Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
33/14.0TELSB-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
COMUNICAÇÃO
FACTOS
RECURSO
MATÉRIA DE DIREITO
MEDIDA DE COACÇÃO
SUSPENSÃO
FUNÇÕES
FARMACÊUTICO
Nº do Documento: RP2016061533/14.0TELSB-A.P1
Data do Acordão: 06/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 682, FLS.160-170)
Área Temática: .
Sumário: I - A comunicação dos factos prevista no artº 141º4 CPP aquando do primeiro interrogatório judicial, deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico criminal, por forma a que lhe seja dada “ oportunidade de defesa”.
II - Versando o recurso matéria de direito, sobre o recorrente impende o ónus de indicar o sentido com o tribunal interpretou a norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ser interpretada ou com que devia ser aplicada (artº 412º2 CPP), sob pena de não se conhecer dessa questão, por omitir as razões de discordância.
III – É justificada a medida de coação consistente na suspensão do exercício de funções como farmacêutica, a suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade dona da farmácia e a proibição de contactar com os funcionários da farmácia e de frequentar as mesmas instalações, a arguida que é diretora técnico da farmácia propriedade da sociedade de que é socia gerente por estarem em causa os crimes de burla qualificada, falsificação de documento, corrupção activa para acto ilícito agravada e crime de falsidade informática, tudo relativo à actividade desenvolvida na farmácia em prejuízo do SNS.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 33/14.0TELSB-A da Comarca do Porto, Porto, Instância Central, 1.ª Secção de Instrução Criminal, J5

Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto – Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto:
I. Relatório

I. 1. Inconformada com o despacho proferido pelo Mmo. Juiz, a 30JAN2016, que na sequência do primeiro interrogatório judicial,

a indiciou pela prática de um crime burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218.º/2 alíneas a) e b) C Penal, um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 alínea e) e 4 C Penal, um crime de corrupção activa para acto ilícito, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 374.º/1 e 374º-A/2 C Penal e um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º/1 e 5 da Lei do cibercrime,
e, determinou que aguardasse os ulteriores do processo, mediante as medidas de coacção de,
termo de identidade e residência, apresentação periódica, uma vez por semana, junto do posto policial da sua área de residência, não se ausentar do país, para o efeito fazer a entrega do passaporte nos autos no prazo de 10 dias, a suspensão do exercício de funções como farmacêutica, devendo para o efeito fazer a entrega nos autos da cédula profissional, em 10 dias, sendo dado conhecimento dessa suspensão de funções à Ordem dos Farmacêuticos, a suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade comercial arguida que detém a Farmácia B…, devendo transmitir a gerência a outrem no prazo de 15 dias, não contactar, por qualquer meio, com os funcionários da Farmácia B…, não frequentar as instalações da Farmácia B…, e prestar uma caução no montante de € 5.000,00, a depositar nos autos no prazo de 20 dias,

recorre a arguida C…,
pugnando pela revogação de tal despacho – na parte atinente com a suspensão do exercício de funções como farmacêutica, suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade comercial arguida que detém a Farmácia B…, não contactar, por qualquer meio, com os funcionários da Farmácia B…, nem frequentar as instalações da Farmácia B… - suscitando as seguintes questões:
os autos não revelam indícios da prática pela arguida dos crimes de corrupção activa para ato ilícito, na forma agravada, e falsidade informática, pois dos factos dados a conhecer à arguida não se mostram indiciados aqueles crimes - ou se dos autos constam tais factos ilícitos, os mesmos não foram a conhecer à arguida, pelo que não podem ser avaliados para efeitos de sustentarem as medidas de coacção ora aplicadas, sob pena de violação dos artigos 141.º/4 C P Penal e 28.º/1 e 32.º/1 C R Portuguesa;
do despacho aqui posto em crise não se mostra indicado um único facto concreto, com base no qual o tribunal a quo possa ter concluído que existe um efectivo concreto e real perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova - nem a arguida com eles foi confrontada, violando assim o disposto na alínea b) do artigo 204.º C P Penal;
inexistem fundamentos de facto e de direito que justifiquem e sustentem a aplicação das medidas de coacção de suspensão do exercício de funções como farmacêutica e de suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade arguida que detém a Farmácia B… - sendo tais medidas assim aplicadas de forma ilegal, por não obedecer à norma contida no artigo 199.º C P Penal, que tem de ser compatibilizada com a norma contida no artigo 66.º C Penal, tanto mais que na hipótese da arguida ter cometido os crimes ora indiciados, não os praticou no exercício da actividade ou função de farmacêutica, fê-lo como qualquer proprietário, administrador, trabalhador, de uma Farmácia, inclusive os crimes de burla e falsificação de documento não são susceptíveis de implicar a sanção acessória de interdição do exercício de funções como gerente da sociedade proprietária da Farmácia;
enquanto gerente não é titular de cargo público, funcionária pública, agente da administração, nem esta actividade depende de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública, inexistindo sequer factos que permitam e justificam as medis ade suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade comercial arguida que detém a Farmácia B… e de não contactar, por qualquer meio, com os funcionários daquela Farmácia, nem frequentar as suas instalações, revelando-se assim tais medidas de coacção ora aplicadas inadequadas e excessivas.

I. 2. Na sua resposta, concluiu o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância pelo não provimento do recurso.

II. Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, igualmente, no sentido de o recurso não merecer provimento.

Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.

III. Fundamentação

III. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões suscitadas, no presente são, então, a de saber se, no caso,
existem, ou não, indícios da prática pela arguida dos crimes de corrupção activa para acto ilícito, na forma agravada e de falsidade informática;
existem ou não, no despacho recorrido, factos concretos, com base nos quais, se possa ter concluído que existe um efectivo concreto e real perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
existem fundamentos de facto e de direito que justifiquem e sustentem a aplicação das medidas de coacção de suspensão do exercício de funções como farmacêutica e de suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade arguida que detém a Farmácia B….

