Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
541/22.9T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
CONTRATO DE SEGURO
CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO
DANOS PRÓPRIOS
AUTOMÓVEL
OBRIGAÇÕES
Nº do Documento: RP20240307541/22.9T8VFR.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Perante um contrato de seguro do ramo automóvel, na modalidade de danos próprios/seguro facultativo, situando-se as questões suscitadas no domínio da responsabilidade contratual, é essencial determinar se as pretensões do tomador de seguro correspondem ou não a obrigações assumidas pela seguradora, e, em caso afirmativo, qual o seu conteúdo.
II – Logo, o sinistro apenas pode ser enquadrado no âmbito do contrato de seguro de danos próprios celebrado, nas cláusulas especificamente contratadas entre A. E ré para o efeito.
III - Cabe interpretar a expressão ─ "sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do Segurador” ─, como prevenção das hipóteses em que não seja convocada a responsabilidade da Seguradora, mas dum terceiro.
IV - Resulta, pois, do clausulado serem os 10 dias o período máximo contratualizado de indemnização pela privação do uso do veículo, na situação de perda total.
V – Os deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, configuram verdadeiros deveres (legais) acessórios de conduta, pelo que, quando tal não ocorre – ou seja, quando a indemnização devida não é paga em prazo razoável – são violados tais deveres (legais) acessórios de conduta, obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário.
VI – Do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor.
VII – Impõe-se averiguar, casuisticamente, se a justificação da seguradora, para a não realização da prestação devida no prazo fixado, é (ou não) violadora dos deveres de boa-fé (cfr. art. 762.º/2 do C. Civil) e de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação (art. 153.º da lei 147/2015).
VIII – Nesta atuação diligente, equitativa, transparente se inclui o dever de averiguação do sinistro e, ainda, o dever de não responder ao pedido indemnizatório ao arrepio dos elementos que é suposto e exigível que a seguradora averigue e recolha.
IX – A R./seguradora não foi, na situação decidenda, diligente a averiguar cabal ou proficientemente a verificação da causa de exclusão a que reconduziu a justificação para a falta de cumprimento da sua obrigação de satisfazer a indemnização, assim dando causa ao dano decorrente da falta de disponibilidade pelo A. Do valor necessário à substituição do veículo destruído. Donde, alcançado o fundamento para a responsabilidade contratual da Ré indemnizar um tal dano, que emergiu caracterizado ou demonstrado.
X – A Ré, ao recusar a realização da prestação, em violação dos seus deveres e em ilegítimo exercício do seu direito, não entregou ao Autor a quantia a que se encontrava vinculada. A entrega do valor acordado permitiria ao A. Suprir a falta do veículo, como é mister inferir-se.
XI - Verifica-se a existência de nexo causal entre a apontada conduta ilícita da Ré e o dano invocado pelo Autor, nos termos estabelecidos no art. 563º do CC, com o que ressarcível o peticionado dano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 541/22.9T8VFR.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 3

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Manuela Machado

2º Adjunto: Isabel Silva


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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra Companhia de Seguros A..., SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 20.650,00, a título de danos patrimoniais;  quantia nunca inferior a € 60,00 diários, a título de indemnização pela privação do uso, desde a data do sinistro até efetivo pagamento dos danos patrimoniais decorrentes do sinistro, sempre tais quantias acrescidas de juros, à taxa legal, desde a data do sinistro até efectivo e integral pagamento.

Louvou-se na celebração com a Ré de um contrato de seguro de danos próprios, relativamente ao veículo de marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-..-ID (doravante ID), titulado pela apólice nº ..., além do mais, com cobertura de incêndio, raio ou explosão com capital no montante de € 20.650,00. Mais invocou a ocorrência de um incêndio que destruiu completamente a viatura, justificando a liquidação dos montantes peticionados, respeitantes ao valor de capital do veículo coberto por “incêndio” e privação do veículo.

Contestou a Ré por impugnação, declinando o sinistro, porquanto a origem do incêndio consistiu numa anomalia no radiador do sistema EGR, a qual deu origem a uma ação de serviço e campanha de recolha de veículos, o que constitui causa excluída da apólice contratada, por consubstanciar danos direta e exclusivamente provenientes de um defeito de construção e/ou um vício próprio do veículo.

Julgada a causa, foi proferida sentença, a qual decidiu ser a acção parcialmente provada e nessa medida procedente, em consequência condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 20.317,00 (vinte mil, trezentos e dezassete euros), a título de danos patrimoniais, acrescida dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da citação até efetivo e integral pagamento e bem assim a quantia de € 600,00 (seiscentos euros), a título de privação do uso da viatura, acrescida dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da citação até efetivo e integral pagamento; absolvendo a Ré do demais peticionado pelo Autor.

É do segmento da sentença que decidiu sobre o valor a ressarcir o autor pelo dano da privação do uso do veículo que vem interposto o presente recurso, pelo A., que conclui nos termos seguintes:

A) O presente recurso é interposto como manifestação da insatisfação, e não concordância, por parte do ora Apelante, relativamente à parte da sentença proferida nos presentes autos, que julgou a acção parcialmente improcedente e, em consequência absolveu a Ré de parte do pedido formulado.

B) Ao decidir de tal modo, o Tribunal a quo, fê-lo, a nosso ver, de forma incorrecta, e sem atentar na matéria factual e no correcto entendimento das disposições legais aplicáveis concretamente ao caso sub judice.

C) Face á matéria de facto dada como provada, impunha-se outra decisão, diversa da que foi proferida nos autos, nomeadamente condenando a Ré na totalidade do pedido.

D) O Tribunal a quo, fez uma errada interpretação do contrato de seguro e da matéria de facto provada, e uma errada aplicação do Direito, tendo violado o disposto nos artigos 483º, 562º, 563º e 564º do Código Civil, ao limitar a responsabilidade da Ré quanto à privação do uso, ao período máximo de 10 dias.

E) O Tribunal a quo deu como provado que: A Ré não assumiu a responsabilidade pelos danos decorrentes do sinistro, não tendo pago a indemnização ao Autor; Que a Ré não forneceu veículo de substituição ao Autor, e que por isso provocou-lhe transtornos, obrigando-o a socorrer-se de veículos de familiares e amigos, para se deslocar.

F) Atendendo à matéria de facto dada como provada, entendeu o Tribunal a quo condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 600,00 (seiscentos euros), a título de privação do uso da viatura, acrescida dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.

G) Tendo assentado a sua decisão no contrato de seguro celebrado entre o Autor e a Ré, junto aos autos, onde resulta que foi contratada a cobertura “Privação de Uso por Sinistro”, pelo capital seguro de € 60,00 por dia, nos termos seguintes: “A A... garante, durante a paralisação do veículo seguro, por sinistro: (...) b) o pagamento de um valor diário, nas seguintes situações: (...) iv) em caso de Perda Total (com exceção do Roubo), pelo período máximo de 10 dias, sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do Segurador.”

