Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3888/16.0T8VFR.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP202402223888/16.0T8VFR.P3
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O processo de prestação de contas divide-se em duas fases, uma inicial, de apuramento da obrigação de prestar contas e em que medida, e em caso afirmativo, uma segunda, onde são indicadas as receitas e despesas e se procede ao encontro de contas - tudo, tendo em conta o objecto balizado na primeira fase do processo.
II - A determinação do âmbito do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo, como aliás decorre do artigo 621º, 1ª parte do Código de Processo Civil.
III - O caso julgado da decisão possui um valor anunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.
IV - No caso vertente, a fase executiva do processo de prestação de contas, que se iniciou após a prolação do acórdão da Relação do Porto, datado de 05 de novembro de 2020, tem apenas como conteúdo a prestação de contas tal como aí definido, relativamente à venda do bem imóvel identificado no ponto 3 que faz parte do acervo hereditário e nada mais.
V - Nesta fase, os únicos pontos que seriam de acrescentar à matéria fáctica seriam se as despesas e valores apresentados se considerariam provados ou não provados em face da prova produzida.
VI - Ou seja, não há nesta fase uma nova definição da obrigação de prestar contas e seu conteúdo, há sim, uma fase executiva de deve e haver referente ao já definido, ou seja, referente à venda do bem imóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2023:3888/16.0T8VFR.P3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA e mulher BB, residentes na Estrada ..., ..., ..., Brasil, CC e marido DD, residentes na Rua ..., ..., Rio de Janeiro, Brasil, EE e marido FF, residentes na Rua ..., ..., Rio de Janeiro, Brasil e GG e marido HH, residentes na Rua ..., ..., Rio de Janeiro, Brasil, instauraram acção de prestação de contas contra II, residente na Rua ..., ... ..., onde concluíram pedindo que o réu preste contas do mandato sem representação que lhe foi conferido pelos autores, desde 04.08.2014 até 23.05.2016 e, consequentemente, que seja condenado no pagamento do saldo que delas se vier a apurar.
Alegaram, em síntese, que JJ faleceu a 10 de Junho de 2014, no estado de viúvo de KK, sem descendentes e ascendentes vivos, tendo deixado testamento público, outorgado no dia 4 de março de 2004, lavrado a folhas ..., do Livro ......, do 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, no qual instituiu universais herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais, os aqui Requerentes.
Mais alegaram, que fazia parte do acervo de bens a partilhar por óbito de JJ o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ....
Alegaram, ainda, que, por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas do
Rio de Janeiro, Brasil, de fls. ... do Livro ... e datada de 4 de agosto de 2014, os herdeiros do falecido e respectivos cônjuges, constituíram o Requerido procurador, conferindo-lhe os poderes especiais para vender os bens da herança de JJ, podendo receber os valores, representá-los junto ao Banco 1..., bem como para efeitos de participação do Imposto de Selo, nomeando-o representante fiscal em Portugal.
Alegaram, por fim, que no exercício do mandato, o réu vendeu o prédio urbano inscrito atrás identificado, não prestando contas aos autores quanto à venda do bem imóvel, nem quanto ao montante depositado no Banco 1..., S.A.
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Citado, o réu contestou a obrigação de prestar contas.
Alegou, desde logo, que extrajudicialmente prestou contas à Drª LL, advogada mandatária dos autores, mediante o documento designado “relatório de contas”, comunicando-lhe o crédito que tinha sobre a herança representada pelos autores e sobre os mesmos.
Sem prescindir, prestou contas, neste articulado, alegando que o preço da venda do bem imóvel ascendeu a € 47.555,63, suportou despesas que totalizam € 18.449,02, tendo um saldo a seu favor no valor de € 37.200,00.
Acrescentou que, relativamente à conta no Banco 1..., S.A. não pode prestar contas, porquanto nunca administrou a referida conta em nome do falecido.
Formulou, ainda, pedido reconvencional onde concluiu pedindo que seja dada como provada a quantia de € 37.200,00 a título de compensação pelos cuidados prestados ao autor da herança, aqui representada pelos autores, a título de custo e tempo gasto na execução do mandato ou, assim não se entendendo, que o mesmo crédito seja reconhecido a título de enriquecimento sem causa, compensando-se no crédito do réu.
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Notificados, os autores contestaram as contas apresentadas, não aceitando nem o valor, nem a receita apresentada.
Vieram, ainda, pugnar pela inadmissibilidade da reconvenção.
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A reconvenção foi admitida por despacho de fls. 82 e seguintes.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a existência da obrigação do requerido de prestar contas desde 04.08.2014 até 23.05.2016, determinando a sua notificação para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada em 11, 12 e 13.
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Não se conformando com a sentença proferida, os recorrentes/AA. vieram interpor recurso de apelação.
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Por acórdão deste Tribunal da Relação de 07 de novembro de 2019 foi acordado a devolução dos autos ao Tribunal recorrido para fundamentar a decisão da matéria de facto no que respeita aos pontos 3 e 13, de acordo com o que ficou exposto na fundamentação do acórdão.
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Por despacho de 02 de dezembro de 2019, o Tribunal a quo fundamentou a decisão da matéria de facto quanto aos pontos 3º e 13º da sentença.
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Por novo acórdão deste Tribunal da Relação datado de 05 de novembro de 2020 foi julgada a apelação parcialmente procedente, revogando-se o despacho de fls. 82 e seguintes e revogando-se, em parte, a sentença recorrida, nos seguintes termos:
A) Não se admite a reconvenção deduzida pelo réu, sem prejuízo de serem atendidas na prestação de contas as despesas efectuadas pelo réu e referidas nos pontos 9. e 10. da factualidade provada;
B) Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, julga-se a existência da obrigação do requerido de prestar contas desde 04.08.14 até 23.05.16, determinando a sua notificação para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada até ao ponto 10, inclusive.
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Por despacho de 21 de abril de 2021, em obediência ao decidido por este Tribunal da Relação, foi notificado o requerido para, no prazo de 20 dias, prestar contas desde 04/08/2014 até 23/05/2016 em forma de conta-corrente, especificando a proveniência das receitas e despesas, bem como o respectivo saldo, se o houver, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os requerentes apresentem, levando em conta a factualidade provada até ao ponto 10, inclusive.
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Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e em consequência aprovou as contas prestadas pelo Réu, com o saldo líquido positivo no montante de € 35.514,77 a favor dos Autores, a ser pago pelo Réu, devendo ainda este repor à herança a quantia, não justificada, de € 37.500,00 - ponto 10º dos factos provados -, absolvendo o Réu do demais peticionado pelos Autores.
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Não se conformando com a sentença proferida, os recorrentes AA. vieram interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluem da seguinte forma:

“I. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância com a ref.ª 127177139, e versa sobre matéria de facto e de direito, bem como, sobre a reapreciação da provada gravada em audiência de discussão e julgamento.

II. Em suma o Tribunal a quo julgou parcialmente provada a ação de prestação de contas aprovando as contas apresentadas pelo Réu com saldo positivo de 35.514,77€ a favor dos Autores a ser pago pelo Réu, bem como condenando o Réu a repor à herança o valor de 37.500,00€ cfr. Ponto 10 dos factos provados.

