Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1306/13.4TBMCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: PERDA TOTAL DE VEÍCULO
VALOR DE SUBSTITUIÇÃO
VALOR DE MERCADO DO VEÍCULO
Nº do Documento: RP201502191306/13.4TBMCN.P1
Data do Acordão: 02/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O valor indicado por uma seguradora como valor de mercado de um veículo, em caso de perda total, corresponde à indicação, por ela, do valor de substituição do veículo.
II - Cabe ao lesado alegar e provar factos tendentes a aumentar esse valor de substituição.
III - Se o valor da reparação estiver acima 20% deste valor de substituição, em princípio a seguradora só será obrigada a pagar a indemnização pelo valor de substituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acção comum 1306/13.4TBMCN do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Marco de Canavezes

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

B… demandou a C…, SA, e C1…, SA, pedindo a condenação solidária das rés a pagar-lhe os danos por ele sofridos em consequência de um acidente de viação causado por culpa exclusiva de um segurado da 1ª ré, de que a segunda é representante em Portugal; esses danos correspondem a 5069,42€ para reparação do seu veículo automóvel, 4935€ pela privação de uso do mesmo, acrescida do valor diário de 35€, desde a data da entrada da presente acção até integral e efectivo pagamento da indemnização, 300€ pelas despesas que suportou na fase pré-judicial e 2000€ pelos danos não patrimoniais, tudo com juros até efectivo pagamento.
A C1…, SA, na qualidade de representante da 1ª ré contestou, assumindo a responsabilidade do segurado pela produção do embate, mas impugnando parte dos danos invocados, entre eles o do valor da reparação indicado pelo autor, que computa antes em 4463,30€; para além disso, entende que não tem de pagar o valor da reparação, já que teria havido uma perda total, mas apenas 2150€ que era o valor que permitiria ao autor adquirir um veículo automóvel idêntico e que já colocara à sua disposição em 27/05/2013; nem a indemnização pela privação do uso a partir daquela data.
Depois do julgamento foi proferida sentença condenando as rés a pagar ao autor 5069,42€ [= valor da reparação segundo o autor], mais 10€ por dia de privação de uso do veículo acidentado, desde a data do acidente (12/05/2013) até efectivo e integral ressarcimento do autor, 39€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais e 750€ pelos não patrimoniais peticionados e sofridos em consequência do acidente descrito nos autos, acrescidos todos estes valores de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data desta decisão até integral pagamento, absolvendo as rés do demais peticionado.
A ré interpõe recurso desta sentença, para que esta seja revogada, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (minimamente sintetizadas por este acórdão):
1. Face aos factos provados entende a ré que a quantificação dos danos é manifestamente incorrecta, desajustada e onerosa.
2. Quer pelo depoimento testemunhal, quer pelos documentos juntos (do documento n.º 2 junto com a contestação resulta que o veículo do autor teria um valor máximo de 2150€, valor esse que foi proposto pela ré), devia ter sido dado como provado, sob 32, que "...e o valor venal do veículo, à data do acidente era de 2150€" e devia ter sido dado como provado o facto vertido na alínea a) dos factos não provados [ou seja, na parte que interessa: a colocação imediata à disposição do autor essa quantia].
3. Face à matéria de facto dada como provada, entende a ré que o valor arbitrado para a reparação do veículo não tem razão de existir.
4. Com efeito, resultou provado que o veículo do autor tinha um valor venal de 2200€ e o salvado um valor de 250€; e que a reparação do veículo orçava em 5069,42€.
5. Ora, o Dec.-Lei 291/2007, de 21/08, veio estabelecer as regras pelas quais se deve aferir na perda total de um veículo. No seu art. 41/1c), a lei estabelece que um veiculo interveniente num acidente se considera em situação de perda total quando se constata que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapasse 100% ou 120% do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
6. Significa isto que, no presente caso, o veículo do autor cumpre o requisito de se considerar perda total; com efeito, o valor da reparação do veículo é mais do dobro do seu valor venal.
7. Só se pode considerar neste caso que a sua reparação era economicamente desaconselhável.
8. Repare-se ainda que a ré encontrou e indicou ao autor um veículo exactamente igual ao seu, com menos quilómetros percorridos, pelo valor de 2150€. Isto é, o autor, recebendo a quantia proposta pela ré podia adquirir um veículo exactamente igual ao seu e com menos quilómetros percorridos.
9. […N]ão se compreende o porquê da não aceitação por parte do autor do valor proposto pela ré logo a seguir à produção do acidente, sendo certo que, com o recebimento da referida quantia, o autor poderia adquirir um veículo exactamente igual ao seu e com menos quilómetros percorridos.
10. Por outro lado, o valor arbitrado ao autor pela reparação do veículo é demasiada onerosa para a reparação integral do seu dano.
11. Com efeito, a reparação do veículo é mais do dobro do valor venal do veículo. Mais do dobro. Com esse valor o autor pode adquirir um veículo igual ao seu do ano de 2009, sendo já o novo modelo da Peugeot que nada tem haver com o seu.
12. Trata-se, isso sim, de um enriquecimento ilegítimo e injustificado.
13. Como se disse, a aceitação por parte do autor da proposta que foi efectuada pela ré no período de tempo que se seguiu ao acidente era mais do que razoável e justificada.
14. Assim, condenando a ré a pagar ao autor apenas a quantia de 2150€ é mais do que razoável, o que se pede.
15. E daqui advém igualmente o porquê da ré não concordar com o valor que foi arbitrado ao autor a título de privação do uso do veículo.
16. Com efeito, tal dano é da exclusiva responsabilidade do próprio autor. Ao não aceitar a proposta da ré na fase imediatamente a seguir ao acidente o autor colocou-se numa situação de privação do uso do veículo para a qual a ré em nada contribuiu. Muito pelo contrário.
16. A ré fez tudo, mas tudo, para que o autor pudesse usufruir o mais rapidamente possível de um veículo exactamente igual ao seu.
17. Isto é, não se pode culpar a ré de ter actuado de forma culposa na não regularização deste sinistro, nem pode ser condenada por um dano para o qual não contribuiu.
18. E repare-se que a ré na proposta que fez apenas se refere ao dano do veículo, porque obviamente se iriam apurar quais os danos que sofreu em consequência da privação do uso.
19. Como é óbvio, a ré só pode ser condenada a indemnizar o autor pela privação do uso no período que mediou entre a data do acidente e a data em que apresentou a proposta final e a indicação de um veiculo usado exactamente igual, isto é, 28/06/2013 (cfr. doc. nº 12 junto com a PI e doc. nº 2 junto com a contestação).
20. E o mesmo se diga em relação ao dano não patrimonial atribuído ao autor. Efectivamente o mesmo ocorre por sua exclusiva culpa, pelo que, no presente caso não tem razão de existir.