III. 2. Vejamos primeiro, o essencial das razões vertidas no despacho recorrido (no que à recorrente se reporta):

“(…)
quanto à arguida C…, indiciam (…) os autos que a mesma, desde data não apurada de 2011, vem obtendo receitas falsas, prescritas por médicos a quem pedia que emitissem tais receitas, que posteriormente facturou ao SNS, isto sem que exista qualquer movimentação real na farmácia dos medicamentos constantes dessas receitas. Apesar de constituída arguida a 22 de maio de 2014, a arguida continua com a referida conduta ilícita, da qual retira vantagem económica.
(…)
relativamente à arguida C…, proprietária e directora técnica da farmácia B…, com a denominação comercial D…, Lda.. além de (…) ter admitido a prática dos factos aqui em causa no essencial, também os elementos constantes dos autos, atrás já referidos, revelam para a farmácia B…, constantemente, um valor médio por receita superior à média nacional, chegando a ter um valor de 26% em abril de 2013, e sendo certo que esta farmácia foi responsável entre janeiro de 2012 e abril de 2013 por 1.800.018.44 em valor de SNS.
Posto isto, e face a estes factos, entendemos que se encontra efectivamente indiciada a prática pela arguida C… na forma consumada e em concurso efectivo de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218.º/2 alíneas a) e b) C Penal; um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 alínea e) e 4 C Penal; um crime de corrupção activa para acto ilícito, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 374.º/ 1 e 374.º-A/2 C Penal e de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º/1 e 5 da Lei do Cibercrime.
A forma reiterada, continuada e organizada pela qual esta actividade tem vindo a ser desenvolvida por todos os arguidos, as elevadas quantias monetárias de que se têm apropriado, a natureza do esquema delineado (de falsa prescrição de medicamentos, em que as receitas falsas serviam para colmatar outras receitas devolvidas pelo SNS ou vendas suspensas e também para ficcionar a venda de medicamentos, pagando o Estado através do SNS as respectivas comparticipações) e a circunstância de os arguidos, todos eles, saberem agora que os factos descritos se encontram a ser investigados (com o óbvio perigo de instruírem eventuais testemunhas e ocultarem ou destruírem provas), permitem-nos concluir, por um lado, pela existência de perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e também pelo perigo de continuação da actividade criminosa, sendo, no caso da arguida C…, gritante este último perigo (já que, mesmo depois de ter sido constituída arguida, continuou a sua actividade ilícita) e salientando-se ainda, quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa relativamente a todos os arguidos, que este resulta da natureza dos crimes indiciados e da vantagem patrimonial que dos mesmos é possível obter.
Pelo exposto, justifica-se a aplicação, a todos os arguidos, de medida mais gravosa do que o TIR, artigo 204.º alíneas b) e c) C P Penal.
Assim e em observância e nos termos do disposto nos artigos 198.º, 199.º, 200.º, 204.º, 205.º e 206.º, o tribunal entende que é adequado e proporcional aplicar à arguida C…, as medidas de coacção de:
- apresentação periódica, uma vez por semana, junto do posto policial da sua área de residência;
- não se ausentar do país, para o efeito fazer a entrega do passaporte nos autos, no prazo de dez dias;
- a suspensão do exercício de funções como farmacêutica, devendo para o efeito fazer a entrega nos autos da cédula profissional, em 10 dias, sendo dado ainda conhecimento dessa suspensão de funções à Ordem dos Farmacêuticos;
- a suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade comercial arguida que detém a Farmácia B…, devendo transmitir a gerência a outrem no prazo de 15 dias;
- não contactar, por qualquer meio, com os funcionários da Farmácia B…, nem frequentar as instalações da Farmácia B…;
- prestar uma caução no montante de € 5.000, a depositar nos autos no prazo de 20 dias;
relativamente à necessidade de aplicação da medida de suspensão de funções, damos por reproduzido o que acima dissemos sobre a arguida E… e voltamos a sublinhar que esta arguida, nem mesmo depois de saber da pendência de um processo crime contra si, se coibiu de continuar a praticar os factos aqui em causa e que o montante da caução a fixar nos parece adequado à situação económica que aqui descreveu.
E o que acima fora dita é que, “(…) ainda que se entenda que a proibição do exercício de qualquer profissão, função e/ou actividade só pode ser decretada quando essa interdição possa vir a ser imposta como efeito dos crimes imputados, face aos crimes que concretamente lhe estão imputados e ao disposto no artigo 66.º/2 C Penal e, considerando a actividade desenvolvida pela arguida, não se vê qualquer óbice legal à aplicação desta medida. Muito pelo contrário, atendendo à gravidade dos factos praticados, à sua continuidade no tempo e ao prejuízo económico causado e à facilidade com que todo este esquema foi montado e levado a efeito, o tribunal considera totalmente indispensável à satisfação das exigências cautelas do caso tal aplicação.
(…)”.

III. 3. Abordaremos, de seguida as questões suscitadas, pela ordem da sua precedência lógica.

Argumenta a arguida que,
dos factos que lhe foram dados a conhecer e com os quais foi confrontada, não se mostram indiciados aqueles crimes - ou se dos autos constam tais factos ilícitos, os mesmos não lhe foram dados a conhecer, pelo que não podem ser avaliados para efeitos de sustentarem aquelas medidas de coacção, sob pena de violação dos artigos 141.º/4 C P Penal e 28.º/1 e 32.º/1 da CRP;
nem do despacho recorrido constam factos concretos, com base nos quais, se possa ter concluído que existe um efectivo concreto e real perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, daí a violação do disposto na al. b) do artigo 204.º C P Penal;
as medidas de suspensão do exercício de funções não obedecem à norma contida no artigo 199.º C P Penal, norma que tem de ser compatibilizada com a contida no artigo 66.º C Penal, tanto mais que na hipótese da arguida ter cometido aqueles dois crimes – que não concede - os não praticou no exercício da actividade ou função de farmacêutica, fê-lo, antes, como qualquer proprietário, administrador, trabalhador, de uma Farmácia – e os crimes de burla e de falsificação de documento não são susceptíveis de implicar a sanção acessória de interdição do exercício de funções como gerente da sociedade proprietária da Farmácia;
enquanto gerente não é titular de cargo público, funcionária pública, agente da administração, nem esta actividade depende de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública, inexistindo sequer factos que permitam e justificam as medidas de suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade comercial arguida que detém a Farmácia B… e de não contactar, por qualquer meio, com os funcionários daquela Farmácia, nem frequentar as suas instalações, revelando-se assim tais medidas de coacção ora aplicadas inadequadas e excessivas.

III. 3. 1. A questão da existência de indícios da prática pela arguida dos crimes de corrupção activa para acto ilícito, na forma agravada e de falsidade informática.

Argumenta a arguida neste segmento que dos factos que lhe foram dados a conhecer e com os quais foi confrontada, não se mostram indiciados aqueles crimes - ou se dos autos constam tais factos ilícitos, os mesmos não lhe foram dados a conhecer, pelo que não podem ser avaliados para efeitos de sustentarem aquelas medidas de coacção, sob pena de violação dos artigos 141.º/4 C P Penal e 28.º/1 e 32.º/1 da CRP.

Não tem fundamento, desde logo, esta última asserção da arguida.
III. 3. 1. 1. O primeiro interrogatório.