III. Considera o Recorrente desde logo que a pronúncia do Tribunal a quo que encerra o ponto 10) dos factos provados consubstancia uma ofensa do caso julgado, bem como um excesso de pronúncia, conhecendo de questão que não podia nestes autos conhecer.

IV. Isto porque, o processo de prestação de contas divide-se em duas fases, a primeira de apuramento da obrigação de prestar contas e em que medida, e uma segunda fase de indicação das receitas e despesas num encontro de contas entre deve e haver.

V. O Recorrente na primeira fase destes autos contestou a sua obrigação de prestar contas considerando já as haver prestado extrajudicialmente, e ainda, caso assim não se entendesse, apenas deveria prestar contas relativamente ao produto da venda do imóvel pertencente ao acervo da herança, e já não relativamente às contas bancárias.

VI. Os Autores consideravam por outro lado, que tendo em conta o imposto de selo onde constavam contas bancárias em nome do falecido tal obrigação deveria recair também sobre as mesmas.

VII. Foi produzida prova sobre tais factos nesta primeira fase, e foi proferida sentença pelo Tribunal a quo que decidiu julgar a existência de prestar contas por parte do Réu mas apenas relativamente ao produto da venda do imóvel, considerando os pontos 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9) e 13) que aqui importam.

VIII. Não se conformando com tal decisão, os Autores recorreram para o doutro Tribunal da Relação do Porto invocando entre outros fundamentos que deveria ser acrescentado ao ponto 3 dos factos provados como fazendo parte do acervo hereditário as contas bancárias identificadas no imposto de selo do Serviço de Finanças, e o ponto 13) dos factos provados deveria ser dado como não provado.

IX. O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão a 05.11.2020 transitado em julgado a 10/12/2020, considerando que não havia nos autos prova suficiente da existência de contas bancárias nos autos razão pela qual não havia nada a acrescentar ao ponto 3 dos factos provados mantendo-se a sua redação, considerando por outro lado, que não havia prova da suficiente também da sua inexistência razão pela qual o ponto 13 deveria ser dado como não provado.

X. Mais considerando que esta alteração não tinha relevância para a decisão do recurso já que “quanto ao conteúdo da obrigação de o réu prestar contas, ficou a mesma definida na presente fase declarativa do processo, com cumprimento integral da tramitação prevista no artigo 942º, na qual os autores tiveram intervenção, tendo tido a oportunidade de provar que, à data do óbito, o JJ possuía contas bancárias.” – SIC Acórdão.

XI. Contudo, com o início da segunda fase do processo de prestação de contas Autores e este Tribunal a quo que agora se recorre incorreram num equivoco e errada interpretação de direito, considerando que porque o Tribunal da Relação do Porto deu como não provado o ponto 13, poderiam os Autores nesta segunda fase voltar a requerer prova sobre a existência ou não de contas bancárias e solicitar prestação de contas sobre a mesma.

XII. Ora, entende o Recorrente, salvo devido respeito por entendimento contrário, é que o Tribunal da Relação do Porto considerou não haver prova suficiente que permitisse concluir pela existência de contas bancárias, nem que permitisse concluir pela sua inexistência, sendo certo que a prova competia aos Autores - provar a sua existência para que numa segunda fase se prestasse contas sobre as mesmas.

XIII. Daqui resulta que não assistia aos Autores o direito de nesta fase, chamada de executiva, discutir sobre a existência ou não de contas bancárias, nem de requerer prova sobre as mesmas conforme o fizeram.

XIV. As diligências probatórias requeridas pelos Autores nesta segunda fase podiam e deviam ter sido requeridas na primeira fase do processo destinada a conformar a existência ou não da obrigação de prestar contas e o conteúdo dessa obrigação.

XV. Não o tendo feito, e tinham os Autores à sua disposição todos os meios probatórios para o fazer, precludidoo o seu direito de o vir fazer nesta segunda fase, pois esta ultima tem apenas como conteúdo a prestação de contas efetiva tal como definido e limitado no Acórdão da Relação do Porto.

XVI. Ao julgar provado o ponto 10 dos factos provados o Tribunal a quo pronunciou-se excessivamente, para lá do que lhe competia, conhecendo de questões que nesta fase, neste processo, não lhe era permitido conhecer sob pena de ofensa de caso julgado que se concretiza na inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre uma relação material já decidida, constituindo uma nulidade de sentença nos termos do art. 615º, n.º 1, al d) e d) do CPC.

XVII. Toda a prova requerida e produzida que teve por objecto tais contas bancárias e
que esteve subjacente à prova do ponto 10 dos factos provados é nula, por extravasar de forma clara e inequívoca o objecto do processo, o que desde já se invoca.

XVIII. Por tudo o exposto, deverá o ponto 10) dos factos provados ser eliminado do elenco dos factos provados, bem como, devendo ser declarada nula toda a prova requerida e produzida sobre o mesmo.

XIX. Por iguais motivos, que por uma questão de economia processual se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, não poderia nesta fase o Tribunal a quo dar como provado o ponto 5) nos moldes em que o fez, acrescentando as contas bancárias como fazendo parte do acervo hereditário do falecido.

XX. O acervo hereditário do falecido está definido no ponto 3) dos factos provados do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2020 e é relativamente a esse que a prestação de contas deverá incidir.

XXI. Aliás nesta fase os únicos pontos a acrescentar à matéria fáctica seriam quais as despesas e valores apresentados que se consideram provados e não provados e nada mais, não havendo lugar a uma nova definição da obrigação de prestar contas e seu conteúdo.

XXII. Pelo que, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu ofendeu mais uma vez o caso julgado (excepção de caso julgado), incorrendo em excesso de pronuncia conhecendo questões que não deveria conhecer consubstanciando uma nulidade.

XXIII. Assim sendo, deverá o ponto 5 dos factos provados, ser alterada a sua redação conformando-a com a redação do ponto 3) dos factos provados do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto já identificado, constando a seguinte redação:
5. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ...”

XXIV. Contudo, e mesmo que assim não se entenda relativamente ao ponto 10) dos factos provados, o que apenas por mera hipótese académica se considerará, ainda assim o Tribunal a quo ao dar como provado tal ponto, nos moldes em que o faz, incorre em erro de valoração da prova documental.

XXV. No ofício de 09.05.2022 com a ref.ª 12974918 do Banco 2... o mesmo refere que as contas bancárias constantes do imposto de selo do Serviço de Finanças têm dois titulares, o falecido JJ e o seu sobrinho MM.

XXVI. Daí que, apenas seja imputado ao acervo hereditário no imposto de selo ½ do valor aí constante.

XXVII. A transferência de € 37.500,00 a que alude o ponto 10) dos factos provados provem de contas tituladas por duas pessoas, o que significa que apenas metade desse valor pertence ao acervo hereditário.

XXVIII. Pelo que, mesmo que não se entenda que há relativamente a este facto 10) uma excepção de caso julgado e excesso de pronuncia por parte do Tribunal, e consequentemente uma nulidade, sempre o mesmo tendo em conta a prova carreada aos autos terá de ser alterado passando a ter a seguinte redação: “10. A 02.02.2015, o Réu movimentou a conta bancária n.º ... do falecido e de seu sobrinho MM e transferiu o montante de € 37.500,00 para a sua conta n.º ...”.