H) Tal cláusula do contrato de seguro só se aplica, como decorre da própria redação “sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do Segurador.”

I) Caso a Ré tivesse assumido a responsabilidade pelo pagamento dos danos decorrentes do sinistro, colocando a indemnização ao dispor do Autor, a sua responsabilidade, quanto à privação do uso, estaria limitada ao período máximo de 10 dias.

J) Por outro lado, estava garantido ao Autor o valor de € 60,00 por cada dia de privação.

K) Nos presentes autos, não houve assunção de responsabilidade por parte da Ré, não tendo por isso, colocado à disposição do Autor, indemnização, ou viatura de substituição, pelo que, a responsabilidade da Ré pela privação do uso, não se limita ao período máximo de 10 dias, mas até ao momento em que repare os danos ao Autor.

L) Em caso de perda total, é devida indemnização por privação de uso do veículo, até ao momento em que seja satisfeita ao lesado a indemnização correspondente.

M) A Seguradora responsável, deve reparar o dano de modo a colocar o lesado na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.

N) A privação do uso de veículo é uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava.

O) Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário de exercer os poderes correspondentes ao seu direito.

P) O Autor não recorreu ao aluguer de viatura, mas provou-se, porém, que o Autor teve necessidade de pedir veículos emprestados, que lhe provocou transtornos, e que chegou abster-se de sair de casa.

Q) O veículo sinistrado era o único veículo que possuía nas suas deslocações profissionais e de lazer.

R) A ofensa ao seu direito de uso e fruição, inerente ao seu direito de propriedade, prende-se com a indisponibilidade de uso do veículo e aos transtornos daí resultantes na realização daqueles fins.

S) Esta privação tem uma repercussão negativa no seu património.

T) A Ré sabia, ou tinha obrigação de saber, que ao não assumir a responsabilidade, e ao não disponibilizar a indemnização ao Autor, provoca danos na sua esfera patrimonial, tendo o Autor ficado impedido de adquirir nova viatura.

U) O valor a atribuir por cada dia de privação do uso, é o de € 60,00, por ser o valor que a Ré e o Autor ajustaram como adequado, à compensação pela privação do uso de um veículo, com as características do veículo sinistrado.

V) O Apelante, deverá ser compensado pelo valor diário de € 60,00, desde o dia 07-10-2021 (dia seguinte ao acidente), até à data em que a Ré coloque à disposição do Autor a indemnização devida.

W) Já decorreram, até à presente data 728 dias, (€ 60,00 X 728 dias= € 43.680,00), a indemnização devida pela privação do uso, é até à presente data de € 43.680,00.

X) Caso assim não se entenda, deverá recorrer-se à equidade nos termos do artigo 566º, nº 2, do Código Civil, atendendo ao conjunto das circunstâncias relativas à privação do uso do veículo, designadamente a falta que fez e a forma como foi substituído.

Y) Os artigos 483º, 562º, 563º e 564º do Código Civil, deveriam ter sido interpretados e aplicados pelo Tribunal a quo, no sentido de que, em caso de perda total, é devida indemnização por privação de uso do veículo, até ao momento em que seja satisfeita ao lesado a indemnização correspondente, de forma a reparar o dano, colocando o lesado na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.

Epiloga, concedido provimento ao presente recurso, se revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo, na parte em que julgou parcialmente improcedente o pedido formulado pelo Autor, condenando-se a Ré a indemnizar o Autor pela privação do uso, desde o dia seguinte ao acidente, e até à data em que a Ré, coloque à disposição do Autor, a indemnização devida, por assim ser de inteira Justiça.

Respondeu a recorrida, pugnando pela manutenção do decidido.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

O objecto de cada recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artigo 640º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.

No caso, sobressai uma única questão: a do valor da indemnização pela privação do uso, à luz da causa de pedir invocada pelo lesado.


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No recurso interposto, não foi posta em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto. Será, por isso, por referência à factualidade que acima se transcreveu que se apreciará o objecto do recurso.

A matéria de facto provada com interesse para a decisão é a seguinte:

1. O Autor é proprietário do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca BMW modelo ..., matrícula ..-..-ID (doravante ID).

2. No dia 6 de outubro de 2021, pelas 10:50 horas, BB, pai do Autor, conduzia o veículo ID na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, no sentido ...- ..., quando sem que nada o fizesse prever, o veículo começou a deitar fumo e a cheirar a queimado.

3. De imediato, o condutor imobilizou a viatura ID na berma da estrada, e quando conseguiu sair da viatura a mesma começou a arder tendo-se incendiado.

4. O condutor chamou ao local os Bombeiros Voluntários ..., mas quando o incêndio foi extinto o veículo já se encontrava destruído.

5. Em consequência do sinistro, o veículo ID ficou carbonizado, sendo o valor estimado de reparação € 98.133,20.

6. Danos cuja gravidade implicaram a perda total do veículo.

7. À data do sinistro o veículo ID tinha o valor de mercado de € 20.650,00.

8. O valor atribuído ao salvado ascende a € 333,00.

9. Por contrato de seguro para o efeito celebrado válido e eficaz à data do sinistro, o Autor havia transferido a responsabilidade civil emergente de circulação rodoviária do veículo ID para a Ré, contrato esse titulado pela apólice nº ..., ao qual englobava, além do mais, as seguintes coberturas e garantias: Incêndio, raio ou explosão, com o capital de € 20.650,00, sem franquia.

10. Mais foi contratada a cobertura “Privação de Uso por Sinistro”, pelo capital seguro de € 60,00 por dia, nos termos seguintes:

“A A... garante, durante a paralisação do veículo seguro, por sinistro:

(...)

b) o pagamento de um valor diário, nas seguintes situações:

(...)

iv) em caso de Perda Total (com exceção do Roubo), pelo período máximo de 10 dias, sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do Segurador.

11. Consta no artº 39º das “Exclusões Gerais” da apólice o seguinte:

Para além das exclusões previstas na Cláusula 5ª das Condições Gerais Uniformes do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel e das exclusões específicas de cada uma das coberturas facultativas contratadas, ficam ainda excluídos do âmbito do Seguro Automóvel Facultativo, os danos:

(...) m) direta e exclusivamente provenientes de defeito de construção, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo seguro”.

12. Participado o evento à Ré, a mesma mediante carta datada de 25 de outubro de 2021 declinou a responsabilidade pelo sinistro, alegando que o incêndio “terá tido origem em anomalia conhecida do radiador EGR, que deu origem à Ação de serviço e passadas campanhas de recolha de veículos”.

13. Várias modelos da gama Diesel do fabricante BMW encontram-se inseridos numa Ação de Serviço no Caso de Queixa do Cliente (SACC), aplicado a defeitos de fabrico ou do material do radiador de recirculação dos gases de escape (EGR), preconizando a sua substituição apenas em caso de anomalia.

