Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4855/22.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DO RECURSO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
Nº do Documento: RP202402204855/22.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a matéria impugnada pelo recorrente não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da acção, de acordo com o direito aplicável (por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados), não deverá a Relação sequer conhecer da pretendida alteração, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril.
II - A justificação para a recusa da prestação estabelecida no art. 787º, nº 2 do CC (excepção dilatória de direito material) verifica-se, no âmbito do arrendamento, quando o senhorio (credor) recusa cumprir a obrigação de quitação que sobre si impende, facultando ao arrendatário (devedor) a legítima recusa de cumprir a obrigação de pagamento da renda cuja quitação, exigida, é recusada.
III - Tendo o avô dos autores dirigido à ré, em nome deles, a declaração de oposição à renovação do contrato, tal declaração produziu efeitos na esfera jurídica destes e, bem assim, na relação jurídica que vinculava autores e ré.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4855/22.0T8PRT.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Alexandra Pelayo
                Ana Lucinda Cabral

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelante (ré): AA.

Apelados (autores):  BB e CC (representados, em razão da menoridade, pelos progenitores, DD e EE).

Juízo local cível do Porto (lugar de provimento de Juiz 8) - T. J. da Comarca do Porto.


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Invocando serem os actuais plenos proprietários de fracções autónomas dadas de arrendamento à ré, em 2006, pelo então usufrutuário delas, e alegando factos tendentes a demonstrar terem-se oposto à renovação do contrato em vista da sua cessação com efeitos para 30/07/2020 e, bem assim, a falta de pagamento das rendas correspondentes aos meses de Janeiro de 2019 e seguintes, afirmando estar em dívida, a esse título, à data da propositura da acção (Julho de 2020), a quantia de 14.250,00€, pediram os autores a condenação da ré:

a) a entregar-lhes as fracções dadas de arrendamento, livres de pessoas e bens e no estado de conservação em que as recebeu,

b) a pagar-lhes a quantia de 14.250,00€ (catorze mil, duzentos e cinquenta euros), a título de rendas vencidas correspondentes aos meses de Janeiro de 2019 a Julho de 2020,

c) a pagar-lhes a quantia mensal de 750,00€, a título de indemnização pelo uso e ocupação da coisa locada, desde a data da cessação do contrato até efectiva entrega, o que, até à presente data, perfaz o montante de 27.000,00€, por força da aplicação do n.º 2 do art. 1045.º do Cód. Civil,

d) a pagar-lhes, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de 100,00€ por cada dia de atraso na entrega do local arrendando.

Contestou a ré, concluindo pela improcedência da acção, invocando, na síntese que releva, que contra o pagamento das rendas que fazia (pagamento em dinheiro, por exigência da representante dos senhorios) nunca foi emitido qualquer recibo de renda, apesar de solicitado por si (artigos 13º, 14º e 24º da contestação) e, bem assim, serem ineficazes as comunicações que lhe foram enviadas para operar a oposição à renovação do contrato, pois além de não respeitarem a antecedência  legalmente prevista, foram enviadas por quem não tinha a qualidade/posição de senhorio.

Observada a legal tramitação, realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência:

- considerou extinto o contrato de arrendamento e condenou a ré a entregar aos autores as fracções dele objecto, livres de pessoas e bens, e no estado de conservação em que as recebera,

- condenou a ré a pagar aos autores a quantia de 14.250,00€ (catorze mil, duzentos e cinquenta euros), a título de rendas vencidas correspondentes aos meses de Janeiro de 2019 a Julho de 2020 e a quantia mensal de 750,00€ pelo ‘uso e ocupação da coisa locada desde a data da cessação do contrato - ocorrida em 30.07.2020 -, sendo essa quantia elevada ao dobro a partir da data da notificação’ da sentença e ‘até efectiva desocupação do locado, nos termos do n.º 2 do art. 1045.º do Cód. Civil’.

