Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
981/19.0T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FURTO DE VEÍCULO
ÓNUS DA PROVA
SOBRESSEGURO
Nº do Documento: RP20220125981/19.0T8FLG.P1
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação.
II - No alegado sobresseguro, cabe à seguradora provar que o valor do veículo é inferior ao que ficou consignado no contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 981/19.0T8FLG.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA., residente na Rua…, …, Lote .., …, ….-…, freguesia de …, do concelho de …, intentou acção declarativa de condenação contra Companhia de Seguros BB., S.A. (com a denominação social CC., S.A.), com sede na Av…, …, ….-… Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento do montante €17.000,00 a título de indemnização e relativos ao valor segurado, €1.500,00 a título de danos morais, na restituição do valor de €372,89 relativo ao prémio de seguro cobrado após o furto da viatura, valores acrescidos dos juros legais, contados a partir da citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que é dona e legítima proprietária do veículo automóvel de marca A…, modelo …, matrícula ..-TQ-.., tendo celebrado com a R. um contrato de seguro onde estava incluída a responsabilidade civil obrigatória, os danos da própria viatura e, entre outras, a cobertura de furto ou roubo, titulado pela apólice n.º ……….., pelo capital de €17.000,00.
E que, nas circunstâncias de tempo e lugar constantes dos autos, a identificada viatura, que se encontrava devidamente fechada e estacionada nos lugares de estacionamento da via pública, foi furtada.
Participou às autoridades policiais, tendo a denúncia dado origem ao processo-crime n.º 25.19…, que correu termos no DIAP de …, tendo o inquérito sido arquivado com fundamento na não existência de indícios quanto à autoria dos factos denunciados.
Contestou a R., por impugnação, pugnando pela improcedência da acção.
Segundo alega, na sequência da participação do furto alegado na petição inicial, por intermédio dos seus serviços de peritagem, procedeu a uma averiguação do mesmo tendo concluído no sentido de não ter ficado determinada a verificação do furto participado.
Acrescentou que que o veículo em apreço nos autos havia sido posto à venda e, por não ter conseguido obter o preço de venda que pretendia, a A. retirou-o de venda e celebrou com a R. o contrato de seguro titulado pela apólice n.º …………, o qual, contrariamente ao anterior seguro celebrado com outra seguradora (e que a A. anulou) ficou a prever a cobertura de furto ou roubo e sendo que foi celebrado cerca de três meses antes da alegada ocorrência do furto em apreço nos autos.
E que diligenciou pela leitura das chaves do veículo em causa, tendo apurado que a última utilização foi dias antes do alegado furto o que, aliado às demais aludidas circunstâncias, a levou a concluir pela não existência de furto como acontecimento involuntário e fortuito e, subsequentemente, não verificada a sua obrigação de indemnizar a A. pelo valor real do TQ.
Nos termos e com os fundamentos constantes dos autos, foi deferida a intervenção principal provocada de DD. - Instituição Financeira de Crédito, S.A., que impugnou, por desconhecimento, os factos em litígio, concluindo que, em virtude de qualquer pagamento efectuado nos autos, deverá primeiro ser assegurada a liquidação do crédito com vista ao cancelamento da reserva de propriedade, passando, então a A. a ser a proprietária da viatura e titular do direito ao remanescente da indemnização peticionada.
Foi realizada audiência prévia, onde se proferiu despacho saneador.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida que, julgando a acção parcialmente procedente,
1. Condenou a R. a pagar à A. a quantia de €17.372,89 (dezassete mil trezentos e setenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), sendo:
a. €17.000,00 relativos ao capital seguro;
b. €372,89 relativos ao prémio de seguro cobrado a 09.04.2019, quantias acrescidas de juros legais contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
2. Absolveu a R. do demais peticionado.
Inconformada, apelou a R., apresentando as seguintes conclusões:
A não demonstração do furto alegado na presente acção
1. À luz de toda a prova produzida e do Direito aplicável, não resultou demonstrada a ocorrência do furto alegado como causa de pedir na presente acção, não resultando verificado o risco coberto pelas garantias do contrato de seguro celebrado entre recorrente e recorrida, impondo-se assim a absolvição da recorrente de todos os pedidos contra si formulados.
2. Da análise às declarações prestadas pela recorrente, ouvida em declarações e depoimento de parte na sessão de julgamento de 22.04.2021, depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, dos 00:00.01 aos 00:31:32, transcritas no corpo das alegações, resulta ter a mesma negado que alguma vez o veículo TQ tivesse sido anunciado para venda e que alguma vez tivesse sido contactada a propósito do furto participado por alguém ligado à recorrente.
3. Resulta do depoimento prestado pelas testemunhas EE. e FF., ambos peritos averiguadores que prestam serviço para a recorrente, o segundo exercendo ainda o cargo de supervisor de averiguação, ambas ouvidas na sessão de julgamento de 22.04.2021, depoimentos gravados através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, o primeiro dos 00:00.01 aos 00:09:36 minutos e o segundo dos 00:00.01 aos 00:27:32 minutos, que tanto um como o outro contactaram pessoalmente com a recorrida na zona da sua residência, em ….
4. Resulta ainda da conjugação de tais depoimentos e, em especial, do depoimento prestado pela testemunha FF. que, por vontade da recorrida, o veículo foi colocado para venda no site da OLX no período de vigência do contrato de seguro titulado pela apólice nº ……….
5. O seguro celebrado entre a recorrente e a recorrida não contemplava, em sede de cobertura de danos próprios, a garantia de choque, colisão e capotamento.