14. O veículo ID não pertence ao mercado português e nunca executou qualquer assistência ou manutenção na Rede de Concessionários BMW em Portugal.

15. … por esse motivo a BMW Portugal não notificou o Autor da campanha técnica referida em 13).

16. O referido em 2), 3) e 6) provocou transtornos ao Autor, obrigando-o a socorrer-se de veículos de familiares e amigos, para se deslocar.


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Desde logo, encontramo-nos no âmbito de um contrato de seguro de danos e no âmbito da responsabilidade civil contratual.

A questão colocada nos autos é a da responsabilidade da Ré seguradora pela indemnização decorrente do sinistro – incêndio – ocorrido no veículo a que respeitava o contrato de seguro.

Não está em discussão nos presentes autos um direito emergente da responsabilidade civil extracontratual, o qual, admitindo-se, poderia eventualmente comportar o ressarcimento do dano decorrente da paralisação do veículo, haverá sempre que se atender ao conteúdo do contrato celebrado entre as partes e bem assim aos correspondentes direitos e deveres emergentes desse contrato.

Repete-se, a causa de pedir é consubstanciada por um contrato de seguro de danos próprios, celebrado entre apelante e apelada.

Aliás, como se sabe, a intervenção da seguradora do próprio lesado na regularização do sinistro, ao abrigo da convenção IDS, não configura, sob qualquer fundamento, uma substituição do responsável civil, pelo que a demanda da Ré para efeitos indemnizatórios resultantes de “sinistro automóvel” em causa, à luz da responsabilidade civil daí decorrente, sempre seria uma pretensão que não poderia prosseguir (cfr. neste sentido, entre outros, ac. do TRL 1209/10.4TJLSB.L1-2, 16-11-2016).

É, pois, por referência aos factos provados, de onde sobressai que a causa de pedir compreende esse contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios e não a responsabilidade civil de um terceiro (sempre não caracterizada nos factos que circunstanciam o evento), que importa apreciar a pretensão do apelante.

Não nos merece qualquer reparo a classificação do contrato celebrado entre as partes como sendo de seguro, regulado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro - RJCS), sem necessidade de reproduzir a abordagem levada a cabo pela 1ª Instância.

O mesmo foi reduzido a escrito, consubstanciado na apólice, da qual devem constar todas as condições estipuladas entre as partes, sendo que a apólice deverá conter “os riscos contra que se faz o seguro”, bem como, “em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como, todas as condições estipuladas entre as partes”.

 A apólice é, pois, o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas, sendo que o âmbito do contrato, consiste na definição das garantias, riscos cobertos e riscos excluídos. Como sabemos, na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respectivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual, termos esses que, no contrato de seguro, reiteramos, terão de constar da respectiva apólice que constitui elemento essencial do contrato.

A concretização dos riscos cobertos resultará de os mesmos serem indicados na apólice, integrada por condições gerais, especiais e particulares, ou de, pelo contrário, se evidenciarem na apólice os riscos excluídos, caso em que se considerarão cobertos todos os restantes.

Como é sabido, “o contrato de seguro tem como elemento essencial o risco, ou seja, “a possibilidade de ocorrência do evento danoso”, normalmente caracterizado como “o evento danoso, lícito, futuro e incerto” (Lei do Contrato de Seguro Anotada, Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres e outros, 2016, 3.ª edição, Almedina, página 240). Por sua vez, o sinistro implica a verificação do evento coberto pelo risco.

Dispõe o artigo 99.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro que o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato.

Trata-se de norma supletiva, pelo que a noção de sinistro pode ser concretizada no âmbito da liberdade contratual.

Encontra-se provado que Autor e Ré celebraram um contrato de seguro para cobertura da responsabilidade civil automóvel obrigatória, com coberturas facultativas, referentes a riscos ou danos próprios.

Donde, na definição e concretização do sinistro, o contrato de seguro em apreço inclui nomeadamente e para o que ora releva cobertura facultativa de incêndio, mais tendo sido convencionada a indemnização do dano da privação do uso…

Desde logo, equivocada a configuração em sede de alegações de recurso deste prejuízo da “privação do uso”, na sua vertente de dano autónomo e indemnizável, sem atender a que o facto que determina a possibilidade ou não de a ré seguradora  indemnizar o Autor pelo período que decorreu desde o sinistro (que consistiu unicamente no incêndio do próprio veículo da A., sem intervenção de um veículo terceiro,  desde logo se afastando do regime do seguro obrigatório). Com efeito, ali se enuncia a discussão que ocorre em particular nos acidentes de viação, sem precisar que responsabilidade se entende que neste caso possa ser assacada à ré seguradora, discutindo-se a natureza de tal dano e em que se concretiza, sem cuidar que a obrigação de indemnização tem como pressuposto quem “estiver obrigado a reparar um dano” – cf. Artº 562º do CC, devendo classificar-se a génese de tal obrigação. Ora, manifestamente afastada a responsabilidade extracontratual, a qual tem os seus pressupostos específicos, desde logo, a actuação do agente com culpa ou negligência, no que constitui a violação ilícita do direito de outrem, com os consequentes danos e nexo de causalidade entre tal conduta e estes.

Não que se afaste neste caso a obrigação de indemnizar, mas o seu pressuposto vem a ser, como reiterado, a responsabilidade contratual.

O que significa que o pagamento solicitado tem como pressuposto e limite o que no clausulado contratual (nas condições gerais e particulares da apólice) consta e aí está definido como risco coberto, sendo-lhe ainda aplicável o que em termos supletivos se encontra disposto na LCS.

Perante um contrato de seguro do ramo automóvel, na modalidade de danos próprios/seguro facultativo, situando-se as questões suscitadas no domínio da responsabilidade contratual, é essencial determinar se as pretensões do tomador de seguro correspondem ou não a obrigações assumidas pela seguradora, e, em caso afirmativo, qual o seu conteúdo.

Logo, o sinistro apenas pode ser enquadrado no âmbito do contrato de seguro de danos próprios celebrado,  nas cláusulas especificamente contratadas entre A. e ré para o efeito, por inexistirem factos relativos à responsabilidade extracontratual da ré, dado que esta apenas responde na qualidade de seguradora perante a A. pelos danos próprios especificamente contratados com esta, o que caracteriza tal como uma relação contratual e consequentemente, a obrigação, a existir, é manifestamente contratual. Pois o sinistro integra a cobertura facultativa de incêndio contratada entre as partes.

Dispõe o art.º 102º do RJCS, sob a epígrafe realização da prestação do segurador, que: “1 - O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências. 2 - Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro. 3 - A prestação devida pelo segurador pode ser pecuniária ou não pecuniária.

Por sua vez o artigo 104.º sob a epígrafe "Vencimento" prescreve que “a obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102.º”. Acrescenta o artº. 130º, do mesmo diploma, que: “1 - No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro. 2 - No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado. 3 - O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem”.

