:
Acompanhando o entendimento e sentido decisório do acórdão, devo porém esclarecer que, na apelação 3021/17.0T8PRT.P1, em que fui relator, se fez constar, mas salvaguardando expressamente que não se falava ali “dos casos de gozo após trabalho prestado em dia feriado, de descanso semanal ou domingo”, a referência ao disposto no n.º 1 do artigo 13.º do DL n.º 62/79, de 6 de Março, mais se escrevendo, quanto a esses dias, que a aí Autora estivesse autorizada a não comparecer ao serviço. Ou seja, nesse, não estava propriamente em apreciação a aplicabilidade ou não do regime estabelecido no referido diploma).