O autor contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada no sentido pretendido pela ré; se a ré não devia ter sido condenada a pagar o valor da reparação; e, concluindo-se neste sentido, se o valor das restantes parcelas da condenação deve ser alterado.
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Factos dados como provados com interesse para a decisão destas questões (não se consignando, por isso, todos os factos que têm a ver com o acidente, cuja responsabilidade a ré assumiu, ou com o seguro, que não está em discussão):
9. Como causa directa e necessária do embate com consequente queda do veículo [seguro] sobre o capot e tejadilho do lado esquerdo do veículo [do autor], resultaram danos materiais neste veículo,
10. ... danos que obrigam a trabalhos de chaparia, pintura e alinhamento de direcção, orçados pela oficina D…, Lda, em 5069,42€.
11. O autor despendeu o valor de 39€ na obtenção de cópia certificada da “participação de acidente de viação”.
12. O veículo [do autor] não se encontra reparado até ao presente,
13. ... encontrando-se, em consequência dos danos referidos em 9 e 10 impedido de circular.
14. O autor utilizava o [seu] veículo automóvel para transportar todos os dias o seu filho menor à escola e de volta, que se loca-liza a cerca de três quilómetros da sua residência, aos treinos de futebol, em horário pós-escolar, aos jogos de futebol em que este participa aos fins de semana, às consultas de terapia da fala e de psicologia ao centro da cidade de Marco de Canaveses, que fica a cerca de quatro quilómetros da sua residência.
15. Encontrando-se o autor desempregado, este utilizava o aludido veículo ainda nas suas deslocações a entrevistas de emprego,
16. ... tendo já recusado duas propostas de trabalho por não ter agora veículo automóvel.
17. O autor passou a ter de recorrer à ajuda de terceiros para o transportarem a si e ao seu agregado familiar,
18. … o que tem causado perturbações e incómodos no seu modus vivendi e lides diárias.
19. Em consequência do embate e da privação do uso do veículo, o autor passou a ser uma pessoa mais isolada, evitando o convívio social, tornou-se mais agressivo para com a mulher e intolerante para com o filho, tornando a sua vida familiar desagradável.
20. [Esse] veículo automóvel era o único de que o autor dispunha para se deslocar diariamente,
21. … veículo que adquiriu com dois anos de idade, apresentando, à data do embate, as revisões em dia e sempre tendo sido tratado com estima e cuidado.
22. Por cartas datadas de 31/5/2013 e 07/6/2013, o autor solicitou à 2ª ré que lhe facultasse carro de substituição, nos termos que constam do teor das mesmas, juntas a fls. 40-41 e 48-50, que se deu por reproduzido.
23. Em resposta, datada de 28/06/2013, a 2ª ré respondeu “quanto ao valor do veículo de substituição será necessário fazer prova do custo que teve para podermos reembolsar, sendo que apenas aceitamos o máximo de 29 dias, conforme previsto na lei, desde 14/05.2013 a 11/05/2013”.
24. Por carta de 12/05/2013 [é lapso, a carta é de 27/05/2013], dirigida ao autor, a 2ª ré assumiu-se como representante da 1ª ré e informou que, após a peritagem efectuada à viatura propriedade do autor, foi a mesma considerada perda total [ao abrigo do art. 13 do DL 44/2005, de 23/02, por o valor de reparação ser superior a 70% do valor venal do veículo à data do acidente] e que o valor de venda do mercado é de 2000€ e o valor do veículo acidentado é de 250€ (cfr. doc. de fls. 38 [é lapso, o doc. é de fls. 39], que se deu por reproduzido – os parênteses rectos foram introduzidos por este acórdão para pôr a transcrição da carta dada por reproduzida de acordo com o seu teor).
25. No dia 31/05/2013, o autor respondeu nos termos que constam da carta de fls. 40-41, que se deu por reproduzida [e que este acórdão passa a transcrever na parte que interessa:]
“[…]
Como bem se pode aferir, o M/Const assume a posição de lesado no âmbito do sinistro em apreço - não teve qualquer tipo de conduta que contribuísse para o mesmo, não recaindo sobre o mesmo qualquer tipo de culpa.
O certo é que é proprietário de um veículo automóvel, que até à data do sinistro, garantia todas as necessidades do lesado e do seu agregado familiar. Veículo automóvel, esse, com cerca, de 130.000 km, com todas as revisões em dia, sem qualquer estrago ou avaria. Um veículo automóvel, que só tendo tido um proprietário, revestia todas as condições de segurança, estabilidade e conforto.
Com a Vossa proposta, o M/Const nada mais poderá adquirir a não ser uma bicicleta em segunda mão...
Nunca o M/Const poderá aceitar um valor de 250€ para se sentir reparado pelos prejuízos e transtornos que o Vosso segurado lhe causou.
A Vª Exª caberá, sempre a reconstituição da situação do lesado que existiria se não fosse o sinistro.
Assim, e uma vez que o seu veículo automóvel é digno de compostura - segundo orçamento facultado pela empresa de mecânica onde o mesmo se encontra, é intenção do M/Const exigir que se proceda a tal compostura, nos termos legais. Ou, em alternativa, que seja ressarcido com montante suficiente para comprar um veículo automóvel, da mesma marca, com o mesmo modelo, do mesmo ano, com similar quilómetros e num estado de conservação idêntico.
[…]”
26. Por carta também datada de 12/05/2013 [é lapso, a carta é de 04/06/2013], a 2ª ré, assumindo a sua responsabilidade pelo sinistro, propôs ao autor indemnizá-lo nos seguintes termos [deu-se por reproduzido o teor da carta de fls. 46, que este acórdão do TRP passa a transcrever na parte que importa:]
“[…] vimos informar V. Exa. que após a peritagem efectuada à sua viatura pelos serviços técnicos da C1…, ao abrigo do artigo 13 do DL 44/2005, por, o valor de reparação ser superior a 70% do valor venal do veiculo à data do acidente [sic]
A indemnização a efectuar tem por base:
Valor Venal: 2071 Eur
Valor do veículo acidentado: 250 Eur
Neste âmbito e tendo em conta os valores apurados. propomo-nos indemnizar V. Exa. nos seguintes termos:
1. Optando por ficar com o veiculo acidentado em seu poder o valor de 1821 Eur
2. Optando por não ficar na posse do veículo acidentado o valor de 2071 Eur
[…]
A empresa que se compromete a adquirir o veículo acidentado com base na avaliação efectuada é […]
[…]
Caso tenha optado por ficar na posse do veículo acidentado a C1… informa e recomenda:
[…]
Caso opte por não ficar na posse do veículo acidentado a C1… informa:
[…]
27. No dia 07/06/2013, o autor respondeu com a carta junta a fls. 48-50 que foi dada por reproduzida [nela o autor, depois de reproduzir a carta já transcrita no facto 25, altera o 4º§ dessa transcrição que passa a ter a seguinte redacção em dois §§ - este parênteses e a transcrição da carta que se segue, foram colocados por este acórdão:]
“[…]
Nunca o M/Const poderá aceitar um valor de 2071€ para se sentir reparado pelos prejuízos e transtornos que o Vosso segurado lhe causou. Tal montante não será minimamente suficiente para o mesmo adquirir um veículo automóvel similar.