“Relativamente aos actos jurisdicionais atinentes à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial importa que sejam públicos e que o arguido tenha efectivamente meios de se defender, o que passa pelo conhecimento das provas contra ele carreadas e que na perspectiva da acusação justificam a aplicação de medidas de segurança”, cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III vol., 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, 101.
“Uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressu­postos que a podem legitimar”, ibidem, 223.
Enquanto, que, o arguido pode ser acusado por factos que excedam aqueles que foram denunciados tendo a possibilidade de posteriormente, sobre eles, exercer o contraditório - já não lhe pode ser aplicada uma medida de coacção sem que tenha tido a possibilidade de se pronunciar, sobre os factos em concreto que lhe são, indiciariamente, imputados.

Dispõe o artigo 141º/1 e 4 C P Penal, sob a epígrafe de 1.º interrogatório judicial de arguido detido,
n.º 1, “o arguido detido …é interrogado pelo juiz de instrução logo que lhe for presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam”;
nº. 4, “seguidamente, o juiz informa o arguido:
a) dos direitos referidos no artigo 61º/1, explicando-lhos se isso for necessário;
b) dos motivos da detenção;
c) dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e,
d) dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime,
ficando todas estas informações, à excepção das previstas na alínea a) a constar do auto de interrogatório”.
A alteração introduzida no ano de 2007, a este segmento da norma, ocorreu na sequência de decisões proferidas sobre a matéria, pelo Tribunal Constitucional, como de resto, acontece, em relações a muitas outras normas, que passaram a consagrar o entendimento que sobre elas aquele tribunal veio manifestando, ao longo dos tempos.
Com efeito no Ac. 416/2003 aquele Tribunal havia decidido, “ser inconstitucional aquela norma, quando interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório do arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que correram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa”.
Como da mesma forma decidiu no Ac. 607/2003, ser inconstitucional a mesma norma, na interpretação segundo a qual, “no decurso do interrogatório de arguido detido, a exposição de factos que lhe são imputados e dos motivos das detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das infracções penais de que é acusado, da identidade das vítimas como alunos, à data da casa Pia de Lisboa e outras pessoas, mas todas elas menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos, quando o arguido, confrontado com ela, tome a posição de negar globalmente os factos e na ausência de apreciação em concreto da existência de inconvenientes graves naquela concretização”.
Na sequência daquela alteração legislativa, da mesma forma, sofreu alteração o artigo 194º, que hoje, nos nºs. 3, 4 e 5, dispõem que:
nº. 3, “a aplicação de medidas de coacção é precedida de audição do arguido …”;
nº. 4, “a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, ligar e modo;
b) a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítima do crime;
c) a qualificação jurídica dos factos;
d) a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193º e 204”;
nº. 5, ”sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº. anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o nº. 3”.

“O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, artigo 2º da Constituição da República, ao menos quanto àquelas que tenham por objecto a solução da causa em juízo", cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3 ed. pág. 798.
Este dever de fundamentação mereceu consagração constitucional no artigo 205º nº 1 da CRP, provindo já da revisão de 1982, artigo 210º/1, mantido na revisão de 1989, artigo 208º/1.
De notar que nesta última, que deu lugar à actual redacção do artigo 205º/1 imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde antes se remetia para a lei os "casos" em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões "que não sejam de mero expediente", mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à "forma" que ela deve revestir.
Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
“Ao legislador incumbirá, então, definir a "forma" em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado”, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 59/97. Qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.
Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judicias naquele domínio.
O Código de Processo Penal expressa, no artigo 97º/5, o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos actos decisórios: "os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Consagrado este princípio geral, o mesmo Código não deixou de o reiterar relativamente a actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.

Num momento em que o CPP era omisso nesta matéria – quando o artigo 194.º/3 impunha tão só que do despacho judicial que decrete medidas de coacção e de garantia patrimonial constasse a enunciação dos motivos de facto da decisão - escrevia já Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal" II, 1993, 225, que os requisitos de fundamentação daquele despacho deveriam ser "todos os necessários para convencer da sua legalidade". "Sobretudo na fase do inquérito, a cuidada fundamentação é absolutamente essencial para garantir o recurso. É que o arguido não tem acesso aos autos do processo e, por isso, para que o recurso possa ter eficácia importa que seja possível que o tribunal que o há-de apreciar possa tomar conhecimento das razões de facto e de direito que justificaram a aplicação da medida pelo tribunal "a quo""

Dispõe o nº 4 do artigo 27.º da CRP que “Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”, preceituando, por sua vez, o n.º 1 do subsequente artigo 28.º que “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunica-las ao detido, interroga-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”.
Estes específicos normativos constituem concretização, quanto aos momentos processuais aí previstos - privação inicial da liberdade e apreciação judicial da detenção - do princípio geral, plasmado no nº. 1 do artigo 32.º, de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Embora inserido na fase processual do inquérito − na titularidade do Ministério Público − o interrogatório judicial de arguido detido é um acto jurisdicional que tem funções eminentemente garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova. Trata-se de um acto subordinado ao princípio do contraditório, em que o arguido surge como sujeito processual, e não como objecto da investigação, e em que o juiz de instrução deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que partem Ministério Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investigados e da prova recolhida.
Nesta perspectiva, surge como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados.
Da mesma forma, disposições paralelas existem na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, no seu artigo 5º/2 e 4, respectivamente, estipulam que “qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela”, e que “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal”
“O direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo”, pois “saber que não se pode ser detido sem conhecer as respectivas razões é a primeira condição da segu­rança pessoal, é o teste de que se vive numa sociedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito”. Por outro lado, “conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira “igualdade de armas”: para se poder de­fender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido”, sob pena de “não apenas ser ne­gado o princípio da presunção de inocência mas tam­bém a faculdade de a pessoa detida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção”, cfr. Régis de Gouttes, in Louis-Edmond Petiti e outros, La Convention Européenne des Droits de l’Homme – Commentaire article par article, ed. Economica, Paris, 1995, 203-210,

Por seu turno, Ireneu Cabral Barreto, in A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, 102-103, sintetizando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recorda que “o detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade”, conjugando-se o n.º 2 com o n.º 4 deste artigo 5.º, pois “quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe forem comunicados, no mais curto prazo, os factos e as regras jurídicas invo­cadas para o privar dessa liberdade”.
Embora a obrigação de informação prescrita no n.º 2 deste artigo 5.º seja menos estrita que a referida no artigo 6.º, n.º 3, alínea a) (relativa à comunicação da acusação), e não seja exigível que, no próprio momento da detenção, seja comunicada uma descrição completa das suspeitas que pesam sobre o detido, os factos comunicados devem, contudo, permitir-lhe contestar o bem fundado das suspeitas, sendo o grau de exigência de pormenorização variável consoante o conhecimento que a pessoa detida já tenha, devido a anteriores participações em actos processuais, do conteúdo dessas suspeitas.
Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da culpabilidade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência, artigo 32º/2 da Constituição. Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa”, artigo 28º/1 da Constituição.