Temos, assim, que o regime supletivo é o supra previsto, sendo que a seguradora só responde pela privação do uso se tal tiver sido convencionado.

Ora, por força do contrato encontra-se garantida a cobertura facultativa de incêndio (os designados danos próprios). E convencionado o ressarcimento do dano da privação do uso, para as hipóteses, como a verificada de perda total do veículo…

Analisado contrato de seguro junto aos autos, resulta que foi contratada a cobertura “Privação de Uso por Sinistro”, pelo capital seguro de € 60,00 por dia, nos termos seguintes:

“A A... garante, durante a paralisação do veículo seguro, por sinistro: (...) b) o pagamento de um valor diário, nas seguintes situações: (...)

iv) em caso de Perda Total (com exceção do Roubo), pelo período máximo de 10 dias, sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do Segurador.

Mais se estabelece no contrato que: “No caso do pagamento do valor diário, o período de indemnização conta-se desde: alínea b iv) - o dia da participação do sinistro até ao momento da comunicação ao Tomador do Seguro da verificação de Perda Total”

Na decisão recorrida, entendeu-se que, atento o contratado pelas partes quanto à cobertura “Privação de Uso por Sinistro” resultando do evento (incêndio) a perda total da viatura, o Autor tem direito ao montante indemnizatório total de € 600,00 (€ 60,00 x 10 dias = € 600,00).

Sustenta o Recorrente que a letra da cláusula induz que aquela previsão o é tão só para as situações em que a Seguradora proponha o pagamento da indemnização, que não também para as hipóteses, como a decidenda, em que haja recusa daquele pagamento.

Vejamos.

Na interpretação do contrato de seguro há que aplicar as regras gerais da interpretação dos negócios jurídicos às cláusulas especificamente negociadas, correspondendo o declaratário normal à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, devendo o sentido por ele deduzido reflectir quer o concreto texto contratual em causa, quer a específica natureza e objecto do dito acordo, e ponderando-se na sua determinação todas as circunstâncias que rodearam a sua inicial celebração e posterior execução (arts. 236º a 238º, todos do CC); e há que aplicar as mesmas regras gerais, por remissão legal, à interpretação das cláusulas contratuais gerais aí insertas, embora aqui, em caso de dúvida, prevaleça o sentido que for mais favorável ao aderente (arts. 10.º e 11.º, ambos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro).

Precisando, lê-se no art. 236.º, n.º 1 do CC, que «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».

Nada vindo alegado quanto à vontade real do declarante, o sentido decisivo da declaração negocial será «aquele que seja apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante», a não ser que este, razoavelmente, não pudesse contar com tal sentido (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, Limitada, 1987, pag. 223, com bold apócrifo).

O comportamento do declarante a que se refere o n.º 1 do art. 236.º do CC «não é constituído somente pela textual declaração negocial por ele proferida, mas também pelas circunstâncias, a ele relativas, do caso concreto que, conhecidas ou devendo ser conhecidas pelo declaratário, possam esclarecer o sentido da declaração», sendo exemplos dessas circunstâncias atendíveis «os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos do declarante (de linguagem e outros), os usos da prática, em matéria terminológica ou de outra natureza que possa interessar, os modos de conduta por que se prestou observância ao negócio concluído» (Adriano Vaz Serra, RLJ, ano 110, pág. 42).

Por outras palavras, «o alcance decisivo da declaração será àquele que em abstrato lhe atribuiria um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do declaratário real, em face das circunstâncias que este efectivamente conheceu e das outras que podia ter conhecido, maxime dos termos da declaração, dos interesses em jogo e seu mais razoável tratamento, da finalidade prosseguida pelo declarante, das circunstâncias concomitantes, dos usos da prática e da lei» (J. Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, Almedina, Coimbra, 1996, pág. 217, com bold apócrifo) (3).

Assim, «a normalidade do destinatário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante» (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 243).

Serão por isso atendíveis na interpretação da declaração negocial quer as circunstâncias contemporâneas da mesma, quer anteriores à sua conclusão, quer posteriores, importando que quer o declaratário, quer o declarante actuem de boa fé, aquele investigando o que o declarante quis, tendo em consideração todas as circunstâncias por si conhecidas, e este deixando valer da declaração no sentido em que o declaratário, mediante verificação cuidadosa, tinha de atribuir-lhe (Adriano Vaz Serra, RLJ, ano 104, pág. 63, com bold apócrifo).

Nesta averiguação, «é também relevante a posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os seus direitos e as vinculações que para uma delas emergem do negócio» (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Universidade Católica Portuguesa, 3.ª edição, 2001, pág. 417, com bold apócrifo) (4).

Assim, e concretizando as regras gerais do direito civil explicitadas, dir-se-á que «o declaratário corresponde à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, tendo em consideração, em matéria de interpretação do contrato, o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto, vale dizer ao “âmbito do contrato” nas suas vertentes da “definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos”, adoptando o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados na apólice ou, quando seja o caso, o sentido técnico dos termos que claramente se apresentem em tal conteúdo» (Ac. da RG, de 02.07.2013, Filipe Caroço, Processo n.º 1344/11.1TBVCT.G1).

Reconhece-se, porém, que os conceitos e linguagem utilizados na apólice e outros escritos relativos ao contrato de seguro, a complexidade dos clausulados dos contratos, a necessidade de articular as condições gerais (com a sua natureza de cláusulas contratuais gerais) com as condições particulares, a consideração de outros elementos anteriores ou posteriores à apólice, são algumas das fontes de dificuldade na interpretação do contrato de seguro (José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, Abril de 1999, pág. 348 e ss.).

Tratando-se de um negócio formal e de acordo com o art. 238.º, n.º 1 do CC, «não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso». Contudo, «esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade» (n.º 2 do art. 238.º citado).

Por fim, e nos termos do art. 237.º do C.C., «em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».

O aqui disposto «vale para os casos em que a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação de harmonia com o critério fixado no artigo anterior [236º], comporta ainda dois ou mais sentidos, baseados em razões de igual força» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 224) (5).

Lê-se no art. 10.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, que as «as cláusulas contratuais gerais são interpretadas (…) de harmonia com as regras relativas à interpretação (…) dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam».

Reafirma-se, aqui, a regra geral explicitada supra, embora se enfatize a importância do contexto de cada contrato singular em causa.

Mais se lê, no art. 11.º do mesmo diploma, que as «cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real» (n.º 1), sendo que, na «dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente» (n.º 2).

Logo, «o artigo 11º, nº 2, do Decreto-Lei nº 446/85, estabelece o princípio do in dubio contra proferentem, de acordo com o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário, em aplicação do critério mais objectivo - emergente aliás do nº 1 do artigo -, prevalece o sentido mais favorável ao aderente» (Ac. da RL, de 09.11.2010, Luís Filipe Lameiras, Processo n.º 1870/08.0TVLSB.L1-7).