Da mesma forma que não poderá aceitar o valor de 1821€, ficando com o veículo automóvel, uma vez que tal montante não será suficiente para reparar o mesmo.
[…]”
28. Por carta datada de 28/06/2013, a 2ª ré escreveu o seguinte [ o teor desta carta, na parte que interessa, é agora transcrito, ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, ambos do CPC, na parte que interessa, em vez da síntese feita pela decisão recorrida]:
Em resposta sua carta datada de 07/06/2013, informamos que a nossa proposta se encontra de acordo com disposto no artigo art. 41 do DL 291/2007, de 21/08, ou seja, com base no valor venal do veículo à data antecedente à data do acidente, pelo que não vislumbramos qual a base da sua argumentação e contestação à nossa proposta de indemnização.
Mais informamos que o valor Eurotax, tabela utilizada pela APS, para um veículo de características iguais é de 2071€ e aquando a avaliação do veículo em questão, existia um veículo à venda no site H....pt (veículos usados) no valor de 2150€.
Neste sentido, resta-nos, informar que o valor máximo que podemos considerar será o valor de mercado, ou seja, 2150€, ficando o salvado para o proprietário, seu constituinte, pelo que propormos indemnizar 1900€ pela perda total do veículo ..-..-TE.”
29. ... proposta que o autor também não aceitou, “uma vez que tal não restitui a situação do mesmo (veículo sinistrado) que existiria não fosse o acidente”, no mais dando-se por reproduzido o teor da carta de 03/07/2013, junta a fls. 53-54 [o autor ainda diz: o veículo sinistrado tem compostura. Não terá qualquer interesse para o M/Const que o valor da reparação seja superior ao alegado valor de mercado, uma vez que o mesmo só ficará com a sua situação reconstituída com a reparação do seu veículo. Seria de todo inconcebível recorrer à compra de um veículo no site H....pt (veículos usados) e adquirir o veículo que V.Exª sugeriu pelo valor de 2150€. O veículo sinistrado fora comprado novo pelo M/const, fora sempre estimado por ele, trabalhou e sacrificou-se para o adquirir enquanto viatura nova. Não vai, agora, contentar-se em adquirir um veículo usado por terceiras pessoas, relativamente ao qual será impossível aferir o tratamento que teve ao longo dos anos e o estado real sem que se encontra. O M/const tem um carro, que se encontrava em óptimo estado de conservação. É esse veículo que o mesmo quer ver reparado e em estado similar ao que se encontrava antes da lesão/acidente ter ocorrido – esta transcrição foi feita por este acórdão].
30. No entretanto, seguiram-se telefonemas entre a ré e a mandatária do autor, tendo a 2ª ré mantido o valor da sua proposta.
31. A reparação do veículo do autor, do ano de 2002, com 175.766 quilómetros percorridos à data do acidente, orçava em 4463,30€, nos termos da peritagem da 2ª ré junta a fls. 81-84, que se deu por reproduzida.
32. ... e o valor venal do veículo, à data do embate descrito nos autos, era de 2200€ [este valor foi rasurado porque é alterado para 2150€ por força do que se decide mais abaixo – parênteses introduzidos por este acórdão].
33. Os salvados foram avaliados pela 2ª ré em 250€.
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Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
I
O facto 32, como se vê acima, refere que o valor venal do veículo, à data do embate descrito nos autos, era de 2200€.
A ré quer agora que se dê como provado que o valor venal do veículo era de 2150€, apesar de ter sido ela própria a alegar que o valor – sem o qualificativo de venal - era de 2200€ (art. 16 da contestação).
Para isso, no corpo das alegações, a ré diz que a testemunha E… disse, do minuto 4:45 ao minuto 6:16 do seu depoimento, que “o valor do carro pelo F… e através do G… foi de cerca de 2200€, entre 2000€ e 2150€” [sic], bem como que respondeu “sim” e “e exploramos em vários sites” à pergunta se tinha também chegado a fazer pesquisas na H....pt.
A ré ainda acrescenta que: “do documento n.º 2 junto com a contestação resulta igualmente que o veículo do autor teria um valor máximo de 2150€, valor esse que foi proposto pela ré.”
A decisão recorrida não diz porque é que fixou em 2200€ o valor venal do veículo e o autor nas contra-alegações não responde, em concreto, aos argumentos da ré.
Como se vê acima – nas cartas transcritas nos factos provados -, não existe qualquer documento nos autos que refira o valor de 2200€ e o único elemento de prova que refere esse valor é o depoimento da testemunha supra referido, que logo se desdiz quando refere que o valor é entre 2000€ e 2150€ (conjunto que não inclui 2200€…).
Apesar desta confusão de alegações e documentos originada pela ré, a troca de correspondência entre as partes e os documentos nela referenciados tornam claro o seguinte: a ré acaba por propor ao autor a indemnização pelo valor de 2150€ (ficando ela com os salvados), por ser esse o valor de um veículo com características iguais ao danificado, considerando ao mesmo tempo que esse é que era o valor de mercado (carta de 28/06/2013, fls. 52). Pelo que a ré considera que o valor de mercado e o valor de substituição é igual e esse valor é de 2150€, embora na contestação, por evidente lapso (por não existir qualquer elemento de prova que apontasse para o valor de 2200€), refira o valor 2200€ para o primeiro e de 2150€ para o segundo.
A decisão da matéria de facto sem se deter no assunto (como o revela a falta de fundamentação específica do ponto 32) certamente por ter considerado irrelevante a diferença de 50€, dá como provado o valor alegado por lapso pela ré (de 2200€), quando o único valor que estava minimamente indiciado era o de 2150€ e não o de 2200€.
Ou seja, no essencial a decisão da matéria de facto aceitou o valor indicado pela ré para o veículo, descontando o indicado lapso, valor de 2150€ que aqui – neste acórdão - também se aceita, pois que esse era então o valor de venda de um veículo com características muito semelhantes ao veículo do autor e o próprio veículo do autor – com o preço em novo de 10823€ e já com 11 anos e 2 meses e 175000km - também tinha sido avaliado quase pelo mesmo valor (2071€) segundo formas de cálculo correntes nas seguradoras (avaliações eurotax). Por outro lado, por exemplo, a Portaria n.º 383/2003, de 14/05, para efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 24.º do Código do IRS, prevê que o valor de mercado de um veículo, ao fim de 10 anos, já é apenas de 10% do seu valor inicial, o que aponta para valor ainda mais baixo.