III. 3. 1. 2. No caso sub judice, a arguida detida foi presente ao JIC, nos termos e para os efeitos do artigo 141.º C P Penal e do respectivo auto de interrogatório resulta que lhe foram comunicados os seguintes factos:

“a arguida C…, é proprietária e diretora técnica da Farmácia B… com a denominação comercial “D…, Lda.”, foi constituída arguida no dia 22/05/2014, no âmbito do inquérito 1625/12.7TAPVZ, entretanto apenso aos presentes autos, porquanto uma vez que, tendo sido analisada a facturação da Farmácia B… foram detectadas várias incongruências entre a facturação ao SNS com as transacções efectivamente realizadas na Farmácia, em prejuízo do erário público.
A arguida C…, desde data não apurada de 2011, vinha obtendo receituário falso, prescrito por médicos que assim lhos solicitava, que posteriormente facturou ao SNS, não existindo qualquer movimentação no stock da Farmácia dos medicamentos constantes das receitas em causa, ou seja, vinha efectuando vendas fictícias.
Porém.
Foi efectuado pela UEI-CCF o relatório de Exploração de Informação n.º… (Julho de 2015), que analisou o receituário incluído em facturas da Farmácia B… e entregues no CCF entre Janeiro de 2012 e Abril de 2015 (vide Anexo D).
Neste período a Farmácia B… foi responsável por € 1.818.484 em valor de SNS.
O score de risco máximo da Farmácia foi de 14 valores, em Novembro de 2012 e entre Junho a Setembro de 2013.
A Farmácia possui constantemente um valor médio por receita superior à média nacional, chegando a ter um valor de 26% acima da média em Abril de 2013.
A taxa de comparticipação média registada na Farmácia é também superior à média nacional.
Tais valores, acima da média nacional, são fortes indicadores de referência em situações potenciais de burla ao SNS.
A arguida C…, quando constituída arguida, ficou sujeita em à medida de coacção de termo de identidade e residência em 22.05.2014 – artigo 196º, do Cód. de Processo Penal.
Certo é que tem continuado a manter a conduta ilícita.
A arguida C…, como responsável da Farmácia B…, em data não apurada que se situa no segundo semestre de 2015, recebeu pelo menos 16 receitas médicas prescritas pelo médico F…, tendo como local de prescrição G…, sendo três receitas datadas de 24.09.2015 e as restantes de 16.12.2015, receitas prescritas ao mesmo utente H… (fls. 906).
No dia 29.01.2016 foi realizada busca à Farmácia B…, tendo-se constatado que a arguida C… continua com a sua conduta ilícita, obtendo ganhos de valor consideravelmente elevado, no aviamento de dispensa de medicamentos com base em receitas forjadas, que vem solicitando a várias médicos seus conhecidos, situação de que tem perfeito conhecimento, por disso também tirar vantagem económica, apresentando tais receitas ao SNS que, por sua vez ludibriada pela arguida e demais visados nos autos, vem efectuando as devidas comparticipações, com benefício patrimonial à arguida e à Farmácia B… de que é responsável.
Realizada que foi pesquisa informática à base de dados do software I…, utilizado na Farmácia B…, com recurso a quatro querie`s (consultas informáticas):
Facturação a entidades (Listagem de todas as receitas facturadas pela Farmácia às diversas Entidades);
Movimentação de Stock (Listagem da movimentação do stock de todos os medicamentos da Farmácia);
Histórico de vendas (Listagem do histórico de vendas de todos os medicamentos da Farmácia);
Lista de Encomendas (Listagem de todos os medicamentos encomendados e recebidos pela Farmácia);
De todas estas listagens foram gerados os respectivos ficheiros em formato excel (extensão xls).
Para apuramento do valor indiciário da fraude ao SNS, foi utilizada a querie “Facturação a entidades”, da qual constam as seguintes informações:
- Número da receita;
- Nome do medicamento;
- Código do medicamento;
- Quantidade;
- Data de facturação à entidade;
- Número de documento de venda associado à facturação;
- Preço de venda ao público (PVP);
- Valor de comparticipação (SNS);
- Entidade;
Foram criados quatro ficheiros da querie “Facturação a entidades” em excel relativos aos anos 2012, 2013, 2014 e 2015.
Foi o referido ficheiro trabalhado de forma a obter uma listagem de todas as receitas que foram facturadas ao SNS sem ter qualquer número de venda associado, para o período compreendido entre Junho de 2014 e Outubro de 2015 (período posterior à constituição de arguido, ocorrida em 22-5-2014) ou seja, facturação de receitas médicas ao SNS sem qualquer suporte documental nas vendas registadas na contabilidade da Farmácia (vide Anexo i).
Desta forma, foram apurados os seguintes valores através da aplicação “querie”



Razão pela qual resultam fortes indícios que o SNS pagou indevidamente à Farmácia B…, de que a arguida C… é responsável, apenas entre Junho de 2014 e Outubro de 2015, a título de comparticipações o valor de € 43.940,26 (quarenta e três mil novecentos e quarenta euros e vinte e seis cêntimos), comprovando-se que a arguida C…, continuou a sua actividade de fraude ao SNS, mesmo após a sua constituição como arguida e interrogatório judicial subsequente”.

Factos – que como vimos já - foram tidos como susceptíveis de fazer incorrer a arguida na prática de um crime burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218.º/2 alíneas a) e b) C Penal, um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 alínea e) e 4 C Penal, um crime de corrupção activa para acto ilícito, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 374.º/1 e 374º-A/2 C Penal e um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º/1 e 5 da Lei do Cibercrime.
O estrito e rigoroso cumprimento deste segmento da norma contida no n.º 4 do artigo 141.º C P Penal - dar conhecimento dos factos, entendidos, no seu sentido naturalístico - não pode, assim, ser colocado em causa.
Assim, nesse segmento, o critério normativo seguido, do qual terá resultado a comunicação à arguida dos factos con­cretos que lhe eram imputados, das circunstâncias essenciais à sua defesa, o que lhe terá permitido assegurar a sua oportunidade de defesa em relação às causas que determinaram a sua detenção, se mostra, concordante, quer com o que a lei ordinária exige, quer conforme, com a própria Constituição da República, artigo 28.º/1.
Da mesma forma, de resto, em relação à comunicação dos elementos probatórios.
E, não tem fundamento a argumentação da arguida, porque, não há dúvida que os autos evidenciam que aquando do primeiro interrogatório judicial, foi confrontada com os factos supra descritos, com os receituários prescritos pelo clínico F…, bem como, com o resultado das pesquisas informáticas efectuadas aquando da busca às instalações da Farmácia B….
Há que salientar, a este propósito que, à arguida foi entregue, naquele acto, uma cópia do despacho do Ministério Público de fls. 939 a 971, com descrição dos factos e da prova coligida nos autos, conforme consta de fls. 977.
De resto, há que afirmar que ela própria no interrogatório reconheceu a sua conduta e os proveitos obtidos.