6. Do depoimento das testemunhas EE. e FF. resulta ainda que o veículo TQ possuía caixa manual e o seguro foi celebrado para um veículo de caixa automática, sendo que o valor comercial do veículo TQ na data da celebração do seguro não era superior a €13.000,00.
7. O documento de fls 68 a 70, referente à leitura das chaves do veículo, deveria ter sido considerado no sentido de dele se concluir, entre o mais, que o veículo circulou pela última vez às 08h42m28s do dia 10.01.2019, porque nada nos autos permite concluir que os elementos constantes do documento de fls 68 a 70 não são fiáveis, credíveis e não correspondem à situação do veículo aquando da última utilização das chaves.
8. Da prova produzida resulta que a recorrida negou factos que na realidade aconteceram, que o veículo TQ foi colocado à venda antes da celebração do seguro com a recorrente, que o seguro só contemplou a cobertura de furto ou roubo, que o valor comercial do veículo era inferior ao valor seguro, que a leitura das chaves indica como data da sua última utilização o dia 10.01.2019 e que o veículo tinha problemas no motor – o que impõe, na perspectiva da recorrente, que se devam dar como não provados os factos constantes de 5, 6, 12 e 19 dos factos provados da douta sentença recorrida e que sejam dados como provados os factos constantes de 3, 4, 6 e 7 dos factos não provados da douta sentença recorrida.
9. Nos termos do disposto no art.º 662º do CPCivil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão inversa – o que desde já respeitosamente se requer a este Venerando Tribunal, no sentido de serem dados como não provados os factos constantes de 5, 6, 12 e 19 dos factos provados e como provados os factos constantes de 3, 4, 6 e 7 dos factos não provados, todos da douta sentença recorrida.
10. Alterada a matéria de facto nos termos acima requeridos, verifica-se que da conjugação dos factos aditados com os factos constantes de 20, 21, 22, 23, 24 e 25 dos factos provados da douta sentença recorrida, resulta não verificada a ocorrência do furto ou de qualquer outro sinistro com cobertura na apólice, sendo que o ónus da prova da ocorrência do furto pertencia à recorrida, cfr. art. 342º do CCivil.
11. Não tendo ficado demonstrado o furto do veículo, indemonstrada fica a ocorrência de risco coberto pelas garantias do contrato de seguro titulado pela apólice nº ……….. e a acção deverá improceder na sua totalidade.
Sem Conceder,
O valor do veículo e a obrigação de indemnizar
12. A recorrente dá aqui por reproduzido o acima alegado quanto à impugnação da matéria de facto referente aos factos não provados em 6 e 7 da douta sentença recorrida, os quais devem ser dados como demonstrados nos termos do disposto no art.º 623º do CPCivil.
13. O veículo TQ é um ligeiro de passageiros da marca A…, modelo… , do ano de fabrico de 2013, importado usado – cfr. 25 dos factos provados e nos factos provados; tinha mais de 194.00 quilómetros percorridos à data do furto alegado na petição inicial – matéria aditada; o seu valor comercial à data da celebração do contrato de seguro titulado pela apólice nº ……… e à data do furto alegado na petição inicial não era superior a €13.000,00 – matéria aditada.
14. O seguro ficou a prever um capital de cobertura do risco furto ou roubo de €17.000,00, conforme resulta da apólice de seguro junta aos autos.
15. Sendo o valor venal do veículo igual ou inferior ao valor seguro, a recorrente apenas terá de responder até à concorrência do valor venal – é o que decorre do disposto nos art.ºs 128º e 132º, ambos da Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, e do princípio geral da obrigação de indemnização consagrado no art.º 562º do CCivil.
16. I - Verifica-se uma situação de sobresseguro sempre que, ab initio ou no decurso do contrato, o objecto do seguro tenha um valor inferior ao declarado, ou seja, um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro.
III - Em caso de sobresseguro (originário ou posterior), o contrato deve, por força do princípio do indemnizatório, na forma em que este se encontra consagrado na legislação sobre seguros, ser considerado ferido de invalidade na parte excedente, ou seja, na parte em que o valor exceda o do objecto segurado – arts. 128.º e 132.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008. cfr. Ac. do STJ, de 24.02.2012, disponível em www.dgsi.pt, no qual foi Relator o Exmo Senhor Juiz Conselheiro Mário Mendes.
17. O caso em discussão nos presentes autos configura uma situação de sobresseguro e a indemnização pelo desaparecimento do veículo, se vier a considerar-se ser devida – o que não se concede – não deve ser fixada em montante superior a €13.000,00.
O pagamento do prémio do seguro
18. O prémio do seguro anual (com a duração de um ano) celebrado entre recorrente e recorrida foi fixado em €745,70 e as partes acordaram que o seu pagamento seria realizado semestralmente, ou seja, o valor total do prémio seria dividido em duas fracções.
19. Nos termos do regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro, aprovado pelo DL 142/2000, de 15 de Julho, o prémio correspondente a cada período de duração do contrato é devido por inteiro, sem prejuízo de poder ser fraccionado para efeitos de pagamento, e os prémios ou fracções são devidos nas datas estabelecidas na apólice – cfr. art.ºs 3º e 4º do Anexo ao diploma legal acima referenciado.
20. A recorrente cobrou a segunda fracção do prémio, no valor de €372,89, na data em que tal valor era devido.
21. Até ao fim da anuidade, o contrato de seguro não foi anulado nem foi resolvido.
22. A recorrente não tem de reembolsar a recorrida pelo valor da fracção cobrada porque tal valor seria sempre devido, independentemente da verificação ou não de risco susceptível de accionar as coberturas da apólice.