Assim, em vez dos 2200€, aceita-se como provado o valor de 2150€.
II
Na decisão da matéria de facto dão-se como não provadas, sob a), as seguintes afirmações de facto feitas pela ré: “a ré propôs ao autor indemnizá-lo na quantia de 2150€, por carta de 27/05/2013, e colocou de imediato à disposição do autor essa quantia.”
No corpo das alegações a ré precisa o teor da conclusão sintetizada em 2 dizendo que a sua testemunha I... teria respondido do minuto 4:08 ao minuto 5:24 do seu depoimento às perguntas seguintes do seguinte modo: “Foram comunicados esses valores[?] Foi determinado o valor do veículo? Correcto? Sim, Sim, foi determinado o valor, comunicamos esses valores… colocamos à disposição a nossa proposta de indemnização. A partir dessa data vocês já tinham essa verba à disposição do autor? Sim, correcto.”
Diz também que “no que diz respeito a este mesmo facto, […] refere a testemunha E… […].” Mas a transcrição que a ré faz nada tem a ver com esta matéria.
A decisão recorrida explica que: “No que respeita [a estas afirmações], a sua não prova resulta do facto de a proposta de indemnização de 2150€ ter sido feita por carta de 28/06/2013 e não por carta de 27/05/2013, e não ter logrado, a 2ª ré, provar que colocou à disposição do autor tal quantia.”
O autor nas contra-alegações nada diz quanto à questão.
Posto isto,
A decisão recorrida, ao transcrever parte das cartas que a ré enviou ao autor e ao dar como reproduzido o seu conteúdo, já está a dar como provados os factos que interessam à decisão desta questão. A testemunha invocada utilmente pela ré, testemunha essa que é a signatária das cartas da ré, nada mais revelou saber, sobre estas afirmações, do que aquilo que consta das cartas. Ou seja, quanto à última afirmação, que é aquela que, na prática, não foi dada como provada - a ré “colocou de imediato à disposição do autor essa quantia” – a testemunha não revela razão nenhuma para ter conhecimento de que tal aconteceu realmente (no seu depoimento – ouvido, dificilmente, em ficheiro informático que a secção de processos deste tribunal teve que pedir e reenviar por correio electrónico por o mesmo não ter sido logo enviado pelo tribunal recorrido – a testemunha esclarece que não conhece o autor e não revela qualquer contacto com o mesmo ou com a respectiva mandatária). A parte do depoimento da testemunha que a ré quer aproveitar é apenas uma conclusão, forçada, não espontânea, daquilo que poderia resultar das cartas que a testemunha escreveu ou do facto delas terem sido escritas. Aliás, aquilo que a testemunha responde espontaneamente é que “colocamos à disposição a nossa proposta de indemnização.” Só depois, a nova pergunta da ré - “A partir dessa data vocês já tinham essa verba à disposição do autor?” -, é que a testemunha diz, “sim, correcto.”
Assim sendo, não há razão para dar como provadas tais afirmações de forma autónoma: aquilo que a ré fez, realmente, já está transcrito nos factos que transcrevem as cartas da ré; quanto à colocação da quantia à disposição do autor, tal não consta dessas cartas, como facto. Se é ou não possível concluir, dos factos provados, que das propostas da ré resultava a colocação, à disposição do autor, das quantias que eram referidas, já é algo que ultrapassa a matéria de facto, sendo uma conclusão a extrair (ou não), se necessário, dos factos provados.
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Do recurso sobre a matéria de direito
Valor da reparação ou valor de substituição do veículo
Se A tem um bem que vale 500 e esse bem é destruído culposamente por B, A tem direito à indemnização pelo valor necessário à compra de um bem que tenha as mesmas características do destruído (mesma marca, modelo, ano de construção, equipamento, estado de conservação, quilometragem…), que é o valor do custo da sua substituição ou valor de substituição (que alguns também chamam de valor patrimonial) e não pelo valor de mercado do bem (ou valor venal ou comercial). Se o bem fica apenas estragado, A tem direito à reparação da coisa (reconstituição natural) ou, se essa reparação for excessivamente onerosa, à indemnização pelo valor de substituição (indemnização por dinheiro ou por equivalente). É este, grosso modo, o regime geral que decorre dos arts. 483, 562, 563 e 566/1 e 2, todos do CC. E era a ele que, no domínio dos danos em automóveis por acidente de viação, a jurisprudência, com o apoio da doutrina, tinha chegado mais ou menos de forma estabilizada desde 1999.
(neste sentido, a anotação de Júlio Manuel Vieira Gomes, com ampla fundamentação e referências, ao ac. do STJ de 27/02/2003, 02B4016 do IGFEJ, publicada sob o título custo das reparações, valor venal ou valor de substituição? nos Cadernos de Direito Privado, nº. 3 Julho/Setembro 2003, e o próprio acórdão do STJ; e ainda os acórdãos do STJ de 16/11/2000, CJ.STJ.2000, III, págs. 124/125, 07/07/1999, CJ.STJ.99, III, págs. 16/19, e, depois, o de 21/02/2006, CJ.STJ.2006, págs. 83/85, e do TRL de 09/02/2006, CJ.2006.I, págs. 98/101 – todos citados por Paulo Mota Pinto, em Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, nota 1641, pág. 570, que ainda cita no mesmo sentido uma anotação de Vaz Serra, a um ac. do STJ, publicada na RLJ)
Em 2006, no âmbito de um conjunto de medidas legislativas que por muitos foram consideradas de claro favorecimento das seguradoras, o DL 83/2006, de 03/05, introduziu um regime, no âmbito do seguro obrigatório automóvel (do DL 522/85, de 31/12), de propostas de regularização do sinistro chamadas razoáveis, que previa, quando houvesse perda total do veículo (o que ocorria, na parte que interessa, quando “se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100% do valor venal do veículo imediatamente antes do sinistro” sendo que este era “calculado com base no valor de venda no mercado no momento anterior ao acidente ou com base nas tabelas de desvalorização comummente utilizadas, se superior” – art. 20-I, nº.s 1c e 2), a indemnização apenas por esse valor de venda (= valor venal) do veículo.
Dado que este regime se podia traduzir numa expropriação forçada dos donos dos veículos automóveis danificados, a doutrina considerou que o mesmo era materialmente injusto ou até inconstitucional.