III. 3. 1. 3. Se bem que a arguida apenas afirme, sem o tentar demonstrar, sequer, não existirem indícios da prática daqueles dois crimes – daí partindo para a afirmação de que lhe possam ter sido ocultados factos – e se o que resulta é que todos os factos lhe foram transmitidos e comunicados, então, a alegação da falta dos indícios, que, neste momento têm que se fortes, fica reduzida, tão só, àquela precisa e concreta vertente da questão.

A noção de fortes indícios deve ser interpretada com uma abrangência específica, ou seja, correspondendo à necessidade “de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura, ié. não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade”, cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, I, 995.
Segundo outra interpretação, a noção de fortes indícios comporta uma exigência acrescida da probabilidade de condenação relativamente à dos indícios suficientes, noção consagrada no artigo 283º/1 C P Penal, a propósito da acusação, devendo notar-se que já estes pressupõem a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento notando-se a diferença apenas na maior fragilidade dos elementos considerados, já que resultam de uma actividade não contraditória, sem imediação nem oralidade, cfr. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, 1968, 37 e Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1974, 133.
Surge assim, facilmente compreensível, aquela maior exigência, pois que é muito mais grave sujeitar alguém a prisão preventiva do que deduzir contra ela, acusação.
Compulsados os autos e tendo presente a prova já produzida e convocada no despacho recorrido, cremos, que, efectivamente, se pode, fundadamente concluir pela indiciação, forte, dos apontados factos.
Isto porque, efectivamente a prova produzida é susceptível de traduzir a existência de fortes indícios da responsabilidade da arguida, tal como ali acolhida.
Assim, cremos que efectivamente, perante o contexto e o circunstancialismo, apurados, há que afirmar, que os autos contêm indícios fortes de que a arguida está incursa – a tramitação ulterior do processo o confirmará, ou não - na prática dos crimes, todos, eles, que indiciariamente, lhe foram imputados.

III. 3. 1. 4. Cumpre aqui e agora referir que se não pode ter como colocada no recurso pela arguida a questão da qualificação jurídica ou da subsunção dos factos ao Direito.
Com efeito, para que se pudesse entender que tal questão vinha suscitada, haveria que o afirmar sem margem para qualquer dúvida.
Isto porque, como se sabe, a propósito da forma como se deve proceder à alegação da violação de normas, preceitos ou princípios jurídicos - em bloco, por atacado, sem preocupação de especificação, de concretização, de demonstração, desde logo, dos segmentos das normas, ou da concretização dos princípios, em causa, que se mostrem desrespeitados - quem recorre não se pode limitar a proclamar, muito menos, a sugerir ou aventar hipóteses de violações normativas, erros de julgamento, vícios da decisão.
Tem obrigatoriamente, até pelo princípio da lealdade, probidade e honestidade, a que está vinculado, de fazer a crítica das soluções para que propendeu a decisão de que recorre, aduzindo os motivos do seu inconformismo, a base jurídica em que se apoia e o caminho que deveria ter sido percorrido ou que haverá a percorrer.
Não basta alvitrar a violação de normas constitucionais, nem sugerir a violação de norma legais; necessário é afirmar e tentar demonstrar a incorrecção da aplicação do Direito e o sentido em que as apontadas normas foram interpretadas e o sentido com o qual o deveriam ter sido.
Com efeito, dispõe o artigo 412º/2 C P Penal, que versando o recurso, matéria de direito, as conclusões devem indicar o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou a norma, que tem por violada, ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ser aplicada.
Ora a esta regra básica, não obedeceu – nem o pretendeu fazer, de resto - seguramente, a arguida, em termos de pretender colocar em causa a bondade de operação de subsunção dos factos ao direito.
Donde, com este fundamento, terá que sofrer as consequências derivadas do incumprimento do ónus que sobre ela recaía, seja o não conhecimento desta questão, pois que não tem o Tribunal de recurso, em casos que tais, que iniciar qualquer manobra exploratória, destinada a suprir as omissões dos recursos, descobrindo hipotéticas razões de discordância não enunciadas.

III. 3. 2. A verificação do pressuposto da alínea b) do artigo 204.º C P Penal.

III. 3. 2. 1. Coloca a arguida em causa a existência, no despacho recorrido, de factos concretos, com base nos quais, se possa ter concluído que existe um efectivo concreto e real perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.

Neste particular defende a arguida que do despacho recorrido não constam factos concretos, com base nos quais, se possa ter concluído que existe um efectivo concreto e real perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, daí a violação do disposto na alínea b) do artigo 204.º C P Penal.
O que entronca na questão da suficiência, ou não, da fundamentação de facto e de direito do despacho.
A arguida estabelece uma ligação entre esta sua tese e o facto de pugnar pela não verificação de tal pressuposto.
Como vimos já, do despacho recorrido devem constar os muito precisos e concretos elementos de facto e de direito, cuja falta importa a sua nulidade.
A questão centra-se, então, em se o que dele consta consente as conclusões extraídas, o que se traduz em questão de substância e de mérito e não, processual e de forma.
A arguida apenas coloca em causa a afirmada existência do perigo de perturbação do inquérito, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, deixando incólume o afirmado perigo de continuação da actividade criminosa.
O que só por si deixa intacta a validade e pertinência da justificação para aplicação de qualquer das medidas de coacção, pois que basta a existência de qualquer um daqueles perigos, para a sua aplicação.
Isto é, mesmo, que se entendesse (como pretende a arguida) não se verificar o perigo de perturbação do inquérito, pela verificação (que a arguida não coloca em casa) do perigo de continuação da actividade criminosa, sempre tinha justificação a aplicação das medidas, cuja pertinência a arguida coloca em causa.

De qualquer forma.