23. Na douta sentença recorrida fez-se menos acertada interpretação dos factos e errada aplicação da Lei, designadamente, designadamente, do art.º 607º do CPCivil, dos artºs 342º e 562º do CCivil, dos art.ºs 123º e segs, 128º e 132º, todos do RJCS, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril e do regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro.
Pelo exposto,
Na procedência das conclusões do recurso da recorrente, deve a douta sentença ora recorrida ser revogada nos termos supra descritos, assim se fazendo
J U S T I Ç A.
Contra-alegou a A., pugnando pela manutenção do decidido.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. Encontra-se registada a favor da A. a propriedade do veículo automóvel de marca A…, modelo…, matrícula ..-TQ-...
2. Encontra, igualmente, registada uma reserva a favor de DD. – Instituição Financeira de Crédito, S.A., quanto ao veículo automóvel identificado em 1.
3. A A. celebrou com a R. um contrato de seguro onde estava incluída a responsabilidade civil obrigatória, os danos da própria viatura e, entre outras, a cobertura de furto ou roubo, titulado pela apólice n.º …………., pelo capital de €17.000,00.
4. Tal contrato teve o seu início em 10.10.2018.
5. No dia 15 de Janeiro de 2019, entre as 09H00 e as 10H45, na Rua…, na União de freguesias de … (…), …, …, … e …, concelho de …, foi furtada a referida viatura.
6. A viatura estava devidamente fechada e estacionada nos lugares de estacionamento naquela via pública.
7. A A. era, ao tempo, detentora das duas chaves da viatura.
8. Quando constatou o desaparecimento do seu veículo, a A. foi, imediatamente, participar o ocorrido às autoridades policiais.
9. Apresentando queixa no Posto de … da Guarda Nacional Republicana (Comando Territorial do …) contra incertos.
10. Tal denúncia deu origem ao processo-crime n.º 25.19…, que correu termos no DIAP de ….
11. O inquérito foi arquivado com fundamento na não existência de indícios quanto à autoria dos factos denunciados.
12. Porém, o veículo jamais foi recuperado, não sendo possível identificar o seu paradeiro, nem o autor do furto.
13. Em virtude do sucedido, a A., tendo celebrado um contrato de seguro que lhe garantia o ressarcimento dos danos próprios da viatura, entre os quais por furto ou roubo, participou à R. tal furto.
14. Tendo entregue as duas chaves do veículo à R. em 07.02.2019.
15. Posteriormente, a R. devolveu-as à A..
16. E voltou a solicitá-las, em Março/2019, tendo sido novamente entregues à R. em 29.03.2019, a pedido desta.
17. A R. remeteu à A. em 04.04.2019, a informação de que constatou a existência de um conjunto de irregularidades que a levaram a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita e/ou imprevista, pelo que declinou qualquer responsabilidade pela regularização dos prejuízos reclamados.
18. Em 09.04.2019 a R. cobrou o prémio de seguro relativo ao período compreendido entre 10.04.2019 e 09.10.2019 no montante de €372,89.
19. A A. encontra-se e sentiu-se deveras desagradada, injustiçada e totalmente descontente com a evolução e tratamento dado pela R. à presente situação.
20.O TQ foi objecto do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………. na GG… Companhia de Seguros, S.A., de 11.10.2017 até 10.10.2018.
21. Aquele seguro não contemplava qualquer cobertura de danos próprios, designadamente e para o que aqui importa, não contemplava a cobertura de furto ou roubo.
22. A R., através dos seus peritos, realizou diligências com vista ao diagnóstico / leitura das chaves do TQ, inicialmente no decurso do mês de Fevereiro de 2019 e posteriormente em Abril, uma vez que da leitura realizada em Fevereiro apenas foi possível apurar os quilómetros que o veículo registava percorridos.
23. Da leitura realizada em Abril num concessionário da A…, (ou seja, num concessionário da marca do veículo) apurou-se que a chave suplente do TQ havia tido a sua última utilização às 12h33m39s do dia 06.11.2017, registando nessa altura 181954 km percorridos.
24. E que a chave principal do TQ havia tido a sua última utilização às 08h42m28s do dia 10.01.2019, registando nessa altura 194620 km percorridos.
25. O TQ é um veículo ligeiro de passageiros da marca A…, modelo… Diesel, veículo que foi importado usado, do ano de fabrico de 2013.
*
Factos não provados
Não resultou provado que:
1. Como a R. não prestava qualquer esclarecimento acerca do assunto, a A. tenha entrado novamente em contacto com a mesma, solicitando a resolução de acordo com o contrato de seguro que havia celebrado, tendo-o feito, inclusive, presencialmente, no Porto, em 26.03.2019.
2. Ocasião em que lhe tenha sido garantido que iriam indemnizar nos dias imediatamente a seguir.
3. No período em que vigorou o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………. o TQ, por vontade da A., tenha sido colocado à venda.
4. Por não ter conseguido obter o preço que pretendia, a A. tenha retirado o TQ de venda.
5. O TQ tenha sido alegadamente furtado de um local ermo, afastado do centro de ….
6. O valor comercial do TQ, à data da celebração do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………. e à data do furto alegado na petição inicial, não era superior a €13.000,00.
7. O veículo TQ tivesse mais de 194.000 quilómetros percorridos à data do furto alegado na petição.
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Os demais factos foram considerados pelo Tribunal como conclusivos, de direito ou irrelevantes para a boa decisão da causa.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC ), consubstancia-se na seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto;
- furto do veículo;
- subsidiariamente, sobresseguro do veículo;
- restituição da segunda fracção do prémio paga.