(neste sentido, Paulo Mota Pinto, obra citada, notas 1639 e 1641, págs. 568/571, onde, para além do mais fala de “medida de claro favorecimento das seguradoras em prejuízo dos lesados”, de “escandalosa injustiça material”, de verdadeira expropriação forçada por utilidade particular (no caso, das seguradoras) e de inconstitucionalidade; já Júlio Gomes considerava que atender estritamente ao valor de mercado do bem, no sentido do seu valor de venda, seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada – 2ª coluna da pág. 57 do anotação citada)
Este regime das propostas razoáveis foi alterado pelo DL 291/2007, que, entre o mais, introduziu uma norma que estabelece que o valor do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente. É o nº. 2 do art. 41.
Perante esta alteração, ambos os regimes ficaram, nesta questão, iguais, embora continue a divergência de soluções quanto ao critério de escolha entre a reparação e a indemnização pelo valor de substituição: no regime das propostas “razoáveis”, basta que o valor da reparação, adicionado do valor do salvado, ultrapasse 100% ou 120% do valor venal do veículo, consoante o veículo tenha um ou mais anos, para se optar pela indemnização em dinheiro em vez da reparação (art. 40/1c do DL 291/2007), enquanto que, segundo as regras gerais da obrigação de indemnização, o critério é o da excessiva onerosidade para o devedor, sendo que a jurisprudência não se tem bastado com a simples superioridade do valor ou com a ultrapassagem em 20% (e, por isso, aquele regime, nessa parte, continua ser criticado Luís Menezes Leitão, Dtº das Obrigações, Almedina, 2010, 9ª edição, nota 892, pág. 419).
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Excessiva onerosidade
Quanto ao regime geral da obrigação de indemnização (arts. 562 e 566/1 do CC), dizia Antunes Varela, na parte que interessa ao caso, que “a reconstituição natural deve […] considerar-se um meio impróprio ou inadequado, quando for excessivamente onerosa para o devedor, isto é, quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável (Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 551).
Júlio Gomes, na anotação já referida, informa que: na doutrina inglesa encontra-se, com frequência, a afirmação de que o custo da reparação é hoje a medida normal do dano, mas não deve ultrapassar em princípio o valor da substituição, tratando-se de um bem fungível, e que num leading-case, relativo a um carro cujo valor de mercado foi calculado entre 80 a 85 libras esterlinas e o custo da reparação era de 192, se considerou que o lesado não tinha cumprido o seu dever de tomar todas as medidas razoáveis para diminuir o valor do dano ao efectuar reparações de valor superior ao valor comercial do veículo, não aceitando a posição de um dos juízes de atribuir uma indemnização de 105 libras (mais cerca de 23% em relação a 85). Na Alemanha a jurisprudência tem concedido regularmente ao lesado a possibilidade de exigir o custo das reparações, caso estas não ultrapassem em mais de 30% o valor de substituição do veículo. Em França a vítima tem direito à menor das duas somas, que representam o valor das reparações e o valor do objecto, sendo este, salvo raras excepções, o valor de substituição. Na Itália, entende-se que no caso de ter sido danificado um veículo de reduzido valor comercial, mas eficiente, a repristinação do património do lesado não pode deixar de comportar a reconstituição da idêntica capacidade de produzir utilidades de transporte pré-existente ao evento danoso, pelo que a obrigação ressarcitória pode dizer-se cumprida apenas pela prestação de uma soma não inferior ao preço de mercado de um veículo efectivamente susceptível de ser encontrado de características e eficiência análogas acrescida dos custos de pesquisa e da substituição.
Este autor, que mais atrás tinha dito que se lhe afigurava “muito mais completa a protecção que ao lesado é concedida, se se atender, em regra, não apenas ao valor venal do veículo, mas ao custo da sua substituição”, mais à frente, acrescenta que deixa em aberto a questão “de saber se sempre que as despesas de reparação do veículo excedam o custo de substituição, se deverá considerar que a reparação natural é excessivamente onerosa e ordenar a reparação por equivalente”, mas continua dizendo que se lhe afigura que “o juízo de excessiva onerosidade não se reduz à mera verificação de que o custo da reparação é superior ao da substituição ou a considerações do que é ou não razoável em termos de racionalidade económica” e que “a excessiva onerosidade só se pode decidir no caso concreto, atendendo e confrontando os interesses do lesado e os do lesante e determinando até que ponto é exigível ao lesante suportar o custo das reparações por tal corresponder a um interesse digno do lesado na integridade do seu património”. “Para este efeito”, diz, “poderão ser relevantes até interesses ideais do lesado”. E conclui, dizendo que “não nos repugna sequer considerar que há aqui um certo paralelo com o abuso de direito e que é quando a exigência de reparação natural se apresenta abusiva, confrontando o benefício comparativamente reduzido do lesado e o sacrifício do lesante, que tal exigência não deve ter tutela legal”.
Por sua vez, Menezes Leitão, obra e local citados, diz que “esta previsão [parte final do nº. 1 do art. 566 do CC] deve ser interpretada restritivamente sob pena de se pôr em causa o direito do lesado a dispor do seu próprio património [e em nota acrescenta: precisamente por esse motivo a jurisprudência sustentou que, no caso de alguém danificar um automóvel usado de reduzido valor comercial, mas que o lesado pretendesse continuar a utilizar para as suas deslocações, não se justificaria autorizar o lesante a indemnizar apenas o valor em dinheiro do automóvel, sob pretexto de a reparação ser mais cara que esse valor, já que tal implicaria privar o lesado do meio de locomoção de que dispunha e que não pretendia trocar por dinheiro, fazendo, de seguida, referência a vária jurisprudência até 2009]. Apenas quando a reconstituição natural se apresente como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante e se deva considerar abusiva por contrária à boa fé a sua exigência [pelo] lesado, é que fará sentido excluir o seu direito à reconstituição natural.”
Posto isto,
Como resulta do que antecede, não há hoje qualquer dúvida de que o valor a considerar, para os vários efeitos que estão aqui em causa, deve ser o valor de substituição e não o valor venal do veículo. Ora, com isto já se está a acolher a ideia de que a indemnização deve reparar não o valor abstracto, objectivo, do dano, que é aquilo que resultaria de se tomar em conta o valor que o lesado conseguiria apenas com a venda do veículo, mas sim o valor concreto, subjectivo, do dano, tomando-se em conta, por isso, o valor que seria necessário ao lesado, para adquirir um veículo com as mesmas características do anterior, ou seja, que tivesse o mesmo valor no seu património, isto é, o valor de substituição, aquilo que ele teria de gastar para adquirir um veículo semelhante (repara-se que foi isso que o TRP determinou no caso que foi confirmado pelo ac. do STJ anotado favoravelmente por Júlio Gomes; naquele acórdão não se indemnizou o lesado pelo valor da reparação mas sim pelo valor de substituição).