Inconformada, apelou a ré, pretendendo a revogação da sentença e sua substituição por outra que julgue a acção improcedente, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª- A sentença recorrida decretou o despejo da ora recorrente, julgando extinto o contrato de arrendamento «por via da oposição à sua renovação»; paralelamente, condenou-a a pagar o montante das rendas de Janeiro de 2019 a Julho de 2020 e, também, a quantia mensal correspondente à renda desde a data em que considerou cessado o contrato, 2020.07.30, elevada para o dobro a partir da data da notificação da sentença.

2ª- Principiando-se por analisar a questão da alegada falta de pagamento das rendas, sobressai que o contrato de arrendamento em causa tem a característica de, apesar da respectiva duração, jamais ter sido emitido um único recibo de rendas – fosse quem fosse o senhorio.

3ª- A respeitável sentença recorrida não atribuiu a este facto a relevância que tem, tendo-o ignorado em absoluto, quando se impunha, de todo, considerar o art. 787º do Código Civil, quando consigna que «Quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita» e que «O autor do cumprimento pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada».

4ª- No depoimento que EE prestou, esta, tendo admitido que era ela quem recebia as rendas, mais reconheceu que nunca tinham sido emitidos recibos pelos respectivos pagamentos (cfr. depoimento de 2023.05.15, minutos 06:05 a 06:30).

5ª- E a Ré deixou alegado no art. 24º da contestação que sempre lhe fora recusada a emissão dos recibos das rendas que foi pagando – e das que viesse a pagar – o que os Autores não impugnaram.

6ª- Deverá, pois, ser aditado um facto aos «Factos Provados» com a seguinte redacção (ou semelhante):

«Nunca foram emitidos recibos à Ré pelas rendas por esta efectivamente pagas»

7ª- Com este aditamento à matéria de facto, conclui-se que, tão-só com este fundamento a Ré estava desobrigada do pagamento das rendas que lhe estão a ser exigidas e em cujo pagamento foi condenada.

8ª- A propósito, cfr. os seguintes Acórdãos, parcialmente citados na presente alegação: da Rel. Lxa. de 2018.07.12 (Proc. nº 1296/16. 1T8LRS.L1-6),

«III- A falta de entrega do recibo comprovativo do pagamento da renda constitui fundamento para suspender o pagamento das rendas, ao abrigo do disposto no art.º 787.º n.º2 do Código Civil».

Da Rel. de Évora de 2004.01.22 (Proc. nº 2414/03-3):

«III- Um senhorio constitui-se em mora quando, sem justificação não aceita a prestação oferecida em termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.

IV- O locatário pode recusar-se a pagar a renda se não lhe for dada a respectiva quitação».

Por outro lado:

9ª- A Ré, nas suas declarações, alegou que deixara de pagar a renda também por lhe terem «cortado» o fornecimento de água e de electricidade; mas que fizera pagamentos de rendas em numerário, o que, antes, já ocasionalmente fizera;

10ª- foi para o demonstrar que a juntou à sua contestação documentos comprovativos de depósitos ou transferências das rendas ao longo dos anos de 2007 a 2019 (documentos 1-C a 121): embora não esteja em causa a exigência de quaisquer rendas vencidas nesses anos, constatar-se-á que nem todos os depósitos/transferências correspondem aos doze meses do ano: ano de 2007: está documentalmente comprovado o pagamento de nove meses; no de 2008, oito meses; no de 2010, dez meses; no de 2011, onze meses; e por aí adiante;

11ª- O que traduz que já nesses anos houve pagamentos de rendas em dinheiro, que não se tratou de uma alteração da forma de proceder o ter de pagar todas as rendas em numerário; aliás,

12ª- no documento nºs 122 a 124, a mãe dos Autores menores afirma, já em 2016: «vou aí levantar o dinheiro» (e, durante as suas declarações, não deu qualquer explicação para o uso dessa expressão – cfr. minutos 08:57 a 10:00 do mesmo; e nos minutos 10:53 «escapou-lhe» a expressão «era sempre em dinheiro»).