XXIX. Consequentemente, e sendo o presente processo de prestação de contas referente ao acervo hereditário do falecido JJ, nunca o Réu poderia ser condenado a restituir a quantia global de € 37.500,00 mas apenas metade de tal quantia € 18.750,00.

XXX. Por outro lado, relativamente ao ponto 3) da matéria de facto não provada, entende o Recorrente que o Tribunal a quo errou na interpretação e valoração da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, a prova testemunhal, no que diz respeito ao custo com a legalização da casa no valor de 3.500,00€.

XXXI. Isto porque, considera o Recorrente que a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento sobre este facto impunha uma decisão distinta sobre o mesmo, pelo que se impõem a reapreciação desta matéria gravada.

XXXII. A este propósito, sobre o custo do arquiteto NN para diligenciar pela legalização da casa, considerou o Tribunal que não poderia atender ao orçamento emitido pelo mesmo, pois não existia qualquer documento de quitação do recebimento de qualquer quantia.

XXXIII. Contudo, existiu sobre este facto o depoimento da testemunha OO (minuto 18:26h a minuto 20:00h) e ainda as declarações de parte do Recorrente (minuto 58:54 a minuto 01:01:00h prestado a dia 08/11/20217 e minuto 10:40h a minuto 12:00 e minuto 23:00 a 26:30 prestado a dia 20/04/2023).

XXXIV. Tais depoimentos, os únicos com conhecimento direto dos factos constantes nos autos, foram depoimentos sinceros, credíveis e espontâneos, explicando de forma clara e objectiva sobre a necessidade de contratar os serviços do técnico, que obras eram necessárias realizar para obter a licença de utilização, essencial para a venda.

XXXV. O Tribunal não teve em conta as declarações de parte do Réu nesta parte apenas afirmando que não dispõem de qualquer outro meio de prova que corrobore as suas declarações, o que não corresponde à verdade.

XXXVI. Existe um orçamento junto aos autos, o tribunal dá como provado no ponto 9) que o Recorrente pagou a expensas suas uma requisição de licença de utilização junto da Câmara, e bem assim existe ainda o depoimento da testemunha OO, cuja valoração ou não do seu testemunho por parte deste Tribunal o Recorrente desconhece.

XXXVII. Relativamente a este depoimento o Tribunal a quo é completamente omisso, nada refere, apenas se limitando a afirmar que nenhum outro meio de prova há acerca de tais factos, sem ser as declarações de parte do Réu.

XXXVIII. No entanto, o Tribunal a quo não podia por si só ser retirar a credibilidade das declarações do Recorrente, apenas porque não têm sustentação com outro meio de prova, até porque no caso concreto o têm.

XXXIX. Tal tese equivale a considerar relativamente às declarações de parte a tese do princípio de prova que é infundada e incorreta, e que degrada - prematuramente - o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio.

XL. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.

XLI. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.

XLII. Assim sendo analisados estes depoimentos temos que a sua análise cuidada obrigaria e impunha outro entendimento, nomeadamente, no que respeita ao facto 3 da matéria de facto não provada no que diz respeito à despesa incorrida com o técnico para legalização da casa.

XLIII. Pelo que, entende o Recorrente que o Tribunal a quo ao não fixar na matéria provada o custo/despesa de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros) referentes ao pagamento do Arquiteto NN, errou na apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, devendo por isso ser acrescentado à matéria de facto provada, o seguinte: “O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade no valor de 3.500,00€”

XLIV. Por último e caso assim não se entenda, sempre se dirá que, o facto de não se encontrar apurada de forma clara o montante pago pelo Réu ao técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade do imóvel, tal não constitui motivação, para a dar como não provada tal despesa.

XLV. O Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão proferido a 05.11.2020 na primeira fase do presente processo deu como provado o ponto 9) que dispõem o seguinte 9. O Réu a expensas suas, pagou o seguinte: funeral do falecido, taxas camarárias pela legalização do imóvel, água, luz, e Cabovisão do prédio do falecido, IMI do prédio, emolumentos das escrituras de compra e venda e de habilitação de herdeiros, técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade”.

XLVI. Deste modo, tal matéria constitui caso julgado, não podendo nesta fase ser colocada em questão como o fez o Tribunal a quo ao dar como não provada esta despesa, e na premissa de estar provado tal pagamento matéria que constitui nesta fase caso julgado, ainda que não se definindo em concreto o montante, a sua quantificação sempre poderia ser relegada para execução de sentença edefinida, em ultimo caso, com recurso a juízos de equidade.

XLVII. Pelo que, entende o Recorrente que a dificuldade do Tribunal a quo no apuramento do dinheiro pago ao técnico, não é fundamento que possa lançar mão para a improcedência de tal despesa.

XLVIII. Por outras palavras, perante a prova de determinado direito, repugnaria à ordem jurídica deixá-lo sem tutela, e assim sendo, deveria a quantificação deste pagamento ter sido relegado ou para liquidação de sentença, ou tê-lo fixado com recurso a juízos de equidade.