Assim sendo, quando se pretere a reparação (ou o custo da reparação) por haver uma manifesta desproporção com o valor de substituição - e só nesse caso é que pode haver essa preterição -, está-se já perante uma situação em que se considera que o valor de substituição, pelo qual será indemnizado o lesado, lhe permitirá adquirir um veículo semelhante ao seu (da mesma marca, modelo, ano de construção, equipamento, estado de conservação, quilometragem, etc.) e que, por isso, esse veículo lhe permitirá satisfazer todas as necessidades que o anterior satisfazia.
Pelo que, não tem razão de ser continuar a sustentar-se o argumento, referido por Menezes Leitão na nota referida acima, de que o valor da indemnização de um veículo de valor reduzido não permitirá ao lesado adquirir o meio de locomoção de que dispunha, porque esse argumento só seria válido em relação a uma indemnização que apenas considerasse o valor venal (ou comercial ou de mercado) do veículo e não o seu valor de substituição.
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Concretização da excessiva onerosidade
Quanto à forma de concretizar o que se deverá considerar a excessiva onerosidade nas regras gerais da obrigação de indemnização, o regime actual das propostas razoáveis (desconsiderando-se a questão do salvado que não tem valor autónomo para o lesado quando a reparação for feita…) pode servir de ponto de comparação pois que não se vê que, da forma como o faz actualmente, continue a merecer as críticas antigas (veja-se o que Júlio Gomes informa sobre os sistemas estrangeiros, que não se mostram mais favoráveis ao lesado, excepto o sistema alemão). Dito de outro modo, a previsão da possibilidade de o lesado exigir o custo das reparações caso estas não ultrapassem em mais de 20% o valor de substituição do veículo já assegura suficientemente, em princípio (e com isto está-se a admitir que as circunstâncias do caso concreto aconselhem uma percentagem um pouco superior), o interesse na integridade do seu património (nesta última parte parafraseou-se a anotação de Júlio Gomes, quando se refere à jurisprudência alemã e os 30% aplicados por ela).
Note-se que com isto não se está a aceitar a aplicação directa ou na íntegra do regime das propostas “razoáveis”, quando se tenha ultrapassado a fase da tentativa da resolução extrajudicial da situação, pois que se considera que esse regime não vincula os tribunais; neste sentido, os acs. do STJ de 25/03/2010 (344/07.0TACVD.P1.S1), de 09/09/2010 (2572/07.0TBTVD.L1); de 07/07/2009 (205/07.3GTLRA.C1); e do TRP de 17/03/2011 (2993/08.0TBPVZ.P1); com outra forma de pôr a questão, a sentença diz: “Porém, se não houver acordo, “e existir recurso às vias judiciais, a determinação da espécie e o quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação, integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no capítulo III do DL 291/2007, designadamente o art. 41” – ac. do TRC de 11/03/2008, 3318/06.5TBVIS.C1” e cita, ainda no mesmo sentido, os acs. do TRP 14/06/2010, 2247/08.2TBMTS.P1, e o do TRC de 09/01/2012, 153/11.2TJCBR).
As coisas tomarão, assim, a seguinte sequência:
Perante um veículo danificado por cuja indemnização deva ser responsabilizada a seguradora, esta, considerando que se está perante uma situação de perda total, deve propor um valor pecuniário para a indemnização, valor esse que é o valor venal ou comercial mas que, sendo calculado como é (com base na marca, modelo, ano e mês de construção, equipamento básico, quilometragem), corresponde também ao valor de substituição por um veículo semelhante (porque é semelhante para todos os veículos com estas mesmas características); cabe ao lesado, para que lhe seja pago um valor maior, ou para que seja reconhecido que tem direito à reparação do veículo, alegar e provar os factos necessários ao aumento desse valor. Se o valor da reparação for pouco superior (não mais do que cerca de 20%) ao valor de substituição, o lesado tem direito à reparação (ou ao valor dela); caso contrário tem apenas direito ao valor da substituição que ele conseguiu provar, em contraponto ao valor indicado pela seguradora.
Por tudo isto, quando o valor da reparação for superior ao valor de substituição há, em princípio, um excesso em relação ao valor que deveria ser indemnizado, não se estando, por isso, nessa parte, perante um valor indemnizatório, pelo que não será correcto estar a responsabilizar a seguradora por ele, pois que já não se estaria no domínio da função desta de indemnizar danos. A reparação será excessivamente onerosa porque vai para além do valor necessário à reparação dos danos e será excessivamente onerosa para a seguradora porque esta tem por função indemnizar danos e o valor em excesso vai para além dessa função.
Não é, por isso, correcto dizer-se, como por vezes se diz, que a reparação pretendida não se revela excessivamente onerosa para uma seguradora, dado que o valor em si deve ser entendido como pouco relevante para uma seguradora, não sendo crível que possa ter reflexos significativos na sua situação patrimonial; ou, na mesma linha de argumentos, invocar-se o reduzido valor da diferença no caso concreto – como, por exemplo, apenas 1000€ ou 2000€; pois que tais argumentos esquecem que a solução encontrada deve ser geral e abstracta, susceptível de aplicação a casos análogos; ora, basta imaginar-se o mesmo caso, mas com os valores multiplicados por 10, para se ver que não é razoável que, sem razões para o efeito, o lesado queira quase 45.000€ para reparar um veículo que valia apenas 21.500€; para além de que os responsáveis não são sempre seguradoras e uma diferença de 1000€ ou 2300€, não é um valor irrisório para um particular médio.
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Factores para aumento do valor do veículo
Os factores que devem ser tidos em consideração, para aumento do valor do veículo são (retiram-se da anotação de Júlio Gomes): ser um veículo de colecção ou que poderia ser catalogado como tal, ou uma peça de museu, ou ter sido concebido com um veículo com uma carroçaria especial; o funcionamento dele como novo apesar da sua idade avançada; o veículo ter já alguns anos mas uma quilometragem muito reduzida e encontrar-se em estado excepcionalmente bom; o veículo ter sido recentemente reparado; ter equipamentos recentemente comprados, como pneus ou peças novas; o lesado efectuava todos os anos despesas muito superiores ao valor comercial do carro, tendo-se tornado um veículo único; etc.. Ou seja, os factores que diferenciam os veículos automóveis daqueles que tenham características semelhantes (marca, modelo, ano de construção, equipamento básico), isto é, aqueles que lhe dão um particular valor no património do lesado (e daí que antes se falasse também em valor patrimonial).