13ª- O que a Ré corroborou nas declarações prestadas no mesmo dia atrás referido, de minutos 06:30 a 09:00 – devendo, por isso, ser aditado um facto aos «Factos Provados» com a seguinte redacção (ou semelhante):

«Ao longo dos anos, houve rendas que a Ré pagou em numerário».

14ª- Com este aditamento, e sempre sem prejuízo da mora do credor atrás focada, não é possível determinar quais as rendas, de que meses, estarão efectivamente em dívida, pelo que, a não ser mediante um juízo de equidade que fixe um valor como sendo devido, não se justifica a condenação no pagamento de todas as rendas que os Autores dizem estar em dívida.

Por outro lado, ainda:

15ª- Foi o avô dos Autores, quem remeteu as cartas opondo-se à renovação do prazo contratual, cartas essas datadas de 2019.01.29 e 2020.02.21; ora, tendo o usufruto de que esse senhor era titular caducado em 2006.09.26 (doc. 1-A junto à contestação, Ap. ...) ele nada era relativamente às fracções, pelo que as comunicações veiculadas pelas cartas dele não são susceptíveis de produzir qualquer efeito.

16ª- Salvo o devido respeito – que é muito – crê-se não poder aceitar-se a «construção feita na sentença recorrida de que as comunicações feitas pelo avô dos Autores o foram na qualidade deste de «senhorio», pois que já não o era há anos!

17ª- E mostra-se de todo irrelevante que essas cartas tenham «sido assinadas pelo avô dos Autores, mas a pedido da mãe e representante legal dos Autores», como afirma a sentença,

18ª- pois que a carta em que o senhorio se opõe à renovação do prazo contratual tem de ser enviada por quem seja… senhorio – cfr. art. 1097º nº 1 do Cód Civil (a menos que esteja munido de procuração com poderes para esse efeito, que obviamente teria de acompanhar a mensagem em causa) – pelo que o prazo contratual se renovou.

19ª- Na sentença recorrida, encontram-se interpretadas e aplicadas por forma inexacta as normas referidas nas precedentes conclusões, pelo que a sua revogação se impõe.

Contra-alegaram os autores em defesa da decisão recorrida e pela improcedência da apelação.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Da delimitação do objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações do apelante, identificam-se como questões colocadas à apreciação deste tribunal:
- a censurada dirigida pela apelante à decisão sobre a matéria de facto,
- a oposição à renovação do contrato, e
- as quantias em dívida (rendas e valores indemnizatórios pela ocupação das fracções após a extinção do contrato).


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

A decisão apelada considerou:

Factos provados

1. Os autores são os actuais donos das fracções autónomas designadas pelas letras ‘CB’ e ‘AU’, correspondentes, respectivamente, a habitação com arrumos, no 5.º andar esquerdo e a um lugar de garagem, na 1.ª cave, que fazem parte do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto.

2. Tendo por objecto as referidas fracções, foi celebrado em 25.07.2006, por escrito epigrafado de ‘contrato de arrendamento para habitação em período limitado (5 anos)’, um contrato de arrendamento entre o avô dos autores, FF, usufrutuário, à data, das ditas fracções, sendo a sua filha titular da raiz ou nua propriedade, e a ré.

3. Nos termos contratualmente estabelecidos, o arrendamento foi feito pelo prazo de 5 anos, com início em 01.08.2006 e termo em 30.07.2011, com possibilidade de ser prorrogável por períodos sucessivos de 3 anos.

4. A renda anual contratualizada foi de 9.000,00€, a pagar em duodécimos de 750,00€, na residência do senhorio ou por transferência bancária para a conta identificada na cláusula segunda, no primeiro dia do mês anterior a que respeitasse.