3.1. Da impugnação da matéria de facto
São os seguintes os pontos da matéria de facto impugnados:
Factos provados
5. No dia 15 de Janeiro de 2019, entre as 09H00 e as 10H45, na Rua…, na União de freguesias de … (…), …, …, … e …, concelho de …, foi furtada a referida viatura.
6. A viatura estava devidamente fechada e estacionada nos lugares de estacionamento naquela via pública.
12. Porém, o veículo jamais foi recuperado, não sendo possível identificar o seu paradeiro, nem o autor do furto.
19. A A. encontra-se e sentiu-se deveras desagradada, injustiçada e totalmente descontente com a evolução e tratamento dado pela R. à presente situação.
Factos não provados
Não resultou provado que:
3. No período em que vigorou o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………. o TQ, por vontade da A., tenha sido colocado à venda.
4. Por não ter conseguido obter o preço que pretendia, a A. tenha retirado o TQ de venda.
6. O valor comercial do TQ, à data da celebração do contrato de seguro titulado pela apólice n.º …….. e à data do furto alegado na petição inicial, não era superior a €13.000,00.
7. O veículo TQ tivesse mais de 194.000 quilómetros percorridos à data do furto alegado na petição.
A 1.ª instância motivou a sua convicção nos termos seguintes:
Quanto à matéria de facto dada por provada, o tribunal formou a sua convicção de forma livre e imparcial atendendo aos factos que foram admitidos por acordo, pelas declarações e depoimento de parte da Autora, pela prova testemunhal produzida e pela prova documental junta aos autos, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 607º, nº5 do Código de Processo Civil.
A respeito da livre apreciação da prova escreveu já Lebre de Freitas, referindo que:
“No âmbito da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do Julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança” (in “Introdução do Processo Civil”, Coimbra Editora, 1996, pág. 160/161).
Acrescenta Tomé Gomes que “quanto ao critério da livre convicção, há que ter presente que o convencimento do julgador se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de grau de probidade adequado às exigências práticas da vida. Para a formação de tal convicção não basta um mero convencimento intimo do foro subjectivo do juiz, mas tem de ser suportada numa persuasão racional, segundo critérios de probabilidade séria, baseada no resultado da prova apreciado à luz das regras de experiência comum e atentas as particularidades do caso” (in “Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil”, revista do CEJ, 2005, n.º3, pág. 158/159).
*
Assim,
A Autora, AA., desempregada, prestou as suas declarações de forma que o Tribunal considerou, em termos genéricos, credíveis e genuínas, sem olvidar a posição processual que ocupa nos autos e sendo que foram sendo corroboradas pelas demais prova que se produziu e nos termos que infra se aludirão.
Foi, desta feita, a Autora segura ao relatar os factos relativos ao dia em que o veículo desapareceu, tendo concretizado que se deslocou ao centro de …, com a mãe, para a levar à EDP e fazer compras, tendo estacionado o carro numa zona que se chama “Maio” (local onde se realiza festa anual e popular em …, próxima da avenida principal) e uma vez que aí, contrariamente à avenida principal, o estacionamento não é pago, mais tendo assegurado que fechou o carro.
Mais foi a Autora credível ao relatar que, quando chegou ao local onde havia deixado o veículo estacionado, o mesmo não mais se encontrava lá, motivo pelo que ligou à mãe do ex-namorado para a ir buscar e, juntas, deslocaram-se à esquadra para apresentar queixa.
No que concerne ao seguro em vigor, relatou a testemunha que, a conselho da mãe do ex-namorado, fez um seguro melhor e sem que soubesse, em concreto, qual a cobertura. Ora, sem prejuízo de aos cidadãos em geral incumbir um dever de lerem e estarem cientes dos contratos que celebram, dizem-nos as regras de experiência comum que muitas vezes são celebrados contratos sem que as pessoas o façam de forma devidamente informante a absolutamente cientes da sua amplitude. Se acrescentarmos a isto a circunstância de a Autora ter, à data da celebração do contrato, pouco mais de 20 anos, não nos parece inverosímil que, tendo ido celebrar novo contrato de seguro automóvel, a conselho da mãe do ex-namorado e acompanhada deste e do seu padrasto, que não se tenha inteirado devidamente da verdadeira amplitude do mesmo e, assim, da efectiva cobertura, ou seja, é crível que a Autora tenha a noção que celebrou um contrato de seguro melhor, mas sem saber ao acerto, que cobria o dano de furto.
Quanto à possibilidade de venda do veículo, foi a autora clara ao esclarecer que nunca o pôs formalmente à venda, tendo o ex-namorado falado com umas pessoas que tinham um stand e no sentido de estarem disponíveis para vender, sem que o tenha anunciado.
De notar que foi patente nervosismo da Autora, contudo, não foi atribuído o nervosismo como eventual decorrência de estar a tentar ludibriar o Tribunal ou de conscientemente faltar à verdade, mas pela mera circunstancia de estar em Tribunal e de não compreender a posição assumida pela Seguradora, tanto mais que não claudicou nas suas declarações, nem caiu em contradição, tendo respondido de forma consistente e coerente a tudo quanto lhe foi perguntado.
*
A testemunha HH., reformada e pessoa que criou a Autora, prestou o seu depoimento de forma bastante insegura, tanto que não tinha conhecimento directo da maioria dos factos em apreço nos autos.
Denotando algum alheamento, assegurou, contudo, a testemunha que se recordava que no dia do desaparecimento a “filha” a havia trazido ao centro de … para ir à EDP, tendo estacionado o carro no “Maio” e sendo que, cerca de 2h mais tarde, a Autora chegou a casa com a “ex-sogra” a dizer que lhe tinham roubado o carro.
A razão de ciência da testemunha advinha, assim, de ter circulado com a Autora no dia do desaparecimento da viatura, nada mais de pertinente sabendo, designadamente quanto ao seguro em vigor ou ao pagamento do carro.
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A testemunha II…, mediadora de seguros, prestou o seu depoimento de forma serena e sem mostrar qualquer interesse pelo desfecho da lide, motivo pelo qual foi tida em consideração pelo Tribunal.
Foi assertiva a testemunha ao explicar que não houve qualquer intervenção directa na determinação do valor pelo qual o veículo foi segurado, tendo esclarecido que colocaram a matrícula do carro no sistema e, automaticamente, o sistema indicou o valor.
Mais declarou que a sua funcionária viu o veículo e tirou fotografias,
Resultou, assim, claro do depoimento da testemunha que não houve por parte da Autora qualquer tentativa de inflacionar o valor pelo qual o veículo foi segurado.
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A testemunha JJ., sócia gerente de uma pastelaria, prestou o seu depoimento de forma consistente e sem revelar qualquer parcialidade.
Note-se que a testemunha é a mãe do ex-namorado da Autora, tendo resultado patente que actualmente não tinha qualquer relação com a mesma, tendo, de resto, a mesma declarado, que havia cortado relações com aquela.
Assim, não tendo resultado qualquer tentativa de abono à tese da Autora (poderia até resultar o inverso), o que fluiu do depoimento da testemunha, foi que esta relatou de forma objectiva os factos relativamente aos quais tinha conhecimento directo.
A testemunha confirmou, assim, que a Autora se deslocava diariamente no veículo identificado nos autos e que foi por esta contactada no dia do desaparecimento, muito nervosa, a chorar, pedindo para a ir buscar, o que fez, tendo ido juntas apresentar queixa.
Confirmou que a zona do “Maio” é muito próxima da Avenida principal de ….
Foi, ainda, pertinente, o depoimento da testemunha quanto à celebração do seguro já que espontaneamente referiu que foi a própria testemunha que aconselhou a Autora a mudar de seguro uma vez que o carro era bom, pelo que seria prudente fazer seguro melhor. A expressão da testemunha foi notória do alheamento da Autora quanto a estas questões: “Miúda de 20 anos, Não pensa.”
Corroborou, ainda, que no dia de celebração do seguro, a autora foi acompanhada pelo seu filho (à data namorado da Autora) e pelo seu marido.
*
As testemunhas KK. e LL., peritos averiguadores, este último com funções de coordenação, prestaram os respectivos depoimentos, sendo que a sua razão de ciência advinha de terem feito diligências quanto à averiguação do sinistro em apreço nos autos.
Sem prejuízo de assim ser, foram os depoimentos das testemunhas profícuos em conclusões e parcos em factos.
Assim, as testemunhas corroboraram, em síntese, a posição da Ré no sentido de declinar a responsabilidade e sendo que tal posição assentava nas seguintes circunstâncias:
- Valor do veículo – alegadamente sobrevalorizado;
- Hora do furto – hora anormal para desaparecimento do carro;
- Alteração da cobertura do seguro;
- Local do desaparecimento – lugar ermo;
- Leitura das chaves – da leitura das chaves resultou, como ultima utilização do veículo, uma data anterior à do desaparecimento.
Vejamos, então:
No que concerne ao valor do veículo, resulta já da motivação que antecede, que a Autora não teve qualquer intervenção na atribuição do valor relativamente ao qual foi o mesmo segurado, sendo que, de todo o modo, não resultou provado nos autos que o veículo tivesse valor substancialmente inferior ao valor pelo qual foi segurado.
A questão da hora do furto, pese embora se aceite que os furtos sejam maioritariamente praticados de noite, não cria, por si, fundadas suspeitas quanto à versão dos factos carreada para os autos pela Autora e no seguimento da motivação que antecede.
Quanto ao local do desaparecimento, contrariamente ao que a Ré quis fazer crer, não se trata de lugar ermo, nem isolado, antes muito próximo do centro (nas palavras da própria testemunha LL., 2 ruas ao lado da Rua Principal), sendo verosímil a explicação de ter estacionado ali, já que o estacionamento não é, naquela zona, pago.
Mais pertinente é a questão da leitura das chaves.
Efectivamente resultou provado nos presentes autos que a ré, através dos seus peritos, realizou diligências com vista ao diagnóstico/leitura das chaves do TQ, inicialmente no decurso do mês de Fevereiro de 2019 e posteriormente em Abril, sendo que da leitura realizada em Abril num concessionário da A… se apurou que a chave suplente havia tido a sua última utilização às 12h33m39s do dia 06.11.201 e que a chave principal do TQ havia tido a sua última utilização às 08h42m28s do dia 10.01.2019.
Os depoimentos da Autora e das testemunhas HH. e JJ. foram, contudo, credíveis quanto ao circunstancialismo atinente ao desaparecimento do veículo.
A data de apresentação da queixa, permite-nos situar no tempo a conduta descrita pela autora e testemunhas e uma vez que a queixa foi apresentada no dia do desaparecimento.
Por outro lado, pese embora se reconheça que a leitura das chaves foi feita na marca (A…), cumpre não esquecer que não se trata de prova pericial e que, conforme resulta das informações juntas aos autos pela própria A…, o aparelho de leitura não tem qualquer tipo de aferição ou manutenção, tendo apenas as actualizações de software on-line, sempre que o fabricante as disponibiliza.
Aqui chegados, cumpre fazer uma leitura global da prova produzida e reforçar em que medida formou o Tribunal a sua convicção e em que medida se suscitaram as dúvidas que justificaram o elenco da factualidade que resultou como provada e como não provada.
Assim, entende o Tribunal que não está o segurado onerado com a prova cabal e absoluta da existência e circunstancialismo do furto propriamente dito, isto equivaleria a onerar a parte com uma prova que se revelaria, na maioria das vezes, como impossível.
Desta feita, tem a jurisprudência aludido a que ao segurado bastará, na maioria das vezes, a prova de que diligenciou, designadamente junto das autoridades, da apresentação de queixa na sequência do furto já que, admitindo a possibilidade de ocorrência do mesmo, pouco mais se poderia provar.
Cumprirá, então, atender ao circunstancialismo que envolva o alegado furto e na medida em que do mesmo poderão resultar dúvidas quanto à sua ocorrência. Neste mesmo sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdão de 22/11/2018, ao referir que: “O segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação.” (processo 18262/17.2T8LSB.L1- 2, disponível em www.dgsi.pt).
Aqui chegados, temos que, no encadeamento da motivação que antecede, por um lado a participação às autoridades policiais e a descrição do circunstancialismo relativo ao desaparecimento da viatura foram credíveis e consistentes e, por outro, não logrou a seguradora provar circunstâncias que afastassem a primeira aparência do furto e uma vez que o argumento mais consistente se cingia à leitura das chaves, o que, não só não ofereceu garantias bastantes da sua fidedignidade, como, por si só, se revelou insuficiente.
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A testemunha MM. profissional de seguros, para lá da corroborar a existência da apólice e do respectivo modo de pagemento, não tinha conhecimento directo de quaisquer factos pertinentes para os autos motivo pelo qual, pese embora a sua disponibilidade, não contribuiu para a formação de convicção do Tribunal.
A testemunha NN. , administrativa do DD., não tinha igualmente, qualquer conhecimento directo dos facto sem apreço nos autos, tendo relatado apenas os factos relativos ao financiamento para aquisição do veículo em apreço nos autos, bem como os elementos relativos às prestações pagas e a reserva da propriedade.
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No que concerne aos factos não provados e para lá do já expendido, o Tribunal concluiu assim na medida em que nenhuma prova sobre os mesmos foi feita ou que se encontravam em contradição em relação aos factos que o Tribunal considerou provados, no seguimento da motivação que antecede.
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O Tribunal teve em consideração ao abrigo do disposto o artigo 5º, n.º2 do Código de Processo Civil, os factos instrumentais supra aludidos, designadamente os atinentes ao equipamento de leitura e chaves da A…, factos esses que, atenta a sua instrumentalidade apenas na motivação foram referidos, não tendo sido levados à especificação da factualidade considerada como provada e como não provada.
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No que concerne aos documentos, o Tribunal teve em consideração os seguintes:
- Cópia de certidão, quanto à propriedade do veículo e existência de reserva;
- Cópia da apólice, quanto ao respectivo teor, designadamente elementos de identificação do tomador, veículo, data e condições;
- Cópia de auto de notícia, quanto ao respectivo teor, designadamente a data;
- Cópia de notificação do arquivamento do inquérito crime, quanto a tal circunstância;
- Missivas trocadas pelas partes, quanto ao respectivo teor;
- Informações da A… quanto à leitura das chaves e respectivo equipamento;
- “Contrato de mútuo”, quanto ao respectivo teor;

Apreciando:
A primeira questão a apreciar nesta sede é a da relevância da impugnação do ponto 19 da matéria de facto provada.
A reapreciação da matéria de facto constitui uma garantia das partes no sentido de ver reapreciado o julgamento por uma instância de recurso, assumindo natureza instrumental da decisão, e não um exercício académico.
Por isso, apenas há que conhecer da matéria de facto que seja relevante para a apreciação do mérito da causa, não se podendo desperdiçar recursos escassos em actividades inúteis. Assim o impõe o princípio da economia processual, com ganhos evidentes em matéria de celeridade.
Neste sentido, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 2014.05.27, Moreira do Carmo, www.dgsi.pt.trc, proc. n.º 1024/12.0T2AVR.C1; de 2014.01.14, Henrique Antunes, www.dgsi.pt.trc, proc. n.º 6628/10.3TBLRA.C1; de 2012.04.24, Beça Pereira, www.dgsi.pt.trc, proc. n.º 219/10.6T2VGS.C1.
Ora, o ponto 19 da matéria de facto provada em nada releva para a apreciação do recurso, já que o pedido formulado a título de danos não patrimoniais improcedeu.
Termos em que não se aprecia a impugnação do ponto 19 da matéria de facto provada.
Subsiste a impugnação dos pontos 5, 6 e 12 da matéria de facto provada e 3, 4, 6 e 7 da matéria de facto não provada.
Os pontos 5, 6 e 12 da matéria de facto provada prendem-se com a ocorrência do furto, que a apelante impugna.
Normalmente, pela natureza das coisas, não haverá prova directa do furto, praticado de forma sub-reptícia, evitando a presença de testemunhas e câmaras de vigilância.
Por essa razão tem-se entendido que, cabendo ao segurado lesado a prova do furto nos termos do artigo 342.º, n.º 1, CC, basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança.
Como se lê no acórdão da Relação do Porto, de 10.07.2019, Rodrigues Pires, www.dgsi.pt.jtrp, proc. n.º 1521/17.1T8AMT.P1, em que que a ora Relatora figura como 1.ª Adjunta,
I - Numa ação em que o autor invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro com a ré, em consequência de se ter verificado um furto, é a ele que incumbe a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito.
II - Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efetuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova direta deste, mas sim que, tendo apresentado a respetiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa.
III - Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais.
Feita a prova da apresentação da queixa e de outros elementos coadjuvantes que permita formar esse juízo de verosimilhança,
À seguradora caberá a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto decorrente aquela participação conjugada com os referidos elementos coadjuvantes.
Nesse sentido, acórdão da Relação de Guimarães, de 16.05.2019, Paulo Reis, www.dgsi.pt.jtrg, proc. n.º 3164/17.0T8VNF.G1; desenvolvidamente, o acórdão da Relação de Lisboa, de 22. 11.2018, Pedro Martins, www.dgsi.pt.jtrl, proc. n.º 18262/17.2T8LSB.L1-2 e jurisprudência aí citada.
Vejamos:
Questiona a apelante que o Tribunal recorrido tenha relevado as declarações da apelada, essenciais para a afirmação do furto, alegando delas resultou uma descrição de factos e de acontecimentos que, conjugados com a demais prova, revelam discrepâncias e incongruências que, em seu entender, abalam a sua credibilidade.
Afirma que a apelada, apesar de ter admitido que quis vender o veículo, negou que o mesmo tivesse sido anunciado para venda.
No que à questão da intenção da venda do veículo concerne, não existe qualquer incongruência nas declarações da apelada.
O que sucedeu foi que o namorado tomou a iniciativa de dizer ao dono de um stand, seu conhecido, que se aparecesse algum comprador estariam interessados em vender, mas não houve nenhum anúncio formal nem o automóvel esteve no stand exposto para venda.
E que efectivamente estava disponível para vender o veículo por que estava a viver com o namorado e não precisavam de dois carros, mas que o mesmo nunca esteve exposto para venda, nem foi anunciado.
A testemunha LL., perito averiguador que presta serviço para a apelante como supervisor de averiguação, declarou que ficou sabendo da intenção de venda do veículo através de umas pessoas que não identificou por que se recusariam a depor, e por que a apelada lhe disse que o veículo tinha sido anunciado no OLX.
Afirma que andou à procura nessa plataforma e não o encontrou, daí concluindo que tinha sido retirado de venda.
A apelada nega que tenha o veículo tenha estado anunciado na referida plataforma.
Face ao exposto, não se pode relevar o depoimento de uma testemunha que não identifica as pessoas que lhe terão dito que o veículo estivera à venda, e afirma que a apelada lhe disse algo a esse propósito que aquela nega.
Recorde-se que o Tribunal recorrido assinalou que o depoimento desta testemunha e o da testemunha EE foram profícuos em conclusões e parcos em factos.
Pelo exposto, os pontos 3 e 4 da matéria de facto não provada assim permanecem.
Outra circunstância que, segundo a apelante, põe em causa a credibilidade da apelada consiste em ter negado que tenha sido alguma vez contactada a propósito deste assunto por alguém ligado à apelante, negação que considera ter sido frontalmente contrariada pelas testemunhas EE e FF, peritos averiguadores que prestam serviço para a apelante
Ora, a circunstância de ter sido contactada ou não pouco relevo assume, não se alcançando que ponha em causa a sua credibilidade, já que daí não retira qualquer favorecimento da sua situação.
Ademais, não temos elementos que permitam questionar a convicção da Mm.ª Juiz recorrida, quer pela vantagem da imediação, quer pela forma cuidada como conduziu a audiência e o rigor com que motivou a matéria de facto fixada.
Outro aspecto que a apelante destaca prende-se com a leitura das chaves do veículo.
Entende a apelante que o documento de fls. 68 a 70, referente à leitura das chaves do veículo, deveria ter sido considerado no sentido de dele se concluir, entre o mais, que o veículo circulou pela última vez às 08h42m28s do dia 10.01.2019, porque nada nos autos permite concluir que os elementos constantes do documento de fls. 68 a 70 não são fiáveis, credíveis e não correspondem à situação do veículo aquando da última utilização das chaves.
Trata-se de um relatório elaborado por um concessionário da A… — M…, S.A. —, a mesma entidade que a fls. 66 declarou que o seu dispositivo de leitura de chaves é um equipamento que não tem qualquer tipo de aferição ou manutenção, contando apenas com actualização de software online, sempre que o fabricante o disponibiliza.
Segundo refere, a chave guarda registo de avarias e quilómetros sempre que é utilizada na viatura, sendo a informação actualizada.
Daqui resulta infirmada a afirmação da testemunha FF. de que o equipamento é certificado.
Embora tenha referido que nunca teve problemas com as chaves da A… (aludiu a um problema com uma chave da B…, sem especificar), não deixou de reconhecer que não existem sistemas 100% fiáveis.
A verdade é que os registos efectuados pelas chaves se destinam fundamentalmente a registar elementos relativos à situação dos veículos que permitam diagnosticar com facilidade o estado e avarias dos veículos.
Aquele relatório, sujeito à livre apreciação do Tribunal, não reveste o rigor necessário que permita afastar a prova testemunhal produzida.
Recorde-se que a testemunha JJ., que aconselhou a apelada a fazer o seguro de danos próprios e a foi buscar à esquadra policial aonde apresentou queixa do desaparecimento do veículo, assumiu não se dar muito bem com a apelada desde que ela se separou do filho.
Por todo o exposto, entendemos que a contraprova feita pela seguradora não foi bastante para cimentar a convicção de que o furto não ocorreu.
Passando ao valor do veículo, entende a apelante que ficou demonstrado através do depoimento das testemunhas EE. e FF., que o valor da viatura não era superior a €13.000,00, pois o modelo seguro tinha caixa manual e não automática, o que implica logo uma diferença de €2.000,00 ou €3.000,00.
No entanto, resultou do depoimento da medidora que celebrou o contrato de seguro em causa que o valor foi atribuído através de um programa de computador, sem qualquer intervenção da apelada, não havendo razão para descredibilizar o seu depoimento.
Referiu ainda que foram tiradas fotografias ao veículo, o que foi corroborado pela testemunha FF., que as consultou.
Aliás, tendo o valor sido fixado pela seguradora sem intervenção do segurado, corresponderia a um verdadeiro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pôr em causa esse valor quando chamada a honrar o contrato de seguro celebrado.
Recorde-se que o artigo 131.º, n.º 1, RJCS, prevê que as partes podem acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado, esclarecendo o n.º 2 que podem acordar, nomeadamente, na fixação de um valor de reconstrução ou de substituição do bem.
Finalmente, não se considerou provada a quilometragem do carro à data do furto em função do que ficou dito supra quanto à leitura das chaves.
Termos em que a matéria de facto se mantém inalterada.

3.2. Do furto do veículo
Pretendia a apelante que a acção fosse julgada improcedente por não se ter provado o furto.
Essa pretensão assentava na alteração da matéria de facto provada, que não ocorreu.
Nessa conformidade, e sem necessidade de mais considerandos, improcede este segmento do recurso.

3.3. Do sobresseguro do veículo
Subsidiariamente, sustenta a apelante a existência de uma situação de sobresseguro, alegando que o valor do veículo à data do furto era de € 13.000,00, e não €17.000,00, valor pelo qual o veículo foi segurado.
O acórdão da Relação de Guimarães, de 30.01.2020, Paulo Reis, www.dgsi.pt.jtrg, proc. n.º 4794/16.3T8GMR.G1 distingue duas situações, conforme o valor do bem a segurar seja indicado pelo tomador do seguro ou fixado por acordo entre tomador e seguradora ou pela seguradora.
No primeiro caso, impende sobre o segurado o ónus de provar o valor do bem na data do sinistro; no segundo, apenas tem de provar, como elemento constitutivo do seu direito, que o valor do bem objecto do seguro foi fixado por acordo das partes ou pela seguradora.
De todo o modo, acrescenta o referido acórdão, citando o acórdão da Relação de Guimarães, de 19.09.2019, Afonso Cabral de Andrade, www.dgsi.pt.jtrg, proc. n.º 8110/17.9T8VNF.G1, constando do contrato o valor do bem, como sendo o capital seguro, deve-se presumir que esse valor emerge do acordo das partes, até prova em contrário.
Nessa conformidade, caberia à apelante provar que o valor do veículo era inferior ao que constava do contrato, o que não logrou fazer como se alcança do ponto 6 da matéria de facto não provada.
Não se encontra, pois, demonstrada qualquer situação de sobrersseguro, estando esta pretensão da apelante votada ao insucesso.

3.4. Da restituição da segunda fracção do prémio paga

Insurge-se a apelante contra o segmento da sentença recorrida determinou a devolução do montante de €372,89 cobrado, relativo ao período compreendido entre 10.04.2019 e 09.10.2019 e tendo em consideração a data de desaparecimento do veículo, respectiva comunicação e lapso de tempo decorrido.

Alega que, nos termos do regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/2000, de 15 de Julho, o prémio correspondente a cada período de duração do contrato é devido por inteiro, sem prejuízo de poder ser fraccionado para efeitos de pagamento, e os prémios ou fracções são devidos nas datas estabelecidas na apólice (artigos 3.º e 4.º).

Apreciando:

O RJCS aprovado pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril, cujo artigo 6.º revogou
o Decreto-Lei n.º 142/2000, de 15 de Julho, estabelece regime idêntico.
Assim, de acordo com o n.º 3 do artigo 52.º, salvo disposição em contrário, o prémio é devido por inteiro, embora o n.º 4 contemple a possibilidade de fracionamento.

Nos termos do artigo do artigo 110.º, n.º 1, RJCS, uma das causas de caducidade do contrato de seguro é a extinção do risco, constituindo a perda total do bem seguro causa de extinção do risco, de acordo com o n.º 2 do mesmo preceito.

Em regra, a cessação antecipada do contrato determina o estorno do prémio calculado pro rata temporis, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 107.º RJCS.
No entanto, a parte final do n.º 1 deste artigo excepciona precisamente as situações em que tenha havido pagamento de prestação decorrente de sinistro.
O que sucedeu no caso vertente com a condenação da apelante a pagar o valor segurado.
Neste segmento, procede a apelação.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação parcialmente procedente, absolve-se a apelante da condenação no pagamento da quantia de €372,89 relativa ao prémio de seguro cobrado em 09.04.2019, e respectivos juros, no mais confirmando a decisão recorrida.

Custas por apelante e apelada na proporção do decaimento (artigo 527.º CPC).

Porto, 25 de Janeiro de 2022
Márcia Portela
João Ramos Lopes
Rui Moreira