«Opta-se (…) aqui pela protecção da parte mais fraca na relação contratual», mas não só: é «ainda inerente a esta opção (…) um óbvio princípio de responsabilização - deve ser o fautor da cláusula a arcar com os inconvenientes de a não ter formulado em termos inequívocos» (José Manuel de Araújo Barros, Cláusulas contratuais gerais (DL nº 446/85 anotado), Coimbra Editora, 2010, pág. 151).

Isto posto, afigura-se-nos relevante o segmento contratual que determina que o período de tempo a atender para a contagem do período indemnizável a título de privação do uso no caso de perda total o é entre a data da participação do sinistro (naturalmente que antes inexiste qualquer incumprimento da obrigação pela Seguradora) e a da comunicação da perda total…

Donde, o segmento a que apela o recorrente não se afigura ter qualquer significado interpretativo autónomo ou relevante, que não seja o de ressaltar que a obrigação de satisfazer o dano da privação do uso está dependente ou relacionada à afirmação da obrigação de indemnizar o risco coberto… É que o prazo de 10 dias de privação ali referido resulta literalmente ser o tempo máximo de privação do uso passível de indemnização… E não se alcança lógica ou racionalmente, na economia do contrato e ponderado ademais o lugar paralelo da também contratada cobertura de veículo de substituição (sempre de forma reciprocamente excludente),  que a fixação daquele tempo máximo o seja apenas nos casos de assunção pela Ré da obrigação de pagar o dano emergente do sinistro… É que sempre ausente, então, uma previsão  contratual das condições/prazo limite para o pagamento de um tal dano, precisamente nas situações em que a Seguradora maior necessidade teria de se salvaguardar perante a previsível duração de uma acção, como sucedeu… Não está em causa, nesta argumentação, uma interpretação, contra legem, favorável ao predisponente, mas o recurso ao apoio lógico-sistemático na aferição do sentido do texto contratual.

Concluindo, cabe interpretar a expressão ─ "sempre que haja tomada de posição com direito a pagamento de indemnização por parte do Segurador” ─, como prevenção das hipóteses em que não seja convocada a responsabilidade da Seguradora, mas dum terceiro. Por exemplo, mesmo no caso dos danos próprios, as Seguradoras previnem a possibilidade de o acidente ser causado por outro, caso em que será a Seguradora desse outro a pagar os prejuízos.

Ou seja: no caso de perda total causada por um terceiro, paga a Seguradora do outro a privação do uso, nos termos gerais da responsabilidade por factos ilícitos; no caso de perda total por qualquer outra causa, não imputável a terceiro, a Seguradora pagaria 10 dias pela privação do uso.

Tudo para dizer que resulta do clausulado serem os 10 dias o período máximo contratualizado de indemnização pela privação do uso. Sufraga-se, pois, a interpretação da sentença recorrida, de que os 10 dias se constituem como o prazo máximo de privação do uso indemnizável, no caso de perda total do veículo seguro…

O atraso do segurador na realização da prestação convencionada – entrega do valor do veículo – por ter ocorrido o evento que desencadeou o acionamento da cobertura do risco “incêndio”, previsto no contrato, apenas dará lugar, em princípio, ao pagamento de juros de mora (ou seja, não dá lugar a uma qualquer indemnização pela privação de uso do veículo), pagamento este que compreende toda a indemnização pela mora nas obrigações pecuniárias de origem contratual (cfr. art. 806.º/3 do C. Civil), como é o caso da obrigação da seguradora entregar/pagar ao beneficiário do seguro o valor do veículo.

A faculdade concedida ao lesado de exigir a reparação suplementar por danos superiores que lhe sejam efetivamente causados, prevista no nº 3 deste último artigo, e como daquele consta, não tem aplicação em sede de responsabilidade contratual.

No preâmbulo do DL 262/83, de 16 de Junho, que ao preceito aditou o nº 3, motivava-se nos seguintes termos a inovação de regime, no tocante apenas à responsabilidade civil extracontratual: «[f]Fora esta, já, uma solução preconizada nos trabalhos preparatórios do Código Civil e a evolução posterior - confirmada, aliás, por uma jurisprudência reiterada dos nossos tribunais superiores - tem efectivamente demonstrado que uma aplicação estrita do referido critério legal não se compaginaria com as funções atribuídas pela lei e pela doutrina à indemnização de perdas e danos».

No que respeita ao RJCS, não foi no diploma rececionada a solução contida no art. 80.º do projeto de revisão de 1999, de Menezes Cordeiro, no sentido de que não depende de prévia interpelação a constituição em mora do segurador e de que este «responde por juros moratórios à taxa legal, acrescida de 3%, podendo o beneficiário provar que, por via dela, sofreu danos superiores».

Em suma: nem, no caso dos autos, considerado o quadro factual fixado pela 1ª instância e o princípio do pedido, foi determinada a data até à qual, nos termos prescritos no art. 104º do RGCS (a conjugar com os arts. 406º, nº 1, 1ª parte e 762º, nº 1 do CC), o segurador deveria ter realizado a prestação pecuniária a que estava vinculado, com juros de mora devidos desde essa data, presumindo-se a culpa daquele [arts. 804º, 805º, nº 2, alínea a) e 799º, nº 1 do CC]; nem a pretendida indemnização por privação do uso do veículo pode radicar no imputado retardamento da realização da prestação, tendo a responsabilidade que ao segurador pudesse ser exigida pelo verificado incumprimento – ainda que com base em factos que àquele não fossem estranhos, nem ocasionais, e causadores de mais elevados danos –, ficado exaurida pelo pagamento dos juros de mora (nºs. 1 e 2 do art. 806º do CC).

Não é também possível, desde logo por não emergir das condições particulares que a cobertura respeitante a veículo de substituição tenha sido contratada no domínio do seguro de danos, que não apenas no plano das coberturas complementares do seguro de responsabilidade civil; de todo o modo por força das disposições contratuais correspondentes (que bem assim limitam temporalmente aos mesmos 10 dias o direito respectivo) convocar a tese jurisprudencial sustentada, entre outros, nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 04.11.2021 e do STJ de 13.06.2027, ambos acessíveis na base de dados da dgsi.

Donde, finalmente, agora já não imediatamente por via da simples actuação do próprio contrato de seguro, caberá ainda lobrigar da existência de outra causa contratual para a indemnização distinta daquele dano (de privação do uso).

Reconduzimo-nos assim às considerações, entre outros, nos Acórdãos da Relação do Porto de 13.09.2022 e do STJ de 22.11.2016, na mesma base de dados.

Ali se anota que: «no cumprimento de um contrato, as obrigações de cada uma das partes não se esgotam na realização das prestações expressamente previstas. Tal decorre do principio geral da boa fé, imposto a cada uma das partes, na execução das prestações contratualmente previstas, previsto no nº 2 do art. 762º do C.Civil, sem prejuízo daquelas que, previstas em legislação aplicável, especialmente se imponham a cada um dos contraentes».