Outros factores que por vezes se vêem invocados – como por exemplo, o ser usado quotidianamente nas deslocações pessoais e profissionais do lesado, o ter as revisões em dia, o ser tratado com estima e cuidado, ou seja, no caso dos autos, os factos dados como provados sob 14, 15 e 21 -, não devem ser tidos em conta, pois que essas mesmas afirmações podem ou devem ser feitas relativamente a qualquer veículo automóvel com características semelhantes. Se o lesado puder adquirir um veículo com as mesmas características, vai poder continuar a usá-lo quotidianamente para tudo aquilo que antes usava (o valor de uso é o mesmo). Só tem sentido invocar estes factores com o fim de demonstrar a necessidade de qualquer veículo para o lesado, e não daquele veículo em concreto, o que normalmente se fará para demonstrar a necessidade de um veículo de substituição temporário (que é coisa distinta de valor de substituição de um veículo).
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Valor do veículo no caso dos autos
Ora, no caso dos autos, a seguradora indicou um valor do veículo, com o sentido claro, decorrente da proposta que tinha enviado ao lesado, de que o valor indicado, valor de mercado, era o valor de um veículo com características iguais ao danificado, isto é, pelo qual ele o poderia adquirir, indicando-lhe até que estava à venda, e onde, um veículo por esse valor (e cumpriu, assim, a recomendação do provedor de justiça, referida pela sentença - recomendação 2/B/2009, do provedor de justiça, de 29/05/2009, de “a empresa de seguros, ao propor a regularização de um sinistro com base no conceito de perda total, não se limitar a indicar o valor da indemnização por perda total, indicando, outrossim, a disponibilidade no mercado de veículo automóvel com características similares às do veículo sinistrado e que franqueie ao lesado uma utilização comparável à que este proporcionava.”)
Este valor, valor venal que a seguradora considerava correspondente ao valor de substituição, era muito inferior ao valor da reparação, que era de, segundo a seguradora, 4463,30€ (e ainda seria mais perante o valor apresentado pelo lesado, de 5069,42€). Ou seja, um excesso de mais de 100%
Ora, perante isto, o lesado nem pôs em causa esse valor (na petição inicial o que diz é que o valor proposto seria manifestamente insuficiente para reparar o seu veículo automóvel – arts. 36 e 39) nem alegou quaisquer factores relevantes (dos como tais considerados acima) para o aumento desse valor. E, em consequência, não se provaram factos que permitissem chegar à conclusão que o valor de substituição do veículo fosse superior ao valor indicado pela seguradora. Caso estivessem provados, seria esse o valor que teria de ser considerado. Como não existem outros factos, o valor a considerar é o valor indicado pela seguradora e perante ele o valor da reparação é manifestamente excessivo, já que com ele o lesado poderia, na lógica das coisas, comprar um veículo com características semelhantes às do seu, satisfazendo com ele as mesmas necessidades que o anterior satisfazia.
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Ónus da prova de um valor superior
O que antecede tem como pressuposto que é o lesado que tem o ónus de alegar e provar que o valor de substituição é superior ao invocado pela seguradora. Desde logo, porque só ele é que sabe os factores que permitirão quantificar o valor que o veículo tinha no seu património, tal como só ele é que saberá, para além das normais, quais as outras características que o seu veículo tinha e que têm de ser cobertas pelo valor de substituição (o equipamento que tinha comprado para o seu veículo, o valor das reparações que lhe tinha acabado de fazer, o estado do mesmo, etc.).
Ou seja, se a seguradora diz que o valor do veículo é de 2150€, tendo em conta as características conhecidas do mesmo, o que equivale a indicar o valor de substituição e a dizer que um valor superior já não será uma indemnização mas um enriquecimento injustificado do lesado, só o lesado é que poderá saber o que é que o seu veículo tem a mais de modo a justificar um custo de substituição superior e que, por isso, com o valor indicado pela seguradora não conseguirá comprar um veículo com características semelhantes ao seu, ficando os seus danos por indemnizar na íntegra.
Ou seja, é ao lesado que incumbe (ou na petição inicial ou no articulado previsto no art. 3/4 do CPC) provar um valor de substituição superior, quer enquanto facto modificativo de um facto modificativo excepcionado pela seguradora (esta tem de alegar e provar o valor da reparação e o valor venal que corresponderá ao valor de substituição por ela proposto; o lesado, por sua vez, terá de alegar os factores que aumentem esse valor de substituição – art. 342/2 do CC; não teria sentido impor à seguradora a prova de factos que aumentassem o valor de substituição, desde logo porque ela não seria desfavorecida com a falta de prova deles e, depois, porque ela, por regra, não os conhecerá), quer enquanto facto constitutivo do direito à indemnização em dinheiro pela perda total (art. 342/1 do CC - neste sentido, o ac. do TRC de 14/12/2010, 380/09.2TBCRB; e o ac. do STJ de 22/05/2014, 4135/07.0TBVFR. P1.S1: É ao autor que incumbe a alegação e prova de que o valor de substituição do veículo é superior ao seu valor comercial anterior ao acidente, bem como a prova de qual é esse valor).
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Outra jurisprudência
No mesmo sentido do seguido aqui, vejam-se os acs. do TRP de 01/06/2010, 1944/08.7TBAMT.P1 (valor do veículo 2200€ e valor da reparação 4648,87€); do TRC de 14/12/2010, 380/09.2TBCBR.C1 (o valor do veículo era de 5500€ e o da reparação de 16.887,40€); do TRP de 28/06/2013 (publicado na CJ.2013.III, págs. 175/177; o valor comercial do veículo era 9000€, o valor da reparação era de 16.600€); do TRP de 16/01/2014, 4135/07.0TBVFR.P1 (valor do veículo: 8500€ e valor da reparação 25.715€, confirmado pelo ac. do STJ de 22/05/2014, 4135/07.0TBVFR.P1.S1); do TRP de 10/04/2014, 1942/12.6TJVNF.P1 (o valor do veículo era de 3266€ e o da reparação era de 7975,13€, valor da reparação); e do TRL de 09/07/2014, 3100/12.0YXLSB.L1-1 (o valor estimado para a reparação dos danos sofridos pela viatura, 3672,50€, adicionado ao valor do salvado, era superior a duas vezes mais o valor patrimonial da viatura e a lesada tinha reconhecido que o seu interesse ficaria satisfeito mediante o recebimento de uma quantia na ordem dos 1500€); de todos estes acórdãos só o do TRP de 01/06/2010 tem um facto onde está consignado expressamente que o valor dado ao veículo permitia ao lesado adquirir um veículo de características semelhantes.