5. No termo do prazo inicial, o contrato renovou-se por períodos sucessivos de 3 anos.

6. A partir de Janeiro de 2019, a ré deixou de pagar a renda.

7. No ano de 2019, a ré depositou, somente, em 9 de Setembro, o montante de 750,00€, o qual foi afecto ao pagamento de uma rendas em falta do ano de 2018.

8. Nenhuma outra renda foi paga pela ré.

9. Por carta registada de 29.01.2019, o avô dos autores comunicou à ré a sua oposição à renovação do contrato em apreço, tendo indicado, por lapso de escrita, que o mesmo cessaria em 30.07.2019, quando pretendeu dizer 30.07.2020, por ser esta a data do termo da renovação então em curso.

10. Em resposta à referida comunicação, a ré veio, através de missiva datada de 26.06.2019, alegar que deveria haver um lapso na indicação do termo do prazo da cessação do contrato, uma vez que a renovação em curso só terminaria no dia 30.07.2020, acrescentando que ‘apenas nessa data, se for o caso, terei de deixar o andar devoluto.’

11. Através de carta registada com aviso de recepção, datada de 21.02.2020 e recepcionada pela ré em 27.02.2020, o avô dos autores reiterou a oposição à renovação do contrato, com indicação da data de 30.07.2020 como sendo o prazo de cessação do contrato, a fim de clarificar o lapso de escrita quanto à data da cessação constante da carta antes referida em 9.

12. A ré não desocupou os locados e não os entregou aos autores, ou ao seu avô, livre de pessoas e bens, nem naquela data, nem posteriormente.

13. Numa tentativa de resolução extrajudicial do assunto, os autores, através dos seus mandatários, mediante carta de 03.12.2021, interpelaram a ré para que desocupasse os locados até ao dia 31 de Dezembro de 2021 e procedesse ao pagamento (i) das rendas vencidas até àquela data de cessação do contrato – 30.07.2020 – e (ii) do montante indemnizatório pela não restituição dos locados naquela data.

14. Por carta datada de 23.12.2021, a ré respondeu nos seguintes termos:

‘Salvo melhor opinião, a carta registada de 21/02/2020, a que V. Exas. aludem, não poderá ter o efeito que V. Exas. referem, pois que, segundo fui informada, a antecedência da manifestação do senhorio deve ser no mínimo de 240 dias, para os efeitos pretendidos, e neste caso foi-o unicamente com a de 153 dias.

Por outro lado, não se tendo operado a cessação do contrato na data referida por V. Exas. (31/07/2020) este renovou-se por um período de 3 anos, quando não de 5, por ser este o prazo inicial do contrato.

Por isso, não tenho, por forma alguma, a obrigação de entregar os locados.

Por outro lado, V. Exas. poderão colher informação junto do Sr. GG, que sempre foi o meu senhorio (embora, também sempre, representado pela filha), de que todos os pagamentos das rendas foram feitos em numerário, a expresso pedido do senhorio – até à data mediante depósito na conta bancária que me foi indicada e, em seguida, mediante entrega directa à filha do senhorio.

Por isso, tão-pouco sou devedora da quantia referida na carta de V. Exas. uma vez que sempre paguei a renda e, quando não o fiz atempadamente as respectivas multas, também em numerário.”

15. Na pendência da presente acção, instaurada em 11.03.2022, a ré remeteu à mãe dos autores, EE, uma carta, datada de 28.03.2023, referindo o seguinte:

‘Dirijo-me a V. Exa. na qualidade de representante de S/s filhos menores e na qualidade destes de proprietários da fracção de que sou arrendatária, sita na Rua ..., n.º ..., 5.º Esq.º B, Porto.

Dado que, por iniciativa de V. Exa. foi cortado o fornecimento de água e de energia eléctrica da referida fracção desde o passado mês de Janeiro, de que, por isso não tenho podido fruir, venho comunicar que exerço o direito de não pagar as rendas que desde então se venceram, pois que, como consequência dessa atitude, não me ser assegurada a normal fruição da fracção.

Retomarei o pagamento das rendas assim que os fornecimentos em causa também sejam retomados, deduzindo em seguida nas mesmas quaisquer despesas implicadas pelo respectivo reinício.’

16. O avô dos autores assinou as cartas de oposição à renovação antes referidas em 9 e 11, apesar de, nessa data, já serem os autores, menores de idade, os donos das fracções;

17. ... Tendo as referidas comunicações sido assinadas pelo avô dos autores, mas a pedido da mãe e representante legal dos autores.

18. As comunicações de oposição à renovação foram enviadas em 29.01.2019 e 21.02.2020, e recepcionadas pela ré, respectivamente, em 26.06.2019 e 27.02.2020.

Factos não provados.

a) Relativamente às rendas vencidas a partir de Janeiro de 2019, a ré entregou o correspectivo valor (de rendas) à mãe dos autores, EE, em dinheiro, por expressa exigência desta, que paralelamente se recusava a emitir os competentes recibos.

b) Era essa a forma habitual de a ré proceder à entrega da renda.


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Fundamentação de direito.

A. Da pretendida alteração da decisão de facto.

Impugna a apelante a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, pretendendo se aditem dois novos factos à matéria provada, um fazendo constar que nunca foram emitidos recibos pelas rendas por si efectivamente pagas e outro que ponha em evidência que, ao longo dos anos, houve rendas que pagou em numerário (conclusões 6ª e 13ª).

Manifesta a desnecessidade de apreciar da suscitada impugnação, impondo-se à Relação o dever de rejeitar o seu conhecimento, abstendo-se de a decidir.

A apreciação da modificabilidade da decisão de facto é actividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objecto incida sobre factualidade  que não interfira de modo algum na solução da apelação, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados[1].

O propósito precípuo da impugnação da decisão de facto é o de possibilitar à parte vencida (na parte em que o seja) a obtenção de decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido quanto ao mérito da causa, o que faz circunscrever a sua justificação às situações em que a matéria impugnada possa ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito em favor do recorrente esteja dependente da modificação que o mesmo pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.

Sendo a matéria dela objecto indiferente e alheia à sorte da acção, não interferindo de modo algum na solução do caso, de acordo com o direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito[2]), não deverá a Relação conhecer da impugnação (da pretendida alteração), sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes, considerando as  soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância, como sucederá nas situações em que, mesmo com a substituição pretendida pelo impugnante, a solução e enquadramento jurídico do objecto da lide permaneçam inalterados[3].

Atendendo à conformação objectiva da causa (pedido, causa de pedir e defesa deduzida pela ré – a matéria de excepção conforma também o poder cognitivo do tribunal, pois que a sua apreciação também se impõe), tem de reconhecer-se ser a matéria impugnada irrelevante para a decisão da causa.

É indiferente à decisão da causa (seja no segmento relativo à pretensão dos autores haverem da ré os montantes relativos às rendas devidas, seja no segmento em que a falta de pagamento de renda é tida como fundamento de resolução do contrato pelos senhorios) apreciar se a apelada pagou ou não, em dinheiro (ou por qualquer outro método válido de cumprimento de obrigações pecuniárias) outras rendas que não as correspondentes aos meses de Janeiro de 2019 e seguintes – o alegado incumprimento da primordial obrigação da arrendatária ré (art. 1038º, a) do CC) foi pelos autores reportado às rendas correspondentes aos meses de Janeiro de 2019 e seguintes, não a quaisquer outras, sendo que a apelante não pretende se julgue provado que pagou, em numerário, rendas relativas ao período temporal em questão (ao período temporal posterior a Janeiro de 2019); indiferente e alheia à sorte da acção, pois, a matéria em questão que a apelante pretende ver aditada à fundamentação de facto.

Igualmente irrelevante à decisão da causa é a matéria concernente à não emissão de recibos de renda relativos às rendas que pela arrendatária foram efectivamente pagas. Importa salientar que não pretende a apelante se julgue provado que o não pagamento das rendas em questão nos presentes autos (rendas concernentes aos meses de Janeiro de 2019 e seguintes) se relaciona com a recusa da emissão do recibo por parte dos senhorios, antes e apenas pretende se julgue provado que nunca foram emitidos recibos relativamente às rendas por si pagas.

Não se trata, pois, de demonstrar matéria que pudesse relevar como matéria de excepção, à luz do nº 2 do do art. 787º do CC – isto é, não como fundamento da excepção do não cumprimento do contrato (art. 428º do CC), porque a obrigação de pagamento da renda a cargo do arrendatário é correspectiva da obrigação de ceder o gozo da coisa que impende sobre o senhorio e não já da obrigação de quitação, mas sim enquanto razão para recusar, ao abrigo da excepção dilatória de direito material estabelecida no art. 787º, nº 2 do CC –, pois tal excepção (tal justificação legal para a recusa da prestação) verifica-se quando o senhorio (credor) recusa cumprir a obrigação de quitação que sobre si impende, facultando ao arrendatário (devedor) a legítima recusa de cumprir a obrigação de pagamento da renda cuja quitação, exigida, é recusada.

Excepção que a ré, verdadeiramente, não invocou sequer na contestação [e que por isso, sempre lhe seria defeso vir agora invocar nas alegações, quer porque se trataria de questão nova, quer porque estaria precludida a faculdade de a invocar - a sua invocação (enquanto meio de defesa) está sujeita ao princípio da concentração da defesa, estabelecido no art. 573º do CPC, do qual resulta ficarem precludidos (prejudicados – não podendo vir a ser alegados posteriormente) todos os meios de defesa não invocados na contestação[4] (esgotado o prazo para contestar ‘preclude-se a alegabilidade contra a pretensão do autor’ das ‘impugnações e exceções que o réu poderia ter deduzido’[5])], pois se limitou a invocar/alegar que, quanto às rendas que pagou (que efectivamente pagou), nunca foi emitido recibo, não tendo alegado/invocado, quanto às rendas concernentes a Janeiro de 2019 e posteriores, recusa de pagamento em virtude de não ter sido cumprida, pelos senhorios, a obrigação de quitação (exigida por si, apelante) relativamente a cada uma delas.

De todo o modo, ainda que não estivesse precludida a sua alegabilidade, sempre seria de considerar que a matéria que a propósito a apelante pretende ver aditada à fundamentação de facto não é susceptível de preencher dos requisitos da referida excepção (e daí a sua irrelevância e inutilidade para a decisão da causa) – a recusa do devedor, à luz do nº 2 do art. 787º do CC, afere-se em relação a cada uma das concretas prestações oferecidas ou realizadas pelo devedor (no caso da locação, renda), depende da exigência da quitação ao credor (da exigência da emissão do recibo respectivo ao pagamento em causa) e, bem assim, da recusa da quitação (da recusa da emissão do recibo)[6] e a matéria que a apelante pretende ver acrescentada não permitiria concluir que, relativamente às rendas cuja não pagamento é invocado como causa de pedir da presente acção, tenha a arrendatária ré recusado o seu pagamento por lhe ter sido recusada a quitação que exigira.

Assim sendo, porque os factos impugnados pela ré apelante são irrelevantes para apreciar do mérito da causa, não interferindo de modo algum na decisão da causa, abstém-se esta Relação de conhecer da impugnação da matéria de facto.

B. Do mérito da causa – a oposição à renovação do contrato.

Alega a apelante que as cartas de oposição à renovação do contrato que lhe foram enviadas não são susceptíveis de produzir qualquer efeito pois provindas de quem não tinha a qualidade de senhorio (foram enviadas pelo avô dos autores, que não tinha a qualidade de senhorio), sendo irrelevante que tenham sido assinadas pelo terceiro (pelo avô dos autores, qua já não era senhorio) a pedido da mãe e legal representante dos autores, pois tem de ser enviada por quem tenha essa qualidade a carta em que o senhorio se opõe à renovação do prazo contratual (art. 1097º do CC), a menos que o declarante esteja munido de procuração para esse efeito, que teria de acompanhar ma comunicação.

A oposição à renovação do contrato de arrendamento não é, verdadeiramente, uma forma de cessação do contrato, pois a comunicação dirigida por uma das partes à contraparte (a oposição pode ser promovida quer pelo senhorio, quer pelo arrendatário – arts. 1097º e 1098º do CC, respectivamente) se destina a manifestar a vontade de o contrato cessar a produção de efeitos findo o prazo estipulado de duração inicial ou da sua renovação, repercutindo-se na caducidade do contrato uma vez decorrido o prazo pelo qual se encontra a vigorar, contrariando a rega da renovação automática do contrato estabelecida no nº 1 do art. 1096º do CC[7] - ao contrário da denúncia (em que se pretende fazer cessar o contrato no decurso da sua vigência), na oposição pretende a parte que a promove impedir a renovação do contrato, ou seja, a sua extensão por um novo período, de modo a que o mesmo termine no prazo inicial ou de renovação em curso[8].

Opera a oposição à renovação do contrato através de comunicação feita por uma das partes à outra (arts. 1097º, nº 1 e 1098º, nº 1 do CC) – uma declaração de vontade (receptícia, pois deve chegar à esfera de disponibilidade da contraparte) que, reconhece-se, deve provir de quem seja parte no contrato, de quem tenha a qualidade de senhorio ou arrendatário (consoante seja promovida por aquele ou por este).

Qualidade de senhorio que o avô dos autores não tinha no momento em que a comunicação foi emitida e levada ao conhecimento da ré arrendatária – indiferente que já tenha tido tal qualidade (tendo sido ele quem celebrou o contrato com a ré, obrigando-se a ceder-lhe o gozo das fracções), pois o que releva é a titularidade da relação jurídica (da relação de locação) no momento em que a oposição à renovação do contrato é manifestada.

Resulta, todavia, provado, que foi por solicitação da legal representante dos autores (senhorios ao tempo em que a manifestação da vontade de oposição à renovação do contrato foi emitida) que o avô destes assinou a comunicação dirigida à ré dando-lhe conta da vontade do senhorio em terminar o contrato no final do prazo que se mostrava em curso, não pretendendo que o contrato estendesse os seus efeitos por novo período.

Constata-se assim que o avô dos autores actuou como representante ou mesmo como núncio – seja porque se limitou a manifestar vontade dos autores (vontade formada pela legal representante destes) e não a sua própria vontade (actuação como simples núncio), como pode concluir-se dos factos provados número 16 e 17 (o avô dos autores assinou as cartas – em rigor, transmitiu declaração já formada e formulada na comunicação que assinou), seja porque em representação dos autores (mediante acordo com a legal representante destes) formulou ele próprio a vontade de emissão da declaração para que produzisse efeitos na esfera jurídica daqueles representados, certo é que se trata de declaração destinada a produzir efeitos na esfera jurídica dos autores.

Em ambas as hipóteses (quer tenha actuado como núncio – em que não teve espaço de decisão própria – quer tenha actuado como representante – em que tenha formado vontade própria, ainda que actuando em nome dos autores) se aplicam os artigos 260º, 265º, 266º e 268º do CC[9] – e assim que tendo o avô dos autores dirigido à ré, em nome deles, a declaração de oposição à renovação do contrato, tal declaração produziu efeitos na esfera jurídica destes e, bem assim, na relação jurídica que vinculava autores e ré [só não produziria se a ré tivesse exigido, com a cominação referida na parte final do nº 1 do art. 260º do CC, que o representante, em prazo razoável, fizesse prova dos seus poderes, de representante ou de núncio, e que tal prova não houvesse sido feita – no ‘caso de não justificação dos poderes (solicitada esta), considera-se que a declaração dirigida à contraparte não produz em definitivo efeitos (não existe, evidentemente, qualquer possibilidade de representação pelo representado; a hipótese comparar-se-á, nesse aspeto, antes à negação da ratificação)’[10]].