XLIX Por tudo o exposto deverá tal despesa com o técnico para legalização da casa ser considerado provado e levada ao respetivo elenco, fixando-se o seu valor recorrendo a critérios de equidade, ou relegando para liquidação de sentença.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. JJ faleceu a 10 de junho de 2014, no estado de viúvo de KK, sem descendentes e ascendentes vivos.
2. Por testamento público, outorgado no dia 4 de março de 2004, lavrado a folhas ..., do Livro ......, do 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, JJ instituiu universais herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais, os aqui Autores.
3. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, de fls. ... do Livro ... e datada de 4 de agosto de 2014, os herdeiros do falecido (aqui Autores) e respetivos cônjuges, constituíram o Réu procurador, conferindo-lhe os poderes especiais para vender os bens da herança de JJ, podendo receber os valores, representar junto ao Banco 1..., podendo representar os aqui Autores para efeitos de participação do Imposto de Selo e nomeá-lo representante fiscal em Portugal e praticar todos os atos com vista e emissão dos números de contribuintes portugueses; enfim praticar todos os atos necessários ao fim a que se destina esse mandato (cfr. teor da procuração junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
4. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, de fls. ... do Livro ... e datada de 29.09.14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respetivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extratos, bem como proceder ao levantamento ou efetuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques (cfr. teor da procuração junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
5. Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:
- O prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ...;
- Conta à ordem nº ..., no “Banco 2...”, com saldo € 475,54;
- Conta CR nº ..., no “Banco 2...” com o saldo € 5.500,00;
- Conta CR n.º ..., no “Banco 2...” com o saldo € 7.100,00;
- Conta CR nº ..., no “Banco 2...” com o saldo € 27.500,00;
- Conta CR nº ..., no “Banco 2...” com o saldo € 525,00.
6. Mediante escritura pública outorgada a 9 de março de 2005, o Réu na qualidade de procurador dos Autores, declarou vender a PP casado com QQ, no regime da comunhão de bens, que declarou comprar, o prédio descrito em 5), pelo preço de € 47.555,63.
7. Por instrumento notarial elaborado no 27º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, a cargo do Tabelião RR, outorgado no dia 22 de abril de 2016, no Brasil os Requerentes declaram revogar a procuração referida em 3).
8. O Réu recebeu o preço em 6), ou seja € 47.555,63.
9. O Réu pagou, a expensas suas, o seguinte:
Escritura de habilitação de herdeiros de JJ - € 196,46
Certificado de óbito para habilitação de herdeiros - € 20,00
Funeral de JJ - € 1.741,60
Autenticação da procuração Brasil - € 20,68
Coima da participação de óbito - € 93,75
Habilitação de herdeiros de KK - € 171,59
Certificado de casamento e óbito de KK - € 40.00
Imposto de Selo da Herança - € 8.887,96
Pagamento Dr. LL – Processo AA - € 300,00
Requisição de Liq. Util. Câmara - € 76,88
Liquidação IMI - € 190,22
Pagamento de Cabovisão (07/2014) - € 50,23
Pagamento de Cabovisão (08/2014) - € 32,14
Pagamento de desativação Cabovisão - registo duas cópias e envelope - € 2,50
Pagamento A... (12/2014) - € 10,96
Pagamento A... (11/2014) - € 12,14
Pagamento A... (10/2014) - € 12,53
Pagamento A... (09/2014) - € 11,35
Pagamento A... (08/2014) - € 14,95
Pagamento A... (01/2015) - € 15,42
Pagamento A... (02/2015) - € 10,57
Pagamento A... (03/2015) - € 11,73
Pagamento A... (07/2014) - € 16,12
EDP (10/2014) - € 63,28
EDP (01/2015) - € 37,79
TOTAL - € 12.040,86
10. A 02/02/2015, o Réu movimentou a conta bancária nº ... do falecido e transferiu o montante de € 37.500,00 para a sua conta nº ....