Como esclarecidamente se refere no Ac. do TRC de 25/1/22 (proc. nº 168/18.0T8FVN.C2) a prestação devida por cada um dos contraentes compreende, além dos deveres primários e secundários de prestação, “… deveres acessórios de conduta; que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação (…) deveres estes cuja violação não dá lugar a uma acção de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.

E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar (…) todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.

Entre muita jurisprudência sobre a questão, cita-se o Ac. do STJ de 27/11/2018  (em dgsi.pt) onde se refere, identificando tal leque de deveres acessórios: “Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato. (…). (…) deveres de boa-fé e de actuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado. (…)

A actuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”.

E se assim é nas situações em que o risco da privação do uso do veículo não está contratualizado (assim as situações versadas na jurisprudência referenciada), por maioria de razão tem de sê-lo nos casos em que, estando-o, a previsão contratual se mostra exígua perante a falta de cumprimento pela contraparte dos deveres acessórios ou complementares.

Como resulta de tudo o que vem de dizer-se, por via do contrato em causa, não resultava para a Ré apenas a obrigação de indemnizar o ora apelante pelos danos que lhe advieram do sinistro. Incumbia-lhe cumprir essa obrigação de boa fé, com probidade e diligência, para que, fazendo-o, realizasse o interesse do credor pela forma e pelo processo mais apto a essa satisfação e prevenindo que desse procedimento resultassem ainda outros danos para ele.

Neste contexto, quer no procedimento do apuramento dos factos fundamentadores da sua responsabilidade, das suas consequências e do conteúdo a que haveria de corresponder a sua prestação, quer na própria execução desta, estava vinculada por tais deveres acessórios, cujo incumprimento não só é apto a prejudicar a consecução do objectivo que motivara o credor a contratar, como ainda lhe pode determinar outros prejuízos que ele não sofreria se a prestação fosse cumprida de boa fé e diligentemente.

Acresce que tais deveres, que não deixam de ter essa fonte contratual, não foram indiferentes ao legislador, como se vê do disposto no art. 36º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto ( Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) ao exigir (como consta da epígrafe da norma) diligência e prontidão da empresa de seguros. Aí se preveem prazos para as diferentes etapas do procedimento indemnizatório, aplicáveis às hipóteses de seguros de danos próprios por remissão do art. 92º do mesmo diploma. Assim, dispõe essa norma: “1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve: a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar; b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior; c) Em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro e o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a); d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão; e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico; (…)”.


Aqui convocamos,
data venia, o Acórdão do STJ de 15.03.2023, na base de dados da dgsi, o qual, a mais de fornecer uma feliz síntese/análise de várias decisões jurisprudenciais, segundo as quais, em caso de atraso injustificado na realização da prestação convencionada, tem a seguradora que suportar os danos decorrentes de tal atraso injustificado; fornece o critério que temos como decisivo na aferição a realizar.

Assim: «A fundamentação gizada não tem sido sempre rigorosamente igual, porém, tem-se sustentado, em termos essenciais, que, tendo as empresas de seguros o dever de «atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados» (cfr. art. 153º/1 do Regime Jurídico da Atividade Seguradora e Resseguradora aprovado pela Lei 147/2015, de 9 de Setembro; e regras de diligência e prontidão na regularização dos sinistros constantes do art 31.º e ss da Lei do Seguro Obrigatório de responsabilidade civil automóvel), os deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, configuram verdadeiros deveres (legais) acessórios de conduta, pelo que, quando tal não ocorre – ou seja, quando a indemnização devida não é paga em prazo razoável – são violados tais deveres (legais) acessórios de conduta, obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário (sem que haja uma violação do princípio indemnizatório constante do art. 128.º do RJCS, nem uma sobreposição de indemnizações – desta indemnização com os juros incidentes sobre a obrigação pecuniária principal – uma vez que do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor)

Veja-se:

«No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova, sustentou-se:

“A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências.”

“Muito particularmente no âmbito de um contrato de seguro, a boa fé supõe que o segurado conte com o cumprimento do contrato, pois é isso que se espera de uma contraparte séria, honesta e leal, não se afigurando admissível que uma seguradora se recuse inexplicavelmente a pagar ao segurado as quantias que lhe são devidas.”

“A ré incorre, assim, em responsabilidade pela não liquidação dos danos cobertos pelo contrato de seguro por violação de uma obrigação que dimana das aludidas regras do RJCS conjugadas com o disposto no artigo 762.º/2 do Código Civil que tutelam os interesses tanto de terceiros como do próprio segurado.”

“Não estamos, pois, perante a ressarcibilidade de um dano que resulta da mora, mas da violação de deveres legais que a seguradora não observou, não podendo falar-se aqui de sobreposição de indemnizações.”

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Távora Victor, considerou-se:

“No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.”

“A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato

“Um comportamento culposamente omissivo da Companhia de Seguros ao recusar-se a promover injustificadamente a reparação de uma viatura acidentada, pode dar azo a um dano autónomo de privação do uso cujo ressarcimento não cabe nos estreitos limites dos juros previstos para a mora.”

“A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respetivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.”

No Ac. STJ de 14/12/2016 (in ITIJ), relatado pela Conselheira Fernanda Isabel, observou-se:

“Em suma, a seguradora, para além da obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, nas condições contratadas, se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime do contrato de seguro, porque não impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes a responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente”.

“A apresentação de queixa-crime que venha a revelar-se, posteriormente, inconsequente no desenrolar do processo de inquérito não é suscetível de libertar a ré seguradora do cumprimento da sua obrigação contratual em tempo. Com efeito, o arquivamento com base na falta de prova sobre a atuação ilícita imputada pela ré ao autor retira fundamento ao incumprimento da sua prestação no prazo contratual ou legalmente fixado para o efeito.”

“Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.”

“Esta indemnização tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.”

No Ac. do STJ de 27/11/2018 (in ITIJ)[1], relatado pelo Conselheiro Cabral Tavares, defendeu-se:

“O seguro de danos celebrado entre as partes (…) não cobria o valor de privação de uso.

Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.

“A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à Autora, sem que, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado.

“Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a Autora pelos danos causados.”

“A atuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (…)”»

Continua o Ac. STJ de 135.03.2023:  «Efetivamente, para um correto processamento da relação obrigacional em que a respetiva prestação se integra, além dos deveres primários e secundários de prestação, existem os deveres acessórios de conduta, que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação.

Deveres acessórios de conduta que “estão hoje genericamente consagrados na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no art. 762.º do C. Civil, segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé (…)”; deveres estes cuja violação não dá lugar a uma ação de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.

E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar – impõe-se reconhecer, em linha com os acórdãos citados – todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.