De concluir, pois, que a oposição à renovação do contrato promovida pelos autores, senhorios, produziu os seus efeitos, tendo assim obstado à renovação do contrato e sua extensão por novo período – assistindo aos senhorios, extinto o contrato, o direito a que a ré lhes entregue as fracções objecto daquele, livres de pessoas e bens, no estado em que as recebeu (veja-se o disposto nos arts. 1038º, i) e 1043º do CC).

C. Do mérito da causa – as quantias em dívida (rendas e valores indemnizatórios devidos pela ocupação das fracções).

Considerando estar demonstrado que a ré arrendatária não pagou as rendas correspondentes a Janeiro de 2019 e posteriores – não estando demonstrada qualquer matéria susceptível de fundar qualquer motivo de justa recusa do seu pagamento (mormente qualquer mora do credor) –, tem de reconhecer-se assistir aos autores, senhorios, como decidido na sentença apelada, o direito de exigir judicialmente (art. 817º do CC) da ré, arrendatária, o pagamento das mesmas até à data da extinção do contrato (elas são o correspectivo da faculdade de fruir e gozar a coisa que os autores, senhorios, lhe proporcionaram – art. 1038º, a) do CC) e, bem assim, quantia mensal equivalente à da renda desde a data em que se produziu a extinção do contrato (30 de Julho de 2020) e até efectiva entrega das fracções (art. 1045º, nº 1 do CC), quantia elevada ao dobro em caso de mora (art. 1045º, nº 2 do CC – na sentença apelada entendeu-se que tal quantia elevada ao dobro seria devia tão só desde a data da notificação da sentença, sendo que tal entendimento/decisão não mereceu censura/impugnação pelos autores).

D. Síntese conclusiva.

Do exposto resulta a improcedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a sentença apelada.

Custas pela apelante.


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Porto, 20/02/2024
João Ramos Lopes
Alexandra Pelayo
Ana Lucinda Cabral

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Assim, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
[2] As soluções aventadas na doutrina e/ou na jurisprudência, ou que, em todo o caso, o juiz tenha como dignas de ser consideradas (como admissíveis a uma discussão séria) – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 188, nota 1 –, isto é, as soluções que a doutrina e a jurisprudência adoptem para a questão (designadamente nos casos em que em torno dela se tenham formado duas ou mais correntes) e também aquelas que sejam compreensivelmente defensáveis, considerando a lei e o direito aplicáveis – Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 417 e 418 –, os (todos os) ‘possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção’, as ‘possíveis soluções de direito da causa’, as soluções jurídicas (entendimentos e posições) propostas pela doutrina e/ou jurisprudência para resolver a questão suscitada no litígio – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 311 –, as vias de solução possível do litígio, ponderando as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão levantadas pela pretensão deduzida em juízo e excepções invocadas – Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2001, p. 381.
[3] Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt. No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), no sítio www.dgsi.pt.
[4] P. ex., Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 645 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 566.
[5] Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, p. 68.
[6] Cfr. acórdão da Relação do Porto de 16/05/2023 (João Diogo Rodrigues), no sítio www.dgsi.pt.
[7] Edgar Alexandre Martins Valente, Manual de Arrendamento e Despejo, 2021, Reimpressão, pp. 298 e 299.
[8] Edgar Valles, Arrendamento Urbano – Constituição e Extinção, 2020, 2ª Edição, p. 93.
[9] Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), nota III ao artigo 258 do CC, p. 625.
[10] Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, in Comentário (…), nota III ao art. 260º do CC, p. 631.