2.1 Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
1. Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:
- ... UP. Dossier n.º ... ..., Banco 1...: € 161,39.
2. A 20/02/2015, o Réu pagou à Segurança Social o valor de € 855,75, através da conta bancária nº ....
3. O Réu pagou, a expensas suas, o seguinte:
Liquidação de imposto de selo - € 3.415,04
Liquidação de imposto sobre transmissões - € 1.784,57
Imposto adicional - € 4.118,91
Pagamento Dr. LL – Processo AA- € 3.000,00
Custo de legalização da casa - € 3.500,00
Despesas de transporte suportadas pelo Réu no total € 216,00
461,60 Km x € 0,40/Km em veículo próprio (13 viagens de ... a Santa Maria da Feira, na execução do referido em 3) dos factos provados)
Horas despendidas na execução e ao serviço da herança, quer dos herdeiros, quer pelos Autores - 300 horas (na execução do referido em 3 dos factos provados) - € 1.200,00
*
3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões por resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Da nulidade da decisão e da impugnação da matéria de facto;
- Do mérito do decidido.
*
4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1. Da nulidade da decisão e da impugnação da matéria de facto
Invoca o Apelante que a decisão recorrida padece do vício de nulidade por excesso de pronúncia e, de forma articulada, impugna o ponto 5 (parcialmente) e 10 da matéria de facto provada, por ofensa do caso julgado e excesso de pronúncia e conhecimento de questões que não devia conhecer.
Impugna, ainda, o ponto 3 da matéria de facto não provada, invocando para o efeito a errada interpretação e valoração dos meios de prova constantes nos autos, nomeadamente, da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento e, subsidiariamente, por ofensa do caso julgado no que diz respeito à despesa “custo de legalização da casa”.
Consta do ponto 5 da matéria de facto provada que:
“5. Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:
- O prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ...;
- Conta à ordem nº ..., no “Banco 2...”, com saldo € 475,54;
- Conta CR nº ..., no “Banco 2...” com o saldo € 5.500,00;
- Conta CR n.º ..., no “Banco 2...” com o saldo € 7.100,00;
- Conta CR nº ..., no “Banco 2...” com o saldo € 27.500,00;
- Conta CR nº ..., no “Banco 2...” com o saldo € 525,00.”
Consta do ponto 10 da matéria de facto provada que:
“10. A 02/02/2015, o Réu movimentou a conta bancária nº ... do falecido e transferiu o montante de € 37.500,00 para a sua conta nº ....”.
Consta, ainda, do ponto 3 da matéria de facto não provada que:
“3. O Réu pagou, a expensas suas, o seguinte:
Liquidação de imposto de selo € 3.415,04
Liquidação de imposto sobre transmissões € 1.784,57
Imposto adicional € 4.118,91
Pagamento Dr. LL - Processo AA € 3.000,00
Custo de legalização da casa € 3.500,00
Despesas de transporte suportadas pelo Réu no total € 216,00
461,60 Km x € 0,40/Km em veículo próprio (13 viagens de ... a Santa Maria da Feira, na execução do referido em 3) dos factos provados)
Horas despendidas na execução e ao serviço da herança, quer dos herdeiros, quer pelos Autores - 300 horas (na execução do referido em 3 dos factos provados) € 1.200,00”.
É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9.4.2019, processo nº 4148/16.1T8BRG.G1.S1, disponível, como os demais, em www.dgsi.pt ou em sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -: as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.3.2017, proferido no processo nº 7095/10.7TBMTS.P1.S1 -; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei - cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.10.2017, proferido no processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1. e de 10.9.2019, proferido no processo nº 800/10.3TBOLH-8.E1.S2 -, consiste num desvio à realidade factual (nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma) ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade.
E, como salienta o Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 686, perante norma do Código de Processo Civil de 1961 idêntica à actual, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade com o direito aplicável, não se incluiu entre as nulidades da sentença.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) - cf. neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2017, proferido no processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1.
Como é sabido, as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença:
- Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).
- Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
- Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
- Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
- Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
O Prof. Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pág. 297, na análise dos vícios da sentença enumera cinco tipos: vícios de essência; vícios de formação; vícios de conteúdo; vícios de forma e vícios de limites.
Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem, assim, a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
A nulidade da decisão por excesso de pronúncia, contemplada na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, só ocorre quando o tribunal se pronuncia sobre questões jurídicas de que não poderia legalmente conhecer.
Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.11.2021, proferido no processo n.º 1436/15.8T8PVZ.P1.S1, «Só se pode afirmar que corre excesso de pronúncia quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso».
Assim, a nulidade invocada - nulidade por excesso de pronúncia - verifica-se quando o julgador conheça de questões jurídicas de que não poderia legalmente conhecer, por não integrarem o thema decidendum, ou seja, por não terem sido suscitadas nem pedidas, nem constituírem questões de natureza oficiosa.
Ademais, não determinam a nulidade da sentença as objecções que se traduzem na invocação de erros de julgamento de facto e de direito que, a verificarem-se, poderão determinar a modificação da decisão da matéria de facto e/ou a revogação (total ou parcial) da sentença.
No caso vertente, por sentença proferida a 08.06.2023 entendeu o Tribunal a quo dar por provado o ponto 10, considerando para tal que:
“Relativamente aos factos atinentes às contas bancárias aludidas no ponto 5º e a movimentação do montante de € 37.500,00 (ponto 10º) foi atendida a relação de bens apresentada no Serviço de Finanças, em conjugação com os ofícios do “Banco 2...”, em particular a informação bancária junta aos autos a 09/05/2022, nos termos da qual consta que a conta à ordem nº ... e contas associadas apresentavam dois titulares, um deles falecido (por isso ficou apurado metade dos saldos indicados), mais constando a transferência do montante de € 37.500,00 para uma conta titulada pelo Réu.”.
Como é sabido, o processo de prestação de contas divide-se em duas fases, uma inicial, de apuramento da obrigação de prestar contas e em que medida, e em caso afirmativo, uma segunda, onde são indicadas as receitas e despesas e se procede ao encontro de contas - tudo, tendo em conta o objecto balizado na primeira fase do processo.
Ao abrigo da primeira fase do processo de prestação de contas, a chamada “fase declarativa”, o Apelante foi citado para prestar contas aos Autores.
Na referida fase, o Apelante contestou a sua obrigação de prestar contas, nos termos do artigo 942º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, considerando já as haver prestado extrajudicialmente, acrescentando que mesmo que houvesse lugar à prestação de contas tal obrigação apenas poderia recair sobre a venda do bem imóvel que constituía o acervo da herança e não sobre as contas bancárias por não existirem.
Nessa sequência, foi produzida prova e proferida sentença datada de 10.07.2018 (referência citius n.º 102612577), que decidiu existir por parte do Apelante a obrigação de prestar contas, nos seguintes termos: “Julgo a presente acção parcialmente provada, e nessa medida procedente, e em consequência julgo a existência da obrigação do Requerido de prestar contas desde 4 de agosto de 2014 até 23 de maio de 2016, determinando a sua notificação para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que os Requerentes apresentem, levando em linha de conta a factualidade provada em 11), 12) e 13).”.
Considerou o Tribunal a quo como provado, entre outros, o ponto 13) onde consta que: “À data do óbito de JJ não existiam em nome deste contas abertas no Banco 2...”.
E ainda, o ponto 3) que referia o seguinte: “Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ...”.
Considerou, ainda, o Tribunal a quo, mediante despacho proferido a 02.12.2019, através da referência Citius 109468397, relativamente a contas bancárias existentes à data do óbito do falecido JJ, que “Em relação ao facto 13, foi relevante o teor do ofício do “Banco 2...” a fls. 100 dos autos, nos termos do qual consta que “(…) à data do óbito (10-06-2014) não existiam contas abertas em nome do autor da herança JJ”; é certo que dos documentos de fls. 105 a 111 consta que foram relacionados valores monetários para efeitos de imposto de selo - valores esses declarados pelo participante da herança -, contudo, tal documento particular e o de fls. 123, neste caso, não faz prova bastante da existência de tal matéria fáctica, sendo contrariada pelo teor de fls. 100.
De todo o modo sempre se dirá que competiria aos Requerentes fazer prova da existência dos saldos bancários à data do óbito do falecido, o que não lograram fazer, atenta a repartição do ónus da prova previsto no art. 342º do Código Civil”
Destarte, delimitou-se desta forma a prestação de contas relativamente ao produto da venda do bem imóvel, constituído pelo acervo da herança vendido pelo Recorrente na decorrência do seu mandato e cujo produto da venda não foi entregue aos Autores.
Nesta sequência, recorreram os Autores, aqui Recorridos, alegando, designadamente, que no que respeita ao ponto 3 deveria ser acrescentado que além do prédio urbano indicado, faziam ainda parte do acervo de bens do falecido as contas bancárias seguintes:
“- Conta à ordem no Banco 1... n.º ... - valor depositado € 951,07 – quota transmitida ½;
- Conta Rendimento CR no Banco 1... n.º ... - valor depositado € 11.000,00 -quota transmitida ½;
- Conta Rendimento CR no Banco 1... n.º ... - valor depositado € 14.200,00 – quota transmitida ½;
- Conta Rendimento CR no Banco 1... n.º ... - valor depositado € 55.000,00 – quota transmitida ½;
- Poupança programada 3 anos no Banco 1... nº ... - valor depositado € 1.050,00;
- quota transmitida ½;
- 64721 unidades de participação ... Dossier nº ... - valor monetário € 322,78 - quota transmitida ½ - cfr. ofício das Finanças junto aos autos com a referência 6479094 de 04.12.17 e documento n.º 14 junto pelo réu com a sua contestação.” - cf. alegações de Recurso de 16.12.2019 com a ref.ª 9592767.
E ainda que, em consequência, relativamente ao ponto 13) que o mesmo deveria passar a integrar o elenco dos factos não provados.
De resto, foi proferido acórdão neste processo por este Tribunal da Relação a 05.11.2020, devidamente transitado em julgado a 10/12/2020 - o qual relativamente a estes pontos - que dizem respeito à prestação de contas relativa às contas bancárias - decidiu que o ponto 3) deveria manter-se no elenco dos factos provados tal como estava originalmente decidido pelo Tribunal de 1ª Instância, e que o ponto 13), por sua vez, deveria constar no elenco dos factos não provados.
Afigura-se-nos, por isso e no referido contexto, que se encontrava vedado ao Tribunal a quo a possibilidade de, nesta segunda fase do presente processo de prestação de contas - a chamada fase executiva - os Autores, aqui Recorridos, pedirem a prestação de contas relativamente a tais contas bancárias, bem como requerer prova relativamente à mesma, para consequentemente dar como provado o ponto 10 dos factos provados.
De resto, o acórdão desta Relação, datado de 05 de novembro de 2020, relativamente às contas bancárias e à prestação de contas destas por parte dos Autores e Réu parece-nos claro, ao consignar:
“Relativamente ao ponto 3. da factualidade provada, os autores pretendem que seja considerado provado que, além do prédio urbano ali indicado, faziam ainda parte do acervo de bens do falecido as contas bancárias discriminadas na conclusão que numerámos como 1ª.
Em consequência, pretendem que o ponto 13. seja considerado não provado.
Ouvido o depoimento de parte em declarações de parte, o réu negou a existência de quaisquer contas bancárias em nome do falecido (…)
Por seu turno, a testemunha OO afirmou que o falecido JJ lhe dizia que não tinha dinheiro, sendo o Autor AA quem fazia os pagamentos das suas contas (…)
Quanto aos documentos juntos aos autos:
Como já se escreveu no acórdão de fls. 157 e seguintes, a fls. 100, está junto um ofício enviado pelo Banco 2..., sucessor do Banco 1..., datado de 31.10.2017, no qual aquela instituição informa que, à data do óbito de JJ (10.06.2014), não existiam contas abertas em nome daqueles.
E, a fls. 123, está junto um ofício enviado pelo Banco de Portugal, com data de 02.05.2018, no qual aquela instituição informa que, à data do óbito de JJ, existiam no Banco 2... contas bancárias por ele tituladas.
Por outro lado, a fls. 105 e seguintes, está junta a liquidação de imposto de selo feita pelo Serviço de Finanças da Feira 4, à qual está anexa a respectiva participação para efeitos daquele imposto.
Nas referidas liquidação e participação, estão discriminadas as contas bancárias que estão indicadas pelos autores na conclusão que numerámos como 1ª.
Assim, como se fez notar no complemento da fundamentação da decisão da matéria de facto, feito pelo Tribunal recorrido a pedido deste Tribunal e já acima transcrita, os documentos juntos aos autos contêm informações contraditórias.
Por outro lado, no seu depoimento de parte, como vimos, o réu afirmou que quando foi ao Banco 1... não existiam ali quaisquer contas bancárias em nome do falecido JJ.
Também não se extrai a existência das referidas contas bancárias apenas do facto de as procurações juntas aos autos concederem poderes ao Réu para movimentar contas bancárias.
A prova produzida nos autos não é pois, suficiente, para formar no espirito do julgador, uma convicção segura acerca da existências das referidas contas bancárias, pelo que, na duvida, não pode ser considerada provada a existência de tais contas.
Porém, também não é possível formar uma convicção segura acerca da inexistência das referidas contas bancárias.
Sendo assim, o facto vertido no ponto 13. da factualidade provada deve ser considerado não provado, devendo manter-se como provado o facto vertido no ponto 3.”.
Ora, daqui se retira, conforme bem salienta o Apelante, que este Tribunal da Relação no acórdão proferido nestes autos em 05 de novembro de 2022 entende que, não havia prova suficiente nos autos que permitisse acrescentar ao ponto 3. dos factos provados que faziam parte do acervo hereditário as contas bancárias indicadas pelos Autores razão pela qual o ponto 3 não poderia ser alterado, mas também não havia prova suficiente para garantir a sua inexistência razão pela qual o ponto 13) deveria passar a constar do elenco de factos não provados.
Contudo, como refere este Tribunal da Relação no acórdão de 05 de novembro de 2020, proferido nos autos, competia aos Autores, aí Apelantes, fazer prova da existência de tais contas bancárias, e não o contrário.
Não era ao Réu, aqui Apelante, que competia fazer prova da inexistência de contas, mas sim aos Autores, aqui Apelados, competia fazer prova na fase declarativa da existência das referidas contas e consequentemente da obrigação de prestar contas relativamente às mesmas.
Aliás, na esteira da inicial fundamentação do Tribunal a quo na sua primeira sentença em fase declarativa consta “De todo o modo se dirá que competiria aos Requerentes fazer prova da existência dos saldos bancários à data do óbito do falecido, o que não lograram fazer, atenta a repartição do ónus da prova previsto no art. 342º do Código Civil.” - cf. fundamentação da Sentença - 02.12.2019 - referência citius 109468397.
Ademais, este Tribunal da Relação no acórdão de 05 de novembro de 2020, atrás citado, salvaguarda nas suas conclusões que a referida alteração ao ponto 13 não altera a obrigação e conteúdo da prestação, concluindo dizendo: “Quanto ao conteúdo da obrigação de o Réu prestar contas, ficou a mesma definida na presente fase declarativa do processo, com cumprimento integral da tramitação prevista no artigo 942º, na qual os autores tiveram intervenção, tendo tido oportunidade de provar que, à data do óbito, o JJ possuía outras contas bancárias.”.
Ora, daqui emerge que as diligências probatórias requeridas pelos Autores deveriam e podiam ter sido efectuadas na fase declarativa do processo, essa sim, a fase destinada a conformar a existência ou não da obrigação de prestar contas e o conteúdo dessa obrigação.
Além disso, os Autores, aqui Apelados, após a informação prestada pelo Ofício do Banco 2... a 03.11.2017 (na primeira fase do processo) com a referência citius 6341730, que informava não existirem contas em nome do falecido à data do óbito, nada disseram, não impugnaram a informação, não solicitaram esclarecimentos, conformando-se com a mesma.
Afigura-se-nos, assim, que a fase executiva do processo que se iniciou após a prolação do acórdão da Relação do Porto datado de 05 de novembro de 2020 tem apenas como conteúdo a prestação de contas tal como aí definido, relativamente à venda do bem imóvel identificado no ponto 3 que faz parte do acervo hereditário e nada mais.
E não se diga que mediante a alteração ao ponto 4 dos factos provados “Por procuração notarial outorgadas no 4º Tabelionato de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, de fls. ... do Livro ... e datada de 29.09.14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respetivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extractos, bem como proceder ao levantamento ou efetuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques”, este Tribunal da Relação, no referido acórdão, abriu as portas para que se prestasse contas e indagasse relativamente a contas bancárias, dado que o referido acrescento é uma mera reprodução do conteúdo da procuração.
Além disso, como este Tribunal refere e bem, “(…) não se extrai a existência das referidas contas bancárias apenas do facto de as procurações juntas aos autos concederem poderes ao Réu para movimentar contas bancárias.”.
Ou seja, o ónus da prova relativamente à existência de contas bancárias em nome do falecido na data do óbito competia aos Autores, durante a primeira fase do processo de prestação de contas - fase declarativa -, não o tendo feito, não poderiam fazê-lo na fase executiva do mesmo.
De resto, a determinação do âmbito do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo, como aliás decorre do artigo 621º, 1ª parte do Código de Processo Civil («A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)»), estendendo-se, por isso, às questões preliminares que constituíram um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
«O caso julgado da decisão também possui um valor anunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.
Excluída está desde logo, a situação contraditória (…) cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…págs. 578 – 579.
Está igualmente afastada todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.
Assim, todas as questões e excepções suscitadas solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, estão compreendidas na expressão precisos termos em que julga, contida no artigo 673º ao definir o alcance do caso julgado material, pelo que também se inclui neste.
Ou seja, com o caso julgado precludiram todas as razões de sustentação da pretensão deduzida, que não encontraram acolhimento na decisão proferida.
Fala-se, pois, de efeito preclusivo do caso julgado para concretizar esta inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida (v.g. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, V, págs. 714 e 175 e Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, págs. 302 e 303).
Além de que, formando-se caso julgado ou autoridade de caso julgado relativamente àquele acórdão, decidir e fundamentar de forma contrária na presente acção, que assenta na mesma causa de pedir, abala todo o princípio basilar do Estado de Direito Democrático - princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, princípio constitucionalmente consagrado (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), o que se verifica no caso vertente.
Com efeito, o princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.
Neste sentido, os factos dados como assentes no acórdão atrás citado e que se demonstrem contrários aos factos dados como provados na sentença aqui em crise, obviam àqueles mínimos de certeza e segurança, e, por conseguinte, terão de ser entendidos como não consentidos pela lei básica, uma vez que consubstanciam decisões contraditórias proferidas sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado.
Ao fazê-lo violou o caso julgado formal e material formado pelo Acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto que julgou a obrigação e o conteúdo da obrigação de prestar contas, violando os artigos 608º, n.º 2, 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Assim, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu relativamente ao ponto 10 dos factos provados, incorreu, de resto, em ofensa do caso julgado, pelo que o ponto 10 dos factos provados deve ser eliminado do elenco dos factos provados.
De resto, por similares razões, não poderia o Tribunal a quo dar como provado na redacção que deu o ponto 5 dos factos provados, que refere o seguinte:
“5. Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:
- o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar de
..., na Rua ..., freguesia ..., inscrito
na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de
Santa Maria da Feira sob o n.º ...;
- Conta à ordem n.º ... no Banco 2... com saldo €475,54;
- Conta CR nº ... no Banco 2... com o saldo €5.500,00;
- Conta CR nº ... no Banco 2... com o saldo €7.100,00;
- Conta CR nº ... no Banco 2... com o saldo €27.500,00;
- Conta CR nº ... no Banco 2... com o saldo €525,00€;”
Conforme atrás referimos, o conteúdo da obrigação de prestar contas ficou definido na fase declarativa do processo de prestação de contas, nomeadamente, no ponto 3, 5 e 6 dos factos provados conforme Acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto a 05.11.2020.
“3. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ...”
5. Mediante escritura pública outorgada a 09.03.05, o réu na qualidade de procurador dos autores, declarou vender a PP casado com QQ, no regime da comunhão de bens, que declarou comprar o prédio descrito em 3), pelo preço de €47.555,63
6. O réu não entregou aos autores o preço do imóvel.”
Afigura-se-nos, por isso, que o Tribunal a quo nesta sede, não pode acrescentar mais ao que corresponde ao ponto 3 dos factos provados.
Aliás, nesta sede os únicos pontos que seriam de acrescentar à matéria fáctica seriam se as despesas e valores apresentados se considerariam provados ou não provados em face da prova produzida.
Ou seja, não há nesta fase uma nova definição da obrigação de prestar contas e seu conteúdo, há sim, uma fase executiva de deve e haver referente ao já definido, ou seja, referente à venda do bem imóvel.
Pelo que, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou, inclusive o princípio do caso julgado.
Assim sendo, deverá o ponto 5 dos factos provados, ser alterado na sua redacção, passando a constar no mesmo, a redacção do ponto 3 dos factos provados que consta do acórdão datado de 05.11.2020, ou seja:
“5. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ...”.
Impugna, ainda, o Apelante o ponto 3 da matéria de facto não provada, designadamente, no que respeita ao custo com a legalização da casa.
Entendeu o Tribunal a quo dar como não provadas as despesas elencadas no ponto 3 dos factos não provados, nomeadamente, as despesas relativas ao custo de legalização da casa no valor de 3500€.
Afigura-se que a referida resposta não merece a nossa crítica, excepto no segmento em que deu, igualmente, como não provada a despesa relativa ao custo de legalização da casa nos termos que a seguir enunciaremos.
Com efeito, é pacífico no ordenamento jurídico português que a licença de habitabilidade é condição sine qua non para a venda de um imóvel. Até porque a preterição das proibições de celebração de escrituras públicas que envolva transmissão de prédios urbanos, sem a prova suficiente da existência da correspondente licença de utilização nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26.07, e do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25.03, importa a nulidade do negócio celebrado com infração dessas proibições, nos termos do art.º 294.º do Código Civil.
A tais proibições subjazem interesses de ordem pública que, para além da protecção dos consumidores, visam obviar à construção clandestina e promover a transparência e segurança do mercado habitacional, como resulta da evolução legislativa neste domínio e como vem sendo reconhecido pela jurisprudência.
Ora, analisadas as declarações de parte do Recorrente e o depoimento da testemunha OO, concatenados com as regras da experiência comum, afigura-se-nos que o referido ponto deve merecer outra resposta no que diz respeito à efectiva despesa incorrida com o técnico para legalização da casa.
De resto, o Tribunal a quo dá, inclusive, como provado no ponto 9) que o Recorrente pagou a expensas suas a requisição da licença de utilização junto da Câmara Municipal no valor de € 76,88.
Ora, como é sabido, nada obsta a que o tribunal, na busca da verdade material, tome em consideração, para fins probatórios, as declarações não confessórias da parte, as quais serão livremente apreciadas, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
No entanto, ao valorá-las, não pode o juiz abstrair-se de que se trata de produção de prova em benefício próprio, em que o declarante é, ao mesmo tempo, meio de prova e parte interessada na sua recolha, acabando as declarações por ser como que a versão sonora - viva voz - dos articulados. “A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente” - cf. acórdão da Relação do Porto, de 23/3/2015, consultável em www. dgsi.pt.
No caso vertente, as declarações de parte do Réu encontram-se corroboradas pelo testemunho de OO e encontram justificação à luz da lei e das regras da experiência comum.
Afigura-se-nos, no entanto, que o valor apresentado como custo é manifestamente exorbitante não podendo, por isso, ser atendido e dado como assente.
De resto, no acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 05 de novembro de 2020, referente à fase declarativa da acção de prestação de contas, foi dado como provado o ponto 9) dos factos provados que refere o seguinte:
“9. O Réu a expensas suas, pagou o seguinte: funeral do falecido, taxas camarárias pela legalização do imóvel, água, luz, e Cabovisão do prédio do falecido, IMI do prédio, emolumentos das escrituras de compra e venda e de habilitação de herdeiros, técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade”
Mais acrescentando que “Quanto à circunstância de a despesa com o técnico não estar documentada de acordo com o disposto no artigo 944º, n.º 3, trata-se de questão a dirimir na fase executiva do processo de prestação de contas”.
Assim, consta do acervo de factos provados dos presentes autos que o Réu, aqui Apelante, pagou a expensas suas um técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade.
De resto, o facto de não se encontrar apurada de forma clara o montante pago pelo Recorrente ao técnico, no caso, Arquiteto NN, tal não constitui motivação, para dar como não provada tal despesa.
Já que, na premissa de estar provado o pagamento de técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade, ainda que não se definindo em concreto o montante pago, a sua quantificação sempre pode ser relegada para execução de sentença ou fixada por recurso a critérios de equidade.
Assim sendo, decide-se:
- eliminar o ponto 10 do elenco dos factos provados;
- alterar a redacção do ponto 5 dos factos provados, nos seguintes termos:
“5. Fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ...”.
- acrescentar à matéria de facto provada, o seguinte ponto 10.a “O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade em valor não apurado”
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A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada a atender é a seguinte:
1. JJ faleceu a 10 de junho de 2014, no estado de viúvo de KK, sem descendentes e ascendentes vivos.
2. Por testamento público, outorgado no dia 4 de março de 2004, lavrado a folhas ..., do Livro ......, do 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, JJ instituiu universais herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais, os aqui Autores.
3. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, de fls. ... do Livro ... e datada de 4 de agosto de 2014, os herdeiros do falecido (aqui Autores) e respectivos cônjuges, constituíram o Réu procurador, conferindo-lhe os poderes especiais para vender os bens da herança de JJ, podendo receber os valores, representar junto ao Banco 1..., podendo representar os aqui Autores para efeitos de participação do Imposto de Selo e nomeá-lo representante fiscal em Portugal e praticar todos os atos com vista e emissão dos números de contribuintes portugueses; enfim praticar todos os atos necessários ao fim a que se destina esse mandato (cfr. teor da procuração junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
4. Por procuração notarial outorgada no 4º Tablionato de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, de fls. ... do Livro ... e datada de 29.09.14, os herdeiros do falecido (aqui autores) e respetivos cônjuges, constituíram o réu procurador, conferindo-lhe os poderes para obter as informações necessárias sobre contas tituladas pelo JJ (falecido), obter extratos, bem como proceder ao levantamento ou efetuar transferências do saldo existente em nome de JJ, todas as operações conta DO, requisitar cheques, endossar cheques, para crédito em conta, movimentar conta e sacar cheques (cfr. teor da procuração junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
5. Fazia parte do acervo de bens do falecido JJ o seguinte:
- O prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artº ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ....
6. Mediante escritura pública outorgada a 9 de março de 2005, o Réu na qualidade de procurador dos Autores, declarou vender a PP casado com QQ, no regime da comunhão de bens, que declarou comprar, o prédio descrito em 5), pelo preço de € 47.555,63.
7. Por instrumento notarial elaborado no 27º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, a cargo do Tabelião RR, outorgado no dia 22 de abril de 2016, no Brasil os Requerentes declaram revogar a procuração referida em 3).
8. O Réu recebeu o preço em 6), ou seja € 47.555,63.
9. O Réu pagou, a expensas suas, o seguinte:
Escritura de habilitação de herdeiros de JJ - € 196,46;
Certificado de óbito para habilitação de herdeiros - € 20,00;
Funeral de JJ - € 1.741,60;
Autenticação da procuração Brasil - € 20,68;
Coima da participação de óbito - € 93,75;
Habilitação de herdeiros de KK - € 171,59;
Certificado de casamento e óbito de KK - € 40.00;
Imposto de Selo da Herança - € 8.887,96;
Pagamento Dr. LL - Processo AA - € 300,00;
Requisição de Liq. Util. Câmara - € 76,88;
Liquidação IMI - € 190,22;
Pagamento de Cabovisão (07/2014) - € 50,23;
Pagamento de Cabovisão (08/2014) - € 32,14;
Pagamento de desativação Cabovisão - registo duas cópias e envelope - € 2,50;
Pagamento A... (12/2014) - € 10,96;
Pagamento A... (11/2014) - € 12,14;
Pagamento A... (10/2014) - € 12,53;
Pagamento A... (09/2014) - € 11,35;
Pagamento A... (08/2014) - € 14,95;
Pagamento A... (01/2015) - € 15,42;
Pagamento A... (02/2015) - € 10,57;
Pagamento A... (03/2015) - € 11,73;
Pagamento A... (07/2014) - € 16,12;
EDP (10/2014) - € 63,28;
EDP (01/2015) - € 37,79;
TOTAL - € 12.040,86.
10.a. O Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade em valor não apurado.