Quando alguém celebra, como tomador, um contrato de seguro que cobre, facultativamente, o risco de perda total do veículo (em caso de choque, colisão e capotamento), aspira – é esse o seu interesse enquanto credor, interesse que a seguradora não ignora – a que o capital correspondente ao valor do veículo lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder adquirir um veículo idêntico ao que sofreu perda total.

Mas – é o ponto – não é por haver atraso em tal disponibilização que de imediato se pode/deve considerar e concluir que, então, foram violados os deveres acessórios de conduta.[2]

Haverá por certo situações, mesmo vindo a decidir-se que a seguradora – que considerou não ser responsável pelo sinistro (por, por exemplo, entender que o mesmo é simulado ou que foi provocado intencionalmente pelo segurado) ou que considerou ser devido um montante inferior ao pretendido pelo segurado – não tem razão, em que o atraso da seguradora no pagamento da prestação devida dê tão só lugar a juros moratórios.

Enfim, terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que a conclusão (a propósito da violação ou não dos deveres acessórios de conduta) pode/deve ser estabelecida, uma vez que:

- não pode ser toda e qualquer justificação da seguradora a conferir-lhe o direito a protrair a liquidação do sinistro; e, ao invés, também

- não pode “vedar-se” à seguradora a possibilidade de contestar/discutir a prestação que lhe é pedida.

E é exatamente aqui que, a nosso ver, está o “busílis” da questão, ou seja, tudo está em saber/estabelecer, em cada caso, se a justificação da seguradora, para a não realização da prestação devida no prazo fixado, é (ou não) violadora dos deveres de boa-fé (cfr. art. 762.º/2 do C. Civil) e de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação (art. 153.º da lei 147/2015).

Nos acórdãos citados/transcritos estava invariavelmente em causa a situação da simulado ou provocado intencionalmente pelo segurado, tendo-se entendido que o arquivamento da queixa-crime (apresentada pela seguradora contra o segurado), com base na falta de prova, retira fundamento ao incumprimento da prestação da seguradora no prazo contratual ou legalmente fixado; que, em tais hipóteses, “o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.” (…)

Atuar de forma diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito no relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados não se pode bastar com uma resposta rápida aos pedidos indemnizatórios que lhe são dirigidos, uma vez que nesta atuação “diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito” se inclui o dever de averiguação do sinistro e, ainda, o dever de não responder ao pedido indemnizatório ao arrepio dos elementos que é suposto e exigível que a seguradora averigue e recolha.

Os deveres acessórios de conduta têm em vista a satisfação do interesse do credor, pelo que o comportamento duma seguradora que, ao arrepio dos elementos que é suposto e exigível recolher, decline rapidamente a sua responsabilidade não pode deixar de dar azo a um atraso, qualificável como injustificado, na realização da prestação convencionada.

Como supra se referiu, nem toda e qualquer justificação vale (e/ou corresponde a um procedimento de boa-fé), assim como nem toda a justificação que acaba por não convencer em tribunal (como sucede no caso dos autos) corresponde e preenche a violação dos deveres acessórios de conduta; e responder rapidamente não afasta, só por si, uma possível violação dos deveres acessórios de conduta.»

Sem prejuízo e regressando novamente ao Ac. do STJ de 27.11.2018:

«Elucida-se, no preâmbulo do DL 72/2008, que na encetada «reforma foi dada particular atenção à tutela do tomador do seguro e do segurado – como parte contratual mais débil –, sem descurar a necessária ponderação das empresas de seguros (…) cabe atender ao papel da indústria de seguros em Portugal. Pretende-se, por isso, evitar ónus desproporcionados e não competitivos para os seguradores, ponderando as soluções à luz do direito comparado próximo, mormente de países comunitários» (realce acresc.); procedeu-se, designadamente, à remissão para o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais e para a Lei de Defesa do Consumidor (art. 3º do RGCS).

No caso português – contrariamente ao que se verifica no regime do seguro obrigatório automóvel (DL 291/2007, de 21 de Agosto), em virtude da transposição das Diretivas 2000/26/CE, 2005/14/CE e 2009/103/CE, expressando os respetivos considerandos a necessidade de «facilitar a regularização rápida e eficaz de sinistros, e evitar, tanto quanto possível, processos judiciais dispendiosos», «apresentar uma proposta de indemnização num prazo razoável», em que, a par da estatuição dos princípios base de gestão de sinistros e das condutas de diligência e prontidão de regularização dos mesmos, são estabelecidos prazos para o cumprimento das diversas fases do procedimento, sancionada a sua inobservância, até à emissão do ato final, seja uma proposta razoável de indemnização, seja uma resposta fundamentada –, o RJCS é de todo omisso quanto ao processo de regularização do sinistro e, no que respeita ao prazo para a realização da prestação pelo segurador (arts. 102º e 104º, cits.), sujeita-o a um termo inicial, suspensivo e incerto, condicionado à iniciativa do próprio obrigado.

A apontada omissão procedimental quanto à regularização do sinistro e o auto-cometimento ao segurador na adequação do prazo para a realização da prestação devida devem, no que à execução do contrato ora interessa, ser preenchidos com a aplicação de critérios mais exigentes, em termos de diligência e de boa-fé, na apreciação do caso.

Na formação e execução do contrato de seguro, a observância do princípio da boa-fé, genericamente determinada no nº 2 do art. 762º do CC, é elevada a supremo patamar, de uberrimae fidei.

Dotadas de estatuto próprio – Lei 147/2015, de 9 de Setembro –, particularmente relevantes, bem como o mercado de risco em que intervêm, no funcionamento do sistema financeiro, as empresas de seguros «devem atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados» (art. 53º, nº 1).

(…) Presente, no modelo sinalagmático que ora interessa, que as obrigações e os contratos dos quais aquelas emergem se apresentam globalmente mais complexos do que simples estabelecimento do dever de prestação e do correlativo direito de a exigir ou pretender; haverá aí que fazer destrinça entre deveres de prestação primários ou principais, caracterizadores do tipo da relação obrigacional, podendo ser acompanhados, no desenvolvimento da relação creditícia originária, de deveres de prestação secundários e outros deveres de conduta, laterais, secundários ou acessórios, naturalmente radicados na relação obrigacional e de diferente medida e extensão determinadas pelo grau de intensidade da específica vinculação – deveres de mútuo respeito e consideração pelos interesses da contraparte, traduzindo o tipo de comportamento que é possível esperar em geral de contratantes probos e leais, deveres esses nuclearmente decorrentes do referido princípio da boa-fé (entre outros, com enquadramento doutrinário, acórdãos de 22.9.2005 e de 8.9.2009).

Outros deveres de conduta, por sua natureza, apenas normalmente implicados no concreto devir da relação obrigacional, cuja violação determinará, entre outros possíveis efeitos, o dever de indemnizar.»

Na situação decidenda, pois, atentos agora os contornos da concreta situação sub-judice, não reputamos como motivo justificado a explicação que a R/seguradora deu para declinar a sua responsabilidade contratual, não obstante não se vislumbrar atraso ou displicência na averiguação do sinistro…

Aqui cabe atentar aos termos, de resto salientados na decisão recorrida, hipotéticos e carecidos de outra averiguação, constantes do relatório de averiguações que fundou a comunicação de recusa do sinistro. Assim: “… as caraterísticas e padrões identificados nos danos por incêndio constatados no veículo em estudo e sua localização são compatíveis com a origem por anomalia no sistema EG, que poderá ser cabalmente comprovada com rigor científico mediante o estudo dos vários componentes do sistema em perícia colegial conjunta com técnicos nomeados pelo fabricante”.

Não resulta que a Ré tenha procurado a comprovação da causa de recusa que invocou perante o A., sequer mediante uma consultoria simples junto da marca, bastando-se com a hipotização da perícia que juntou aos autos.

Quando se considerem já os termos do relatório de averiguações junto aos autos, como o depoimento em audiência do técnico que o realizou, impõe-se concluir, quanto ao cumprimento pela Ré dos deveres de averiguação pertinentes: a existência de BMW a diesel com problemas no sistema de gases (nem sequer resulta que sejam do modelo em causa); nem todos os carros do modelo que tem o problema o têm; os sinais existentes no veículo são compatíveis, mas não concludentes, exigindo, como o reconheceu o averiguador, a consulta de mecânicos/serviços da marca! (é que o conhecimento da existência de um "problema" era vago ou genérico e da campanha de publicidade para recolha da marca; rigorosamente não se sabia exactamente qual era, nem o que poderia provocar). Assim, a possibilidade de ser um problema apto a gerar um incêndio não era apenas hipotética; era meramente especulativa... Confrontada agora com um relatório de averiguações que reconhece a necessidade de confirmar a realidade da exclusão mediante consulta da marca de veículos, a Ré, pura e simplesmente, recusa pagar. De resto, sequer em audiência arrolou alguém da marca ou convocou a emissão de parecer por técnico daquela, para credibilizar ou justificar a causa em que fundamenta a comunicada exclusão.

A R./seguradora não foi, pois, diligente a averiguar cabal ou proficientemente a verificação da causa de exclusão a que reconduziu a justificação para a falta de cumprimento da sua obrigação de satisfazer a indemnização, assim dando causa ao dano decorrente da falta de disponibilidade pelo A. do valor necessário à substituição do veículo destruído.

Donde, alcançado o fundamento para a responsabilidade contratual da Ré indemnizar um tal dano, que emergiu caracterizado ou demonstrado.

Procedeu a Ré, deste modo, com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos ao A., sem que, para tanto, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), e na constância dos mesmos deveres, tenha procurado adequadamente habilitar-se.

Donde, simultaneamente, relativamente ao exercício do direito de recusa da realização da prestação, em vista dos limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico de tal direito, se impõe concluir pelo seu ilegítimo exercício (art. 334º do CC).

Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar o A. pelos danos causados.

A pretensão formulada pelo Autor quanto à indemnização por dano de privação de uso é susceptível de fundar-se na violação dos deveres referidos.

Relativamente ao dano invocado, como se aduz no Ac. do STJ de 03.05.2011, já citado, «(…) o que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir».

Impossibilidade de usar a coisa, ou outra funcionalmente equivalente, em substituição dela.

A jurisprudência do STJ (reportada a maioria dos casos a responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação) tem-se firmado no sentido de considerar tal dano como dano autónomo indemnizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para os fins de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela privação deixou de poder fazê-lo (veja-se, v. g., com resenha de jurisprudência e doutrina, ASTJ de 23.11.2017, Proc. 2884/11, cit.); não podendo ser averiguado o valor exato do dano, e dentro dos limites do que for provado, será ele determinado pela equidade – art. 566º, n.º 3, do CC.

Ora, o A., que usava habitualmente o veículo nas deslocações; em consequência da privação do uso que dele vinha fazendo, teve de socorrer-se de meios alternativos nas suas deslocações, conforme assente sob 16. dos factos provados.

A Ré, em 25.10.2021, ao recusar a realização da prestação, em violação dos seus deveres e em ilegítimo exercício do seu direito (supra), não entregou ao Autor a quantia a que se encontrava vinculada.

A entrega do valor acordado permitiria ao A. suprir a falta do veículo, como é mister inferir-se.

Verifica-se a existência de nexo causal entre a apontada conduta ilícita da Ré e o dano invocado pelo Autor, nos termos estabelecidos no art. 563º do CC (a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão).

Iniciado o dano com a prática do ato ilícito da Ré, em 25.10.2021, deverá considerar-se como momento de cessação daquele, em princípio, a data da entrega do valor indemnizatório recusado. Atender-se-á, na situação decidenda, à ocasião da notificação da sentença proferida, visto o efeito meramente devolutivo do recurso nos autos. Cerca de 22 meses, portanto.

Ora, desde logo, não há duplicação indemnizatória pela concessão da indemnização contratada pela provação do uso, por não coincidirem temporalmente os danos…

 Quanto à determinação do montante, constata-se que não foram demonstrados factos que permitam apurar o valor dos danos exatos sofridos pelo Autor, pelo que a indemnização deverá ser fixada por recurso à equidade.

Estando em causa apenas a reparação da natureza patrimonial do dano, considerados os factos a esse respeito provados no nº 16 (aí se referindo os meios alternativos usados pelo Autor, não onerosos), tem-se por desajustada a base de cálculo indemnizatório que se reconduza ao valor contratual para aquele mesmo dano (o qual, naturalmente, vai referido ao valor de locação de um veículo idêntico…, que não sucedeu)…

Acresce, naturalmente, a introdução em sede equitativa de um factor de ponderação ou ajustamento, que atenda ao valor do veículo mesmo, em termos de não ser desproporcional a relação entre este (como o dano mais grave da ablação) e o dano da privação temporária…

Julga-se adequada a indemnização, a esse título, no montante de € 5.000.

III.

Nos termos expostos, acorda-se em conceder parcialmente a apelação, mais condenando a Ré a satisfazer ao Autor a quantia global de 5.000 EUR (a acrescer às arbitradas pela 1ª Instância), a título de indemnização pela privação do uso do veículo entre a data da comunicação da recusa de pagamento do valor do veículo seguro contratado e a data da notificação da sentença condenatória que lhe reconheceu tal direito, acrescida dos juros de mora que se vencerem após esta decisão; absolvendo-a do mais peticionado.

Custas na proporção do decaimento, bem assim em sede recursiva.

Notifique.


Porto, 07 de Março de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Manuela Machado
Isabel Silva
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[1] Já acima citado, noutro segmento.
[2] Destacado nosso.