III. 3. 2. 2. Como é sabido, as medidas de coacção e de garantia patrimoniais “são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias”, cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 231/2.
A aplicação das medidas de coacção – que vão além do TIR - no nosso ordenamento processual, está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º, do CPP, em que avultam os princípios da adequação e da proporcionalidade, como dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º, como ainda dos específicos atinentes à concreta medida de coacção, de proibição de contactos com determinada pessoa, no artigo 200º - ou no artigo 31.º/ alínea d) da Lei 112/2009 de 16SET.
Explicitando o princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coacção, o artigo 191º/1 C P Penal, dispõe que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
As medidas de coacção estão ainda subordinadas aos princípios da adequação e da proporcionalidade, artigo 193º/1, não devendo ser aplicada qualquer medida de coacção quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, artigo 192º/2.
Qualquer uma das medidas de coacção impostas à arguida, onde se incluem, então, as aqui impugnadas – como todas as outras previstas na lei, com excepção do termo de identidade e residência, não pode ser aplicada, se em concreto, se não verificar:
fuga ou perigo de fuga;
perigo de perturbação do decurso do inquérito e nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova;
perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, artigo 204º alíneas a), b) e c) C P Penal.
Finalmente, acresce que para aplicação das medidas impugnadas, é, ainda, necessário haver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos, artigo 199º/1 C P Penal.

Apesar de ser patente a divergência entre o que se consigna, por um lado, no despacho recorrido e por outro, nas alegações de recurso, o certo é que - por isso mesmo - se evidencia que a questão subjacente a este ponto será de fácil resolução.
Em relação à continuação da actividade criminosa, mais do que perigo, está bem evidenciado nos autos, que a continuação da actividade criminosa é uma realidade, absolutamente indesmentível, isto porque, a arguida depois de constituída arguida continuou, por mais ano e meio, a sua actividade criminosa, da mesma natureza, nos mesmos moldes e no mesmo âmbito – enquanto directora técnica e proprietária da Farmácia B… – a evidenciar uma actividade recalcitrante, que não seria abandonada voluntariamente, porventura por efeito dos fáceis, elevados e injustificados, provento que propicia.
De resto e, a propósito do requisito da alínea c) do artigo 204.º C P Penal, importa referir que, tem que ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao objecto do próprio processo e, não já, de medida de segurança a ele alheio.
A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado e, já não em relação a qualquer outra.
É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual actividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado.

O que nos remete, afinal para a apreciação da existência do perigo de perturbação do inquérito.
No despacho recorrido assim se concluiu, com base na forma reiterada, continuada e organizada pela qual a arguida vinha actuando, mesmo depois de ter sido constituída arguida, em 22.5.2014,
Ora se qualquer uma das situações do artigo 204.º C P Penal deve constituir conclusão a extrair da materialidade, indiciariamente, apurada, seja de factos concretos que a possam suportar em concreto, o apontado perigo de perturbação do inquérito, na aquisição conservação e veracidade da prova, mostra-se por demais evidente, no caso concreto, perante a realidade dos factos indiciados – como, de resto, do despacho recorrido, expressamente resulta:
“a arguida, proprietária e directora técnica da farmácia B…, com a denominação comercial D…, Lda., desde data não apurada de 2011, vem obtendo receitas falsas, prescritas por médicos a quem pedia que emitissem tais receitas, que posteriormente facturou ao SNS, isto sem que exista qualquer movimentação real na farmácia dos medicamentos constantes dessas receitas;
apesar de constituída arguida a 22.5.2014, a arguida continua com a referida conduta ilícita, da qual retira vantagem económica;
a forma reiterada, continuada e organizada pela qual esta actividade tem vindo a ser desenvolvida, as elevadas quantias monetárias de que se tem apropriado, a natureza do esquema delineado (de falsa prescrição de medicamentos, em que as receitas falsas serviam para colmatar outras receitas devolvidas pelo SNS ou vendas suspensas e também para ficcionar a venda de medicamentos, pagando o Estado através do SNS as respectivas comparticipações) e a circunstância de se encontra a ser investigada (com o óbvio perigo de instruírem eventuais testemunhas e ocultarem ou destruírem provas), permitem-nos concluir, por um lado, pela existência de perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova”.

Não há, por isso, quaisquer, sérias ou fundadas, dúvidas que a conclusão da existência do perigo de perturbação do inquérito está sustentada nos factos indiciariamente apurados.
A questão será, então, a de saber se a fundamentação aduzida é suficientemente sólida para sustentar a aplicação das suspensões agora impugnadas.
Importa, assim, apreciar da bondade da aplicação das decretadas suspensões, isto é, saber se encontra, ou não, justificação - de facto e de direito - a aplicação de tais medidas cautelares, em face das exigências que o caso concreto exige.
E, desde logo, saber se se mostram necessárias, adequadas e proporcionais as que foram aplicadas e aqui impugnadas.
A questão centra-se, então, decisivamente, em saber qual a medida cautelar que se justifica aplicar, em concreto, para obviar ou impedir, de forma eficaz, os invocados perigos.
E assim entramos no conhecimento da derradeira questão.

III. 3. 3. A existência de fundamentos de facto e de direito que justifiquem e sustentem a aplicação das medidas de coacção de suspensão do exercício de funções como farmacêutica e de suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade arguida que detém a Farmácia B….

Neste capítulo entende a arguida que as medidas de suspensão do exercício de funções não obedecem à norma contida no artigo 199.º C P Penal, norma que tem de ser compatibilizada com a contida no artigo 66.º C Penal, tanto mais que na hipótese da arguida ter cometido aqueles dois crimes – que não concede - os não praticou no exercício da actividade ou função de farmacêutica, fê-lo, antes, como qualquer proprietário, administrador, trabalhador, de uma Farmácia – e os crimes de burla e de falsificação de documento não são susceptíveis de implicar a sanção acessória de interdição do exercício de funções como gerente da sociedade proprietária da Farmácia e, que,
enquanto gerente não é titular de cargo público, funcionária pública, agente da administração, nem esta actividade depende de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública, inexistindo sequer factos que permitam e justificam as medidas de suspensão do exercício de funções como gerente da sociedade comercial arguida que detém a Farmácia B… e de não contactar, por qualquer meio, com os funcionários daquela Farmácia, nem frequentar as suas instalações, revelando-se assim tais medidas de coacção ora aplicadas inadequadas e excessivas.

III. 3. 3. 1. Atentemos.

Dispõe o artigo 199º, do Cód. de Processo Penal:
“1 - Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida de coacção, a suspensão do exercício:

a) de profissão, função ou actividade, públicas ou privadas;
(…)
sempre que a interdição do respectivo exercício possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado.
2 - Quando se referir a função pública, a profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública, ou ao exercício dos direitos previstos na alínea b) do número anterior, a suspensão é comunicada à autoridade administrativa, civil ou judiciária normalmente competente para decretar a suspensão ou a interdição respectivas”.
Nos termos do artigo 66.º C Penal,
“1 - O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:
a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes; b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.
2 - O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública”.

Ora, no que ao caso interessa, a Ordem dos Farmacêuticos é uma associação pública que abrange e representa os licenciados em Farmácia ou em Ciências Farmacêuticas que exercem a profissão farmacêutica ou praticam actos próprios desta profissão em território nacional, sendo pessoa colectiva de direito público – cfr. artigo 1º dos respectivos Estatutos.
O exercício da actividade farmacêutica tem como objectivo essencial a pessoa do doente, considerando-se farmacêuticos todos os membros inscritos na Ordem dos Farmacêuticos.
Os farmacêuticos acham-se vinculados ao cumprimento dos deveres resultantes da sua inscrição na Ordem dos Farmacêuticos, qualquer que seja o âmbito ou a modalidade do exercício profissional em que estejam implicados - cfr. artigos 1º e 2º do Código Deontológico da Ordem dos Farmacêuticos.
Nos termos do artigo 6º do mesmo Código, os farmacêuticos exercem, entre outras, as actividades de,
“armazenamento, conservação e distribuição por grosso dos medicamentos de uso humano e veterinário e dos dispositivos médicos”, alínea d);
“preparação, controlo, selecção, aquisição, armazenamento e dispensa de medicamentos de uso humano e veterinário e de dispositivos médicos em Farmácias abertas ao público, serviços farmacêuticos hospitalares e serviços farmacêuticos privativos de quaisquer outras entidades públicas e privadas”, alínea e);
“interpretação e avaliação das prescrições médicas”, alínea g);
“informação e consulta sobre medicamentos de uso humano e veterinário e sobre dispositivos médicos, sujeitos e não sujeitos a prescrição médica, junto de profissionais de saúde e de doentes, de modo a promover a sua correcta utilização”, alínea h);
“acompanhamento, vigilância e controlo da distribuição, dispensa e utilização de medicamentos de uso humano e veterinário e de dispositivos médicos”, alínea i);
“todos os actos ou funções directamente ligados às actividades descritas nas alíneas anteriores”, alínea m).
Ainda, nos termos do artigo 19º do mesmo diploma, o farmacêutico, no exercício da sua profissão, deve “pautar-se pelo estrito respeito das normas deontológicas, sendo-lhe vedado: a) Estabelecer conluios com terceiros; b) Consentir a disponibilização de medicamentos sem a intervenção directa do farmacêutico ou dos seus colaboradores; c) Praticar actos susceptíveis de causar prejuízos a terceiros; d) Colaborar com entidades que não assegurem a necessária independência no exercício da sua actividade enquanto profissional livre; e) Dispensar produtos que não estejam científica e tecnicamente comprovados ou não registados nos serviços oficiais; f) Praticar actos contrários à ética profissional que possam influenciar a livre escolha do utente”.
Estas medidas cautelares, de suspensão, como parece evidente, têm como finalidade a prevenção da continuação da actividade criminosa, por um lado e, a salvaguarda da prova, por outro - quer aquela que já tiver sido adquirida à data da sua aplicação, quer ainda a que ainda se pretenda obter.
Medidas que fazem todo o sentido ser aplicadas nas situações em que a criminalidade surge especificamente relacionados com a actividade profissional do agente.
Medidas - sem olvidar que para a sua aplicação é condição necessária, que possa ser aplicada como pena acessória a proibição do exercício dessa mesma actividade ou função - extensíveis ao exercício de profissão, função ou actividade privada, desde que dependam de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.
Ora no caso concreto, a actividade profissional que a arguida exerce, enquanto, farmacêutica, concita em si, a qualidade de directora técnica, pelo facto de ser farmacêutica, bem como, a de gerente da sociedade unipessoal que detém a Farmácia B….
Em virtude da sua inscrição na Ordem dos Farmacêuticos, é-lhe concedida competência para exercer os actos próprios dos farmacêuticos.
E, como prerrogativa de ser titular e gerente da sociedade que detém a farmácia, pratica os actos próprios e inerentes ao direito de propriedade e de gerente, no caso concreto.
E é no âmbito destes pessoalmente incindíveis atributos que a arguida exerce as suas funções, praticando actos próprios dos farmacêuticos e actos próprios de proprietário/gerente de uma farmácia.
Estamos assim, perante uma farmacêutica, directora técnica da farmácia de que é proprietária e gerente e, é no âmbito desta sua, dupla, actividade, competência e função, que vem a praticar os factos indiciariamente apurados.
Nem se diga, como ela o faz, que, não é por ser farmacêutica e/ou no exercício dessa função ou nessa qualidade que possa ter praticado os factos.
Se é certo que, como ela cita, farmacêutico é o agente de saúde que desenvolve actividades que contribuem para a salvaguarda da saúde pública da comunidade no âmbito da promoção da saúde, informação e uso racional do medicamentos, não menos certo é, que no caso, coincidem na mesma pessoa, a qualidade de farmacêutico, director técnico, de proprietário e de gerente da farmácia, não se podendo distinguir, cindir, na mesma pessoa, tais qualidades, atributos e funções.
Nem se diga, como faz a arguida, que a função de gerência da sociedade unipessoal que detém a farmácia não é passível de ser a final objecto da pena acessória de proibição e, por isso não poderia agora, nesta fase, ser objecto de suspensão.
Como vimos o artigo 66.º/2 C Penal, a propósito daquela pena acessória dispõe que o que se aplica ao titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.
E, como é sabido, a abertura de uma farmácia depende da concessão de alvará.
De acordo com a legislação portuguesa a instalação de uma nova farmácia processa-se por abertura de concurso público.
As farmácias só podem abrir ao público depois de lhes ser atribuído o respectivo alvará, emitido pelo Infarmed, Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde IP, a quem incumbe o licenciamento e a fiscalização das regras técnicas de instalação, equipamento e funcionamento das farmácias.
Com efeito, dispõe-se no Decreto Lei 307/2007, de 31 de Agosto, que aprovou o Regime jurídico das farmácias de oficina, a propósito de abertura da farmácia ao público, no seu artigo 25.º, sob a epígrafe de “licenciamento e alvará”:
1. o licenciamento de novas farmácias é precedido de um procedimento concursal que permita a pré-seleção dos candidatos que preencham os requisitos fixados no respectivo aviso de abertura.
2. Quando o número de candidatos pré-selecionados exceda o número de farmácias a instalar, há lugar a um sorteio que define a respectiva hierarquização, para efeitos de atribuição do direito à instalação.
3. A regulamentação do disposto nos números anteriores é aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde.
4. As farmácias só podem abrir ao público depois de lhes ser atribuído o respectivo alvará, emitido pelo INFARMED.