Contra, no entanto, para uma hipótese um pouco menos desproporcional que a dos autos, veja-se o ac. do STJ de 21/04/2010, 17/07.4TBCBR. C1.S1 (valor do veículo de 1750€, custo da reparação de 2991,47€); para duas hipóteses em que a desproporção era muito maior, vejam-se os acs. do TRC de 16/09/2014, 1594/11.0TBFIG.C1 (valor do veículo 600€; valor da reparação 5730,11€), e do TRC de 08/04/2014, 1091/12.7TJCBR.C1 (valor do veículo 962€ e valor da reparação 4153,83€ - neste caso discriminam-se várias reparações anteriores e respectivo custo para reforçar o bom estado do veículo e por isso um valor de substituição superior); para outras hipóteses em que a fundamentação vai no mesmo sentido destes, mas em que o custo da reparação não ultrapassava de forma relevante o de substituição e portanto a questão não se punha nos mesmos termos da dos autos, vejam-se as duas decisões citadas pela sentença recorrida: ac. do TRP de 25/03/2013 1170/10.5TJVNF.P1 (o veículo tinha o valor de 18.500€ e o valor da reparação era de 18.822€) e a decisão individual do TRP de 17/03/2014, 2018/11.9TBVLG.P1 (o veículo tinha o valor de 8900€ e o custo da reparação era de 9142,20€); e ainda o ac. do STJ de 05/06/2008, 08P1370 (valor do veículo 15.500€ e valor da reparação 17.277,89€).
Outros acórdãos seguem uma fundamentação muito semelhante à seguida nestes autos, mas depois optam pelo valor da reparação, com base na consideração de que a matéria de facto não indicia que, com o montante do valor indicado, o lesado pudesse adquirir um veículo idêntico ou, dito de outro modo, que, no caso, a seguradora não tinha conseguido provar que o lesado poderia adquirir no mercado veículo de características iguais ao veículo do sinistrado pelo valor indicado (a primeira formulação é do ac. do STJ de 19/03/2009, 09B0520 - o veículo sinistrado era uma viatura pesada de transporte de cimento a granel, com o valor de 3500€, e o valor da reparação era de 23.584,74€; note-se que não consta a matéria de facto provada, mas diz-se que o veículo estava “especialmente preparado” para aquela actividade, o que indicia que lesado tinha feito a prova de que o valor de substituição era necessariamente superior ao valor venal porque o veículo tinha sido especialmente preparado -; a segunda é do TRP de 29/05/2012, 6029/10.3TBMTS.P1 - diz-se que a reparação da viatura, reconstituição natural - 5403,18€ -, será excessivamente onerosa por confronto com a indemnização por equivalente, se for superior ao montante necessário para adquirir no mercado veículo com características idênticas ao sinistrado e que satisfizesse as mesmas utilidades ao lesado, que no caso era de 2750€); no ac. do STJ de 04/12/2007, 06B4219 (valor do veículo 1200€ e valor da reparação 5834,50€), também se diz que “se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta ‘encostar-se’ ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades ‘danificadas’); fundamentação semelhante vê-se ainda no ac. do TRP de 16/06/2014, 1045/12.3TBESP.P1. Ora, como se defendeu acima, o ónus da prova de um valor de substituição superior ao valor indicado pela seguradora deve ficar a cargo não desta mas do lesado.
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Conclui-se assim que o valor que a seguradora propôs ao autor, de 2150€, em 28/06/2013, é um valor que, face aos factos provados, corresponde ao valor de substituição do veículo danificado e que sendo o valor da reparação mais do dobro do valor do veículo, o excesso sobre este já não representaria um valor indemnizatório, pelo que a seguradora não deve ser condenada a suportá-lo.
Pelo que o valor da indemnização deve ser agora fixado em 2150€, menos o valor do salvado (250€) que ficaram na posse do autor. Ou seja, 1900€.
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Dano da privação do uso
Não se justificando a recusa do autor em aceitar o valor proposto para a indemnização, o período de privação de uso do veículo não deve ir para além da data da proposta respectiva, 28/06/2013. E isto independentemente de não se ter provado o facto que a ré queria que fosse aditado a estes autos, ou seja, a colocação do dinheiro na disponibilidade do autor a partir dessa data. É que, fazendo-se a proposta de um valor indemnizatório, sem referência à data em que se cumpriria a obrigação assumida, ficava-se perante uma obrigação pura, cujo cumprimento poderia ser exigido a qualquer momento, e por isso no próprio momento da aceitação, ficando a seguradora em mora se não a pagasse no momento em que lhe fosse exigida: arts. 777/1 e 805/1, ambos do CC.
Assim, o valor da privação do veículo, que foi fixado em 10€ por dia, deve ser de apenas 490€ (= 12/05/2013 a 29/06/2013 = 49 dias x 10€)
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Outros danos patrimoniais
Tal como não se justifica, perante a proposta de um valor indemnizatório que cobria os danos sofridos, a efectivação de diligências do autor para obter um valor superior, que deram origem aos 39€ reclamados pelo autor a esse título.
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Quanto ao valor dos danos não patrimoniais
Estes danos referem-se, na sentença, aos factos sob 19, 20 e 21, sendo que nada nos autos permite dizer que esses factos tenham sido decorrência da privação do uso do veículo durante o período agora aceite, ou seja, de 12/05/2013 a 28/06/2013. Isto é, esses factos estavam dados como consequências de um período de previsão do uso do veículo até à propositura da acção, não daquele período mais curto.
Mas mesmo que se pudessem considerar, de um ponto de vista naturalístico, efeitos daquele período mais curto, não o deveriam ser de um ponto de vista normativo. Ou seja, não se considera que um período de privação de uma viatura, durante 49 dias, possa ser uma causa adequada - (arts. 483 e 563 do CC) - do autor ter passado a ser uma pessoa mais isolada, evitando o convívio social, tornando-se mais agressivo para com a mulher e intolerante para com o filho, tornando a sua vida familiar desagradável.
Aceita-se que essas possam ser as consequências perante o prolongar do litígio com a seguradora e a frustração decorrente da não satisfação das pretensões do autor, mas como esse prolongar do litígio se deveu a uma recusa do autor em aceitar um valor indemnizatório que agora se considera correcto, o mesmo não pode ser imputado à ré.
Relativamente ao período anterior a esse prolongar do litígio, o máximo que se aceita como naturais consequências no estado de espírito do autor, são contrariedades, aborrecimentos e incómodos decorrentes da privação do veículo e da recusa da seguradora em chegar a um valor correcto, mas estes não devem merecer indemnização como danos não patrimoniais por não terem suficiente dignidade para o efeito (art. 496/1 do CC), para além de já estarem cobertos pelo valor atribuído a título de indemnização da privação do uso.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, alterando-se a condenação das rés para o valor de 2390€ (1900€ mais 490€), com juros de mora à taxa legal desde a data da decisão da 1ª instância até integral pagamento, absolvendo-se do demais peticionado.
Custas pelo autor e pela 2ª ré na proporção do decaimento (quer na acção quer no recurso; valor do recurso: 10.178,42€), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Porto, 19/02/2015
Pedro Martins
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida