Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2226/17.9T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
FACTOS SUPERVENIENTES
Nº do Documento: RP202402082226/17.9T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A oposição à execução mediante embargos pode ocorrer em 2 momentos distintos:
(i) nos 20 dias a seguir à citação;
(ii) em qualquer altura do decurso da execução, desde que fundamentados em factos supervenientes, objetiva ou subjetivamente, contando-se então os 20 dias a partir do dia em que ocorra o facto alegado ou do seu conhecimento pelo executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2226/17.9T8PRT-A.P1





ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I – Histórico do processo

1. AA deduziu «oposição mediante embargos por factos supervenientes» à execução que lhe foi instaurada por A... Limited.
 Alegou que, volvidos 5 anos em que lhe foi processado desconto no vencimento face à penhora ordenada, e passado um ano da cessação dos descontos, ficou convencido que a dívida se encontrava saldada.
Porém, foi agora surpreendido com a renovação da instância executiva, pelo que suscita (i) a prescrição da dívida; (ii) a iliquidez e inexigibilidade da dívida exequenda e (iii) que a mesma é composta por juros abusivamente calculados.
A M.mª Juíza proferiu o seguinte despacho liminar:
«O executado AA veio, a 27.09.2023 apresentar embargos de executado, alegando factos supervenientes.
O executado foi citado para a execução por carta datada de 24.08.2017.
O prazo para a dedução de embargos era de 20 dias, que há muito se esgotou- artº 732º, do C.P.C
O C.P.C não prevê qualquer possibilidade de dedução de embargos por factos supervenientes.
Assim, indefiro liminarmente os embargos, por falta de fundamento legal.»

2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Embargante, formulando as seguintes conclusões:
«A. - É ilícito e inconstitucional o indeferimento liminar dos embargos do recorrente por factos supervenientes, sendo estes atinentes à decisão de renovação da execução e sustentados no pagamento integral da dívida exequenda e no cálculo inintelígivel e abusivo de juros (iliquidez da dívida que sustenta a renovação da execução).
B. - O código de processo civil admite expressamente a possibilidade de dedução de embargos de executado por factos supervenientes, no seu artigo 728.º, n.º 2.
C. - Como alegou, apenas a 18.09.2023, o recorrente teve acesso aos elementos que lhe permitiam analisar a origem do alegado crédito remanescente que sustentou a decisão da renovação da execução, execução que estava extinta desde 26.07.2018, por adjudicação ao exequente do valor proveniente da penhora sobre o vencimento;
D. - Pelo que, datando a propositura dos embargos de 27.09.2023, esta foi apresentada dentro do prazo inscrito nos números 1 e 2, do artigo 728.º, do CPC.
E. - De resto, não conceder ao recorrente o direito a pronunciar-se sobre a renovação da execução com fundamento no pagamento da dívida exequenda e no cálculo abusivo de juros que se lhe pretende imputar, corresponde a uma violação flagrante da proibição da indefesa, do direito ao contraditório e do direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado – artigos 2.º, n.º 2, 3.º, do Código de Processo Civil, e o artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
F. - Sendo, assim, ilegal e inconstitucional a decisão que indefere liminarmente os embargos de executado que tenha fundamento em matéria superveniente, como a renovação da execução de dívida (i) paga, (ii) prescrita, (iii) ilíquida e inexigível, e (iv) correspondente a juros abusivamente calculados.
Termos em que e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, anulando-se o despacho recorrido por violação dos artigos 728.º, n.º 2, bem como dos artigos 2.º, n.º 2, 3.º, do Código de Processo Civil, e o artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, e substituindo-se o mesmo por despacho que ordene a admissão dos embargos e o prosseguimento da instância, com todas as legais consequências.»

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Se a decisão viola o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
· Se podem ser deduzidos embargos por factos supervenientes

5.1. Se a decisão viola o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
Invoca o Embargante que a decisão de indeferimento liminar viola o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
Decorre do art.º 204º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
Através desta norma atribui-se aos tribunais a função de garantes da prevalência dos preceitos constitucionais sobre as normas jurídicas infraconstitucionais aplicáveis ao caso submetido a julgamento (princípio da primazia da constituição).
Resulta deste normativo que a fiscalização da observância dos princípios constitucionais compete a todos os tribunais, independentemente da respetiva categoria. E é uma fiscalização oficiosa, não necessitando de ser invocada pelas partes.
Trata-se de uma fiscalização concreta, efetuada a título incidental, e não principal.
Porém, a questão da (in)constitucionalidade dirige-se à norma aplicada (ou desaplicada) na decisão e não à decisão em si.
Ou seja, em qualquer decisão a tomar no âmbito de um processo em concreto, o Tribunal deve ponderar se alguma das normas (infraconstitucionais) que tem de aplicar respeitam, ou ofendem, os princípios constitucionais. Isto porque, no domínio da fiscalização em concreto tem de existir um nexo incindível entre a constitucionalidade das normas infraconstitucionais a aplicar e a questão que seja objeto do processo.
Daqui resulta, também em conjugação com o art.º 280º da CRP, que o que compete aos tribunais no domínio da apreciação em concreto da constitucionalidade é a apreciação/fiscalização de normas, e não de decisões. Dito de outro modo, o objeto da constitucionalidade é sempre uma norma, ou a interpretação que o tribunal dela fez, e não uma decisão judicial.
Assim o tem entendido o Tribunal Constitucional (TC): «Ora, constitui jurisprudência uniforme deste Tribunal que as decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem ser objecto de recurso de constitucionalidade. Este só pode visar as normas jurídicas que tais decisões tenham desaplicado, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que hajam aplicado, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que as partes lhe dirigiram.» [[1]]
Não se coloca também a questão da interpretação normativa; a inconstitucionalidade é invocada por referência ao art.º 728º nº 2 do CPC e resulta da leitura do despacho de indeferimento liminar que esse preceito não foi sequer considerado, mas apenas o art.º 732º do CPC.
Por fim, não se diga que o Embargante não teve direito ao contraditório. Resulta da consulta dos autos de execução que o agente de execução (AE) declarou a instância renovada em 02/08/2023 e o Embargante foi notificado dessa decisão por ofício datado de 02/08/2023; em 30/08/2023, o Embargante dirigiu requerimento ao AE, discordando da liquidação da dívida para efeitos dessa renovação; os presentes embargos foram instaurados em 27/09/2023. Concluindo, ao Embargante foi dada oportunidade para se pronunciar, e este exerceu-a como bem entendeu.
Donde, a improcedência da invocada inconstitucionalidade da decisão.

5.2. Se podem ser deduzidos embargos por factos supervenientes
A resposta a esta questão parece-nos clara e no sentido afirmativo.
Na verdade, resulta do art.º 728º nº 2 do CPC que “quando a matéria da oposição seja superveniente, o prazo conta-se a partir do dia em que ocorra o respetivo facto ou dele tenha conhecimento o executado”.
Ou seja, além da situação normal de dedução de embargos no prazo de 20 dias a contar da citação, existe a possibilidade de dedução posterior de embargos, desde que fundados em factos posteriormente ocorridos.
A possibilidade de oposição/embargos à execução por factos supervenientes é líquida, quer doutrinal, quer jurisprudencialmente. Assim,
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa - «Ocorrendo superveniência do fundamento de embargos, que tanto pode ser objetiva como subjetiva, o prazo para a sua dedução conta-se a partir da verificação do facto ou do seu conhecimento pelo executado. (…) é legítimo afirmar que existe um ónus de embargar, o que, aliás, se compagina com a previsão de um prazo perentório de 20 dias para o efeito, nos termos do art.º 728º, nº 1, e com o facto de apenas se admitirem posteriormente fundamentos que sejam objetiva e subjetivamente supervenientes, nos termos do nº 2.» [[2]]
Bem como Rui Pinto - «O artigo 728º nº 2 aceita que possa haver oposição à execução deduzida depois daquele momento, quando ela se baseie em “matéria da execução [que] seja superveniente”. Portanto, factos que ocorreram ou foram conhecidos depois do prazo inicial, i.e., “os factos que sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes e que sejam os permitidos pelos artigos 729º a 731º e artigo 857º.
Neste caso, corre um novo prazo de 20 dias sobre a ocorrência ou o conhecimento do facto para o executado se poder opor novamente ou pela primeira vez, se ainda não o fizera.» [[3]]
Jurisprudencialmente, acórdão da Relação de Lisboa, de 22/06/2006, processo nº 4379/2006-6: «1. Dos embargos de executado não está afastada a figura da superveniência dos respectivos fundamentos, pelo que decorrido o prazo para apresentação dos embargos de executado, os factos que sejam objectiva ou subjectivamente supervenientes podem ser atendidos se forem alegados por essa via.»
Da mesma Relação de Lisboa, acórdão de 22/02/2022, processo nº 14/12.8TBALM-A.L1-7: «A oposição à execução que tem por objeto a decisão do Agente de Execução de renovar a instância executiva, pela qual se visa demonstrar que a dívida exequenda já se mostra paga no âmbito da execução, nada mais sendo devido à exequente, sustenta-se na invocação de matéria de oposição superveniente ao decurso do prazo para deduzir embargos de executado. Pelo que, deve aplicar-se o n.º 2 do Art. 798.º do C.P.C. e o prazo de 20 dias para dedução da oposição à execução, com fundamento em matéria superveniente, conta-se da decisão de renovação da instância executiva ou do seu conhecimento pela executada.»
Desta Relação do Porto, acórdão de 20/02/2020, processo nº 3806/09.1YYPRT-A.P1: «Havendo renovação da ação executiva por incumprimento de um plano de pagamento em prestações da dívida exequenda, é admissível a oposição mediante embargos com base em factos supervenientes a esse plano que sejam susceptíveis de integrar um dos fundamentos de defesa, podendo fazê-lo no prazo de vinte (20) dias após o executado ser notificado do requerimento de renovação.»
Bem como o acórdão de 23/03/2000, processo nº 0030376        (ainda no domínio da anterior legislação): «I - No que concerne à oposição por meio de embargos, podem verificar-se duas situações de superveniência:
- a objectiva, quando o facto ocorrer depois da citação do executado;
- a subjectiva, quando, tendo ocorrido anteriormente, só for do conhecimento do embargante depois da citação.» [[4]]
O despacho sob recurso considerou que “O CPC não prevê qualquer possibilidade de dedução de embargos por factos supervenientes”, o que já vimos não ser correto pois tal possibilidade está expressa no art.º 728º nº 2 do CPC.
E foi esse o único motivo para rejeição liminar dos embargos.
Dada a singeleza do despacho liminar recorrido, único objeto deste recurso, não cabe aqui uma apreciação do mérito do que é alegado nos embargos.

6. Síntese conclusiva (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que não seja de indeferimento por esse motivo.

Sem custas, face ao provimento do recurso e à ausência de contra-alegações.



Porto, 08 de fevereiro de 2024
Isabel Silva
Paulo Dias da Silva
Ernesto Nascimento, vencido no segmento da tributação das custas, em conformidade com o seguinte voto de vencido:
[1. O texto legal.
Dispõe o artigo 527.º/1 CPC, que a “decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito”.
E, o n.º 2 que, “entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”.
2. O Contexto do recurso.
Estamos perante o recurso de um despacho de indeferimento liminar do requerimento de embargos de executado, em que o embargante acaba por obter provimento, numa situação de manifesta procedência.
Sem que a exequente, embargada haja contra-alegado.
É certo que a decisão recorrida foi proferida sem que esta houvesse sido, sequer, notificada de tal requerimento.
Notificada e não citada, dado que “se tem entendido que o requerimento inicial de oposição à execução, na sua função processual, se aproxima mais de uma contestação do que de uma petição inicial, pois que não se destina a propor uma acção (…)”, como se decidiu no acórdão de 8.11.2018 deste Tribunal e desta secção.
3. Do regime legal supra enunciado resulta que,
- a responsabilidade pelas custas assenta, a título principal, no princípio da causalidade (indiciado pelo princípio da sucumbência), isto é, as custas serão suportadas pela parte que a elas houver dado causa, entendendo-se como tal a parte vencida, na proporção em que o for;
- só subsidiariamente a responsabilidade pelas custas apelará ao princípio da vantagem ou do proveito resultante do processo, isto é, só quando, pela natureza da acção, não haja lugar a vencimento por qualquer das partes, as custas serão suportadas por quem do processo tirou proveito;
- aqui se consagra o princípio da justiça tendencialmente gratuita para quem obtém ganho de causa. Ou de que o processo – ou recurso - não cause prejuízo a quem obtém ganho de causa;
- e uma realidade é a acção e outra é o recurso;
- ali, o réu perde quando é condenado no pedido e o autor perde quando o réu é absolvido do pedido ou da instância;
- aqui, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento.
4. Aproximação ao caso concreto.
Com o natural devido respeito pela tese que fez vencimento, entendo que o recurso tem que ser tributado.
Cremos carecer de fundamento a não condenação em custas em sede de recurso.
Ainda que o recorrido não tenha contra-alegado, desde que o provimento do recurso lhe seja potencialmente desfavorável, deve ser responsabilizado pelo pagamento das custas do recurso - em sentido estrito, abrangendo apenas eventuais encargos e as custas de parte a liquidar, uma vez que a taxa de justiça devida pela interposição o recurso se encontra necessariamente já paga.
É certo que aqui se pode introduzir a nuance de o recorrido não contra-alegar e o recurso merecer provimento, mas a situação não se reflectir negativamente na esfera jurídica do recorrido - caso em que se pode defender ser responsável pelas custas do recurso quem for condenado, a final, nas custas da acção.
Este princípio é aplicável em todas as espécies de processos e ainda que a parte vencida não tenha deduzido oposição, incluindo as contra-alegações em sede de recurso, cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais - Análise e Comentário, 8.ª edição, Almedina.
Assim, a parte vencedora da acção, ou do recurso, não pode em caso algum ser condenada no pagamento das respectivas custas, salvo nos casos previstos no artigo 535.º CPCivil, que dispõe que, quando “o réu não tenha dado causa à acção e a não conteste, são as custas pagas pelo autor”;
Norma, esta, que não tem aplicação ao caso e a única que faz cessar a aplicação do critério do vencimento previsto no aludido artigo 527.º.
5. Baixando ao caso concreto.
O facto de o recurso ser – manifestamente – procedente e de não ter havido contra-alegações, não invalida, não impede, a sua – necessária e obrigatória - tributação.
Como invariavelmente, de forma reiterada e uniforme se vem decidindo, na 2.ª instância – sem brechas conhecidas e publicadas – entendemos que, em casos como este, as custas devem ficar a cargo do vencido a final nos embargos.
Já se a exequente, embargada, tivesse sido notificada, cfr. artigo 641.º/7 CPCivil e tivesse contra-alegado, as custas seriam por si suportadas.]
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[1] Acórdão nº 192/94, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110549.html
No mesmo sentido, acórdãos do TC nº 44/85, nº 178/95, 235/08, 549/11.
Em termos doutrinais, Lopes do Rego, “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Almedina, 2010, pág. 26 e 98; Jorge Reis Novais, “Sistema Português de Fiscalização da Constitucionalidade. Avaliação Crítica”, AAFDL Editora, lisboa, 2019, pág. 51.
[2] In, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2ª edição, Almedina, 2022, pág. 81 e 83.
[3] In “A Ação Executiva”, AAFDL Editora, 2020, reimpressão, pág. 418.
[4] Todos os acórdãos estão disponíveis em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.