Há que recordar que a liberalização do acesso à propriedade da farmácia veio colocar termo à ideia de que apenas a concentração da propriedade na pessoa do Licenciado em Ciências Farmacêuticas estaria em condições éticas de salvaguardar o perigo de que interesses mercantilistas, ou outros, se sobrepusessem ao, prevalecente, da saúde pública.
O caso dos autos bem evidencia que o regime anterior se fundava num sofisma.
Donde não é por ser proprietária/gerente que deixa de ser directora técnica e, não é por ser directora técnica que deixa de ser gerente.
E da mesma forma não é por deixar de exercer uma de tais funções que deixa, necessariamente de exercer a outra, dado o carácter absolutamente umbilical e indissociável que no caso concreto, as une.
Obviamente, que, no caso, o crime poderia ter sido cometido por quem fosse apenas proprietário, ou gerente e, já não farmacêutico e director técnico. Como, da mesma forma apenas por este, com o desconhecimento, em absoluto, daqueles.
Mas o que releva, é que no caso concreto, a realidade é substancialmente, diversa e, por isso a merecer, da mesma forma, tratamento diverso – foi praticado por quem é em simultâneo farmacêutico, director técnico, proprietário e gerente.
Foi na farmácia de que a arguia é proprietária, gerente e directora técnica, que vinham sendo “aviadas” receitas forjadas – a seu pedido e, naturalmente, no seu, indivisível materialmente, interesse pessoal - com a consequente simulação de venda e entrega de medicamentos e do pagamento do preço, a cargo do utente (se fosse caso, disso) para posteriormente ser a farmácia reembolsada pelo SNS da parte a seu cargo, a ele respeitante - sobre o fornecimento de medicamentos que afinal não existiam
Conduta através da qual a arguida, directora técnica/gerente, vinha obtendo fáceis e elevados proventos económicos, a que já se habituara a incluir nos seus rendimentos - a revelar, ostensiva e manifesta falta deontológica, no exercício da função de directora técnica e, em qualquer caso, das 2 personalidades e qualidades em que estava investida (de direcção técnica e de gerência) – grosseira violação da lei penal.
E, assim, surge a justificação, para a suspensão do exercício de ambas as actividades, o que no caso além de ter cobertura legal, no caso concreto, surge como o único modo de salvaguardar a utilidade e eficácia, em termos de desiderato a interesse prático a atingir.
A suspensão apenas do exercício de uma das vertentes em que a personalidade da arguida se desdobra - não só, não teria efeito útil, na prática, como seria, inevitavelmente, boicotada, pelo exercício da outra.
Este
facto, aliado ao carácter reiterado da conduta criminosa, de continuar e persistir - não obstante, a sua anterior constituição como arguida – torna, patente, necessária e óbvia, a conclusão de que a sua manutenção no exercício das mesmas duas funções que vinha exercendo, como farmacêutica/proprietária/gerente da Farmácia B…, no contacto com os fornecedores, com os médicos, com os seus próprios funcionários e com os utentes, propiciaria, não só, a continuação da solicitação e uso de receitas forjadas, para uso na simulação de venda de medicamentos, com a injustificada e ilícita sobrecarga do orçamento do serviço nacional de saúde e, por isso, do erário público – para mais num momento de ostensivo e manifesto, depauperamento das finanças públicas – no que se traduziria, mais do que, perigo concreto para a continuação da actividade delituosa, a certeza absoluta de que tal se iria continuar a passar, como, de resto, aconteceu no passado recente.
Como, da mesma forma, resulta claro, por outro lado, que a manutenção deste estado de coisas, com a permanência da arguida farmacêutica/directora técnica e gerente, a exercer tais funções, quer, nas instalações física da Farmácia, quer por via remota, seria susceptível de provocar a perturbação do inquérito, em concreto, na aquisição, manutenção e veracidade da prova recolhida e a recolher no decurso da investigação, através da ocultação/dissipação ou manipulação de documentos, na dissuasão e sugestionamento das testemunhas - desde logo dos seus próprios funcionários - que já depuseram nos autos e daquelas que ainda se vislumbre a necessidade de inquirir.
Da investigação até agora realizada, concretizada pelos factos que fortemente se indiciam contra a arguida, concluiu-se que a mesma abusou da função que exerce, como farmacêutica/directora técnica e gerente, com violação manifesta e grave dos deveres inerentes a esse cargo e desrespeito pelas mais elementares regras inerentes ao exercício de tais funções, fazendo prevalecer não só os interesses mercantilistas (que só por si não mereceria crítica séria) mas evidenciando uma desinibição grosseira para o enriquecimento ilegítimo e ilícito, desde logo, com a prática de actos merecedores da censura penal, não revelando a probidade necessária ao exercício de nenhuma dessas funções, lesando o erário público – num momento particularmente difícil, em termos de dívida pública e de défice orçamental - em quantias particularmente avultadas.
Assim sendo, não se mostram desproporcionadas as medidas de coacção aplicadas à arguida, mormente, as agora impugnadas, que se têm, como adequadas e necessárias para fazer face às exigências cautelares que o caso requer.
Donde, a conclusão, de que as medidas de coacção aplicadas à arguida e agora impugnadas de proibição do exercício das referidas actividades, de farmacêutica/directora técnica e de gerência, não só, se mostram, absolutamente, necessárias e adequadas ao caso concreto, como se mostram, de resto, as únicas, que possam assumir alguma eficácia na remoção dos apontados perigos.
Ou no dizer da decisão recorrida “face à facilidade com que todo este esquema foi montado e levado a efeito, o tribunal considera, totalmente, indispensável à satisfação das exigências cautelas do caso, a aplicação destas medidas de coacção.
Isto porque desde logo, as decretadas, proibição, de contactar com os funcionários e de frequentar as instalações físicas da farmácia, por si só, não tem a virtualidade de o satisfazer.
Isto dito, o recurso está votado ao insucesso, não merecendo o despacho recorrido nenhuma das críticas que a arguida lhe dirige.
Assim se conclui por que as apontadas medidas de coacção de suspensão foram aplicadas de acordo com os respectivos pressupostos legais e finalidades, pelo que terá que improceder a pretensão da arguida de as ver revogadas.
IV. DISPOSITIVO

Nestes termos e com os fundamentos indicados, acordam os Juízes que compõem este Tribunal, em negar provimento ao recurso apresentado pela arguida C…, em função do que se confirma o despacho recorrido, no segmento que vem impugnado.

Taxa de justiça pela arguida que se fixa no equivalente a 4 Uc,s.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Porto, 2016.Junho.15
Ernesto Nascimento
Artur Oliveira