4.2. Do mérito da decisão
A acção de prestação de contas, nos termos do artigo 941.º, do Código de Processo Civil, pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Pressupõe, pois, a referida norma processual a existência de normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas.
Obrigação esta, de prestar contas, que é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias; e cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.
Como afirmava Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. 1º, 1982, pág. 303, pode formular-se o princípio geral de que "quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses". Ou seja, a obrigação de prestar contas tem lugar todas as vezes que alguém trata de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios.
Prestar contas implica, por sua natureza, discriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.
No caso vertente, estamos perante uma acção para prestação forçada ou provocada, pois os Autores, aqui Apelados, arrogam-se o direito de exigir contas do Réu, aqui Apelante, com fundamento na venda do bem imóvel.
O processo de prestação de contas está, pois, relacionado com a obrigação a que alguém se encontra vinculado de prestar contas dos seus actos, interessando-nos, para o caso em apreço, a norma contida no artigo 1161º, al. d) do Código Civil que estatui que “o mandatário é obrigado a prestar contas, findo o mandado ou quando o mandante as exigir”.
No caso vertente, resultou da factualidade provada que JJ faleceu a 10 de Junho de 2014, no estado de viúvo de KK, sem descendentes e ascendentes vivos, sendo que por testamento público, outorgado no dia 4 de Março de 2004, lavrado a folhas ..., do Livro ......, do 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, JJ instituiu universais herdeiros de todos os seus bens, em comum e partes iguais, os aqui Autores.
Mais se apurou que, fazia parte do acervo de bens do falecido o prédio urbano, constituído por casa térrea para habitação, sito no Lugar ..., ..., freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ....
Provou-se, ainda, que no exercício do mandato, o Réu vendeu o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artº ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ..., pelo preço de € 47.555,63, não entregando aos Autores o preço do bem imóvel.
Provou-se, igualmente, que o Réu pagou, a expensas suas, as despesas elencadas no ponto 9º dos factos provados, no total de € 12.040,86.
Por fim, apurou-se que o Réu pagou a expensas suas técnico para diligenciar pela licença de habitabilidade em valor não apurado.
Ora, como é bom de ver, da factualidade acima descrita subsume-se ao contrato nominado - Mandato - gratuito, previsto nos artigos 1157º e 1158º do Código Civil, porquanto o Apelante não exerce a actividade comercial com escopo lucrativo.
Por outro lado, como atrás dissemos, segundo o artigo 1161º, alínea d) do Código Civil compete ao mandatário prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir.
Da análise da conta corrente dada como provada e vertida nos pontos 5º, 6º, 8º, 9º e 10.a dos factos provados, verificamos que todas as discriminações se referem a operações realizadas no âmbito do mandato.
Parece, assim, evidente que as despesas apuradas são decorrentes da actuação do Réu, aqui Apelante, enquanto mandatário dos Autores, aqui Apelados.
Por sua vez, provado o crédito, mas não o seu valor (o montante peticionado ou outro), deve relegar-se a sua fixação para ulterior liquidação ou fixá-lo com recurso a juízos de equidade, sendo este último caminho o mais razoável, evitando mais custos para as partes.
Ora, a licença de habitação, ou licença de utilização para o uso de habitação, é uma documento que valida que estão garantidas todos os requisitos para que o imóvel seja utilizado, ou neste caso, habitado.
De resto, tendo em consideração o custo médio do processo de licenciamento parece-nos adequado, por apelo a critérios de equidade, fixar a quantificação do pagamento ao técnico em € 1.000,00, evitando-se relegar a sua fixação para liquidação de sentença.
Por conseguinte, tendo em consideração o valor total das receitas de € 47.555,63 (venda do bem imóvel) e subtraindo o montante das despesas no valor de € 13.040,86, atingimos o saldo a favor dos Autores de € 34.514,47.
Impõe-se, por isso, o provimento parcial da apelação.
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Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente provido o recurso de apelação, alterando a decisão recorrida e, em consequência, aprovam-se as contas prestadas pelo Réu nos termos atrás referido, com o saldo líquido positivo no montante de € 34.514,77 a favor dos Autores, a ser pago pelo Réu.
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Custas a cargo dos apelados (4/6) e apelante (2/6).
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Notifique.

Porto, 22 de Fevereiro de 2024
Paulo Dias da Silva
António Paulo Vasconcelos
Carlos Portela

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)